Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1ª SECÇÃO | ||
Relator: | SEBASTIÃO PÓVOAS | ||
Descritores: | ARRENDAMENTO URBANO OBRAS NO LOCADO ABUSO DE DIREITO | ||
Data do Acordão: | 11/02/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Referência de Publicação: | CJASTJ, ANO XVIII, TOMO III/2010, P. 166 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Sumário : | 1. Se o contrato de arrendamento foi celebrado em 1987 é-lhe aplicável o regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, que aprovou o RAU, sendo que, para a classificação e regulamentação de obras no locado,e salvo disposições transitórias, releva o artigo 11.º daquele diploma. 2. Actualmente vale o disposto no artigo 1074.º do Código Civil, sendo que releva o regime transitório dos artigos 23.º e seguintes do NRAU, quando estão em causa obras de remodelação, ou restauro profundo, para demolição ou por iniciativa do Município, sendo que, para as de outro tipo ou fim, vale o disposto no artigo 59.º do mesmo NRAU. 3. A imposição legal constante da alínea b) do artigo 1031.º do Código Civil deve ser vista em termos amplos, não se limitando a mandar o senhorio entregar o imóvel ao inquilino, mas obrigando-o a outras prestações positivas em termos de que o uso normal do locado não fique impedido ou diminuído nem o locatário veja frustradas as expectativas que criou aquando da outorgado contrato. 4. Daí resulta o dever de proceder a obras de conservação ordinária (consistentes em manter o prédio em condições de higiene e salubridade mais fazendo reparações comuns de danos resultantes de infiltrações, salitre, bolores e desgaste, por apodrecimento de madeiras, soalhos e estuques; de obras impostas pela Administração Pública e de todas as outras reparações que o fim do contrato impõe (garantia de funcionamento das colunas de esgotos, de resíduos, gás, energia eléctrica e elevadores, tudo com segurança e continuidade e de tudo o que o arrendatário esperava dispor); de conservação extraordinária (vícios redibitórios ou aparentes de construção, ou resultantes de caso fortuito ou de força maior) e, se acordadas, de beneficiação. 5. O arrendatário deve manter o local arrendado cuidado e em boas condições, garantindo, aquando da sua restituição, a reparação de pequenas deteriorações resultantes de trabalhos que, para seu conforto, ou comodidade, tenha feito. 6. Mas deve permitir (e até colaborar e facilitar) que o senhorio visite, para inspeccionar, o locado, e proceda a obras e reparações urgentes, bem como às ordenadas pela autoridade pública (artigo 1038.º, alíneas b) e c) do Código Civil). 7. O Supremo Tribunal de Justiça só pode sindicar a matéria de facto que as instâncias deram por assente nas situações de excepção dos artigos 722.º, n.º 2 e 729.º, n.º 2 do Código de Processo Civil não podendo, outrossim, criar presunções judiciais. 8. Se o arrendatário deu causa, com obras não autorizadas, a graves deteriorações do locado e, posteriormente, impediu que o locador levasse a termo as obras de reparação que iniciara, existe um ilícito contratual, sendo de presumir a sua culpa nos termos do n.º 1 do artigo 799 do Código Civil. 9. Não tendo qualquer direito a ser ressarcido dos danos que sofreu com a não fruição do locado durante aquele período, não há que recorrer ao instituto do abuso de direito se os veio pedir. 10. O abuso de direito tem sempre ínsita a existência de um direito subjectivo na esfera jurídica do agente, já que tem como principal escopo impedir que a estrita aplicação da lei conduza a notória ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, comportando duas modalidades: “venire contra factum proprium” e situações de desequilíbrio, como sejam o exercício danoso inútil, a actuação dolosa e a desproporção grave entre o exercício do e o sacrifício por ele imposto a outrem. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça “A...P...C...e Filhos, Limitada” intentou acção, com processo ordinário, contra AA, BB, CC, DD e EE, pedindo a sua condenação a pagarem-lhe a quantia de 36.493,55 euros, acrescida de juros desde a citação, assim como as despesas que efectuou no ano de 2006, a liquidar em execução de sentença. Alegou, nuclearmente, que, sendo arrendatária dos Réus, estes procederam a obras no locado, sem sua autorização, o que a impediu que o utilizasse, sendo que, por isso, teve os prejuízos que liquidou e outros que se propõe liquidar em fase executiva. Na 4.ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, a acção foi julgada improcedente e os Réus absolvidos do pedido. A Autora apelou para a Relação de Lisboa que confirmou o julgado. Pede, agora, revista, assim concluindo a sua alegação: Os Réus contra alegaram em defesa do julgado. As instâncias deram por assente a seguinte matéria de facto: Foram colhidos os vistos. Conhecendo,
Considerando a data da outorga do contrato de arrendamento – 1987 – é-lhe aplicável o regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, que aprovou o RAU, designadamente, e na parte que aqui releva por estarem em causa obras no locado, o seu artigo 11.º. Certo que, actualmente, vale o disposto no artigo 1047.º do Código Civil, com a redacção do artigo 3.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro (NRAU), sendo, contudo, que o regime de obras aí previsto, tal como o constante do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de Setembro (arrendamento para fins não habitacionais) está a coberto de um regime interino previsto nos artigos 23.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 157/2006, de 8 de Agosto. Refere o relatório preambular deste diploma, a propósito da vigência do NRAU, que a “segunda parte contém um regime especial transitório, aplicável aos contratos de arrendamento para habitação, celebrados antes do RAU e aos contratos de arrendamento para fins não habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de Setembro”. Em sintonia com esta “explicação” prévia, topamos com o artigo 23.º inserido na parte referente ao “Regime especial transitório”, onde se faz o “distinguo” entre arrendamento para habitação e para fins não habitacionais. Aos primeiros, se celebrados antes da entrada em vigor do RAU e aos segundos se outorgados antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de Setembro. E é este último arrendamento “sub judice”. Daí que só lhe fosse aplicável aquele regime transitório se estivessem em causa obras de remodelação, restauro profundo para demolição, obras por iniciativa do Município para que o prédio tivesse um nível de construção compatível com a renda ou, finalmente, obras de conservação do locado não a cargo do arrendatário, e feitas por sua iniciativa, em partes não comuns e se a degradação não se dever à sua actuação ilícita – artigos 24.º, 25.º, 28.º e 29.º e ss do diploma em apreço. Não estando em causa nesta lide esse tipo de obras vale o disposto no artigo 59.º do NRAU que só o manda aplicar aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, excepto se tal for disposto em contrário nas respectivas normas transitórias, o que como vimos não é o caso. Daí se conclui pela aplicação, como bem fizeram as instâncias, do artigo 11.º do RAU.
2- Obras no locado. Tendo sempre em mira o disposto na alínea b) do artigo 1031.º do Código Civil, que impõe ao locador o dever de assegurar ao locatário o gozo da coisa locada para o fim acordado no contrato, é certo que tal obrigação supõe que o locado deva ser conservado e reparado, em termos de o seu uso normal não ficar impedido ou diminuído. A assim não ser, o locatário não pode tirar do arrendado os benefícios e as comodidades que lhe seria legítimo esperar. Desse dever genérico resulta para o senhorio “a obrigação específica de efectuar reparações ou outras despesas essenciais ao gozo da coisa locada”, sendo que se o não fizer incorre em responsabilidade contratual. (cf. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Janeiro de 2006 – P.º 3241/05 – 6.ª; ainda, v.g., o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Fevereiro de 2000 – P.º 2585/00 – 7.ª; o Conselheiro Pinto Furtado, in “Manual do Arrendamento Urbano”, I, 490 a esclarecer que “a obrigação a que está adstrito o locador, de assegurar o gozo da coisa, não se resume ao ‘pati’ fundamental de não perturbar o uso ou fruição do locatário: desdobra-se ainda em prestações positivas pontuais ou específicas que têm de ser realizadas pelo locador para que se possa materializar o gozo da coisa pelo locatário, nos termos contratuais.”; cf., ainda, nesta linha, o Cons. Aragão Seia, in “Arrendamento Urbano”, 7.ª ed., 203). Ora, o citado artigo 11.º do RAU prevê três categorias de obras: de conservação ordinária; de conservação extraordinária e de beneficiação. A conservação ordinária traduz-se na “reparação e limpeza geral do prédio e suas dependências.” Caracteriza-se pela manutenção do imóvel em condições de salubridade e higiene exigíveis numa sociedade urbana, com hábitos de assepsia e de vida em ambiente saudável, passando pelas reparações comuns resultantes de infiltrações, remoção de bolores (autênticos viveiros de micro organismos lesivos para a saúde) e outras deteriorações reveladoras de desgaste. Mas compreende também a realização das “obras impostas pela Administração Pública nos termos da lei geral ou local aplicável, e que visem conferir ao prédio as características apresentadas aquando da concessão da licença de utilização.” Finalmente, e em geral, todos os trabalhos e reparações que o fim do contrato impõe, como, por exemplo, zelar pelas colunas de esgoto e condutas de residuos; garantir o abastecimento de electricidade e o fornecimento de gás em condições de salubridade, segurança e continuidade; assegurar o funcionamento e a segurança dos elevadores, enfim, tudo o que o arrendatário contava dispor (por o prédio já ter essas infra-estruturas) à data da outorga do seu contrato. Já as obras de conservação extraordinárias prendem-se com vícios redibitórios ou aparentes de construção, ou por facto fortuito ou de força maior e “em geral as que não sendo imputáveis a acções ou omissões ilícitas perpetradas pelo senhorio, ultrapassem no ano em que se tornem necessárias, dois terços do rendimento líquido desse mesmo ano.” Serão de beneficiação todas as obras não incluídas nos tipos referidos e que podem assumir o cumprimento de uma directiva municipal (v.g., pinturas exteriores, para evitar um aspecto de degradação ou decadência urbana, ou sejam acordadas pelos contraentes em termos de melhorar, ou tornar mais agradável ou funcional, a utilização do locado). Certo que, e nos termos do artigo 12.º do RAU as obras de conservação ordinária estão a cargo do senhorio, sem prejuízo de o inquilino as realizar, nos termos e com as limitações dos artigos 4.º e 12.º desse diploma e 1043.º do Código Civil. Já as de conservação extraordinária são exclusivamente a cargo do senhorio. Mas, e independentemente da obrigação legal, o proprietário equilibrado, sensato e lúcido, está consciente de ser do seu interesse a manutenção do seu imóvel nas melhores condições possíveis, sabido que a falta de conservação propiciará mais rápida e acentuada degradação, com a consequente desvalorização e a ulterior necessidade de mais profundas e onerosas obras. De outra banda, como senhorio, deverá estar ciente do seu papel social no mercado do imobiliario, proporcionando a quem com ele contrata de boa fé as melhores condições de utilização e fruição do imóvel. No contrato de arrendamento o sinalagma não é só proporcionar o gozo da coisa locada pelo senhorio (com a qualidade e condições acima referidas) e o pagamento da renda pelo inquilino. Para além disso, o arrendatário deve ter o imóvel cuidado e em boas condições, tanto mais que, no termo do contrato, e aquando da sua restituição, deve garantir a reparação de todas as “pequenas deteriorações” que tenha feito “para assegurar o seu conforto e comodidade” (cf. artigo 4.º do RAU; artigo 1092.º do Código Civil, e actual artigo 1073.º, n.º 2, desse diploma). Mas terá de permitir, e ter uma postura cooperante, que o senhorio faça a manutenção e as obras que entenda necessárias para a conservação do prédio, sendo que ao ser-lhe imposto o dever de lhe facultar a observação “in loco” do estado do imóvel, não só para aquilatar dos cuidados que o inquilino tem mas, e “not the least”, para verificar da necessidade de realizar obras a seu cargo em termos de manter o locado em boas condições o que, como antes foi dito, é impeditivo da desvalorização da coisa. É o que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Julho de 2007 – 07B2221 – chama de direito do senhorio à “integridade do imóvel arrendado”. Trata-se de um poder/dever do proprietário, também para prevenir que no imóvel se gerem situações causadoras de dano (cf., v.g., os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Janeiro de 2002 – P.º 405/01 – 2.ª; de 24 de Maio de 2005 – P.º 4695/04 – 1.ª; de 7 de Dezembro de 2005 – P.º 2154/2005) sendo que sobre o arrendatário recai igual obrigação, sob pena de ficar sob o âmbito do n.º 1 do artigo 493.º do Código Civil. 3- Cooperação do locatário. 3.1. Aqui chegados, e perante o acervo de factos provados, verifica-se que a recorrente – inquilina procedeu, em 1971/1972, à realização de obras de instalação na casa de banho, de uma base de chuveiro sendo que, para esse efeito, na base do tubo de queda de esgotos domésticos que se desenvolve em toda a altura do prédio e que cai na casa de banho, junto à parede exterior, foi aberto um buraco, deixando a descoberto o ramal de esgotos localizado no pavimento, bem como a extremidade do tubo de queda. Daí que, pelo menos desde Dezembro de 1997, o esgoto cai directamente nesse buraco, molhando todo o pavimento, criando um cheiro nauseabundo, impeditivo da utilização do compartimento e provocando o apodrecimento parcial do pavimento de madeira, afloramentos salitrosos e manchas de humidade nas paredes do locado que, além do mais, tinha manchas de humidade nas paredes e no tecto do quarto da fachada posterior com origem em infiltrações do piso superior. E foi para a reparação do esgoto e consequências acima referidas que o locador iniciou, em Dezembro de 1997, sem o consentimento, mas comunicando à Autora (facto 2.16), obras de levantamento da base de chuveiro, rectificação da conduta de esgotos, levantamento dos tacos da sala e reparação das paredes. Foi então, que depois de ter recebido a factura do valor das obras (documento emitido pelo senhorio) que a Autora não pagou antes vedando o acesso ao locado aos trabalhadores que as realizavam, pelo que as mesmas foram interrompidas tornando impossível a utilização do locado, que se apresenta inacabado e com inúmeras deficiências. 3.1.1 – É evidente que este Supremo Tribunal não pode alterar a matéria fáctica que as instâncias deram por assente, por não se verificar nenhuma das situações de tal permissivas. É que, por força do disposto no artigo 26.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro), o Supremo Tribunal de Justiça, e em princípio, só conhece matéria de direito. A fixação dos factos materiais da causa, baseada na prova de livre apreciação do julgador, não cabe no âmbito do recurso de revista. O Tribunal de revista limita-se a aplicar o regime jurídico adequado aos factos fixados pelo juízo “a quo” (n.º 1 do artigo 729.º do Código de Processo Civil). As situações de excepção consistem no erro de apreciação da provas e na fixação dos factos pela Relação só ocorrendo violação expressa de norma que exija certa espécie de prova para a existência de um facto ou de norma que estabeleça a força probatória de certo meio de prova, tal como resulta dos artigos 722.º, n.º 2 e 729.º, n.º 2 do Código de Processo Civil. Assim, o Supremo Tribunal de Justiça só pode conhecer do juízo de prova da Relação quando tenha sido dado por assente um facto sem que tivesse sido produzida a prova que a lei declarasse indispensável para a demonstração da sua existência ou tivessem sido violados os preceitos reguladores da força probatória de alguns meios de prova. Ora, nem dos autos, nem da alegação da recorrente resultam tais patologias, nem, e de outra banda, este Supremo Tribunal pode, como afinal pretende a impetrante, lançar mão de regras de experiencia, o “id quod plerunque accidit”, que caracteriza as presunções judiciais, que apenas estão ao alcance das instâncias. Intocada, em consequência, a matéria de facto acima elencada. 3.2. Assim sendo, terá de concluir-se que a Autora, com as obras que efectuou, deu causa a deteriorações no locado, causando a sua degradação, sendo lícita a actuação do locador efectuando as obras de conservação ordinária. E nem se diga que, para tal, teria de obter o acordo, ou a autorização, do locatário. São, entre outras, e como já se disse, obrigações do locatário facultar ao locador o exame da coisa locada e tolerar as reparações urgentes, bem como quaisquer obras ordenadas pela autoridade pública (artigo 1038.º, alíneas b) e e) do Código Civil). A primeira tem ínsito, e como também acima se disse, o direito de o senhorio inspeccionar o seu prédio, em termos de aquilatar do seu estado de conservação e o modo como o locatário o conserva e dele trata. A obrigação da alínea e) traduz-se em garantir ao senhorio a possibilidade de cumprir o seu dever legal (que, também compreende o direito de conservar a coisa) de proceder às obras de conservação ordinária e extraordinária. A questão que se suscita é resultante da qualificação de “urgentes” constante da norma em apreço. Crê-se que, e numa perspectiva realista que não serão, apenas, as que põem em causa a estrutura, a estabilidade e a segurança da construção ou, mesmo, a possibilidade de ser utilizado por outros inquilinos do mesmo edifício, por deixarem de aceder a infra estruturas básicas (energia eléctrica, gás, água…). Fora de situações de flagrante, e óbvia, premência, a urgência deve ser avaliada casuisticamente, verificando se a não realização das “reparações” gera a degradação acelerada ou põe em causa a habitabilidade (no sentido de utilização normal do prédio). Ora, “in casu”, a existência de um esgoto a cair directamente num buraco aberto num compartimento, provocando um cheiro nauseabundo e, além do mais, apodrecimento parcial do pavimento por infiltrações, têm de ser considerados defeitos de eliminação urgente até por razões sanitárias, para além, evidentemente, de aceleração da decadência e degradação do imóvel. Para o Cons. Pinto Furtado (ob. cit., I, 54) são urgentes as obras que se não compadecem com delongas do procedimento judicial. Já o Dr. Abílio Neto refere, exemplificativamente, “rupturas nas canalizações, de água, ou gás, para suprimir deficiências na instalação eléctrica, evitar a ameaça de ruína, etc.” (in “Leis do Inquilinato”, 1988, 6.ª ed., nota 5, pág. 40). Daí que, ao impedir os trabalhos, a Autora tenha incumprido o disposto na alínea e) do artigo 1038.º do Código Civil, tanto mais que foi a causadora dos males – e esse nexo de causalidade naturalístico foi afirmado pelas instâncias e, como matéria de facto que é, não pode ser sindicado nesta sede, tal como acima se decidiu. Aliás, tal como já se acenou, o dever do arrendatário vai para além do não impedir as obras que o senhorio efectuar, mais tendo o de colaboração, consistente em não colocar quaisquer entraves nem dificultar a sua realização. Assim sendo houve da parte da Autora a comissão de um ilícito contratual. Demonstrada a ilicitude, e sendo presumida a culpa, nos termos do n.º 1 do artigo 799.º do Código Civil, seria sobre a recorrente que – e se tal fora pedido – recairia o dever de indemnizar o locador pelos danos que este viesse a demonstrar, que não a inversa, tal como surge pedido na acção. A Autora não tem, assim, qualquer direito a ser ressarcida dos danos que diz ter sofrido.
4- Abuso de direito. 4.1. Do exposto resulta que a acção deva improceder, como improcedeu, sendo, contudo, certo que não há lugar a lançar mão do instituto do abuso de direito, como fizeram as instâncias. É que este, tal como resulta do seu “nomen juris”, pressupõe a existência de um direito radicado na esfera do titular, direito que, contudo, é exercido por forma ilegítima por exceder manifestamente a boa fé, os bons costumes ou o seu fim social ou económico (artigo 334.º do Código Civil). Quer o preceito vigente (com redacção idêntica à do artigo 334.º do Anteprojecto do Código Civil [2.ª revisão ministerial], quer a primeira proposta – artigo 297.º - 1.ª revisão ministerial – “O exercício de um direito (…) através de factos que contrariem os princípios éticos fundamentais do sistema jurídico (…).”) têm ínsito o “qui jure sua utitur”, ou seja, que o abusador surja titular de um direito subjectivo, ou de parte dele. E, então, ou o utiliza licitamente – dentro dos limites do direito objectivo – ou ultrapassa limites que a ética, a boa fé e o fim social não toleram. Assim, são os casos de “venire contra factum proprium”, em que o exercício contradiz uma conduta antes presumida ou proclamada pelo agente (Cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Maio de 2007 – 07 A1180, desta Conferência e de 30 de Março de 2006 – P.º 3921/05, 4.ª). Aí, o ponto de partida é uma anterior conduta de um sujeito jurídico que “objectivamente considerada é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira.” (cf. Prof. Baptista Machado, apud “Obra Dispersa”, 1, 415 e ss). A conduta pregressa terá criado na contraparte uma situação de confiança com base na qual esta tenha tomado disposições ou organizado planos que, gorados, lhe causarão danos. Tem aqui ínsita a ideia de “dolus praesens”, a trair um investimento de confiança feito pela outra parte, originado por dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidas no tempo. (cf. o Prof. Menezes Cordeiro, “o primeiro – o ‘factum proprium’ – é, porém, contrariado pelo segundo”, apud, “Da Boa Fé no Direito Civil”, 45; e ROA – 58, 1998, 964). A outra modalidade de abuso de direito consiste na criação de situações de desequilíbrio, “genus” que tem como “species” o exercício danoso inútil, a actuação dolosa e a grave desproporção entre o exercício do titular excrescente e o sacrifício por ele imposto a outrem. 4.1. Na situação “sub judice”, não se concede estarmos perante uma situação de abuso de direito pois, insiste-se, a Autora não tinha o direito de impedir a realização das obras e, em consequência, não pode dizer-se que tenha abusado de um direito subjectivo apenas pelo facto de ter sido a causadora dos danos que impuseram a reparação. O facto de ter tido de encerrar as instalações arrendadas, que utilizava como “prolongamento dos seus escritórios” e de, para tal, ter de se “socorrer de casas de terceiros”, aí pernoitando por vezes, fazendo despesas que normalmente não faria, não basta para ter o direito a ser indemnizada pois a sua conduta ilícita – impedindo e interrompendo as obras a meio – é que lhe criou essa situação a prolongar-se no tempo. Mesmo entendendo-se, como se entende, que as obras do senhorio foram causadas por obras ilícitas, que degradaram o locado e, apenas por isso, a Autora não o podia utilizar (cheiro nauseabundo, canal de esgoto a descoberto, apodrecimento parcial do pavimento, humidade e salitre nas paredes), a situação não lhe conferiria direito a ser indemnizada pelos incómodos das obras que o senhorio teria de efectuar ficando arredado o exercício abusivo de qualquer direito, antes, como acima se referiu, um ilícito contratual da recorrente. 5- Conclusões Pode concluir-se que: Nos termos expostos, acordam negar a revista. Custas pela recorrente. Supremo Tribunal de Justiça, 2 de Novembro de 2010 Sebastião Póvoas (Relator) Moreira Alves Alves Velho |