Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P894
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MAIA COSTA
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
SEGREDO BANCÁRIO
Nº do Documento: SJ20080213008943
Data do Acordão: 02/13/2008
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: DR, I SÉRIE, Nº 63, 31.03.2008,P. 1879-1885.
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA
Sumário :

1. Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário.

2. Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do nº 2 do art. 135º do Código de Processo Penal.

3. Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do nº 3 do mesmo artigo.
Decisão Texto Integral:



Acordam no Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça:


1. A Caixa Geral de Depósitos (CGD), SA, interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, ao abrigo do art. 437º, nº 2 do Código de Processo Penal (CPP), do acórdão da Relação de Lisboa de 20.12.2006, proferido no proc. nº 9375/06, da 3ª Secção (certificado a fls. 2-6), invocando como fundamento o acórdão da mesma Relação de 3.10.2006, proferido no proc. nº 5029/06, da 5ª Secção (certificado a fls. 73-78).
Por acórdão de 12.9.2007 da 3ª Secção (fls. 80-81), foi decidido, em conferência, considerar verificados os requisitos formais de admissibilidade do recurso, reconhecer a oposição dos dois acórdãos, nos seguintes termos:

O acórdão recorrido apreciou um caso em que, no decurso de um inquérito por crime de roubo, foram solicitadas à recorrente (e a outros bancos) determinadas informações sobre certas contas bancárias, o que foi recusado pela recorrente. Promovida pelo MP a quebra do sigilo junto do JIC, este decidiu que a recusa era ilegítima e ordenou à recorrente a prestação das informações requeridas pelo MP. A Relação de Lisboa, através do acórdão recorrido, confirmou essa decisão, por considerar que “o n° 3 do citado art. 135° do CPP visa tão-somente assegurar uma segunda instância residual para as hipóteses em que o tribunal a quo, pendendo para o reconhecimento da legitimidade formal e substancial da recusa, tenha dúvidas quanto a ela…”
Por sua vez, o acórdão-fundamento, perante uma hipótese de facto idêntica (recusa da recorrente de prestar informação bancária ao MP, no âmbito de um inquérito por um crime de roubo, recusa essa quebrada por despacho do JIC, ordenando a prestação das requeridas informações), considerou legítima a recusa, revogando a decisão recorrida e ordenando que o JIC suscitasse o incidente de quebra do sigilo junto da Relação, por considerar esta a única entidade competente, nos termos do art. 135°, n° 2 e n° 3 do CPP, para proferir tal decisão.
As decisões em análise proferiram, pois, decisões opostas, baseadas em interpretações também opostas do citado art. 135°, n° 2 e n° 3 do CPP.

Consequentemente, ordenou-se o prosseguimento do recurso.
Cumprido o disposto no art. 442º do CPP, vieram apresentar alegações escritas a recorrente (fls. 88-97) e o Ministério Público (fls. 99-119).
A recorrente concluiu assim as suas alegações (transcrição):

1. Sustenta o acórdão recorrido que o n° 3 do art. 135° do CPP visa tão só assegurar uma segunda instância, residual, para as hipóteses em que o tribunal de primeira instância, embora pendendo para o reconhecimento da legitimidade formal e substancial da recusa, continue, quanto a ele, a ter fundadas dúvidas;
2. Entende ainda o dito acórdão que “compete ao Tribunal de primeira instância, verificados os respectivos pressupostos formais e substanciais, determinar a quebra do sigilo bancário”;
3. O acórdão fundamento, perante uma questão de facto idêntica (recusa da prestação de informação bancária no âmbito de um inquérito por crime de roubo, em que o JIC ordenou a prestação das requeridas informações), julgou legítima a recusa e revogando a decisão anterior ordenou que o JIC suscitasse o incidente de quebra de sigilo junto do Tribunal da Relação, por considerar ser esta a única entidade competente para tal decisão, nos termos do art°. 135°, n° 2 e 3 do C.P. Penal;
4. Entende ainda que “… não há outra forma de suprir este consentimento – face à recusa, justificada, com base no sigilo bancário, da entidade bancária – senão pela via do aludido incidente, como sempre têm vindo a decidir os tribunais superiores, nomeadamente este Tribunal da Relação, numa posição inteiramente concordante com a que vem defendida no acórdão do STJ de 6 de Fevereiro de 2003, proferido no processo 1777/02 (…)”.
5. Nos termos do artigo 135°, n° 2, do Código de Processo Penal, o Juiz de Instrução Criminal tem competência para decidir pela ilegitimidade da escusa e determinar a prestação das informações ou entrega de documentos;
6. Contudo, a determinação da ilegitimidade da recusa pelo Juiz, como vem previsto no artigo 135°, n° 2, do Código de Processo Penal, única disposição legal no sistema jurídico português que lhe confere essa competência, implica que o Juiz o faça porque entende que não cabe a invocação do dever de sigilo bancário, ou seja, que no caso não existe dever de segredo profissional;
7. Seguindo tal raciocínio, a instituição bancária não pode invocar o sigilo bancário porque não existe fundamento legal para o fazer;
8. Então, uma sua recusa em prestar as informações solicitadas não tem suporte legal e, como tal, essa recusa pode ser declarada ilegítima pelo Juiz de Instrução Criminal o que implica o dever da instituição bancária em prestar as informações como vêm solicitadas. Só assim se pode entender o sentido e o alcance do preceituado no artigo 135°, n° 2, do Código de Processo Penal;
9. Não obstante, o acórdão recorrido entende que, tendo o tribunal primeira instância entendido que a escusa era ilegítima, tanto bastaria para determinar a quebra do segredo bancário, sem necessidade de se proceder ao levantamento do incidente de quebra de segredo junto do tribunal superior;
10. Para que o tribunal de primeira instância possa proceder à dispensa de sigilo bancário, considerando injustificada a recusa anterior, tem de considerar, necessariamente, sob pena de se tornar ilógico tal raciocínio, que existe lugar à sua invocação legítima. Se não existisse dever de sigilo ele não poderia ser dispensado;
11. «a recusa é legítima se o cumprimento do requisitado ou ordenado implicar violação do sigilo profissional» Acórdão de 27.01.2005 do STJ no proc. n° 04B4700 (www.dgsi.pt);
12. Ao considerar a recusa como ilegítima (pois aplica o artigo 135°, n° 2 do Código de Processo Penal e também o afirma expressamente) e, ao mesmo tempo, ao conferir-lhe carácter legítimo, pois se faz a ponderação de valores é porque há lugar à invocação (legítima) do dever de segredo, verifica-se contradição insanável e por tal motivo a primeira instância não tem competência para declarar a dispensa do dever de sigilo.
13. Nos termos do disposto no n.° 3 do artigo 135° do mesmo Código Processo Penal, a primeira instância não pode olvidar a competência do Tribunal superior para decidir da prestação de informação com quebra do dever de segredo profissional;
14. Face à legitimidade da recusa da Caixa Geral de Depósitos (o que acontece sempre que não estejam em causa os casos legalmente excepcionados), em cumprimento do disposto no n.° 3 do artigo 135.° do Código de Processo Penal deve o tribunal de primeira instância suscitar junto do tribunal superior o incidente de quebra do dever de segredo com prestação de informação;
15. Tendo em conta todo o sistema jurídico em que a norma se insere, parece que a melhor interpretação a emprestar ao art°. 135° do C.P. Penal, é a de que, se o Tribunal considerar que a escusa é legítima mas, mesmo assim, entender que, no caso concreto, a quebra do segredo profissional se mostra justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência preponderante, então e só então, tem de solicitar a intervenção do tribunal imediatamente superior;
16. Só há lugar ao aludido incidente se for ordenada a diligência com fundamento na legitimidade da escusa;
17. E há legitimidade da escusa sempre que as informações pretendidas estejam abrangidas pelo art°. 78° do RJICSF, aprovado pelo Dec-Lei n° 298/92, de 31.12, e não se verifiquem as excepções previstas no art°. 79° do mesmo regime, designadamente quando estão em causa os regimes do cheque sem provisão, do branqueamento de capitais e outros que expressamente dispensam o respectivo segredo;
18. Sempre que não haja regime derrogatório expresso do segredo bancário, é a sua invocação pelas instituições de crédito legítima, devendo o tribunal suscitar de imediato o respectivo incidente de quebra de segredo bancário junto do tribunal superior;
19. Outro entendimento tornaria inútil o n° 3 do art°. 135°, pois apenas com os dois restantes números poderiam resolver-se todas as questões de segredo profissional suscitadas;
20. Neste sentido, deverá a jurisprudência ser uniformizada de acordo com esta interpretação dos n°s. 2 e 3 do art°. 135° do C.P. Penal, por ser a que melhor se integra no espírito do sistema, e certamente a que esteve subjacente à criação de tais normas.
Termos em que e nos melhores de Direito, que Vossas Excelências, Ilustres Juízes Conselheiros, doutamente suprirão, deve dar-se provimento ao presente recurso e, por via disso, proferir-se acórdão uniformizador no sentido sustentado pelo acórdão fundamento que está em oposição com o acórdão recorrido, segundo o qual sempre que não haja regime derrogatório expresso do segredo bancário, é a sua invocação pelas instituições de crédito legítima, devendo o tribunal suscitar de imediato o respectivo incidente de quebra de segredo bancário junto do tribunal superior.

Por sua vez, a representante do Ministério Publico concluiu desta forma as suas alegações (transcrição):

1. No artigo 78.°, n.° l, do Dec.-Lei n.° 298/92, de 31/12, prevê-se o dever de segredo dos membros dos órgãos da administração ou de fiscalização das instituições de crédito e seus empregados, respeitante a factos relativos às relações da instituição com os clientes, cujo conhecimento advenha do exercício das suas funções.
2. O Código de Processo Penal, na sua versão inicial, consagrou, no artigo 135.°, a possibilidade de:
a) as testemunhas poderem escusar-se a depor sobre factos abrangidos pelo segredo profissional;
b) o Tribunal poder apreciar — em incidente de escusa — legitimidade desta e de determinar a prestação do depoimento, caso considerasse ilegítima a escusa de prestar depoimento;
c) o Tribunal, superior àquele onde o incidente de escusa se tiver suscitado, poder impor – agora em incidente de quebra de segredo — a prestação do depoimento, verificados os pressupostos previstos no artigo 185.° do Código Pena1
3. No artigo 135.°, n.° 2, do Código de Processo Penal encontra-se previsto e regulamentado o incidente de escusa – em que está em causa a apreciação e decisão da legitimidade da escusa no caso concreto, face às normas que prevêem e regulam o segredo profissional.
4. Legitimidade que decorre, e tão só, de impender sobre o depoente um dever de segredo ou assistir-lhe o direito a que guarde segredo profissional. E isto independentemente do facto de a prestação de depoimento se encontrar, ou não, coberta por uma causa de justificação.
5. No artigo 135°, n° 3, do Código de Processo Penal encontra-se previsto e regulamentado o incidente de quebra de segredo — está em causa, confirmada que seja a legitimidade da escusa, a ponderação, em concreto, dos interesses em conflito, face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente o princípio da prevalência do interesse preponderante, em ordem a decidir-se sobre a prestação do depoimento com quebra do segredo profissional.
6. Do cotejo da versão inicial do texto da norma do n.° 3 do artigo 135.° com a que resultou da alteração introduzida pelo Dec.-Lei n.º 317/95, decorre claramente que a modificação do texto da norma destinou-se unicamente a corresponder à eliminação do artigo 185.° do Código Penal, deixando incólume a estatuição do Tribunal competente para apreciar e decidir da prestação de depoimento com quebra de segredo profissional.
7. Atendendo ao tipo de informações solicitadas em ambos os inquéritos, a instituição de crédito estava sujeita ao dever de segredo, face às normas supra referidas, em particular os n.°s l e 2 do aludido artigo 78.º.
8. Assim, para os efeitos do disposto no artigo 135.° do Código de Processo Penal, a escusa da instituição de crédito era legítima.
9. Face à legitimidade da escusa, atenta a integração do caso concreto na previsão da norma que estabelece o dever de segredo das instituições de crédito, e na falta de autorização dos clientes, que se verificava em ambos os inquéritos, só em novo incidente – o de quebra de segredo profissional —, a suscitar perante o Tribunal da Relação de Lisboa, podia apreciar-se da justificação da quebra do segredo e determinar-se a prestação de depoimento com quebra do segredo profissional.
10. Na apreciação da legitimidade da escusa, nos termos do n.° 2 do artigo 135.° do Código de Processo Penal, ao Tribunal onde o incidente de escusa tiver sido suscitado compete apenas considerar as normas que, no caso concreto, prevêem e regulam o segredo profissional, e não ponderar, em presença das normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente o princípio da prevalência do interesse preponderante, dos interesses em conflito. Essa ponderação e consequente decisão sobre a justificação da quebra de segredo profissional, bem como a determinação da prestação de depoimento com quebra do segredo profissional, encontram-se previstas no n.° 3 do artigo 135.°, sendo da competência apenas do Tribunal superior àquele onde o incidente de escusa se tiver suscitado.
É neste sentido que deve ser fixada jurisprudência.

2. Transcrevem-se algumas passagens dos acórdãos em oposição, para melhor conhecimento das respectivas posições.
Diz o acórdão recorrido:

Como vimos a Caixa Geral de Depósitos veio arguir a nulidade da decisão proferida pelo sr. Juiz de Instrução Criminal alegando em suma que não cabe ao Tribunal da 1ª Instância decidir da prestação da informação com quebra de segredo mas sim ao Tribunal da Relação.
Antes de mais cabe deixar expresso que na esteira do decidido no Ac. da Rel. de Lisboa de 9.1.2002, entendemos que “o nº 3 do art. 135º do CPP visa tão só assegurar uma segunda instância, residual, para as hipóteses em que o tribunal de primeira instância, embora pendendo para o reconhecimento da legitimidade formal e substancial da recusa, continue, quanto a ela, a ter fundadas dúvidas.”
Por outro lado, com a devida vénia, aqui perfilhamos o entendimento seguido no Ac. da Relação de Lisboa de 22.9.2004 (Telo Lucas) de que “compete ao tribunal de 1ª instância, verificados os respectivos pressupostos formais e substanciais, determinar a quebra do sigilo bancário.”
Ora a nosso ver a 1ª instância uma vez que se mostravam e mostram in casu verificados os pressupostos formais e substantivos determinou – e bem – a dispensa o sigilo, sendo certo que o nº 3do art. 135º do CPP tem por escopo assegurar ao Tribunal da Relação a legitimidade formal e substancial da escusa, se continua a haver dúvidas quanto a ela.

Por sua vez, argumenta o acórdão-fundamento:

O caso dos autos, dizendo respeito ao conhecimento de números de cartão multibanco, números das contas bancárias respectivas e operações bancárias (carregamentos efectuados com os aludidos cartões a partir destas contas) levadas a cabo em determinado período temporal, não se encontra coberto por lei especial. Pois não há, para a investigação do crime de roubo, nenhuma norma legal que expressamente derrogue o segredo bancário, tal como existe para a investigação do crime de emissão de cheque sem provisão.
Daí que a quebra do correspondente sigilo, quando a recusa se mostrar legítima, só possa ser concretizada mediante o recurso ao respectivo incidente de quebra de sigilo, regulado no art. 135° do CPP, nos termos do qual só o tribunal superior àquele onde o problema foi suscitado pode pronunciar-se sobre a existência ou não de fundamento de quebra de sigilo. (…)
Mas não há outra forma de suprir este consentimento – face à recusa, justificada, com base no sigilo bancário, da entidade bancária – senão pela via do aludido incidente, como sempre têm vindo a decidir os tribunais superiores, nomeadamente este Tribunal da Relação, numa posição inteiramente concordante com a que vem defendida no acórdão do STJ de 6/2/2003, proferido no P. 1777/02, que se mostra junto aos autos e cuja doutrina subscrevemos sem hesitações e da qual temos vindo a fazer aplicação em muitos acórdãos já proferidos pelo relator do presente.
Nessa conformidade, é de concluir que o despacho recorrido errou na aplicação do direito ao considerar ilegítima a recusa da entidade bancária, quando deveria tê-la considerado legítima, suscitando de seguida o respectivo incidente de quebra do segredo profissional.

Podemos delimitar a questão decidenda da seguinte forma: trata-se de decidir qual o tribunal competente para, perante a escusa da entidade bancária em prestar informações relativas a uma determinada conta, com fundamento na inexistência de obrigação legal de cooperação com as autoridades, decidir da quebra do sigilo bancário, nos termos do art. 135º do CPP.
Foi em torno da interpretação deste artigo, nomeadamente dos seus nºs 2 e 3, que se gerou a contradição de julgados.
Considerou o acórdão recorrido que a competência para a quebra do sigilo cabe ao próprio tribunal onde a escusa é invocada (no caso, o de 1ª instância), sendo a competência do tribunal superior (no caso, a Relação), prevista no nº 3, meramente residual, isso é, para os casos em que se mantivessem as dúvidas para aquele tribunal.
Ao invés, o acórdão-fundamento decidiu que a quebra do sigilo compete sempre ao tribunal superior, que só interviria, porém, nos casos de escusa legítima por parte da entidade bancária, pois nos casos de escusa ilegítima, isto é, nos casos em que não existe obrigação de segredo, competiria ao próprio tribunal objecto da escusa decidir.

3. 1. O segredo bancário pretende salvaguardar uma dupla ordem de interesses. (1)
Por um lado, de ordem pública: o regular funcionamento da actividade bancária, baseada num clima generalizado de confiança, sendo o segredo um elemento decisivo para a criação desse clima de confiança, e indirectamente para o bom funcionamento da economia, já que o sistema de crédito, na dupla função de captação de aforro e financiamento do investimento, constitui, segundo o modelo económico adoptado, um pilar do desenvolvimento e do crescimento dos recursos.
Por outro lado, o segredo visa também a protecção dos interesses dos clientes da banca, para quem o segredo constitui a defesa da discrição da sua vida privada, tendo em conta a relevância que a utilização de contas bancárias assume na vida moderna, em termos de reflectir aproximadamente a “biografia” de cada sujeito, de forma que o direito ao sigilo bancário se pode ancorar no direito à reserva da intimidade da vida privada, previsto no art. 26º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa. (2)
Porém, esse direito ao sigilo, embora com cobertura constitucional, não é um direito absoluto, até porque, pela sua referência à esfera patrimonial, não se inclui no círculo mais íntimo da vida privada das pessoas, embora com ele possa manter relação estreita. Pode, pois, ter que ceder perante outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, cuja tutela imponha o acesso a informações cobertas pelo segredo bancário. (3)

3.2. O segredo bancário está regulado actualmente no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo DL nº 298/92, de 31-12, da seguinte forma:



Artigo 78°
Dever de segredo
1 - Os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.
2 - Estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.
3 - O dever de segredo não cessa com o termo das funções ou serviços.

Artigo 79°
Excepções ao dever de segredo
1 - Os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser relevados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição.
2 - Fora do caso previsto no número anterior, os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados:
a) Ao Banco de Portugal, no âmbito das suas atribuições;
b) À Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, no âmbito das suas atribuições;
c) Ao Fundo de Garantia de Depósitos, no âmbito das suas atribuições;
d) Nos termos previstos na lei penal e de processo penal;
e) Quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo.

Artigo 84º
Violação do dever de segredo
Sem prejuízo de outras sanções aplicáveis, a violação do dever de segredo é punível nos termos do Código Penal.

Como vemos, o segredo bancário é tratado como segredo profissional, vinculando todos aqueles que, por via do exercício da profissão, têm acesso às informações indicadas, designadamente, no nº 2 do art. 78º.
O dever de segredo cessa quando exista autorização do cliente, sendo pois livremente disponível o correspondente direito, o que revela que o legislador concebe o segredo bancário essencialmente como protecção do direito fundamental à reserva da vida privada.
Mas cessa ainda noutras situações, em que interesses relevantes de ordem pública impõem essa cessação, por força do princípio constitucional da concordância entre valores constitucionais conflituantes (nº 2 do art. 18º da Constituição da República Portuguesa).
Importam-nos apenas, para o nosso caso, as als. d) e e) do nº 2 do art. 79º do RGICSF, que remetem para a lei penal e processual penal e para as disposições especiais que limitem o dever de segredo.
Entre estas últimas contam-se, como é sabido, a legislação penal sobre cheques sem provisão (art. 13º-A do DL nº 454/91, de 28-12, introduzido pelo DL nº 316/97, de 19-11), a legislação sobre combate à criminalidade organizada e económico-financeira (art. 2º da Lei nº 5/2002, de 11-1) e ainda a legislação sobre branqueamento de capitais (art. 9º da Lei nº 11/2004, de 27-3). Nelas se estabelece o dever de as instituições bancárias prestarem as informações necessárias para a investigação das respectivas infracções.
Nestes casos, as instituições bancárias têm o dever de prestar às autoridades de investigação criminal as informações que lhes forem solicitadas. O segredo bancário cede, nessas situações, por imposição legal (e independentemente de autorização do titular da conta), ao interesse público de investigação criminal.
Nestes casos, não há, pois, que ponderar qual o interesse que deve prevalecer, porque o legislador, à partida, decidiu privilegiar o interesse público. O juízo de prevalência foi feito pelo próprio legislador. A eventual recusa das instituições bancárias em prestar informações às autoridades de investigação é sempre ilegítima.

3.3. Mas é admitida ainda a cessação do segredo bancário “nos termos previstos na lei penal e de processo penal”.
Estabelece o art. 135º do CPP:


Artigo 135.º
Segredo profissional
1. Os ministros de religião ou confissão religiosa, os advogados, os médicos, os jornalistas, os membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo profissional podem escusar-se a depor sobre os factos abrangidos por aquele segredo.
2. Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3. O tribunal imediatamente superior àquele onde o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se ter suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o plenário das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
(…)
5. Nos casos previstos nos nºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.

Da leitura do preceito ressalta o tratamento distinto entre as situações de legitimidade e de ilegitimidade de escusa de prestação de depoimentos ou informações por parte das entidades bancárias às autoridades judiciárias.
Quando se pode afirmar que a escusa é legítima? A legitimidade da escusa não pode deixar de resultar do cumprimento de um dever legal, isto é, do cumprimento do dever de segredo a que a instituição bancária está obrigada. A medida da legitimidade da escusa é, pois, a da extensão do segredo bancário.
Em contrapartida, haverá ilegitimidade da escusa quando o facto ou elemento solicitado não estiver compreendido no âmbito do sigilo bancário (nº 2 do citado art. 78º) ou tiver havido consentimento por parte do titular da conta.(4).
Assentes estes conceitos, analisemos agora o regime de cada uma das situações.
O nº 2 do art. 135º prevê a hipótese de ilegitimidade da escusa, estabelecendo que, nesse caso, o próprio tribunal perante o qual ela é efectuada ordena, oficiosamente ou a pedido, a prestação dos depoimentos ou das informações, cumprido que seja o formalismo previsto no nº 5 do mesmo artigo. Nessa situação, não impõe a lei que se faça qualquer juízo de ponderação de interesses em ordem a determinar o que deverá prevalecer, nem o mesmo teria qualquer sentido, porque não existe segredo. Por isso, a lei autoriza o tribunal a ordenar a prestação do depoimento, sem mais, uma vez apurado (ultrapassadas as eventuais dúvidas) que a escusa é ilegítima, não podendo a instituição bancária subtrair-se ao cumprimento do ordenado. Havendo dúvidas sobre a legitimidade da escusa, é o próprio tribunal perante o qual a escusa foi efectuada que as deve resolver.
Não estamos, nessa situação, perante uma quebra de segredo, simplesmente porque o facto não está legalmente coberto pelo segredo bancário, ou houve autorização do titular da conta.
Diferente é o caso de escusa legítima. A legitimidade da escusa resulta necessariamente, como vimos, de o facto estar abrangido pelo segredo (e não haver autorização do titular da conta).
Nesta situação, a obtenção do depoimento ou da informação escrita já não pode ser ordenada sem a ponderação do valor relativo dos interesses em confronto: os interesses protegidos pelo segredo bancário, por um lado; os interesses no sucesso da investigação criminal, por outro.
É precisamente esse juízo que o nº 3 do mesmo art. 135º prevê que seja assumido em incidente específico – incidente de quebra de segredo profissional – a ser suscitado no tribunal imediatamente superior àquele onde a escusa tiver ocorrido.(5)

3.4. Temos, pois, que têm tratamento claramente diferenciado as situações de legitimidade e de ilegitimidade da escusa de prestação de depoimento ou informações pelas instituições bancárias, sendo evidentemente mais simples o caso de ilegitimidade, que é da competência do próprio tribunal em que a escusa tenha sido invocada, precisamente porque aí se trata apenas de constatar a inexistência de sigilo bancário e consequentemente a ilegitimidade da escusa, e consequentemente ordenar a prestação da informação (ou do depoimento).
Estando, porém, o facto coberto pelo segredo, e sendo portanto legítima a escusa, só a quebra do segredo pode obrigar a entidade bancária à prestação da informação. Mas a quebra do segredo impõe um juízo de prevalência entre os interesses em conflito, que o legislador entendeu dever deferir a um tribunal superior.
Sendo assim, temos que, quando invocado o sigilo bancário, a autoridade judiciária perante a qual tiver sido suscitada deverá decidir se essa escusa é legítima ou ilegítima. Quando conclua, após as diligências que considerar necessárias e cumprido o formalismo do nº 5 do mesmo artigo, que a escusa é ilegítima, a autoridade judiciária ordena ou requer ao tribunal que ordene a prestação do depoimento, não podendo então a instituição bancária deixar de cumprir o ordenado.
Se concluir que a escusa é legítima, dois caminhos estão abertos à autoridade judiciária: ou se conforma com a invocação do segredo, não podendo insistir na obtenção do depoimento, ou então suscita o incidente de quebra de segredo junto do tribunal imediatamente superior.
A quebra do segredo, pelo juízo que envolve, é, por opção legislativa, necessariamente da competência de um tribunal superior (Relação ou Supremo Tribunal de Justiça, conforme os casos). Este último não funciona, pois, como uma instância residual, quando se suscitem dúvidas sobre a legitimidade da escusa, mas sim como instância de decisão do incidente da quebra do segredo, nas situações em que a escusa é legítima.
Temos, pois, que consideramos correcta e adequada a interpretação dos preceitos legais efectuada pelo acórdão-fundamento.
É neste sentido a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, de que se destacam os acórdãos de 6.2.2003, proc. nº 159/03, da 5ª Secção, sendo relator o Cons. Pereira Madeira, e de 28.6.2006, proc. nº 2178/06, da 3ª Secção, sendo relator o Cons. Sousa Fonte.

4. Os autos a que se reportam este recurso extraordinário tinham como objecto a investigação de dois crimes de roubo agravado, previstos e punidos pelo art. 210º, nº 2 do Código Penal.
No âmbito da investigação, foram solicitados pelo Ministério Público informações sobre contas bancárias ao BCP-Millenium, à CGD e ao BPI, que recusaram fornecer os elementos solicitados, invocando o sigilo bancário.
Por despacho do Juiz de Instrução Criminal, foi considerado que o interesse do Estado na realização da justiça era superior ao da protecção do consumidor ou do clima de confiança da banca e assim foi ordenada a prestação das informações pedidas pelo Ministério Público.
A CGD recorreu desse despacho para a Relação de Lisboa, que o confirmou através do acórdão ora recorrido.
Contudo, o crime de roubo não está abrangido por nenhuma das excepções ao segredo bancário.
Consequentemente, a escusa da CGD era legítima. As informações pretendidas só poderiam ser obtidas através do incidente de quebra do segredo bancário, previsto no nº 3 do citado art. 135º do CPP, não competindo ao Juiz de Instrução Criminal, mas sim ao Tribunal da Relação, a decisão sobre a quebra do segredo.
Procedem, pois, os argumentos da recorrente.

5. Com base no exposto, acordam os juízes que compõem o pleno das secções criminais deste Supremo Tribunal de Justiça em:

a) Revogar o acórdão recorrido, concedendo provimento ao recurso;
b) Fixar jurisprudência com o seguinte teor:

1. Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário.
2. Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do nº 2 do art. 135º do Código de Processo Penal.
3. Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do nº 3 do mesmo artigo.

Sem custas.


Lisboa, 13 de Fevereiro de 2008


Eduarado Maia Figueira da Costa (relator)
José Adriano Machado de Souto Moura
Arménio Augusto Malheiro de Castro Sottomayor
António Pires Henriques da Graça
Raúl Eduardo do Vale Raposo Borges
António Bernardo Filomeno Colaço
José António Carmona da Mota
António Pereira Madeira
Manuel José Carrilho de Simas Santos
José Vaz dos Santos Carvalho
António Silva Henriques Gaspar
António Artur Rodrigues da Costa
José Vítor Soreto de Barros
Armindo dos Santos Monteiro
José António Henriques dos Santos Cabral
António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes
___________________________

(1) Sobre este ponto, ver o Parecer nº 138/83 do Conselho Consultivo da PGR (BMJ 342, p. 61), o Ac. nº 278/95 do Tribunal Constitucional, de 31.5.1995, nº 7.2., Meneses Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 3ª ed., p. 253, e José Maria Pires, O Dever de Segredo na Actividade Bancária, p. 19, entre muitos outros elementos.

(2) Assim, o citado Ac. nº 278/95 do TC, nº 7.1., e Meneses Cordeiro, p. 254. Diferentemente, J.M. Pires funda o segredo bancário na “necessidade de proteger a actividade bancária de intromissões que prejudiquem a confiança das relações entre as instituições e os seus clientes”, considerando o segredo bancário como expressão de um “direito fundamental de segredo”, enquadrável nos direitos fundamentais atípicos, previstos no art. 16º, nº 1 da CRP.

(3) Assim, expressamente, o Ac. citado do TC, nº 8.

(4) Neste sentido, J.M. Pires, ob. cit., p. 78.

(5) Assim, J.M. Pires, ob. cit. p. 78.