Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
823/12.8JACBR.C1.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: MANUEL BRAZ
Descritores: RECURSO PENAL
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL COLECTIVO
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL COLETIVO
ACORDÃO DA RELAÇÃO
DUPLA CONFORME
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CONFIRMAÇÃO IN MELLIUS
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
PENA PARCELAR
CÚMULO JURÍDICO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA ÚNICA
CULPA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
PLURIOCASIONALIDADE
Data do Acordão: 11/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO O RECURSO
Área Temática:
DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES - CRIMES EM ESPECIAL - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - RECURSOS / ADMISSIBILIDADE DO RECURSO.
Doutrina:
- Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Reimpressão, 2005, 291 e 292.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 400.º, N.º1, ALS. E) E F), 432.º, N.º 1, AL. B).
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 71.º, 77.º, N.ºS1 E 2, 171.º, N.ºS 1 E 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

-N.º 186/2013, DO PLENÁRIO, EM WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT .

-*-

ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 07/05/2009, CJ, ACÓRDÃOS DO STJ, ANO XVII, TOMO II, 193; DE 12/11/2009, PROC. N.º 200/06.0JAPTM; DE 16/12/2010, PROC. N.º 893/05.5GASXL; DE 19/01/2011, PROC. N.º 421/07.8PCAMD; DE 04/05/2011, PROC. N.º 626/08.4GAILH; DE 11/01/2012, PROC. N.º 158/08.0SVLSB; DE 21/03/2012, PROC. N.º 303/09.9JDLSB, DISPONÍVEIS EM WWW.DGSI.PT ; DE 26/10/2011, CJ, ACÓRDÃOS DO STJ, ANO XIX, TOMO III, 198; DE 27/02/2014, PROC. 798/12.3GCBNV.L1.S1; E DE 20/03/2014, PROC. N.º 43/11.9JDLSB.L1.S1, AMBOS DA 5.ª SECÇÃO.
-DE 21/06/2012, PROC. N.º 69/09.2SVLSB.L1.S1, 5.ª SECÇÃO.
-DE 11/10/2012, PROC. N.º 288/09.1GBMTJ.L2.S1, 5.ª SECÇÃO.
*
ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA Nº 4/2009, PUBLICADO NO DR, 1ª SÉRIE, DE 19/03/2009.
Sumário :

I - No caso de concurso de crimes, sendo pena aplicada tanto a pena singularmente imposta por cada crime como a pena única, a irrecorribilidade prevista no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP afere-se separadamente, por referência às penas singulares e à pena aplicada em cúmulo. Outro entendimento, nestes casos, levaria a que, quando os vários crimes em concurso fossem apreciados na mesma decisão, poderiam ser reexaminadas em recuso as questões relativas aos ilícitos punidos singularmente com pena de prisão não superior a 8 anos, com confirmação da Relação, o que estaria vedado num caso idêntico de concurso de conhecimento superveniente em que cada crime houvesse sido julgado num diferente processo, sendo de questionar se aí não haveria violação do princípio da igualdade.
II - O acórdão da Relação em causa, sendo confirmatório da decisão de 1.ª instância no que respeita aos dois crimes de abuso sexual de crianças do n.º 2 do art. 171.º do CP, não admite recurso nessa parte, à luz da al. f) do n.º 1 do art. 400.º do CPP, pois por cada um desses crimes aplicou pena de prisão não superior a 8 anos.
III - Relativamente ao crime de abuso sexual de crianças tentado do n.º 1 daquele art. 171.º, o acórdão da Relação não se pode considerar confirmatório da decisão da 1.ª instância, na medida em que nessa parte a Relação alterou a qualificação jurídica dos factos, tendo sido em função dessa alteração que a pena foi reduzida, pois foi encontrada dentro de uma moldura penal cujos limites mínimo e máximo são inferiores. Mas, uma vez que por essa tentativa foi aplicada pena de prisão não superior a 5 anos, o recurso nessa parte é inadmissível, nos termos da al. e) do n.º 1 do art. 400.º do CPP.
IV - A Relação baixou a pena única de 6 anos e 6 meses para 6 anos de prisão, mas tal decisão assentou em bases diferentes daquelas de que partiu o tribunal de 1.ª instância, visto haver aplicado pelo crime de abuso sexual de criança do n.º 1 do art. 171.º, que considerou ser tentado, uma pena inferior à imposta em 1.ª instância. A redução de uma das penas parcelares representa a alteração dos fundamentos ou pressupostos da pena do concurso, modificando os limites da respectiva moldura penal, razão pela qual não se pode considerar que o acórdão recorrido, neste ponto, confirmou a decisão de 1.ª instância.
V - Diferente seria se a Relação houvesse reduzido a pena do concurso mantendo as penas parcelares. A situação presente é equivalente àquela que ocorre quando a Relação, em recurso, reduz a medida da pena aplicada por um crime no âmbito de uma alteração da qualificação jurídica dos factos. Pelo que, não se verifica a causa de irrecorribilidade prevista na al. f) do n.º 1 do art. 400.º do CPP e, por isso, à luz do disposto no art. 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, a decisão da Relação sobre a determinação da pena do concurso admite recurso para o STJ.
VI - A culpa pelo conjunto dos factos, ou o grau de censura a dirigir ao recorrente por esse conjunto (3 crimes de abuso sexual de crianças, sendo um deles tentado), e a medida das necessidades de prevenção geral, situam-se num patamar mediano, permitindo aquela e impondo esta uma pena única bem distanciada do limite mínimo da moldura penal. Havendo só uma vítima, não se pode concluir por uma tendência do arguido para a prática deste tipo de crime. Em favor do arguido releva a ausência de antecedentes criminais e a sua inserção social, não impondo, assim, as exigências de prevenção especial que a pena se fixe acima do mínimo pedido pela prevenção especial. Pelo que se considera que a pena única de 6 anos de prisão aplicada, se mostra adequada.
Decisão Texto Integral:

                    Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

         O tribunal de 1ª instância, por acórdão de 23/04/2014, condenou o arguido AA

          -a 15 meses de prisão, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artº 171º, nº 1, do CP;

          -a 4 anos e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artº 171º, nº 2;

-a 3 anos e 4 meses de prisão, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, da mesma previsão legal; e

          -em cúmulo jurídico, na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão.

          O arguido interpôs recurso para a Relação de Coimbra, que, por acórdão de 18/03/2015, decidiu:

          -considerar apenas tentado o primeiro dos indicados crimes, aplicando por ele a pena de 9 meses de prisão;

         -manter as penas singularmente aplicadas pelos dois outros crimes;

          -aplicar, em cúmulo jurídico, a pena única de 6 anos de prisão.

          Ainda inconformado, o arguido interpôs recurso do acórdão da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo a sua motivação nos termos que se transcrevem:

         «1. A Douta decisão tirada pelo Tribunal da Relação de Coimbra interpreta o disposto no artigo 374º, nº 2 do CP Penal como apenas impondo ao Decisor Judicial a obrigação de se pronunciar sobre a prova que serviu para formar a sua convicção.

2. Salvo o devido respeito tal espécie de hermenêutica é absolutamente insustentável e colide fragorosamente com as repercussões associadas ao dever de fundamentação.

3. Na verdade, este implica que se explicite expressamente a razão da opção seguida, examinando criticamente a prova, para o que deve explanar - ainda que sucintamente - as razões por que valorou ou deixou de valorar os momentos probatórios produzidos.

4. Com efeito, a fundamentação é um exercício dialógico de persuasão para o que é indispensável a discussão com o que corrobora a acusação, bem como o que dela disside,

5. Sob pena da sentença se tomar um monólogo opaco em que o arguido de sujeito processual passa a mero ouvinte, passivo e alheado, da prova carreada aos autos por quem o acusa.

6. Assim, tal concepção do dever de fundamentação baseado numa interpretação unívoca do citado artigo 374º/2 do CP Penal viola a disposição contida no artigo 205º, nº 1 da CRP.

7. Na verdade, tal inciso da Lei Fundamental estrutura uma aspiração crucial de um processo penal Democrático que é dotar as decisões judiciais - principalmente as tendencialmente finais - de transparência, enquanto garantia da operatividade do Estado de Direito.

8. Por outro lado, sempre salvaguardando o respeito devido, a Douta decisão incorre na nulidade por omissão de pronúncia, prevista na aI. c) do nº 1 do artigo 379º, também do CP Penal.

9. Na verdade, propugna pela improcedência do recurso em matéria de facto, sem curar de reapreciar a prova indicada pelo recorrente nas conclusões que teceu, em cumprimento do disposto no artigo 412º, nº 3, aIs. b) e c).

10. Desde logo, dir-se-á, o recorrente cumpriu - ao que se crê, escrupulosamente - tal injunção legal.

11. Com efeito, isolou os factos tidos por "incorrectamente julgados", baseou tal asserção lapidar nos meios de prova que confortarão essa conclusão e remeteu expressamente para os minutos, de acordo com a acta da audiência de discussão e julgamento, em que tais declarações se produziram.

12. Neste conspecto, a objecção de que o recorrente quer ver substituída a respectiva convicção em detrimento daquela dos Julgadores é um ininteligível jogo semântico.

13. Efectivamente, o que o recorrente almejava - e segundo uma faculdade que a Lei lhe assegura - era a ponderação de momentos probatórios - individualizados - bem como a discussão ampla e abrangente da globalidade da prova produzida,

14. Onde avultariam, designada e necessariamente, os segmentos em que incidiu o seu esforço recursivo, exactamente por que os mesmos foram desconsiderados pelo Tribunal a quo.

15. Ou seja, não se trata da substituição da convicção de um leigo por uma de Juízes; trata-se, tão só mas indiscutivelmente, de trazer à liça elementos probatórios que foram ignorados sem que a decisão de que se recorria houvesse justificado racionalmente tal omissão.

16. Nesta confluência, estava-se (segundo se julga) dentro do âmbito do direito ao recurso em matéria de facto que postularia uma reapreciação da globalidade da prova produzida e a resposta à questão verdadeiramente essencial, até para a ideia do Estado de Direito:

17. Por que razão se valoram umas provas e não outras?

18. E será bastante, paradigmaticamente, dizer que não se crê numa testemunha porque ela quer acreditar na inocência de quem está acusado?

19. Ora, ao não debater estas questões, nomeadamente não reapreciando a prova indicada pelo arguido/recorrente, o Douto Acórdão deixou de conhecer questão que a Lei lhe impunha a cognitividade,

20. Incorrendo no referido vício elencado na citada aI. c) do nº 1 do art. 379º do CPP, aplicável por força do nº 4 do artigo 425º do mesmo diploma.

21. Por outro lado, resulta da Douta Peça em recurso que o arguido/recorrente e a testemunha/ofendida mantiveram sempre versões diametralmente opostas sobre o que ocorreu entre eles.

22. Também resulta da leitura do Douto Acórdão recorrido que a testemunha teve declarações distintas relativamente aos únicos episódios minimamente concretizados que são imputados ao recorrente.

23. Como resulta que o recorrente sofre de uma patologia peniana traduzi da numa curvatura bastante pronunciada, resultante de uma atrofia muscular, que torna tal órgão de aspecto anormal - circunstancialismo em que a menor não reparou.

24. Por outro lado, o exame médico-legal (constante de fls. 248 a 250 dos autos) atesta a inexistência de vestígios físicos de actos sexuais.

25. E o exame "avaliação psicológica" adverte que haverá indícios comportamentais e psicológicos - não constituindo tal nada de definitivo - de que a menor poderá ter sido vítima de abusos.

26. Neste quadro, sacrificou-se - inexoravelmente - o princípio da presunção da inocência com plasmação constitucional no artigo 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa,

27. Exactamente enquanto princípio probatório traduzido na ideia do in dubio pro reo.

28. Este postulado impunha, de facto, que a escassez probatória demonstrada nos autos fosse valorada a favor da posição processual do arguido, ora recorrente.

29. Na medida em que, de acordo com a respectiva impressiva formulação, mais vale absolver um culpado do que condenar um inocente.

Sem prescindir,

30. Todavia, mesmo que assim se não entenda, a dupla condenação por um crime de trato sucessivo, ou exaurido, do artigo 171º/2 do CP (por factualidade compreendida até ao Verão de 2012) e por um acto isolado que terá sido perpetrado em 14/09/2012 emerge juridicamente insustentável.

31. Com efeito, a lógica imanente à dita categoria de crime ancora na reiteração sucessiva de factos de idêntica natureza e na subsequente impossibilidade de os determinar.

32. Supõe, assim, a convenção da existência de um só crime - apesar das condutas que, isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave quanto mais repetido.

33. Ora, a espécie de condenação, pela natureza da figura, é unificadora e esgotante, como inculca o sentido da palavra exaurido.

34. No entanto, em absoluta antinomia com tal significado semântico e jurídico, condenou-se o arguido por conduta isolada, já contida no período temporal abrangido pela sobredita condenação.

35. Ou seja, o episódio de 14 de Setembro de 2012 é punido como actividade integrada nos abusos diários decorridos até ao Verão de 2012 e como acto isolado …

36. Em flagrante colisão com o disposto no artigo 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa que comanda que "ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime", assim consagrando o chamado princípio do non bis in idem.

37. Princípio que proíbe a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do mesmo crime.

38. Sendo certo que as objecções que o Douto Acórdão em recurso efectua no que tange à sobredita leitura não colhem.

39. Na verdade, o arguido nunca defendeu a existência de um crime continuado (antinómico, até, com o dito crime de trato sucessivo), nem de um crime único.

40. Por outro lado, a argumentação da diferente contextualização espacial e temporal dos factos não colhe relativamente a este pedaço de história supostamente ocorrido em 14 de Setembro de 2012.

41. Na verdade, relativamente a ele inexiste qualquer novidade espacial e, tão pouco, existe qualquer ruptura temporal.

42. Ou seja, ressuma perspícuo que o mesmo se integra na amálgama inserta na condenação por "crime de trato sucessivo" preconizada pelo Tribunal de primeira instância.

43. Sendo irrelevante a declaração do Acórdão agora recorrido de que não se revê em tal qualificação - de facto, da mesma não é extraída qualquer repercussão jurídica, razão por que se mantém a operação subsuntiva levada a cabo pelo tribunal Colectivo; i. é, a condenação concomitante por um crime de trato sucessivo ocorrido entre fim de 2010 e o Verão de 2012 e de um acto isolado, da mesma espécie, em 14 de Setembro de 2012.

            44. Finalmente - independentemente do destino das anteriores conclusões - quer o recorrente dar nota do seu dissídio relativamente à pena única que lhe foi aplicada.

45. Efectivamente a medida concreta da mesma surge claramente desfasada do preceito normativo contido no nº 1 do artigo 77º do CP.

46. Ora é manifesto que a punição que se verbera não levou em conta, nomeadamente, que a prevenção especial ao nível da ressocialização se encontrava sensivelmente diminuída, face à idade do arguido e à sua inserção social, laboral e familiar.

47. Razão pela qual a pena aplicada em distonia com os preceitos invocados,

48. Impondo a predita normatividade que a pena não ultrapasse os cinco anos de prisão.

49. Por outro lado, tal pena proposta (em cúmulo) deverá ser suspensa como impõe o comando inserto no artigo 50º, nº 1, do Código Penal.

50. Na verdade, o sobredito preceito estatui que "O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição".

51. Ou seja, a suspensão da execução da pena não obedece a qualquer ideia de discricionariedade, decorrendo, ao invés, do exercício de um poder-dever vinculado, que impõe que seja decretada sempre que se verifiquem os pressupostos legalmente enunciados.

52. Ora, tal medida - de insofismável carácter pedagógico - depende da respectiva adequação à socialização do arguido - atendendo à respectiva personalidade, condições de vida e conduta anterior e posterior aos factos - e do facto da censura e ameaça de prisão realizarem as finalidades da punição.

53. Isto é, são as razões preventivas de natureza especial que se alcandoram a um patamar de indesmentível relevância no que tange ao funcionamento do sobredito mecanismo, sem que se possa, todavia, olvidar a prevenção geral.

54. Assim, sob pena de violação irremissível do disposto no nº 1 do mencionado artigo 50º do CP, deve a pena aplicada ao arguido ser suspensa na sua execução.

55. Efectivamente, a personalidade do agente, o seu comportamento anterior e posterior aos crimes e as circunstâncias peculiares destes permitem o juízo de prognose que a ameaça da pena e a censura traduzida nesta realizam as finalidades da punição».

         Respondendo, o MP junto do tribunal recorrido defendeu a rejeição do recurso, por inadmissibilidade ou, a não se entender assim, a sua improcedência.

          O recurso foi admitido.

          No Supremo Tribunal de Justiça, o MP propendeu igualmente para a rejeição do recurso, com o indicado fundamento, propondo-se alegar oralmente no caso de vir a ser designado dia para a audiência requerida pelo recorrente.

          Foi cumprido o artº 417º, nº 2, do CPP.

          Realizada a audiência, cumpre decidir.

          Fundamentação:

         Foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

           1. A menor BB é filha de CC e nasceu na Irlanda, país de onde é nacional, a ....

2. A mãe da menor vivia maritalmente com DD.

3. A mãe deste, EE, mantém uma relação de namoro com o arguido AA, vivendo no mesmo prédio, em casas pertença do arguido, sendo que a ocupada pela EE tem apenas um quarto e a ocupada pelo arguido é maior.

4. A EE ainda mantém actividade laboral, sendo que o arguido se encontra reformado.

5. No verão de 2010 a mãe da menor acima indicada, acompanhada da filha e companheiro vieram passar férias a Portugal.

6. Decidiram, na ocasião, passar a viver definitivamente neste país, mais concretamente em Coimbra, local onde o DD tem família.

7. Para tal trataram de toda a documentação necessária para a inscrição da menor na escola e a sua inserção a título definitivo neste país.

8. Acontece que a mãe da menor e seu companheiro tinham ainda contratos de trabalho na Irlanda que importava completar.

9. Para evitar prejuízos escolares para a menor e uma vez que, findos os mesmos, era intenção do casal passar a residir em Coimbra, ficou decidido que a menor ficaria nesta cidade, a cargo da EE e namorado desta, o aqui arguido.

10. Por acordo de todos e porque o arguido assumia o papel social de "avô de facto", a menor passou a viver em casa do arguido.

11. Como acima foi referido, a EE e o arguido mantêm uma relação de namoro e residem em casas distintas, mas situadas no mesmo prédio, sendo que a casa do arguido é maior e por isso com melhores condições físicas para acolher condignamente a menor.

12. Acresce que encontrando-se ainda a EE com actividade laboral regular, era o arguido quem tinha maior disponibilidade para acompanhar a menor nas suas idas e vindas da escola, bem como das actividades inerentes a uma criança desta idade.

13. Inclusivamente foi por todos acordado que seria o arguido quem ficaria como encarregado de educação da menor, como aconteceu.

14. A mãe da menor e companheiro regressaram à irlanda em inícios de Setembro de 2010, tendo a menor ficado em Coimbra, a residir com o arguido na Rua ....

15. Em finais de Setembro de 2010, a mãe da menor e companheiro regressaram a Portugal, passando todos a residir na ..., nesta cidade.

16. Acontece que não obstante a menor ter passado a residir em local diverso do arguido, atenta esta proximidade familiar e o facto de todos - mãe da menor, companheiro e mãe deste - terem horários laborais a cumprir, era o arguido que acompanhava a menor nas suas actividades, levando-a à escola, ali a indo buscar, levando-a para sua casa enquanto a restante família estava a trabalhar, ou seja, assumindo um papel muito presente na vida desta criança e passando longo tempo sozinho com esta, sobretudo em casa do arguido e acima indicada.

17. Por uma questão de facilidade e compatibilidade com os horários e responsabilidades laborais da mãe da menor e companheiro desta, a menor por vezes pernoitava em casa do arguido.

18. A mãe da menor e companheiro desta confiavam completamente no arguido para que este cuidasse da criança, sendo que era este que se oferecia, alegando ser do seu agrado tratar da sua "neta", pois assim até ocupava o tempo enquanto todos estavam ausentes em trabalho.

19. Acresce que atento o poder económico do arguido, muito superior ao dos restantes membros desta família, passou este a comprar os livros, a custear os gastos com a criança e sobretudo a comprar-lhe roupa, muita, e sobretudo de tamanho muito reduzido - com especial relevo para as saias e calções muito curtos.

20. Tudo por iniciativa do arguido.

21. Durante o ano lectivo 2010/2011, o arguido manteve para com a menor BB um comportamento absolutamente compatível com o típico relacionamento avô carinhoso/neta querida.

22. Acompanhava-a no seu dia-a-dia, brincava e cuidava dela.

23. A menor foi-se afeiçoando ao arguido, passando a vê-lo como um avô carinhoso, passando todos a encarar o tempo que os dois estavam juntos como perfeitamente natural e aceitável.

24. Acontece que a menor foi crescendo e começou a evidenciar características típicas femininas, com o inerente crescimento dos seios, passando de uma criança a uma "pequena" adolescente.

24. Modificou-se, igualmente, o modo como o arguido passou a tratar a menor.

25. No início do ano lectivo 2011/2012, ou seja, em momento não concretamente apurado do mês de Setembro de 2011, na sala da casa do arguido, sita na morada acima indicada, estando os dois sentados no sofá, aproveitando-se da confiança que a menor tinha para consigo, o arguido começou a mostrar à menor BB filmes com cenas em que eram visíveis homens e mulheres nus e que mantinham entre si relações sexuais explícitas de sexo vaginal, oral e anal.

26. Ao mesmo tempo que ia mostrando tais filmes, vulgarmente conhecidos por filmes pornográficos, o arguido começou a acariciar a menor pelo corpo, inicialmente por cima da roupa e depois introduziu a mão por dentro das cuecas que a criança tinha vestidas, começando a acariciar a vagina da menor com os dedos.

27. Desde inícios de Setembro de 2011, o arguido passou então, quase diariamente, a aproveitar o tempo que estava com a menor para práticas idênticas.

28. Assim, quando estavam os dois na sala do arguido, sozinhos a ver televisão, o arguido pegava no seu IPod e mostrava à menor filmes contendo cenas de sexo explícito.

29. Ao mesmo tempo, começava a beijar a menor na boca e introduzindo-lhe as mãos por dentro da roupa, acariciava-lhe a zona do peito e a vagina.

30. Nestas práticas, o arguido procurava introduzir o dedo na vagina da menor.

31. No decurso do visionamento deste tipo de filmes, que acontecia nas ocasiões acima indicadas, o arguido tirava também o seu pénis do interior das calças e cuecas que trazia vestidas, ficando o mesmo visível à menor.

32. Em seguida dizia à menor para lhe beijar o pénis e o lamber, ao mesmo tempo que encaminhava a cabeça e a boca da menor em direcção ao mesmo.

33. A criança ia acedendo ao que o arguido lhe dizia.

34. Nestas ocasiões o arguido dizia ainda à menor para abrir a boca, ali lhe introduzindo o pénis, dizendo-lhe como proceder a gestos de sucção enquanto mantinha o pénis no interior da boca da menor.

35. Acompanhado do visionamento dos supra referidos filmes contendo cenas de sexo explícito, o arguido pegava nas mãos da menor e conseguia que esta lhe fizesse massagem no pénis em movimentos ritmados.

36. A menor a tudo acedia, com muita vergonha em contar o sucedido, pelo que se mantinha em silêncio.

37. Essas práticas mantiveram-se, como acima foi referido, desde inícios de Setembro de 2011 até ao Verão de 2012, sempre no interior da residência do arguido acima mencionada e enquanto os dois ali estavam sozinhos, práticas estas que o arguido repetiu quase DIARIAMENTE durante tal lapso de tempo, ou seja, sujeitando a menor às supra referidas práticas sexuais, quase todos os dias e durante cerca de um ano.

38. Em Junho de 2012, altura em que a menor entrou em férias lectivas, o arguido levou a menor para o Algarve, juntamente com a namorada EE, com o pretexto de irem para a praia.

39. Ali, durante o período de férias que a menor passou com o arguido, este puxou-lhe o "top" e tentou beijar-lhe o peito, o que ocorreu no interior da casa de férias que todos ocupavam e enquanto a namorada EE estava na casa de banho.

40. Quando a estada na praia acabou, regressou a ... e passou a residir com a sua mãe outra vez.

41. A menor, que entretanto estava a crescer e começava a interiorizar a repulsa e vergonha que estas condutas que o arguido tinha para consigo lhe causavam, começou a evitar estar a sós com o arguido.

42. A menor não explicava a razão da sua resistência em sair com o arguido.

43. Este, por sua vez, surgia junto da mãe da menor e pedia para levar a criança "aqui e ali", sempre "muito simpático", pelo que a menor não tinha forma de evitar estar a sós com ele, fazendo-o para que a mãe não desconfiasse o que se passava - e que era fonte de grande vergonha para a menor.

44. Quando a criança tentava evitar ir com o arguido, este demonstrava efusivamente grande desapontamento, de tal modo que a mãe da menor e companheiro desta - que desconheciam em absoluto qual a razão da conduta da menor e interpretando-a como mero capricho da criança - obrigavam-na a sair com o arguido.

45. Assim, o arguido conseguia estar sozinho com a criança para as práticas acima descritas.

46. O que fazia quase diariamente.

47. A última vez que a menor esteve a sós com o arguido - e que este a acariciou no peito e vagina, e lhe introduziu o pénis na sua boca, bem como lhe pegou nas mãos e a levou a acariciar-lhe o pénis, ao mesmo tempo que viam filmes de conteúdo sexual explícito - aconteceu no primeiro dia de aulas do ano lectivo 2012/2013 ou seja, no dia 14 de Setembro de 2012, uma sexta-feira, o que ocorreu mais uma vez dentro de casa do arguido.

50. O arguido bem sabia a idade da menor, sabia a sua incapacidade em avaliar o desvalor das condutas que sobre esta praticava, manipulando-a do ponto de vista psicológico, de modo a treiná-la para ser seu objecto de uso pessoal para satisfação libidinosa.

51. O arguido queria e conseguiu manter com a menor as práticas acima indicadas, bem como expô-la a cenas de sexo explícito, querendo e conseguindo deste modo satisfazer os seus instintos libidinosos.

54. O arguido bem sabia que tais condutas por si praticadas na menor eram lesivas do recato e pudor sexual que é devido a uma criança.

55. O arguido sempre agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas lhe estavam vedadas por lei.

56. O arguido é pessoa socialmente inserida e respeitadora.

57. Sendo reconhecido como pessoa estimada, honrada, civilizada.

58. A existência do presente processo causou-lhe perturbação.

59. Fez-se examinar por psicólogo e psiquiatra que traçaram perfil indicativo de sujeito mentalmente saudável e capaz, sem indícios de patologias e efectuaram um teste de personalidade dentro dos padrões da normalidade.

60. AA é natural de ..., de onde era originária sua mãe.

Descendente de uma família de remediada condição económica; o pai era fornecedor de cantarias e alvenarias e a mãe doméstica.

No seu processo educativo beneficiou de uma educação regrada e normativa, com maior rigidez por parte da figura paterna, a qual impunha maior autoridade perante os 3 filhos.

Pelos 9 anos do arguido, a família mudou-se para ..., durante 2 anos, com a finalidade de poderem garantir melhores condições educacionais e de vigilância aos filhos. Ainda em ..., AA completou uma das secções do antigo 5° ano liceal, tendo completado a segunda secção num colégio particular, em ....

Quando o arguido entrou para o antigo 6º ano liceal, a família mudou novamente para ..., tendo AA permanecido nesta cidade até aos 22 anos, altura em que iniciou o cumprimento do Serviço Militar Obrigatório e esteve destacado 3 anos em Angola.

Em 1973 terminou o serviço militar e regressou a ..., continuando os estudos a nível superior - Licenciatura em Engenharia Electrotécnica.

Quando terminou a licenciatura já se encontrava casado com a mãe dos seus dois filhos - ... de 37 anos e ... de 30 anos. Sua mulher exercia a profissão de professora do ensino preparatório. Por conveniência familiar, o casal optou por ir viver para ..., onde conseguiram trabalho como professores cooperantes e onde se mantiveram cerca de dois anos e meio. A família regressou novamente a ..., tendo o arguido exercido a profissão de professor na Escola ....

AA refere ter sido, entretanto, convidado para trabalhar numa empresa informática, onde esteve cerca de um ano, após o que recebeu o convite de uma empresa multinacional - NCR Internacional - para dar formação. Mais tarde foi nomeado Director Técnico da filial dessa firma em ..., onde permaneceu 6 anos, findos os quais passou a trabalhar na NCR Portuguesa, em ..., até ao ano 2000. Nessa altura a empresa mostrava-se debilitada e AA optou por criar o seu próprio negócio, abrindo uma firma do mesmo ramo de actividade em conjunto com sua mulher. Esta firma funcionou até 2006, altura em que decidiu reformar-se.

Relativamente à relação familiar de casal, foi uma relação gratificante até ao momento em que sua mulher começou a apresentar problemas de natureza depressiva. A partir de então a relação foi-se degradando, com desentendimentos frequentes que culminaram em separação e divórcio, em 2006.

AA passou, então, a residir sozinho, na anterior casa de morada de família, tendo posteriormente vendido a habitação e comprado o apartamento onde ainda reside actualmente.

Com os filhos, o arguido tem um relacionamento gratificante e, embora ambos estejam a residir fora do país (... reside no Brasil e ... reside na Irlanda, países onde constituíram família), vão mantendo ligação e contactos regulares.

Em 2007, AA conheceu a actual companheira - EE, de ... anos, licenciada em ... e funcionária do ..., onde exerce funções técnicas na Equipa de Emergência Social. O casal mantém um relacionamento bastante gratificante, quer na opinião do arguido, quer na de sua companheira. Optaram por não coabitar em conjunto, vivendo em prédios contíguos, embora mantenham diariamente um funcionamento de casal.

Economicamente o arguido beneficia da pensão de reforma, no valor de 1200,00 € mensais, a que acresce o valor de aproximadamente 1300,00 € mensais correspondentes ao valor das rendas de 3 apartamentos que possuiu.

Os seus tempos livres são normalmente passados em actividades sociais - ginásio, café, convívio com amigos e em casa, onde se entretém com actividades ligadas à informática. O casal frequenta o convívio com grupos de amigos, sendo igualmente frequente integrarem jantares e convívios do serviço da Dra. EE.

No âmbito deste relacionamento afectivo o arguido conheceu o filho de sua companheira, o qual reside na Irlanda com a mulher ... e a filha desta, a menor BB, vítima no presente processo.

O casal já havia estado em Portugal de férias e em 2010 decidiram vir residir para este país, onde perspectivavam conseguir melhores condições de vida. Trataram da inscrição da menor BB na Escola, mas tiveram necessidade de se deslocar à Irlanda por algumas semanas, deixando a menor a cargo do casal EE e AA.

A menor "estabeleceu com os mesmos um relacionamento bastante próximo afectivamente, considerando-os como avós e sendo considerada por eles como neta", tal como ambos os membros do casal nos mencionam. Seria, no entanto, "o arguido quem dispunha de maior tempo disponível para ir levar e buscar a menor à escola, após o que iam buscar AA ao serviço e passavam o restante tempo em casa do arguido, onde a menor pernoitava por maior comodidade em termos de espaço". Contudo, ambos os membros do casal nos referem que "habitualmente jantavam e conviviam um pouco à noite, em família, até à hora da menor se ir deitar".

A relação que ambos mantinham com a menor e esta com eles era, no dizer de ambos, de tal forma afectiva que todos os amigos do casal já a tratavam como se de neta se tratasse. BB tinha o seu tempo livre bastante ocupado, frequentando aulas de piano e de judo três dias por semana, tudo isso proporcionado pelo casal, sendo normalmente o arguido quem tinha maior disponibilidade para levar e trazer a menor a essas actividades.

Terá sido, pois, tal como nos referem, com grande surpresa e indignação que o casal terá tomado conhecimento do presente processo judicial, tendo o arguido ficado bastante afectado em termos emocionais perante a situação de indiciação nos presentes factos, necessitando de recorrer aos serviços de um médico psiquiatra, Dr. ... por quem se encontra a ser devidamente medicado desde há cerca de um ano.

Esteve sujeito a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica de Novembro de 2012 a Abril de 2013, situação que lhe terá causado bastante stress e um enorme constrangimento pessoal, apesar de todo o apoio de que foi alvo, por parte de amigos, da sua família directa - irmã e sobrinha e da própria companheira.

AA não assume os factos de que se encontra indiciado.

Apresenta, no entanto, capacidade crítica face à presente situação, mostrando-se consciente e capaz de interiorizar a gravidade e a reprovação social e moral dos mesmos, mas mencionando "não os poder assumir em consciência". Mostra-se, contudo, confiante no Sistema de Justiça.

           61. O arguido evidenciou falta de arrependimento em audiência.

            62. Nada consta do CRC do arguido.

          Apreciando:

1. O MP junto do tribunal recorrido e neste Supremo Tribunal pronunciou-se no sentido de o recurso dever ser rejeitado, por inadmissibilidade, invocando-se além a alínea f) do nº 1 do artº 400º do CPP e aqui essa mesma alínea, relativamente às questões referentes aos crimes de abuso sexual de crianças do nº 2 do artº 171º do CP e à determinação da pena única, e a alínea e), em relação às questões respeitantes à tentativa de abuso sexual de crianças do nº 1 do mesmo preceito.

Vejamos.

Como se viu, o tribunal de 1ª instância condenou o recorrente

-em 15 meses de prisão, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artº 171º, nº 1, do CP;

          -em 4 anos e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artº 171º, nº 2;

-em 3 anos e 4 meses de prisão, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, da mesma previsão legal; e

          -em cúmulo jurídico, na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão.

          Julgando o recurso interposto pelo arguido da decisão de 1ª instância, a Relação decidiu

         -ser tentado o primeiro desses crimes, aplicando por ele a pena de 9 meses de prisão;

         -manter as penas singularmente aplicadas pelos outros dois crimes;

          -aplicar, em cúmulo jurídico, a pena única de 6 anos de prisão.

Nos termos do artº 400º, nº 1, alínea f), do CPP, «não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos».

No caso de concurso de crimes, sendo pena aplicada tanto a pena singularmente imposta por cada crime como a pena única, a irrecorribilidade prevista naquela norma afere-se separadamente, por referência às penas singulares e à pena aplicada em cúmulo. É neste sentido que o Supremo Tribunal de Justiça vem decidindo uniformemente. (cf., por exemplo, acórdãos de 07/05/2009, CJ, Acórdãos do STJ, Ano XVII, Tomo II, pág. 193; de 12/11/2009, proc. 200/06.0JAPTM; de 16/12/2010, proc. 893/05.5GASXL; de 19/01/2011, proc. 421/07.8PCAMD; de 04/05/2011, proc. 626/08.4GAILH; de 11/01/2012, proc. 158/08.0SVLSB; de 21/03/2012, proc. 303/09.9JDLSB, disponíveis em www.dgsi.pt; de 26/10/2011, CJ, Acórdãos do STJ, Ano XIX, Tomo III, pág. 198; de 27/02/2014, proc. 798/12.3GCBNV.L1.S1; e de 20/03/2014, proc. 43/11.9JDLSB.L1.S1, ambos da 5ª secção).

Outro entendimento nestes casos levaria a que, quando os vários crimes em concurso fossem apreciados na mesma decisão, poderiam ser reexaminadas em recurso as questões relativas aos ilícitos punidos singularmente com pena de prisão não superior a 8 anos, com confirmação da Relação, o que estaria vedado num caso idêntico de concurso de conhecimento superveniente em que cada crime houvesse sido julgado num diferente processo, sendo de questionar se aí não haveria violação do princípio da igualdade.

E o Tribunal Constitucional, no acórdão nº 186/2013, do plenário, não viu nesta interpretação da norma desconformidade com preceitos constitucionais.

Assim, o acórdão da Relação, sendo sem dúvida confirmatório da decisão de 1ª instância no que que respeita aos dois crimes de abuso sexual de crianças do nº 2 do artº 171º do CP, não admite recurso nessa parte, à luz da alínea f) do nº 1 do artº 400º do CPP, pois por cada um desses crimes aplicou pena de prisão não superior a 8 anos.

 Aliás, no que se refere a esses dois crimes, porque a pena aplicada por cada um deles é ainda não superior a 5 anos de prisão, a admissibilidade do recurso decorre também da alínea e) do nº 1 do artº 400º, na redacção dada pela Lei nº 20/2013, de 21 de Fevereiro, aplicável ao caso, de acordo com a doutrina do acórdão de fixação de jurisprudência nº 4/2009, publicado no DR, 1ª série, de 19/03/2009, uma vez que a decisão de 1ª instância foi publicada em 23/04/2014.

Relativamente ao crime de abuso sexual de crianças tentado do nº 1 daquele artº 171º, o acórdão da Relação não se pode considerar confirmatório da decisão de 1ª instância, na medida em que nessa parte a Relação alterou a qualificação jurídica dos factos, tendo sido em função dessa alteração que a pena foi reduzida, pois foi encontrada dentro de uma moldura penal cujos limites mínimo e máximo são inferiores (cf., neste sentido, ac. STJ, de 11/10/2012, proc. 288/09.1GBMTJ.L2.S1, 5ª secção).

Mas, uma vez que por essa tentativa foi aplicada pena de prisão não superior a 5 anos, o recurso nessa parte é inadmissível, nos termos da alínea e) do nº 1 do artº 400º do CPP, pelas razões já apontadas relativamente aos outros dois crimes.

Resta a pena única.

A Relação, como se disse, baixou de 6 anos e 6 meses para 6 anos de prisão a medida da pena única, mas nesse ponto a sua decisão assentou em bases diferentes daquelas de que partiu o tribunal de 1ª instância, visto haver aplicado pelo crime de abuso sexual de criança do nº 1 do artº 171º, que considerou ser tentado, uma pena inferior à imposta em 1ª instância. A redução de uma das penas parcelares representa a alteração dos fundamentos ou pressupostos da pena do concurso, modificando os limites da respectiva moldura penal. Por isso, não se pode considerar que o acórdão recorrido, neste ponto, confirmou a decisão de 1ª instância. Diferente seria se a Relação houvesse reduzido a pena do concurso mantendo as penas parcelares. A situação presente é equivalente àquela que ocorre quando a Relação, em recurso, reduz a medida da pena aplicada por um crime no âmbito de uma alteração da qualificação jurídica dos factos.

Deste modo, em situações como esta deve entender-se que não ocorre a causa de irrecorribilidade prevista na alínea f) do nº 1 do artº 400º do CPP e, por isso, à luz do disposto no artº 432º, nº 1, alínea b), a decisão da Relação sobre a determinação da pena do concurso admite recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (cf., neste sentido, ac. do STJ, de 21/06/2012, proc. 69/09.2SVLSB.L1.S1, 5ª secção).

 Conhecer-se-á, pois, somente da parte do recurso que põe em causa a determinação da pena única, matéria a que diz respeito a parte da motivação sintetizada nas conclusões 44 e seguintes.

2. De acordo com a regra do nº 2 do artº 77º, a moldura do concurso tem como limite mínimo 4 anos e 6 meses, a medida da mais elevada das penas aplicadas por cada crime, e como limite máximo 8 anos e 7 meses de prisão, a soma de todas.

Na fixação da medida concreta da pena, como ensina Figueiredo Dias, devem ser tidos em conta os critérios gerais da medida da pena contidos no artº 71º – exigências gerais de culpa e prevenção – e o critério especial dado pelo nº 1 do artº 77º: «Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».

Sobre o modo de levar à prática estes critérios, diz este autor: “Tudo deve passar-se (…) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”.

Considera ainda que à questão de saber se “factores de medida das penas parcelares podem ou não, perante o princípio da proibição da dupla valoração, ser de novo considerados na medida da pena conjunta” se impõe, “em princípio”, uma resposta negativa. Mas faz notar que “aquilo que à primeira vista poderá parecer o mesmo factor concreto, verdadeiramente não o será consoante seja referido a um dos factos singulares ou ao conjunto deles: nesta medida não haverá fundamento para invocar a proibição da dupla valoração” (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Reimpressão, 2005, páginas 291 e 292).

A gravidade global dos factos, aferida em função da medida das várias penas parcelares e da relação de grandeza em que se encontram entre si e cada uma delas com o máximo aplicável, é, no contexto da moldura do concurso, de nível médio, considerando, por um lado, que, das penas singulares, que são três, a mais elevada, que fixa o mínimo aplicável, supera metade da soma de todas e, por outro, que uma das restantes não está dela muito distanciada.

A culpa pelo conjunto dos factos, ou o grau de censura a dirigir ao recorrente por esse conjunto, e a medida das necessidades de prevenção geral, no apontado contexto, situam-se, assim, num patamar mediano, permitindo aquela e impondo esta uma pena única bem distanciada do limite mínimo da moldura penal.

Por outro lado, havendo só uma vítima, ainda que sendo muito numerosos os episódios ilícitos, não se pode concluir por uma tendência do arguido para a prática deste tipo de crime. A actividade criminosa ocorreu num contexto que a propiciou. Em favor do arguido releva a ausência de antecedentes criminais e a sua inserção social, não impondo, assim, as exigências de prevenção especial que a pena se fixe acima do mínimo pedido pela prevenção geral.

Sendo média a medida da culpa e das exigências de prevenção geral, a pena única de 6 anos de prisão, situada bem mais perto do limite mínimo da moldura aplicável (a 1 ano e 6 meses) do que do máximo (a 2 anos e 7 meses), não excede a medida da culpa nem a medida necessária à satisfação das finalidades da punição, não merecendo por isso censura.

3. Sendo a medida da pena única superior a 5 anos de prisão, fica afastada a possibilidade de suspender a sua execução, atento o disposto no artº 50º, nº 1, do CP.

          Decisão:

Em face do exposto, os juízes do Supremo Tribunal de Justiça negam provimento ao recurso.

O recorrente pagará as custas, fixando-se em 6 UC a taxa de justiça.

                                       Lisboa, 12/11/2015

Manuel Braz (relator)
Isabel São Marcos (Voto a decisão, não obstante não me resultar inteiramente claro que, quanto à questão da medida da pena conjunta, fixada em 6 anos de prisão pela Relação, o acórdão desta fosse recorrível para o STJ, porque confirmativo in mellius do aresto do tribunal de 1.ª instância.
E isto, em síntese, na consideração de que mal se compreende que, não sendo recorrível, em face do disposto na al. f) do n.º 1 do art. 400.º do CPP, o acórdão proferido, em recurso, pela Relação, que haja confirmado in totum o aresto prolatado em 1.ª instância, possa sê-lo o acórdão que, num caso como o dos autos, melhorou ostensiva e notoriamente a posição do recorrente, que, no acórdão recorrido, viu reduzida a pena única em consequência da modificação operada numa das penas parcelares decorrente da alteração para a forma tentada de um dos 3 crimes de abuso sexual de crianças por que havia sido condenado, em 1.ª instância, na forma consumada, uma vez que aquela modificação não resultou nem da alteração dos factos, nem do tipo de crime.).