Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A2846
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUSA LEITE
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACTIVIDADES PERIGOSAS
OBRAS
CULPA DO SINISTRADO
Nº do Documento: SJ200610310028466
Data do Acordão: 10/31/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I - Provando-se que a mãe dos Autores, preterindo deslocar-se cerca de 50 m, distância a que existiam passadeiras para peões, efectuou a travessia da via em local onde habitualmente se situava uma passadeira, que se encontrava tapada por nova cobertura de asfalto que estava a ser colocada naquele preciso momento, iniciando a travessia quando o cilindro de compactação já se encontrava muito perto de si, vindo a ser colhida pelo referido cilindro, cujo funcionamento se fazia avançando cerca de 70 m para a frente, recuando depois igual distância, sem o condutor mudar de posição, é de concluir que o acidente se deu por culpa exclusiva da vítima.
II - O seu comportamento foi não só objectivamente desaconselhável, atendendo a que, o cilindro se encontrava a curta distância, mas também violador das normas regulamentares que, naquele momento, disciplinavam a travessia de peões pela faixa de rodagem em obras, as quais se encontravam sinalizadas.
III - Em condições normais como a dos autos, em que não se provou, nem estava alegada a existência de factos, como por exemplo a ocupação dos passeios ou o aluimento destes, que conferissem às manobras a realizar pelo cilindro de compactação uma perigosidade específica, é de considerar que a deslocação dessa máquina não constitui, objectivamente, factor de perigosidade para o comum trânsito dos peões que não seja efectuado no espaço em que a mesma realiza a actividade a que se destina.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – Na comarca de Setúbal, AA e BB vieram peticionar a condenação dos RR :

- FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL;
- Sociedade CC, S A ;
- DD ; e
- Junta Autónoma das Estradas, hoje com a designação de IEP,

no pagamento da quantia de 7.516.500$00, correspondente aos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do atropelamento de sua mãe EE por um cilindro de compactação de betuminoso, o qual não possuía seguro automóvel válido, e pertencia àquela sociedade, sendo conduzido pelo R DD, e que era utilizado em obras de reparação da via pública adjudicadas à sociedade Ré pela JAE, atropelamento esse que foi causa do óbito daquela EE, que ocorreu quando a mesma atravessava uma passadeira para peões, sem que, por um lado, as referidas obras se encontrassem devidamente sinalizadas, e, por outro lado, o condutor da máquina tivesse tomado as cautelas que a situação impunha.

Foi requerida pelos AA a intervenção principal de CC, na qualidade de encarregado geral da obra, e de ..., enquanto director da mesma, que foram admitidas.

Prosseguindo a acção os seus normais termos, com contestação, por parte de todos os RR e intervenientes, e a dedução de excepções às quais ora se torna inútil fazer qualquer especiosa referência, após a realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença, na qual a Ré sociedade, o FGA e o interveniente CC foram condenados, solidariamente, e a título de danos não patrimoniais, no pagamento das quantias de € 25.937,48, aos AA, e de € 1.236,30, ao ISSS/CNP, que reclamara, entretanto, os subsídios sociais pagos, quantitativos estes acrescidas de juros de mora desde a citação, e correspondentes a 80% do valor indemnizatório global arbitrado, bem como no montante a apurar em execução de sentença, correspondente aos danos patrimoniais, sendo absolvidos do pedido os restantes RR e interveniente.

Tendo apelado os RR CC, S A e FGA, a Relação de Évora julgou a acção improcedente.

Vêm, agora, os AA pedir revista, tendo, nas conclusões que apresentaram nas suas alegações, sustentado a sua divergência, relativamente ao Acórdão proferido, quanto aos seguintes pontos:

- culpa efectiva da Ré Sociedade e do interveniente ; ou,
quando assim se não entenda,
- culpa presumida dos mesmos.

Nas respostas que apresentaram, o FGA, para além de defender a manutenção do decidido pela Relação, veio requerer, para o caso da procedência do recurso, a apreciação da qualificação do acidente como acidente de viação, enquanto que, a Ré Sociedade, pugnando, igualmente, pelo não provimento do recurso, veio, também, e para o caso da verificação da sua procedência, questionar a aplicação do art. 661º, n.º 2 do CPC efectuada pela 1ª instância.

Após vistos, cumpre decidir.

II – Da matéria de facto considerada como assente pela Relação, há a relevar, para o conhecimento do objecto da presente revista, a seguinte:

“ Em 12/04/1995, cerca das 16 h, a mãe dos AA foi vítima de acidente de viação que lhe provocou a morte – (E).
O acidente em causa verificou-se na EN 252, ao Km 6,7, em ...., concelho de Palmela – (G).
Em 12/04/1995,EE dirigiu-se ao referido local, para atravessar para o lado oposto, cruzando a via de circulação que limita o jardim da praça ali existente – (H).
Encontrava-se aquela via de circulação a ser objecto de obras de reparação e conservação, as quais eram executadas pela Ré CC, por conta da JAE – (I).
A Ré CC, S A é proprietária do cilindro de compactação de betuminoso, marca HAMM, modelo GRW 15, com o código CL 53 – (B).
Na altura, a faixa de rodagem, do lado da vítima, encontrava-se a ser coberta com um novo tapete de asfalto, pelo cilindro descrito em (B) – (J).
O trânsito automóvel fazia-se, nos dois sentidos, pela outra faixa de rodagem – - (L).
Não existia qualquer sinalização ou vedação que impedisse a circulação de peões – (M).
Os passeios adjacentes à via em obras não se encontravam afectados pelos trabalhos – (20º-A).
EE pretendeu efectuar a travessia da via em local onde habitualmente se situava uma passadeira que, no momento, estava tapada pela nova cobertura de asfalto – (30º).
Na rua onde aquela pretendia atravessar existem três passadeiras para peões a distâncias inferiores a 50 m, perpendicularmente ao eixo da via – (31º).

Quando se encontrava a efectuar a travessia da referida via ,EE veio a ser colhida pelo aludido cilindro, o que lhe provocou a morte quase imediata – (N).
EE iniciou o trajecto de passagem da meia faixa do seu lado, quando o cilindro já se encontrava muito perto de si, tendo sido atingida pela parte traseira direita do mesmo – (33º).
A vítima foi atingida a cerca de ½ a um metro do lancil do passeio e a metade da faixa de rodagem onde ocorreu o acidente tinha 3 m – (23º).
O funcionamento do cilindro fazia-se avançando cerca de 70 m para a frente, recuando depois igual distância, sem o condutor mudar de posição – (5º).
O troço onde decorriam as obras estava sinalizado com sinalização temporária, sendo que a sinalização existente consistia nos sinais de “Perigos Vários”, “Proibição de Ultrapassagem”, “Trabalhos na Via”, “Aproximação de Sinalização Luminosa”, sinal de limite de velocidade e ainda dois semáforos colocados nas extremidades da obra em curso - (18º).
Visível a qualquer utente que quisesse atravessar a faixa de rodagem – (19º).
A vítima EE gozava de boa saúde e deslocava-se com facilidade – (Q).
Tinha nessa data 76 anos de idade – (O). “

III – Os recorrentes impugnam o aresto da Relação, quanto ao decidido concurso exclusivo do comportamento estradal da sua progenitora para a produção do infeliz atropelamento de que foi vítima, alegando, para tal, a aplicabilidade à situação em análise do preceituado nos arts. 5º do CE, 1º, n.º s 1 e 3, 6º, n.º 3, 12º, n.º s 1 e 2, 14º, 20º, n.º s 1, 2, al. c) e 3, e 21º do Dec. Reg. 33/88, de 12/09, normas estas cuja inobservância teria conduzido, em seu entender, à ocorrência do acidente, com a daí consequente responsabilidade dos RR por tal omissão.

Porém, aquelas invocadas normas do Regulamento de Sinalização Temporária de Obras e Obstáculos na Via Pública, com excepção da indicada em último lugar, têm como destinatários apenas os utentes que transitem na via em obras conduzindo veículos automóveis, ciclomotores ou velocípedes, uma vez que, encontrando-se a sinalização temporária de trabalhos móveis, nomeadamente na parte questionada pelos recorrentes, ou seja, no respeitante à utilização da sinalização de posição constituída por “baias”, “cones” e “fitas”, directamente correlacionada com a prévia colocação do sinal de obrigação CT4, de que aqueles constituem dispositivos complementares destinados a delimitar no terreno o local específico dos obstáculos ou dos trabalhos em execução – arts. 12º, n.ºs 1 e 2 e 20º, n.º 2, al. c) - , tal obrigação imposta pelo referido sinal de prescrição absoluta dirige-se, todavia, e exclusivamente, aos condutores – art. 4º, n.º 2, al. b) do Reg. Cód. Est. 54 (sinal C2) -, daí resultando, portanto, que o trânsito de peões seja alheio a tais imposições.

Por seu turno, e no que concerne à estatuição constante do aludido art. 21º, que se mostra, este sim, aplicável, única e exclusivamente, à circulação de peões, no mesmo se contempla a exigência da implantação de um caminho obrigatório, quando a existência de um obstáculo ocasional, ou de uma zona de obras, possa constituir impedimento ao normal trânsito daqueles, nos locais, que, para tal, lhes estejam destinados, e cuja respectiva enumeração decorria do n.º 1 do art. 102º do CE 94, à data vigente.

Ora, da matéria de facto enunciada resulta, sem qualquer sombra de dúvida, que o trânsito pedonal, no passeio onde a vítima se aprestava para proceder ao atravessamento da via, não sofria qualquer impedimento, dado que as obras que então se realizavam, apenas se circunscreviam à faixa de rodagem, com a colocação de uma camada de asfalto na mesma, pelo que, por um lado, perante a inviabilidade técnica, da delimitação, no decurso da ocorrência da referida pavimentação, de um caminho obrigatório para a sua travessia ou para a circulação por tal local, atenta a com o mesmo colidente imprescindível mobilidade da referida operação de asfaltamento, e, por outro lado, dada a inexistência de sinalização estradal permissiva da efectivação de tais percursos no referido local, de tal decorre, que se mostre, óbvia e necessariamente, afastada, a susceptibilidade de violação, naquele apontado circunstancialismo, do preceituado na norma regulamentar apontada pelos recorrentes.

E, além do mais, encontrando-se a travessia da faixa de rodagem condicionada aos locais para tal indicados no n.º 3 do art. 104º do CE, sempre, de todo em todo, seria dispensável a colocação de sinalização temporária, relativa à realização de obras, em local em que se mostra provado que já não existia qualquer passadeira para peões, em virtude da até então existente ter sido eliminada pela repavimentação da via, conduzindo, assim, a tese aduzida pelos recorrentes, à dedutível conclusão, ainda que não invocada, de que a sua progenitora era avessa à observância dos comportamentos cívicos estradais, que só respeitava quando a tal era impositivamente coagida.

Por outro lado, e tendo em linha de consideração, a inexistência no local onde a infeliz EE pretendia atravessar a faixa de rodagem, de qualquer visível passagem para peões, o exclusivo processamento de todo o trânsito pela faixa de rodagem contrária, e que aquela necessariamente teria de transpor, bem como o notório conhecimento, por parte de qualquer cidadão, não só da liquidez e alta temperatura do solo que se encontre a ser pavimentado com alcatrão, como também dos movimentos de arranque e marcha atrás do cilindro que se encontre a proceder à subsequente e imediata compactação do mesmo, constituem condicionantes inquestionavelmente obstaculizantes da travessia de uma qualquer via onde tal actividade é executada, e cuja visibilidade se torna absolutamente manifesta, quer pela simples observação, quer pela sinalização, barulho e movimento da maquinaria para tal utilizada, pelo que, consequentemente, não vindo provado que a vítima, por dificuldades visuais ou quaisquer outras circunstâncias, de tal se não apercebeu, antes vindo provado ser a mesma portadora de boa saúde, apenas se pode concluir que aquela, preterindo deslocar-se cerca de 50 m, já que a tal distância existiam outras passadeiras para peões, arriscou a travessia, assumindo, com a sua atitude, todas as nefastas consequências que lhe poderiam advir de um atalhar caminho, não só objectivamente desaconselhável sob todos os pontos de vista, atendendo a que, para além do referido, o cilindro se encontrava, igualmente, já a curta distância, como também violador das normas regulamentares, que, naquele concreto momento temporal, disciplinavam a travessia de peões pela faixa de rodagem em obras.


IV – Sustentam, ainda, os recorrentes, a ilegal aplicação, pela Relação, do preceituado no art. 493º, n.º 2 do CC, ao considerar que aqueles não lograram provar a culpa dos RR na produção do evento.

Na verdade, no domínio do exercício de actividades perigosas, impende sobre o lesante a presunção de culpa relativamente à produção dos danos sofridos pelo lesado, presunção esta, todavia, susceptível de ilisão por parte do mesmo – arts. 350º, n.º 2 e 493º, n.º 2 do CC.

Ora, para a determinação do carácter perigoso de uma actividade, já que o legislador não procedeu à enumeração das situações englobadas em tal conceito, há que lançar mão das directrizes genéricas consagradas naquele último indicado normativo civil, em que relevam, como factores conducentes a tal qualificação, quer a própria natureza da referida actividade, quer a natureza dos meios utilizados no seu exercício, sempre constituindo, todavia, elemento fundamental para a efectivação de tal qualificação, o circunstancialismo específico do respectivo caso concreto – vide Anotado dos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, vol. I, pág. 495.

Porém, e se a actividade de pavimentação de uma via, não reveste, sob o ponto de vista objectivo, qualquer perigosidade intrínseca, como factor inerente ao seu normal exercício, já, por outro lado, e quanto à utilização dos meios a tal destinados, só perante o concreto circunstancialismo espacial onde os mesmos tenham de actuar, se poderá aferir da ocorrência da referida perigosidade.

Na situação que nos vem presente, e sob o ponto de vista dos peões, que é aquele que ora releva, nada se mostra provado, nem inclusive alegado, nomeadamente quanto a uma qualquer eventual circunstância, v.g. desnível do terreno, ocupação dos passeios, aluimento destes, etc, que conferisse às manobras a realizar pelo cilindro de compactação uma perigosidade específica, pelo que, consequentemente, e em condições normais, a deslocação daquela aludida máquina não é, objectivamente, factor de perigosidade para o comum trânsito dos peões que não seja efectuado no espaço em que a mesma realiza a actividade a que se destina.

Por outro lado, haverá, igualmente, a salientar, que, analisando-se o conteúdo da p.i., constata-se que, na mesma, se verifica uma total e absoluta omissão relativamente à alegação de factos enquadráveis na previsão do citado n.º 2 do art. 493º do CC, normativo este, que, aliás, também se mostra excluído da remissão efectuada pelos ora recorrentes, quanto aos preceitos legais que, em seu entender, teriam sido infringidos pelos RR – art. 70º -, pelo que, a tese, em tal sentido, por aqueles subscrita nas suas conclusões, sempre se mostraria em dissonância com o preceituado no art. 664º, segunda parte, do CPC.

Não colhem, assim, qualquer apoio, quer factual, quer jurídico, as conclusões formuladas pelos recorrentes.

V – Perante o exposto, vai negada a revista, com custas pelos recorrentes.


Lisboa, 31-10-2006

Sousa Leite (Relator)
Salreta Pereira
João Camilo