Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | ARAÚJO BARROS | ||
Descritores: | INTERPRETAÇÃO DO TESTAMENTO VONTADE DO TESTADOR PROVA COMPLEMENTAR TESTAMENTO PÚBLICO | ||
Nº do Documento: | SJ200501130036077 | ||
Data do Acordão: | 01/13/2005 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL ÉVORA | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 2728/03 | ||
Data: | 04/29/2004 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA. | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
Sumário : | 1. O artigo 2187º do Código Civil consagra a posição subjectivista em matéria de interpretação das disposições testamentárias, a fazer pelo apuramento da vontade real e contemporânea do testador, usando para essa averiguação simultaneamente o contexto do testamento e a prova complementar ou extrínseca que sobre isso puder reunir-se. 2. Todavia, não pode interpretar-se a vontade do testador com um sentido que não tenha no texto do testamento um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa. 3. Não sendo especialmente relevante a prova complementar que não seja contemporânea da celebração do testamento, pode, no entanto, ser utilizada para coadjuvar a interpretação do respectivo conteúdo gramatical. 4. Se o texto do testamento foi redigido pelo oficial público perante o qual aquele negócio foi celebrado, a sua interpretação e compreensão há-de situar-se na sua estrutura gramatical, como base a partir da qual a estrutura sintáctica pode ser derivada. 5. Sendo que, neste caso, não pode recorrer-se à interpretação fundada em qualquer hábito de linguagem da testadora, ou sequer a qualquer sua extravagância linguística pela simples razão de que o teor do testamento foi redigido pelo ajudante do cartório, que, naturalmente, transpôs para o papel, com palavras próprias, as expressões utilizadas por aquela. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: "A" e B instauraram, no Tribunal Judicial de Vila Viçosa, acção ordinária contra C, D, E, F, G e H, pedindo que seja reconhecida aos autores a qualidade de sucessores da falecida I, face ao testamento que identificam no artigo 2º da petição inicial e a restituição dos bens da herança ou os quinhões pecuniários neles sub-rogados, que lhes couberem. Alegaram, em síntese que, tendo sido instituídos herdeiros pela mencionada I, foram os mesmos preteridos, em contrário do que consta no testamento desta, quer na habilitação de herdeiros realizada, quer na subsequente partilha do seu património. Contestaram os réus, sustentando, em resumo, que não estão os autores contemplados no testamento lavrado pela I em 31/03/93, no Cartório Notarial do Redondo (e mencionado no artigo 2º da petição inicial). No despacho saneador, em que o M.mo Juiz conheceu do mérito da causa, decidiu-se julgar a acção improcedente, por não provada, e, em consequência, absolver os réus do pedido. Inconformados apelaram os autores, sem êxito, já que o Tribunal da Relação de Évora, em acórdão de 29 de Abril de 2004, julgou improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida. Interpuseram, então, os autores recurso de revista, pugnando pela revogação do acórdão recorrido e sua nomeação como herdeiros de I. Não houve contra-alegações. 2. Ficou suficientemente provada a correspondência entre a vontade real e contemporânea da testadora e o documento testamentário, como aliás resulta da análise e interpretação do disposto no referido art. 2187° do CC. 3. A testadora ao dizer no seu testamento que "institui seus herdeiros em partes iguais os sobrinhos D, F, C e E (filhos de sua irmã J) e O, esta filha de sua irmã L e "os demais filhos de sua irmã J" é óbvio que a sua vontade real é nomeá-los, também, como seus herdeiros, já que aquela referência na sequência dos seus irmãos individualmente nomeados, constitui uma autêntica nomeação individualizada como dispõe o atrás mencionado art. 2227° do C.C. 4. Assim a frase "e os demais filhos de sua irmã J" está perfeitamente integrada no contexto do testamento de 31/03/93 pelo que: a) constitui não só um ligeiro rasto ou vestígio da vontade da testadora no documento testatório que na tese do Professor Galvão Telles já seria suficiente, mas antes um elemento estruturante daquela vontade; b) prova que o sentido objectivo da vontade real da testadora é a nomeação dos ora recorrentes como seus herdeiros; c) está referida na sequência dos outros herdeiros individualmente considerados pelo que devem ser havidos também como individualmente nomeados, como dispõe o art. 2227° do CC que aqui tem cabal e inequívoca aplicação. 5. Neste quadro o acórdão recorrido violou, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos referidos arts. 2187º e 2227° do CC, pelo que os recorrentes têm direito, em obediência à vontade real da testadora, a serem instituídos como seus herdeiros. Mostram-se assentes, em definitivo, os factos seguintes: i) - no dia 7 de Maio de 1995 faleceu, na freguesia de Assunção, concelho de Elvas, I, no estado de viúva, e sem descendentes ou ascendentes; ii) - no dia 31 de Março de 1993, através de testamento outorgado no cartório notarial do Redondo, a I declarou instituir seus herdeiros "em partes iguais, os seus sobrinhos D, F, C, E e G, esta filha de sua irmã L e os demais filhos de sua irmã J e a sua afilhada H" e declarou que "revoga o seu testamento lavrado neste cartório em vinte e sete de Novembro de mil novecentos e setenta e três, a fls. dez verso, do livro respectivo número vinte e dois"; iii) - os autores são filhos de J; iv) - por escritura outorgada no cartório notarial de Vila Viçosa, em 19 de Janeiro de 1996, os réus declararam, na sequência do testamento referido em ii), que "não há quem lhes prefira ou concorra com eles na sucessão, segundo a lei e o testamento"; v) - em 30/10/2000 o autor A enviou ao réu C carta registada com A/R, através de mandatário, solicitando que fosse "emendada" a partilha de forma a incluir os autores; vi) - a Herança da I é constituída pelos seguintes bens: - prédio rústico, denominado "do Lagarto", descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Viçosa, sob o n° 1342, vendido pelos réus à "M - Rochas Portuguesas, L.da", pelo preço de 1 .500.000$00; - prédio urbano, sito na freguesia de S. Bartolomeu, no Largo Mouzinho de Albuquerque, nº s ... a ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Viçosa; - prédio urbano, sito na freguesia de S. Bartolomeu, na Rua Câmara Pestana, n° s ... a ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Viçosa sob o n° 00225/260196 e inscrito na matriz sob o art. 161º, vendido juntamente com o prédio anterior pelo preço global de 16.000.000$$00; - prédio misto, denominado "Courela da Capela" ou "Herdade da Capela", sito na freguesia de Ciladas, concelho de Vila Viçosa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Viçosa, sob o n° 384, e inscrito na matriz rústica sob o art. 5° da secção L e na matriz urbana sob o art. 294°; - prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Viçosa sob o n° 383, e inscrito na matriz sob o art. 6° da secção L, vendido pelos réus juntamente com o anterior a N e esposa pelo preço global de 34.000.000$00; - prédio rústico, denominado "Poço da Rosa", sito na freguesia da Conceição, em Vila Viçosa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Viçosa sob o n° 01341/260196 e inscrito na matriz sob o art. 97°, da secção C; - conta bancária n° 210/83050, com saldo no montante de 511.000$00; vii) - em testamento outorgado em 28 de Outubro de 1971 no cartório notarial do Redondo, a I declarou instituir seus herdeiros "em partes iguais, os seus sobrinhos B, C, F, E, A e D, filhos da sua irmã J"; viii) - em testamento outorgado em 27 de Novembro de 1973, no cartório notarial do Redondo, I declarou instituir seus herdeiros "em partes iguais, os seus sobrinhos B, C, F, E, D, P e G, os cinco primeiros filhos de sua irmã J e os dois últimos filhos de sua falecida irmã L", mais declarando que revoga o seu testamento lavrado neste cartório em vinte e oito de Outubro de mil novecentos e setenta e um, a folhas cinco do livro respectivo, número vinte e um". A questão que constitui objecto da revista é tão só a de saber se, adequadamente interpretado o testamento efectuado, em 31 de Março de 1993, pela falecida I, é possível considerar que os autores nele foram instituídos herdeiros dela. As instâncias decidiram pela negativa. Os recorrentes pretendem que a correcta interpretação daquele testamento deve conduzir à conclusão contrária, isto é, a de que eles têm que considerar-se nomeados como herdeiros da falecida. Vejamos. Consagrando abertamente a posição subjectivista em matéria de interpretação das disposições testamentárias, aliás mantendo a linha de orientação que procedia já do Código Civil de 1867 (1), estabelece o artigo 2187º do C.Civil, que "na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento" (nº 1), sendo que na determinação do sentido dessa vontade "é admitida prova complementar, mas não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa" (nº 2). Assim, "a interpretação dos testamentos deve fazer-se, em primeira linha, pelo apuramento da vontade real e contemporânea do testador, usando para essa averiguação simultaneamente o contexto do testamento e a prova complementar ou extrínseca que sobre isso puder reunir-se. (...) Fixado, por esse modo ou com esses materiais, aquilo que efectivamente estava no pensamento do testador, não significa, porém, isto o termo do processo interpretativo, dado que sendo o testamento um acto formal ou solene, para que a vontade real ou verdadeira, assim apurada, seja atendível, necessário se torna que tenha, no contexto testamentário, um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa (...) Assim, a limitação contida no nº 2 do artigo 2187º do Código Civil não restringe o recurso a prova complementar, proibindo apenas que, com o uso de tais meios, se ultrapasse o processo de interpretação para apurar o que seria verdadeira alteração ou modificação informal do próprio testamento". (2) É que, sem dúvida, "aceitando a doutrina de que a reconstituição da vontade testatória pode fazer-se não só com base nos próprios termos do testamento (prova intrínseca) mas também recorrendo-se a quaisquer outros elementos ou circunstâncias (extrínsecas, complementares, extra-testamentárias) provadas documentalmente ou por outro meio, dá-se, assim, acolhimento a uma solução fortemente enraizada. E trata-se de uma solução que, na verdade, sendo de preferir sem hesitações quanto à prova extrínseca documental, também fora disso resulta mais vantajosa que inconveniente". (3) Verdade é que no caso em apreço ressalta à evidência a impossibilidade de recurso a qualquer prova complementar contemporânea do testamento da I, por inexistente (útil teria sido, na verdade, se possível, ouvir o depoimento do ajudante do Cartório Notarial de Redondo, que redigiu o testamento). Os únicos factos complementares apurados, pouco decisivos na determinação da vontade da testadora por não serem contemporâneos do testamento aqui em causa, são os que resultam dos testamentos por ela anteriormente efectuados, em 28 de Outubro de 1971 e em 27 de Novembro de 1973 (testamentos estes, entretanto, revogados). Resta-nos, assim, como ponto de partida e também limite à interpretação do testamento de 31 de Março de 1993, o texto no qual a testadora expressou e através do qual manifestou a sua vontade. Texto esse que, como acima vimos, é do seguinte teor: "institui seus herdeiros, em partes iguais, os seus sobrinhos D, F, C, E e G, esta filha de sua irmã L e os demais filhos de sua irmã J; e a sua afilhada H". O texto referido, antes de mais, porque redigido pelo oficial público perante o qual foi celebrado o testamento, há-de ser interpretado e compreendido na sua estrutura gramatical, como a base a partir da qual a estrutura sintáctica pode ser derivada. E não haverá, in casu, como é óbvio, que recorrer à interpretação fundada em qualquer hábito de linguagem da testadora, ou sequer a qualquer sua extravagância linguística (se aceitarmos que existe correspondência no texto) pela simples razão de que, como já se esclareceu, o teor do testamento foi redigido pelo ajudante do cartório, que, naturalmente, transpôs para o papel, com palavras próprias, as expressões utilizadas por aquela. Ora, analisado o conteúdo do testamento (na parte acima transcrita) no qual a testadora aproveitou para revogar um outro anteriormente feito, só dele pode resultar um sentido interpretativo: o de que a testadora, individualizando primeiramente aqueles que queria instituir como seus herdeiros, veio, depois, completar a respectiva identificação, esclarecendo que a última ali enunciada (G) é a filha da sua irmã L, enquanto que os demais ali indicados (C, D, E e F) são filhos da sua irmã J. Nada no texto habilita outra interpretação, nomeadamente a de que a referência a "os demais filhos da sua irmã J" constituiria uma nomeação sequencial dos filhos não indicados individualmente. Tal interpretação brigaria com os mais elementares princípios sintácticos da língua portuguesa, porquanto as expressões "esta" e "os demais" não podem deixar de desempenhar na frase em que se inserem a função de aposto ou continuado dos nomes atrás mencionados, com a única intenção de tornar explícita a relação de pertença familiar de uns e outros. Ademais - como se disse sem relevância decisiva na interpretação da vontade da testadora, mas de certo modo, revelando o modo habitual daquela de testar - nos testamentos que anteriormente fez em 28 de Outubro de 1971 e em 27 de Novembro de 1973 (depois revogados) sempre a testadora procedeu à nomeação individualizada dos herdeiros que pretendeu instituir, ainda que em qualquer dos casos haja excluído alguns dos seus sobrinhos. Com efeito, no testamento de 1971 contemplou apenas os sobrinhos, filhos de sua irmã J, B, C, F, E, A e D (assim deixando excluídos daquele testamento os filhos da sua irmã L). Por seu turno, no testamento de 1973, apenas instituiu os seus sobrinhos, filhos da sua irmã J, B, C, F, E, D (excluindo o ora autor A) e os seus sobrinhos, filhos da sua irmã L, P e G (sendo que o primeiro destes, tal como os autores, não foi contemplado no testamento aqui em causa, outorgado em 1993). Desta forma, como vimos, a única interpretação possível do conteúdo do testamento outorgado pela falecida I é a de que a sua vontade foi de instituir seus herdeiros apenas os que individualmente indicou, não sendo sua intenção beneficiar os ora autores, e muito menos através de uma nomeação conjunta. Motivo pelo qual também não há lugar à aplicação da norma do artigo 2227º do Código Civil, que apenas abrange os casos - que não o sub judice - em que ocorre uma designação testamentária simultaneamente individual e conjunta. Não assiste, pois, qualquer razão aos recorrentes, devendo confirmar-se o acórdão recorrido que não merece censura. Pelo exposto, decide-se: |