Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
106/18.0YRCBR.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: NUNO PINTO OLIVEIRA
Descritores: REVISÃO E CONFIRMAÇÃO DE SENTENÇA
UNIÃO DE FACTO
ESCRITURA PÚBLICA
JUNTA DE FREGUESIA
LEI ESTRANGEIRA
Data do Acordão: 02/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSOS ESPECIAIS / REVISÃO DE SENTENÇAS ESTRANGEIRAS.
Doutrina:
- Carlos Ferreira de Almeida, Texto e enunciado na teoria do negócio jurídico, vol. I, Livraria Almedina, Coimbra, 1992, p. 121 a 126;
- Francisco Manuel Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (com a colaboração de Rui Manuel de Moura Ramos), Curso de direito da família, vol. I, Introdução. Direito matrimonial, 5.ª ed., Imprensa da Universidade, Coimbra, 2016, p. 71 e 72;
- José Alberto dos Reis, Processos especiais, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 1982 (reimpressão), p 156 e 202;
- Ricardo Fiúza e Regina Beatriz Tavares da Silva (coord.), Código Civil comentado, 8.ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2012.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 978.º, 980.º, ALÍNEAS C) E F) E 985.º, N.ºS 1 E 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 22-05-2013, PROCESSO N.º 687/12.1YRLSB.S1;
- DE 25-06-2013, PROCESSO N.º 623/12.5YRLSB.S1.
Sumário :
Nem a declaração da junta de freguesia prevista pelo direito português nem a escritura declaratória de união estável prevista pela lei brasileira fazem com que o acto composto pelas declarações dos requerentes seja “caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido”, com a consequência de a escritura declaratória de união estável apresentada pelos requerentes não poder ser confirmada/revista
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. — RELATÓRIO

1. AA, de nacionalidades brasileira e portuguesa, e BB, de nacionalidade brasileira, ambos residentes na …, n.° ..., 2.º Esquerdo, nas …, intentaram a presente acção de revisão/confirmação de sentença estrangeira, pedindo que seja confirmada a escritura pública declaratória de união estável que os requerentes outorgaram entre si em 20 de Junho de 2017 no Cartório do … Ofício de Notas, sito na Rua …, n.° …, …, Brasil, onde declaram a união estável entre ambos, desde Junho de 2013.

    Alegaram, em resumo, que vivem um com o outro em união estável, em condições análogas às dos cônjuges, desde Junho de 2013; que em 20 de Junho de 2017 no Cartório do … Ofício de Notas, sito na Rua …, n.° …, …, Brasil, outorgaram escritura pública de união estável, onde declaram a união estável entre ambos, desde Junho de 2013; e que pretendem formalizar essa dita união em Portugal, pelo que necessitam da confirmação judicial de tal escritura pública, o que requerem.

        Juntaram a referida escritura, conforme fls. 11 dos autos.

2. O Ministério Público apresentou alegações escritas, conforme fls. 19 a 26 dos autos, pugnando pelo indeferimento da pretensão formulada.

  Alegou, em resumo, que a escritura pública em causa não contém qualquer declaração de uma entidade administrativa a confirmar a declarada “união estável” e que a relação jurídica de união estável depende de uma declaração judicial, o que não existe no presente caso.

 3. Em contraditório facultado aos Requerentes, vieram pugnar pelo deferimento da pretensão formulada.

   Alegaram que a escritura pública em causa é um documento dotado de fé pública e é um instrumento útil para comprovar a convivência contínua, pública e duradoura, com fins de constituição familiar, conforme aos arts. 1723.° a 1727.° do Código Civil Brasileiro, pelo que não carece de prévia declaração judicial para poder e dever ser confirmada em Portugal.

   4. O acórdão recorrido concedeu a “revisão/confirmação da dita escritura pública declaratória de união estável que os requerentes outorgaram entre si em 20 de Junho de 2017 no Cartório do … Ofício de Notas, sito na Rua …, n° …, …, Brasil, junta a fls. 11, para os devidos e legais efeitos”.

   5. O Ministério Público interpôs recurso de revista, “nos termos do art. 985.º , n.ºs 1 e 2 e por referência ao art. 980.º, als. c) e f), ambos do Código de Processo Civil”, pugnando pela revogação do acórdão recorrido e finalizando a sua alegação com as seguintes conclusões:

1.º — O documento a que se referem os artigos 8 , 12.º, 13.º e 14.º da petição inicial, o qual constitui fls. 11 dos autos em epígrafe, consiste numa escritura pública outorgada por ambos os Requerentes;

2.° — A escritura pública supra referida, não contém qualquer declaração da entidade administrativa que a lavrou, a confirmar a união estável declarada pelos Requerentes, atestando apenas que os Requerentes declararam perante o tabelião do … Ofício de Notas, viverem em união estável desde há 4 anos;

3.º — A escritura pública em questão, corporiza ou formaliza, tão somente, um pacto de união estável que os Requeridos estabeleceram entre si;

4.º — O Código Civil Brasileiro de 2002 prevê, no seu art. 1725.º, a possibilidade de os conviventes regularem alguns aspectos da sua união de facto através de contrato escrito, podendo dirigir-se aos serviços notariais para celebrar estes contratos, surgindo, pois, a figura do contrato de coabitação e que se pode caracterizar como acordo através do qual os conviventes constroem uma disciplina jurídica destinada a regular a sua união de facto, evitando, desta forma, a ocorrência de litígios que possam surgir na vigência da sua vivência em comum ou aquando da sua dissolução (cfr. Tiago Nuno Pimental Cavaleiro, “A União de Facto No Ordenamento Jurídico Português”);

5.º — Dispõe o art° 1723 o seguinte:

 "É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.

 § 1.º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente”.

 6.º — No dia 5 de Maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal julgou a ADPF 132 e reconheceu, por unanimidade, a validade das uniões estáveis de casais do mesmo sexo.

7.º — O referido preceito legal fixou elementos mínimos para a sua configuração e comprovação da união estável: a) convivência pública; b) contínua; c) com o objectivo de constituir família; d) que não ocorram os impedimentos do art. 1521.º à excepção do inciso VI relativamente à pessoa casada se achar separada de facto ou judicialmente;

8.º — Assim terá de ser o Juiz no âmbito de uma acção destinada ao reconhecimento da união de facto, que determinará se se encontram preenchidos os requisitos elencados no art. 1723.º do referido CCivil (cfr. Kelly Baron in “A União De Facto no Direito Comparado: Portugal e Brasil, Faculdade de Direito / Escola do Porto 2016);

9.º — Importa apurar objectivamente e não a partir da intenção das pessoas que integram a união estável, se o relacionamento existente preenche ou não os requisitos do art° 1723 do C. Civil Brasileiro, isto é, se existe ou não união estável em que não ocorrem os impedimentos do art. 1521.º do C. Civil Brasileiro;

10.º — A união de facto é disciplinada em Portugal pela Leí n°7/2001, de 11 de Maio, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 2372010, de 30 de Agosto e pela Lei n.º 272016, de 29 de Fevereiro;

11.º — De acordo com o artigo 2.º-A da referida Lei da União de Facto a união de facto pode comprovar-se através de prova testemunhal ou por declaração emitida pela junta de freguesia competente acompanhada de declaração de ambos os membros da união de facto, sob compromisso de honra, de que vivem em união de facto há mais de dois anos, e de certidões de cópia integral do registo de nascimento de cada um deles;

12.º — Assim, o documento em referência porque não contém qualquer declaração ou decisão de entidade pública não satisfaz as exigências de prova, nem da lei brasileira nem da lei portuguesa;

13.º — Desconhecendo-se se existe algum impedimento matrimonial estabelecido no art. 1723, § 1.º do C.Civil Brasileiro a que equivale o art. 2.º da Lei da União de Facto em Portugal — que corresponde quase na sua totalidade aos impedimentos dirimentes do casamento, previstos nos arts. 1601.º e 1602.º do C.Civil Português;

14.º — Sendo certo que a verificação de impedimentos obsta obsta á produção de direitos ou benefícios fundados na união de facto — art. 2.º da Lei n°7/2001, de 11 de Maio, alterada pela Lei n.º 2372010, de 30 de Agosto, a que corresponde o art. 1723.º, § 1.º, do C.Civil Brasileiro;

15.º — Nos termos do art° 980° do CPC, para que a sentença estrangeira seja confirmada é desde logo necessário que haja uma sentença ou decisão de entidade pública que respeite os requisitos de validade e eficácia da lei competente;

16.º — O documento que constitui fls. 11 da acção em referência e que segundo os Requerentes incorpora a sentença revidenda, não contém qualquer decisão nem tão pouco qualquer declaração da entidade administrativa que lavrou a referida escritura pública, que ateste os factos aí descritos;

17.º — No caso vertente, não se encontram reunidos os pressupostos de aplicação do processo de revisão de sentença estrangeira (cfr. Acs. do TRL, de 18.12.2012: Proc. N° 1339/09 e de 17.01.2013, Proc. n.º 623/12. dgsi. Net) pelo que o douto acórdão recorrido ao conceder a revisão/confirmação da referida escritura pública declaratória de união estável violou o disposto nos arts. 978.º, n.º 1 e 980.º ambos do CPC”.

  6. O recurso foi admitido em 20 de Dezembro de 2018.

  7. Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cf. arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608.º, n.º 2, por remissão do art. 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), a questão a decidir, in casu, é a seguinte: A escritura declaratória de união estável, “em que os Requerentes declaram a união ou coabitação estável entre ambos, como entidade familiar e companheiros, desde Junho de 2013”, contém uma decisão administrativa ou judicial sobre direitos privados, que possa ser apreciada ou revista para que tenha eficácia em Portugal?

II. — FUNDAMENTAÇÃO

         OS FACTOS

   Foram os seguintes os factos dados como provados no acórdão recorrido:

1. - AA, de nacionalidades brasileira e portuguesa, é filho de CC e de DD, e nasceu em 14 de Maio de 1991, sendo titular do cartão de cidadão nacional com o n° …, válido até 24/07/2022.

2. - BB, de nacionalidade brasileira, nasceu em 31 de Maio de 1992, e é portador do passaporte com o n° …, emitido em 28/02/2015 pelo SR/DPF/RJ, Brasil, válido até 27/02/2020.

3. - Em 20 de Junho de 2017, no Cartório do … Ofício de Notas, sito na Rua …, n° …, …, Brasil, os requerentes outorgaram entre si a escritura pública declaratória de união estável junta a fls. 11, onde declaram a união ou coabitação estável entre ambos, como entidade familiar e companheiros, desde Junho de 2013.

4 - Os Requerentes, ambos residentes na Rotunda …, n.° ..., 2.° Esq.°, nas …, intentaram a presente ação de revisão/confirmação de sentença estrangeira, pedindo que seja confirmada a dita escritura pública declaratória de união estável que os requerentes outorgaram entre si em 20 de Junho de 2017 no Cartório do … Ofício de Notas, sito na Rua …, n° …, Rio de Janeiro.

            O DIREITO

  1. O Ministério Público alega ter legitimidade para “nos termos do art. 985.º , n.ºs 1 e 2 e por referência ao art. 980.º, als. c) e f), ambos do Código de Processo Civil”.

            O art. 985.º, n.º 2, do Código de Processo Civil determina que “[o] Ministério Público, ainda que não seja parte principal, pode recorrer com fundamento na violação das alíneas c), e) e f) do artigo 980.º”; a alínea c) do art. 980.º, estabelece que “[p]ara que a sentença seja confirmada é necessário […] [q]ue provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses” e a alínea f) do art. 980.º estabelece que “[p]ara que a sentença seja confirmada é necessário […] [q]ue não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português”.

  O princípio do numerus clausus ou da tipicidade dos fundamentos do recurso pelo Ministério Público, consagrado (pelo menos) desde o Código de Processo Civil de 1939 [1], poderia porventura pôr um obstáculo à admissibilidade da presente revista.

   O caso não corresponde exactamente nem à hipótese da alínea c), por não haver nem fraude à lei, nem tão-pouco ofensa da reserva de competência exclusiva dos tribunais portuguesas, nem à hipótese da alínea f), por não haver ofensa da ordem pública internacional.

   Embora o caso não corresponda exactamente nem à hipótese da alínea c), nem à hipótese da alínea f), os argumentos em geral relevantes em tema de interpretação das leis depõem no sentido de que o Ministério Público tenha, a fortiori, legitimidade para recorrer com o fundamento de que não há qualquer decisão, frustrando-se a possibilidade de se formular-se um juízo, designadamente, sobre a fraude à lei, ou sobre a ofensa da ordem pública.

 2. O termo decisão sobre direitos privados deve interpretar-se em termos amplos.

   Em primeiro lugar, embora se fale decisões proferidas por tribunal estrangeiro, o sentido do termo decisão deve interpretar-se em termos suficientemente amplos para abranger decisões proferidas seja por autoridades judiciais, seja por autoridades administrativas [2].

     Em segundo lugar, embora haja uma diferença entre o sentido de uma declaração contendo um enunciado assertivo ou constativo [3] e o sentido de uma declaração contendo um enunciado performativo [4] — entre uma declaração, designadamente sob compromisso de honra, de que um facto é verdadeiro e uma declaração de que se quer que um efeito se produza, ou não se produza —, o sentido do termo decisão dos arts. 978.º e 980.º deve interpretar-se em termos de abranger, p. ex., as decisões que reconhecem uma determinada circunstância ou uma determinada qualidade [5].

    Excluídas ficam contudo as decisões judiciais ou administrativas invocadas pelos Requerentes como simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de decidir sobre os direitos atribuídos ou reconhecidos em Portugal (art. 980.º, n.º 2, do Código do Processo Civil) [6].

   I. — O acórdão recorrido considera que a escritura pública em causa é “uma declaração sob compromisso de honra” e que, por ser uma declaração sob compromisso de honra, “tem precisamente a mesma função da […] declaração administrativa” prevista no art. 2.º-A da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, na redacção da Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto.

   O Ministério Público contesta-o, dizendo que a declaração em causa não deve ser confirmada com base em dois argumentos: em primeiro lugar, com base no argumento de que a escritura não preenche os requisitos nem da lei brasileira, nem da lei portuguesa e, em segundo lugar, ainda que preenchesse os requisitos da lei brasileira ou da lei portuguesa, com base no argumento de que não contèm nenhuma decisão que pudesse ou devesse confirmar-se.

  II. — Examinemos o primeiro argumento — de que a escritura apresentada pelos Requerentes não preencheria nem os requisitos da lei brasileira, nem os requisitos da lei portuguesa.

  Não preencheria os requisitos da lei brasileira, porque a lei brasileira exigiria uma decisão judicial — a união de facto só se tornaria juridicamente relevante desde que fosse judicialmente reconhecida — e não preencheria os requisitos da lei portuguesa, porque a lei portuguesa exigiria que a prova da união de facto fosse feita por declaração emitida pela junta de freguesia competente ou por prova testemunhal, e a declaração emitida pela junta de freguesia competente teria um valor probatório superior ao da declaração emitida pelos Requerentes e formalizada em escritura pública.

   Entendemos de que o argumento não procede — e que não procede nem para o direito brasileiro nem para o direito português. O direito brasileiro não exige uma decisão judicial para o reconhecimento da união de facto [7] e o direito português não exige que a prova seja feita por uma declaração da junta de freguesia competente. Em todo o caso, a prova feita por uma declaração da junta de freguesia não tem uma força superior à de uma escritura pública.

   Como escrevem os Professores Francisco Manuel Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira,

A prova da união de facto é normalmente testemunhal; mas a possibilidade de prova documental não deve excluir-se. Interpretando com largueza o termo vida no art. 34.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 135/99, de 22 de abril, que regula o modo como ‘os atestados de residência, vida e situação económica dos cidadãos’ devem ser passados pelas juntas de freguesia, pode admitir-se que a junta de freguesia da residência dos interessados passe atestado comprovativo de que uma pessoa vive ou vivia em união de facto com outra. […]

Não se tratando, porém, normalmente, de facto atestado ‘com base nas percepções da entidade documentadora’ (art. 371.º, n.º 1, CCiv), o documento não faz prova plena, podendo provar-se que o facto não é verdadeiro, pois a união de facto não existiu ou não existiu durante determinado período. O documento prova que os interessados fizeram perante o funcionário a afirmação de que conviviam maritalmente desde certa data, mas não prova que seja verdadeira a afirmação” [8].

   Entre a força probatória da declaração emitida pela junta de freguesia e da escritura pública há uma relação de semelhança — como a declaração emitida pela junta de freguesia, a escritura “prova que os interessados fizeram perante o funcionário a afirmação de que conviviam maritalmente desde certa data, mas não prova que seja verdadeira a afirmação”.

  III. — Examinemos agora o segundo argumento — de que a escritura pública não preenche os requisitos do art. 978.º do Código de Processo Civil, por não conter qualquer decisão.

    a) O teor do art. 978.º, n.º 2, do Código de Processo deixa claro que a confirmação / revisão da escritura declaratória de união estável não é necessária para que tenha eficácia em Portugal.

   Independentemente de ser ou não confirmada / revista, a escritura declaratória de união estável prevista pelo direito brasileiro sempre será um simples meio de prova, sujeito à apreciação de quem haja de decidir sobre o reconhecimento de direitos constituídos pela união de facto [9].

    b) Esclarecido que a confirmação ou revisão não é necessária, deve determinar-se se é ou não possível — se a escritura pública pode ou não pode ser confirmada ou revista.

    O alcence do termo decisão relevante para efeitos do art. 978.º foi apreciado, designadamente, pelos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Maio de 2013, no processo n.º 687/12.1YRLSB.S1, e de 25 de Junho de 2013, no processo n.º 623/12.5YRLSB.S1, concluindo-se em cada um dos acórdãos que abrange casos de “emissão formal da vontade da entidade administrativa responsável pelo acto, ainda que de carácter meramente homologatório”, e casos em que não há exactamente uma emissão formal de vontade — em que há, tão-só, “um acto caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido”.

    Ora nem a declaração da junta de freguesia prevista pelo direito português nem (muito menos) a escritura declaratória de união estável prevista pela lei brasileira fazem com que o acto composto pelas declarações dos Requerentes seja “caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido” — com a consequência de que a escritura declaratória de união estável apresentada pelos Requerentes não pode ser confirmada / revista.

           

III. — DECISÃO

    Pelo exposto, concede-se a revista e revoga-se o acórdão recorrido.

      Custas pelos Recorridos AA e BB.

Lisboa, 28 de Fevereiro de 2019



Nuno Manuel Pinto Oliveira (Relator)


Maria dos Prazeres Beleza


Olindo Geraldes

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[1] Como explica José Alberto dos Reis, Processos especiais, vol. II, com a indicação de que se trata de Obra póstuma, Coimbra Editora, Coimbra, 1982 (reimpressão), pág 202: “A Comissão votou o que eu sugerira: que o Ministério Público só pudesse recorrer com o fundamento de ter sido violado ou o n.º 3 do art. 1102.º, ou n.º 6 ou o n.º 7 do mesmo artigo”.

[2] Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Junho de 2013, no processo n.º 623/12.5YRLSB.S1: “III. — A decisão de uma autoridade administrativa estrangeira sobre direitos privados deve ser considerada como abrangida pela previsão do art. 1094.º, n.º 1, do CPC, carecendo de revisão para produzir efeitos em Portugal.”

[3] Sobre a noção de enunciados assertivos ou constativos, vide Carlos Ferreira de Almeida, Texto e enunciado na teoria do negócio jurídico, vol. I, Livraria Almedina, Coimbra, 1992, pág. 122.

[4] Sobre a noção de enunciados performativos, vide Carlos Ferreira de Almeida, Texto e enunciado na teoria do negócio jurídico, vol. I, cit., págs. 121-126.

[5] Em termos em tudo semelhantes, José Alberto dos Reis, Processos especiais, vol. II, cit., pág. 156.

[6] Cf. José Alberto dos Reis, Processos especiais, vol. II, cit., pág. 156. [7] Como se escreve em Ricardo Fiúza / Regina Beatriz Tavares da Silva (coord.), Código Civil comentado, 8.ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2012, “[é] indispensável a demonstração da existência de união estável, em ação própria, em caso de litígio entre os interessados, sob pena de serem atribuídos direitos, inclusive sucessórios, sem que estejam presentes os respectivos requisitos. No entanto, com os instrumentos processuais da tutela antecipada e das ações cautelares, liminarmente, poderá haver o provimento jurisdicional, para acautelar direitos, como, p. ex., em ação de reconhecimento e dissolução de união estável com pedido cumulado de alimentos” (sublinhado nosso).

[8] Cf. Francisco Manuel Pereira Coelho / Guilherme de Oliveira (com a colaboração de Rui Manuel de Moura Ramos), Curso de direito da família, vol. I — Introdução. Direito matrimonial, 5.ª ed., Imprensa da Universidade, Coimbra, 2016, págs. 71-72.

[9] Cf. art. 2.º-A, n.º 1, da Lei n.º 7/2001, na redacção da Lei n.º 23/2010 — em princípio, a prova da união de facto pode ser feita “por qualquer meio legalmente admissível”.