Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1117/10.9TVLSB.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: GRANJA DA FONSECA
Descritores: ALTERAÇÃO ANORMAL DAS CIRCUNSTÂNCIAS
CRISE ECONÓMICA
CONTRATO PROMESSA
CONTRATO DE ADESÃO
BOA FÉ
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ABUSO DO DIREITO
EQUILÍBRIO DAS PRESTAÇÕES
Data do Acordão: 01/23/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL/ DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATO PROMESSA/ CRISE FINANCEIRA
Doutrina: - Pires de Lima e A. Varela, in “Código Civil Anotado”, I, 3.ª ed., págs. 229, 353
- Antunes Varela – “Das obrigações em geral”, 10.ª ed., I, págs. 76; 247-248; 262
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 2006, pág. 120; 197
- Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. II, pág. 138-139
- Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, I, 1980, 93 e
- Oliveira Ascensão, Teoria Geral do Direito Civil, vol. III, pág.364
- Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6.ª edição, pág. 75.
- Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Heinrich Ewald Höster, 2012, páginas 141 a 150
- Coutinho de Abreu Do Abuso do Direito, página 55;
- Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, página 343 e seguintes
Legislação Nacional: - ARTS. 227.º; 280.º; 341.º; 342.º; 405.º, N.º 1; 437.º; 762.º, N.º 2; 777.º; 398.º DO CÓDIGO CIVIL
- ARTS. 1.ª, 15.º DO DL 446/85, DE 25-10
- ARTS. 516.º; 1456.º E 1457.º DO CPC
Jurisprudência Nacional: REVISTA N.º 2978/06, DE 24-10-2006, RELATOR CONS. JOÃO CAMILO;
- REVISTA 122/09.2TJLSB.L1.S1 RELATOR JOÃO TRINDADE;
- REVISTA N.º 15/10.0TJLSB.L1.S1, RELATOR SERRA BAPTISTA;
- REVISTA N.º 10552/06.6TBOER.S1, RELATOR MOREIRA ALVES;
- REVISTA N.º 813/09.8YXLSB.S1, RELATOR JOÃO BERNARDO;
- ACÓRDÃO STJ 30/1/2003, CJSTJ, T. I, PÁG. 64.
- AC. DA RELAÇÃO DO PORTO DE 19/12/1996, COLECTÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA, TOMO V, PÁGINA 226.
- REVISTA N.º 197/06.6TCFUN.S1, RELATOR OLIVEIRA VASCONCELOS;
- REVISTA N.º 329/09.2YFLSB, RELATOR ALVES VELHO;
- REVISTA N.º 187/10.4TVLSB.L2.S1, RELATOR ORLANDO AFONSO;
- REVISTA N.º 4633/06.3TBLSB.L1.S1, RELATOR ALVES VELHO.
Sumário :


I - O contrato promessa caracteriza-se especificamente pelo seu objecto, uma obrigação de contratar, a qual pode ser relativa a qualquer outro contrato.
II - A regra da livre fixação do conteúdo dos contratos está sujeita a limitações em que aflora o princípio da boa - fé, quer na preparação ou formação dos contratos (artigo 227º, n.º 1, do CC), quer na sua execução (artigo 762º, n.º 2, do CC).
III - Nos contratos de adesão (em que as cláusulas são preparadas genericamente para valerem em relação a todos os contratos singulares de certo tipo) a lei intervém em favor do aderente, adoptando critérios de maior exigência em salvaguarda dos seus interesses como parte contratual, não sendo alheios, todavia, motivos de ordem pública, sopesada a finalidade do contrato e o tipo de contratação padronizada.
IV – Para que o contrato seja analisado à luz do regime em vigor para tal tipo de contratos (DL n.º 446/85 de 25-10), o aderente tem o ónus de alegar e provar que o contrato em causa reveste a natureza de contrato de adesão.
V – O desequilíbrio no exercício do direito (desproporção inadmissível entre a vantagem própria e o sacrifício que impõe aos outros) constitui uma das modalidades em que se desdobra o abuso do direito.
VI - Sendo diferentes a obrigação do promitente-vendedor, que é também construtor, e do promitente-comprador, a simples estipulação de prazos diferentes para a verificação da mora e do incumprimento (cujo regime aplicável é, parcialmente, o legal, supletivo) não permite concluir pelo desequilíbrio das prestações, em termos susceptíveis de ofender o princípio da boa - fé.
VII - O direito à resolução ou modificação do contrato por alteração anormal das circunstâncias pressupõe (i) que a alteração a ter por relevante diga respeito a circunstâncias em que as partes tenham fundado a decisão de contratar; (ii) que essas circunstâncias fundamentais hajam sofrido uma alteração anormal (iii) que a estabilidade do contrato envolva lesão para uma das partes (iv) que tal manutenção do contrato ou dos seus termos afecte gravemente os princípios da boa-fé (v) que a situação não se encontre abrangida pelos riscos próprios do contrato e, (vi) por último, a inexistência de mora do lesado.
VIII - Diferentemente do erro, em que a base do negócio é unilateral, respeitando exclusivamente ao errante, na alteração das circunstâncias a mesma é bilateral, respeitando simultaneamente aos dois contraentes (i.e., que se produza uma alteração anormal das circunstâncias em que ambas as partes fundaram a decisão de contratar).
IX - Nas situações de crise, a alteração relevante carece ainda de ser anormal, requisito ligado à imprevisibilidade, pois que, sendo a alteração normal, as partes poderiam tê-la previsto e acautelado, na conclusão do contrato, as suas consequências, pelo que as alterações da taxa de juro e de esforço na concessão de empréstimo bancário pagamento do preço do contrato prometido, o desemprego e a desvalorização da moeda são insusceptíveis de preencher tal requisito.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1.

COLIN MARTIN TAYLOR e PAMELA MARGARET TAYLOR, residentes em Leegerdale Steadine North by Dunceht, Aberdeenshire, AB23 7EB, Escócia, Reino Unido, intentaram acção declarativa, constitutiva e de condenação, sob a forma ordinária, contra CONSTRUÇÕES LAGARÇA, S.A., com sede na Rua António Enes, n.º 19, 2º Direito, em Lisboa, pedindo a declaração de nulidade, (por desequilíbrio atentatório da boa-fé) e subsidiariamente a resolução, (por alteração anormal das circunstâncias), dos dois contratos promessa de compra e venda de fracções imobiliárias que celebraram com a ré, com a consequente condenação desta a restituir-lhes as quantias já pagas, e juros.

Para o efeito e em síntese, alegaram terem ambos celebrado os mencionados contratos-promessa de compra e venda, contratos que tinham por objecto duas fracções autónomas, sitas em Prainha, Olhão, e melhor identificadas nos artigos 3.º e 4.º da petição inicial, sendo que tais contratos, elaborados pela ré, continham obrigações e tratamento desigual para cada uma das partes, designadamente quanto à mora (com prazo de 60 dias, eventualmente acrescido de 30, para os autores, e de 180 dias para a ré); quanto ao prazo de incumprimento (30 dias sobre a mora para os autores e 180 para a ré, acrescida de nova interpelação e prazo razoável para a ré); quantos aos fundamentos de incumprimento (qualquer motivo para os autores e causa susceptível de lhes ser imputada, em exclusivo, para a ré).

Como a ré não explicitou tal desproporção, apenas se tendo os autores feito acompanhar de advogado depois do contrato redigido pela ré, o mesmo é nulo por ma-fé negocial, devendo ter-se por não escritas as cláusulas 5ª, 6ª e 7ª, relativas a prazos.

Por alteração das circunstâncias, pessoais e da economia, os autores têm direito à resolução do contrato.

A Ré, citada para os termos da acção, contestou, defendendo-se por impugnação.

Alegou inexistir fundamento para ser decretada a resolução do mencionado contrato, quando é certo que os autores se fizeram acompanhar por advogado na negociação e celebração do contrato e que as circunstâncias económicas e de vida, por si invocadas, são insusceptíveis de conduzir à pretendida resolução dos contratos.

Os autores replicaram, concluindo nos precisos termos do inicialmente peticionado.

Findos os articulados, foi proferido despacho saneador-sentença, julgando-se a acção improcedente, absolvendo-se, consequentemente, a ré do pedido contra si formulado.

Inconformados com o decidido, os autores interpuseram recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação, por acórdão de 19 de Fevereiro de 2013, julgado improcedente a apelação e, nessa medida, confirmado a decisão recorrida.

Do acórdão que assim decidiu interpuseram os autores recurso de revista excepcional, invocando como pressuposto de admissibilidade o previsto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 721º-A do Código de Processo Civil e finalizaram com as seguintes conclusões:

1ª - O presente recurso tem como fundamento o facto de se tratar de uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito [(alínea a) do n.º 1 do artigo 721º-A do C.P.C.)], o facto de estarem em causa interesses de particular relevância social [(alínea b) do n.º 1 do artigo 721º-A do C.P.C.)], bem como a violação da lei substantiva (n.º 2 do artigo 721º do C.P.C.).

2ª - Quer a nulidade contratual por desequilíbrio atentatório da boa-fé, quer a resolução por alteração das circunstâncias são questões com grande relevância jurídica, cuja apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça é necessária para uma melhor aplicação do direito, em virtude se de tratarem de questões de elevada complexidade interpretativa.

3ª - A crise económica e o desemprego são factores de generalizado interesse social, assumindo extrema relevância, no contexto financeiro actual, determinar se a insuficiência económica e o desemprego supervenientes poderão constituir motivos fundamentadores da resolução contratual por alteração das circunstâncias.

4º - Para que esteja verificado o requisito da alínea a) do n.º 1 do artigo 721º-A do Código de Processo Civil é necessário que a "vexata quaestio" jurídica seja controversa, por debatida na doutrina, ou inédita, por nunca apreciada, mas que seja importante, para propiciar uma melhor aplicação do direito.

5ª - Isto assim é quando, como no caso concreto, a questão implica operações de exegese destinadas a esclarecerem o alcance de determinado preceito legal, que não apenas, consequências meramente adjectivas de determinada acção no âmbito do direito substantivo.

6ª - Considerando o actual contexto social e económico, a resolução contratual decorrente de insuficiência e desemprego será uma questão que surgirá com frequência, podendo ser objecto de decisões opostas, de difícil solução, debatida e controversa na doutrina ou na jurisprudência ou cuja solução, suscitando dúvidas, seja susceptível de afectar relevantes interesses gerais de uma comunidade.

7ª - A fundamentação da resolução contratual por alteração das circunstâncias decorrente de situações de insuficiência económica e/ou desemprego supervenientes constitui uma questão de direito e, além disso, reveste carácter paradigmático ou exemplar, estando em causa interesses de particular relevância social.

8ª - Os Autores, ora Recorrentes, instauraram acção declarativa com processo ordinário contra «CONSTRUÇÕES LAGARÇA, S.A.», Ré e ora Recorrida, pedindo:

a) - A nulidade dos dois contratos de promessa de compra e venda celebrados com a Ré e a condenação desta a restituir aos Autores a quantia de € 92.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 5 de Maio de 2008 até integral restituição, por desequilíbrio atentatório da boa - fé;

b) - Subsidiariamente, a declaração de resolução dos contratos e a condenação da Ré a restituir aos Autores a mencionada quantia de € 92.000,00, acrescida de juros desde a data da citação, por alteração anormal das circunstâncias,

9ª - Para tanto, alegam, em síntese:

Os contratos-promessa celebrados são nulos, por, considerando o seu teor, existir inequívoca desproporção e desigualdade das partes no que respeita a aspectos essenciais, como são os da mora e do incumprimento, que são imputáveis à Ré, na qualidade de credora e promotora do contrato, integrando o conceito de má-fé negocial.

Quando, assim não se entenda, por forma a repor a igualdade das partes, devem ser consideradas não escritas as cláusulas 5ª, 6ª e 7ª relativamente a prazos, mora e incumprimento dos Autores e aplicar-se aos Autores o regime consignado nos contratos quanto à Ré, designadamente no que respeita à mora e ao incumprimento.

Nesta hipótese, não resultando a impossibilidade dos Autores cumprirem os contratos de facto que lhes seja directa e exclusivamente imputável, deve declarar-se a resolução dos contratos.

Para celebrarem a escritura e pagarem a parte restante do preço, os Autores teriam de pedir novo financiamento correspondente à parte do preço que ainda falta liquidar; contudo, a ocorrência da crise económico-financeira global, com a consequente alteração substancial das condições da concessão dos financiamentos para aquisição de casa, e a alteração na vida dos Autores, resultante dessa mesma crise, impossibilita-os de obter, subjectiva e objectivamente, tal financiamento, pelo que deve declarar-se a resolução dos contratos com base na alteração das circunstâncias.

10ª - Em 24 de Janeiro de 2012, o Tribunal notificou os mandatários do despacho saneador-sentença, nos termos do qual o Meritíssimo Juiz a quo julgou a presente acção totalmente improcedente e, em consequência, absolveu a Ré dos pedidos.

11ª - Os fundamentos do saneador-sentença foram os seguintes:

As partes ao abrigo do princípio da liberdade contratual fixaram, por acordo, o conteúdo dos contratos-promessa de compra e venda, excluindo-se a aplicação do regime das cláusulas contratuais gerais;

Não existe causa que gere a nulidade dos contratos, nem os mesmos violam o princípio da boa-fé;

As cláusulas respeitam os princípios da boa-fé contratual e da justiça comutativa ou da equivalência objectiva;

Não existe desproporção e desigualdade das partes que seja necessário repor nem foram alegados quaisquer factos donde resulte legitimado o pedido dos Autores à resolução dos contratos-promessa em causa;

12ª - Em 20 de Fevereiro de 2013, foi notificado o Acórdão recorrido que julgou improcedente a apelação confirmando a decisão recorrida.

13ª - Com o presente recurso, pede a ora Recorrente a revogação do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa que julgou improcedente a apelação confirmando a decisão recorrida.

14ª - Existe um tratamento totalmente diferente, desigual, injustificado e injustificável dos contratantes, designadamente quanto à constituição em mora e incumprimento.

15ª - No que respeita à mora, para que ela se verifique em relação aos Autores, basta que decorra um prazo de 60 dias, eventualmente acrescido de mais 30 dias.

16ª - No entanto, relativamente à Ré, para que a mora ocorra, são necessários 180 dias, ou seja, o dobro.

17ª – O mesmo acontece em relação ao incumprimento definitivo:

Relativamente a prazos, para que o incumprimento dos Autores se verifique é apenas necessário que ao momento da constituição em mora acresçam 30 dias.

No entanto, para a Ré, para além dos 180 dias, parece que será necessária uma nova interpelação, e um novo prazo razoável, para que ocorra.

Mas também, em relação aos motivos do incumprimento, as desigualdades são inadmissíveis: enquanto, relativamente aos Autores, o incumprimento definitivo pode ter lugar por qualquer motivo; no caso da Ré, ficou especificamente ressalvado que só poderia ocorrer por causa directa e susceptível de lhe ser imputada em exclusivo.

Acresce que, enquanto em relação às obrigações dos Autores, os contratos não suscitam grandes dúvidas de interpretação, já o mesmo não se pode dizer dos deveres da Ré.

Quanto a esta, não restam dúvidas que o contrato está intencionalmente mal redigido e é omisso em relação aos aspectos fundamentais focados, sendo que o contrato foi redigido apenas pela Ré ou a seu mando.

Daqui resulta também que, para além das desigualdades inadmissivelmente descritas, existiu má - fé negocial por parte da ora Ré, má - fé que para os devidos e legais efeitos expressamente se invoca.

Essa desigualdade, imputável à Ré, na qualidade de criadora e promotora do contrato, integra, sem margem para qualquer dúvida, o conceito de má fé-negocial.

Não é, na verdade, admissível que um contrato consigne, em relação a um dos contratantes - os Autores-, que o incumprimento definitivo se verifica por qualquer motivo e que, em relação ao outro, - a Ré , estabeleça que ocorre apenas por causa directa que lhe seja exclusivamente imputável.

18ª - O negócio celebrado entre as partes é, pois, nulo.

19ª - Quando, porém, assim se não entenda, deverá, de acordo com o disposto no artigo 239° do Código Civil, a declaração negocial dos Autores ser integrada no contexto global do contrato e interpretada de harmonia com a vontade que os Autores teriam tido se tivessem analisado e compreendido minimamente a questão da mora e do incumprimento.

20ª - Por outro lado, não havendo qualquer razão que justifique o tratamento desigual e inadmissível entre Autores e Ré, torna-se evidente que a declaração negocial dos Autores deve ser interpretada e deve ter o mesmo tratamento e as mesmas consequências que a declaração negocial da Ré.

21ª - Atentos os princípios consagrados designadamente nos artigos 10º, 227º, 239º, 334º, e 292º do Código Civil e 9º, nº 2, 10º, 11º, 12º, 16º, 17º, 18º e 21º, alínea f) do DL 446/85 a única solução que se nos afigura viável e que repõe a igualdade das partes, é considerar não escritas as cláusulas 5ª, 6ª e 7ª relativamente a prazos, mora e incumprimento dos Autores.

22ª - Os Autores, ora Recorrentes, vieram invocar a alteração das circunstâncias e resolução dos contratos-promessa de compra e venda com os seguintes fundamentos:

Crise económica e alterações na vida dos Autores;

Avaliações das propriedades com significativa desvalorização;

Taxas de esforço requeridas pelos Bancos são pequenas;

Desvalorização da libra em 15% com decréscimo do poder de compra dos Autores;

Em Outubro de 2009 a Autora Pamela Taylor ficou desempregada;

Impossibilidade de financiamento.

23ª - As circunstâncias, em que os Autores, ora Recorrentes, contrataram com a Ré, ora Recorrida, alteraram-se, pois, anormal, inesperada, imprevisível, substancial e supervenientemente.

24ª - Efectivamente, os Autores, para entregarem os sinais à Ré, no montante global de € 92.000,00, tiveram que contrair um empréstimo numa instituição bancária — o Banco BPI -, empréstimo esse que se encontram a pagar.

25ª - Para celebrarem a escritura e pagarem a parte restante do preço, teriam que pedir novo financiamento correspondente à parte do preço que ainda falta liquidar - € 368.000,00.

26ª - Em circunstâncias normais, ou seja, se não tivesse ocorrido a crise económico-financeira global e alterações na vida dos Autores, ora Recorrentes, resultantes dessa mesma crise, estes não teriam quaisquer dificuldades em contrair novo financiamento, como, aliás, estava verbalmente acordado com o banco.

27ª - E, em 2008, mesmo que o não conseguissem em Portugal, consegui-lo-iam seguramente em Inglaterra.

28ª - Acontece que as condições da concessão dos financiamentos para aquisição de casa, como é do conhecimento público, alteraram-se substancialmente.

29ª - Em primeiro lugar, é agora muito mais difícil contrair financiamentos, designadamente no que respeita a estrangeiros.

30ª - Em segundo lugar, as avaliações dos imóveis sofreram uma desvalorização considerável, a que acresce o facto de os bancos terem diminuído as percentagens dos financiamentos com referência aos valores das avaliações, ou seja, enquanto antes os bancos financiavam 80º, 90º ou mesmo 100% do valor das avaliações mais elevadas, agora financiam muito menos.

31ª - Em terceiro lugar, os bancos exigem agora taxas de esforço (relação entre rendimentos e encargos) muito menores do que anteriormente.

32ª - Em quarto lugar, desde a data da celebração dos contratos até hoje, ocorreu uma desvalorização da libra da ordem dos 15%, o que acarretou uma diminuição significativa do poder de compra dos Autores.

33ª - Em quinto lugar, e motivado também pela crise, a Autora Pamela, que trabalhava numa empresa em Aberdeen, e que auferia cerca de 18.000,00 £/ano, ou seja, cerca de € 21.000,00 ficou, em Outubro de 2009, desempregada, situação que se mantém, acrescendo ser neste momento muito difícil arranjar emprego.

34ª - Os Autores, que contavam adjudicar parcialmente o rendimento da Autora Pamela aos encargos com o financiamento que iriam contrair para pagar os imóveis, ficaram dele privados, o que, a somar ao que se disse anteriormente, os impossibilita de obter, subjectiva e objectivamente, tal financiamento.

35ª - Daqui resulta que, se a superveniência das circunstâncias em que os Autores assentaram a sua decisão de contratar não tivesse ocorrido ou fosse previsível, estes não teriam celebrado os contratos promessa em causa nos presentes autos.

36ª - No momento actual, e como se disse, os Autores não têm hipótese de obter um financiamento para comprar a fracção e pagar a parte restante do preço acordado.

37ª - No caso em apreço, verificou-se inequivocamente erro sobre a evolução das circunstâncias existentes no momento da celebração do negócio.

38ª - Essa alteração das circunstâncias foi anormal, inopinada, imprevisível e impeditiva da concretização da compra e venda da fracção.

39ª - E não fazia parte dos riscos do contrato.

40ª - Acresce que exigir aos Autores, nas condições referidas, a concretização da compra ou a perda do sinal que, de resto, não foram, reconvencionalmente, requeridas, ofenderia necessariamente os mais elementares princípios da boa-fé.

41ª - Aliás, de acordo com o contrato, só se a resolução fosse directamente imputável à Ré, é que esta se constituiria na obrigação de restituir o sinal em singelo e juros, e não a restituição do sinal em dobro, nos termos do artigo 442º, nº 2 do CC.

42ª – A "justiça objectiva" nas relações entre as partes se encontra na circunstância dos Autores reclamarem a restituição do sinal em singelo.

43ª - É um facto que os Autores entregaram à ré € 92.000,00 em 2008.

44ª - A Ré evidentemente que aplicou as importâncias recebidas nos seus investimentos.

45ª - A taxa de juro bancária que a Ré teria de suportar seria muito superior - praticamente o dobro.

46ª - Do exposto, resulta que haverá equilíbrio entre os contratantes se a Ré for condenada a restituir o sinal em singelo.

47ª - Ao contrário do expendido na douta sentença e no Acórdão recorridos, entendem os Autores que se verificam todos os condicionalismos, designadamente os decorrentes dos artigos 252º, nº 2 e 437º do Código Civil para a resolução do contrato dos autos.

48ª - A grave, inesperada e incontornável crise económica que se vem verificando desde 2008 alterou as circunstâncias em que as partes convencionaram o contrato de abertura de crédito, em termos que ferem a boa - fé, não sendo normal o correspondente risco. Em tal caso justifica-se a modificação do contrato segundo juízos de equidade, nos termos do artigo 437º, n.º 1, Código Civil.

49ª - Entre as alterações anormais das circunstâncias referidas no citado artigo contam-se a desvalorização abrupta e excessiva da moeda.

50ª - Não tendo o Tribunal recorrido considerado a factualidade invocada pelos Recorrentes como fundamento de resolução do contrato por alteração das circunstâncias violou o disposto no artigo 437º do Código Civil.

A ré não contra – alegou.

A “Formação” admitiu a revista excepcional com o fundamento de que as questões suscitadas levantam fortes dúvidas sobre a sua resolução, susceptíveis de conduzir a decisões contraditórias, e colocam em causa interesses com particular relevância social, remetendo os autos à distribuição.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

2.

As instâncias consideraram provados os seguintes factos:

1º - Por acordo intitulado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, outorgado em 5/05/2008 entre a Ré e os Autores, (representados no acto por Dr. José Carlos Mansinho, advogado, na qualidade de procurador), aquela prometeu vender a estes, que prometeram comprar, o apartamento tipo T-2, que iria corresponder à fracção “I”, localizado no Piso 2, a construir no Bloco 3 do lote descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o nº 3036, pelo preço de € 230.000, e demais cláusulas constantes do documento de fls. 17 a 30, que aqui se dá por integralmente reproduzido.

2º - Por acordo intitulado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, outorgado em 5/05/2008 entre a Ré e os Autores (representados no acto por Dr. José Carlos Mansinho, advogado, na qualidade de procurador), aquela prometeu vender a estes, que prometeram comprar, o apartamento tipo T-2, que iria corresponder à fracção “I”, localizado no Piso 2, a construir no Bloco 4 do lote descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o nº 3036, pelo preço de € 230.000, e demais cláusulas constantes do documento de fls. 31 a 44, que aqui se dá por integralmente reproduzido.

3º - Nos termos da cláusula 3ª dos contratos:

“O preço de venda acordado será pago pelos compradores à vendedora da seguinte forma: a) - € 46.000 (…), com a assinatura do presente contrato (…). b) - O remanescente do preço, no montante de € 184.000 (…) será pago no acto da outorga da escritura pública de compra e venda (…)”

4º - (…) Da cláusula 4ª:

“Prevê-se que a conclusão da construção da fracção prometida vender ocorra até ao final do mês de Dezembro de 2009.”

5º - (…) Da cláusula 5ª:

“1 - A escritura de compra e venda será outorgada logo que toda a documentação necessária para tal, nomeadamente a respectiva licença de utilização, estiver emitida, disponível e na posse da Vendedora e em dia, hora e em local a designar pela Vendedora (…), para o que deverá avisar os Compradores por carta registada com aviso de recepção, expedida para o domicílio destes com a antecedência mínima de 60 dias da data marcada.

2 - O prazo estipulado no número anterior da presente cláusula poderá ser prorrogado por um período não superior a um mês, caso os Compradores necessitem desse prazo suplementar para efeitos da concretização das formalidades relacionadas com o crédito bancário a que recorreram.

6º - (…) Da cláusula 6ª:

“Depois de finalizada a Construção do apartamento, caso a escritura de compra e venda objecto do presente contrato não esteja outorgada nos termos previstos neste contrato, nomeadamente por a respectiva licença de utilização não estar ainda na posse da Vendedora, terão os Compradores a faculdade de interpelar a Vendedora para proceder à marcação da respectiva escritura e, caso tal não seja efectuado no prazo de 180 dias, poderão então denunciar este contrato, devendo então a Vendedora devolver-lhes as quantias recebidas ao abrigo do mesmo, a título de sinal e seus reforços, acrescidas de juros calculados à Taxa Euribor a 6 meses, pelo período compreendido entre a(s) data(s) da(s) suas respectivas entregas e a data da sua efectiva restituição.”

7º - (…) E da cláusula 7ª:

“1 - No caso dos Compradores, seja por que motivo for, não efectuarem alguma das prestações do preço acordadas, previstas na Cláusula terceira deste contrato, a Vendedora aceitará a prestação em mora, até ao prazo máximo de 30 dias, contados daquelas datas, sofrendo, porém, o valor em atraso, um aumento correspondente aos juros de mora, calculados à taxa Euribor a seis meses.

2 - Decorrido o prazo de 30 dias, fixado no número anterior, sem que a importância em dívida tenha sido paga, constituem-se os Compradores em incumprimento definitivo do presente contrato, o que confere à Vendedora o direito de imediata e automaticamente o resolver, fazendo suas as importâncias recebidas.

3 - O incumprimento definitivo pela Vendedora, traduzido na não tradição do apartamento a construir, após a escritura, ou na não transmissão da sua propriedade para os Compradores confere a estes últimos o direito de igualmente resolver o presente contrato e exigir da Vendedora a restituição em dobro de todas as importâncias entregues ao abrigo do mesmo, nomeadamente as respeitantes a título de sinal e seus sucessivos reforços, as quais deverão ser entregues no prazo de 60 dias após a notificação para o efeito.

4 - Considera-se incumprimento para o efeito do número anterior, a não celebração da escritura pública de compra e venda ou a não construção do apartamento por causa directa e exclusivamente imputável à Vendedora.

5 - As eventuais inobservâncias das obrigações fixadas nos números que antecedem motivadas por motivos de força maior ou quaisquer outras circunstâncias a que seja alheia a vontade da Vendedora e relativamente às quais a mesma não possa interferir ou evitar, não lhe serão imputáveis, nem tão pouco constituirão incumprimento do presente contrato (…).”

8º - Na data da assinatura dos contratos-promessa, os Autores entregaram à Ré, a título de sinal, a quantia de € 92.000.

9º- A Ré ainda não procedeu à marcação das escrituras públicas de compra e venda.

3.

Por força das conclusões formuladas pelos recorrentes/autores, que afinal delimitam o âmbito e o objecto do recurso, as questões fundamentais que importa decidir são as seguintes:

1ª – Natureza dos contratos celebrados por autores e ré e o princípio da boa-fé;

2ª – Da nulidade dos contratos;

3ª – Da resolução dos contratos.

4.

Natureza dos contratos celebrados por autores e ré:

De acordo com a definição prevista no artigo 410º, n.º 1, do Código Civil[1], o contrato – promessa é a convenção pela qual alguém se obriga a celebrar novo contrato. Estamos assim perante um contrato preliminar de outro contrato, o denominado contrato definitivo.

O contrato promessa caracteriza-se especificamente pelo seu objecto, uma obrigação de contratar, a qual pode ser relativa a qualquer outro contrato.

O contrato promessa será, pois, um contrato preliminar que tem por objecto a celebração de um outro contrato, o contrato prometido. Constitui, no entanto, uma convenção autónoma deste, uma vez que se caracteriza normalmente por ter eficácia meramente obrigacional, mesmo que o contrato definitivo tenha eficácia real.

Reportando-nos ao caso dos autos, é inquestionável estarmos perante dois contratos promessa de compra e venda, obrigando-se os autores a comprar e a ré a vender duas fracções autónomas (apartamento tipo T-2), que iriam corresponder às fracção “I”, localizado no Piso 2, a construir nos Blocos 3 e 4 do lote descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o nº 3036, pelo preço de € 230.000 cada, a pagar da seguinte forma: (i) € 46.000 com a outorga do contrato promessa e (ii) o remanescente do preço, no montante de € 184.000, no acto da outorga da escritura pública de compra e venda.

Contratos que autores e ré celebraram já que “dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade não só de fixar livremente o conteúdo dos contratos como o de incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver” - artigo 405º, n.º 1.

Por força deste preceito – corolário do princípio da autonomia privada (artigo 405º do Código Civil) e com a epígrafe de “liberdade contratual” –, aos particulares em matéria de contratos, é reconhecido (i) o direito de constituir obrigações – direito de contratar – (ii) o direito de escolher o outro contraente e, ainda, (iii) o direito de fixar o conteúdo dos contratos ou “a possibilidade de, na regulamentação convencional dos seus interesses, se afastarem dos contratos típicos, ou paradigmáticos, disciplinados na lei (celebrando contratos atípicos) ou de incluírem, em qualquer desses contratos paradigmáticos, cláusulas divergentes do regulamento supletivo contido no Código Civil”[2].

A regra da livre fixação do conteúdo dos contratos está sujeita a limitações que nas modernas legislações se têm multiplicado de forma acentuada principalmente nos contratos (como o de trabalho, o de arrendamento, o de seguro, os negócios bancários, os transportes, etc.) em que afloram com mais frequência ou intensidade poderosos interesses colectivos ao lado dos meros interesses particulares, ou em que, ao lados dos interesses dos contraentes, importa acautelar legítimas expectativas de terceiros, preservando valores essenciais à vida em relação como o sejam a moral pública, os bons costumes, a segurança no comércio jurídico e a certeza do direito.

Todas elas se podem considerar englobadas genericamente nas palavras introdutórias do artigo 405º “dentro dos limites da lei” [3].

Limitações que têm a finalidade de assegurar a lisura e correcção com que as partes devem agir, para que o supra citado normativo remete, limitando as partes aos limites da lei, como o seja, ao dever de boa - fé, quer na preparação ou formação dos contratos (artigo 227º, n.º 1), quer na sua execução (artigo 762º, n.º 2).

“A expressão boa-fé reveste desde há muitos séculos um duplo significado. Umas vezes tem um sentido puramente psicológico: é a ignorância do vício de que padece determinada situação. Outras vezes assume um sentido acentuado ético e objectivo: age de boa - fé quem actua de acordo com os padrões da diligência, da honestidade e da lealdade exigíveis do homem no comércio jurídico”[4].

Dito de outro modo, o conceito normativo de boa - fé é utilizado pelo legislador em dois sentidos distintos e perfeitamente diferenciados: no sentido de boa - fé objectiva, enquanto norma de conduta, ou seja, no plano dos princípios normativos, como base orientadora e fundamento de efectivas soluções reguladoras dos conflitos de interesses, alcançadas através da densificação, concretização e preenchimento pelos Tribunais desta cláusula geral; e no sentido de boa - fé subjectiva ou psicológica, isto é, como consciência ou convicção justificada de se adoptar um comportamento conforme ao direito e respectivas exigências éticas.

Como afirma, por exemplo, Almeida Costa[5], neste último caso, a boa - fé reconduz-se a um conceito técnico-jurídico utilizado numa multiplicidade de normas para descrever ou delimitar um pressuposto de facto da sua aplicação. Algo de diverso sucede com o ditame da boa - fé, ele próprio uma regra jurídica que, inclusive, assume o alcance de princípio geral de direito.

Efectivamente, os deveres acessórios de conduta (protecção, informação e lealdade) que surgem no âmbito das relações específicas, aplicam-se primordialmente na fase do cumprimento das obrigações, determinando que tanto a conduta do devedor como a do credor obedeçam a princípios de colaboração e correcção recíprocas, por forma a permitir a plena satisfação do interesse do credor sem sacrifícios excessivos para qualquer das partes[6]. Ou, nas palavras de Menezes Cordeiro, com vista a “assegurar a lisura e a correcção com que as partes devem agir na preparação e execução dos contratos, o de garantir quanto possível a justiça real, comutativa [não a simples justiça formal expressa pela igualdade jurídica dos contraentes] nas relações entre as partes, o de proteger a parte que dentro da relação contratual se considera económica e socialmente mais fraca e o preservar a integridade de certos valores essenciais à vida de relação, como sejam a moral pública, os bons costumes, a segurança do comércio jurídico e a certeza do direito”[7].

Restrições que se projectam, através das normas que regulam o objecto negocial (artigo 280º e seguintes do Código Civil): (i) no regime das invalidades, pela proibição de cláusulas e condições sejam contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes (artigo 271º do CC), e pela nulidade de cláusulas abusivas sobretudo nos contratos de adesão (artigo 15º do RJCCG[8]); (ii) quer no regime da responsabilidade civil, designadamente pela imposição de deveres de lealdade e informação (artigo 227º) ou mesmo (iii) pela resolução dos contratos quando ocorra alteração anormal das circunstâncias em que foi celebrado (artigo 437º) ou pela neutralização do direito quando o seu exercício se revele abusivo (artigo 334º).

5.

Da nulidade dos contratos:

Invocam os autores que os contratos são nulos, ou pelo menos são-no as cláusulas 5ª, 6ª e 7ª já que, tendo os textos sido pré-elaborados pela ré, esta não cumpriu os deveres de informação prévia para com os autores e, em consequência, deles resulta um manifesto desequilíbrio das prestações (mora e incumprimento) de autores e ré, violador do princípio da boa - fé e da igualdade das partes.

5.1

Do regime dos contratos de adesão

Os contratos em que um dos contraentes, não tendo a menor participação na preparação das respectivas cláusulas, se limita a aceitar o texto que o outro contraente oferece, em massa, ao público interessado, designam-se de contratos de adesão[9].

Os contratos de adesão costumam ser caracterizados por uma defesa exaustiva dos interesses do emitente, e um desinteresse marcado pelo que respeita ao aderente[10].

Tais contratos contêm por via de regra “cláusulas preparadas genericamente para valerem em relação a todos os contratos singulares de certo tipo que venham a ser celebrados nos moldes próprios dos chamados contratos de adesão”[11], designadas de cláusulas contratuais gerais.

A nossa ordem jurídica define as cláusulas contratuais gerais (CCG) como as que, sendo elaboradas sem prévia negociação individual, proponentes ou destinatários indeterminados se limitam, respectivamente, a subscrever ou aceitar[12].

Sujeitando-as ao regime do DL n.º 446/85, de 25-10[13], comummente designado de RJCCG – artigo 1º, n.º 1.

O artigo 15º do RJCCG estabelece a proibição das cláusulas contratuais gerais contrárias à boa-fé (enunciado de forma dispensável, porque também esta forma de contratação deve respeitar as regras da boa-fé).

Na concretização desse enunciado, o artigo 16º do mesmo diploma estatui que, “na aplicação da norma anterior devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em face da situação considerada e, especialmente: a) A confiança suscitada, nas partes, pelo sentido global das cláusulas contratuais em causa, pelo processo de formação do contrato singular celebrado, pelo teor deste e ainda por quaisquer outros elementos atendíveis; b) O objectivo que as partes visam atingir negocialmente, procurando-se a sua efectivação à luz do tipo de contrato utilizado.

Aqui a lei intervém em favor do aderente, adoptando critérios de maior exigência em salvaguarda dos seus interesses como parte contratual, não sendo alheios, todavia, motivos de ordem pública, sopesada a finalidade do contrato e o tipo de contratação padronizada[14].

Colhidos estes ensinamentos e como concluíram as instâncias, os autores apenas invocaram que as cláusulas dos contratos-promessa em apreço foram previamente elaboradas pela ré. Contudo, em lado algum alegaram que não puderam influenciar o seu conteúdo.

Ora, como é entendimento pacificamente assente deste Supremo Tribunal, “em matéria de cláusulas contratuais gerais, o cumprimento do dever de informação previsto nos artigos 5º e 6º do DL n.º 446/85 de 25-10, constitui ónus de prova do proponente.

Porém, a contraparte tem previamente de provar que o contrato em causa reveste a natureza de contrato de adesão, definida no artigo 1º do citado decreto-lei” – neste sentido, cf., por todos, a Revista n.º 2978/06, de 24-10-2006, de que foi relator Cons. João Camilo, disponível in www.igfej.pt.

Cabendo aos autores tal ónus de alegação, que não observaram, é de concluir, como fizeram as instâncias, que as partes, no caso, ao abrigo do princípio da liberdade contratual, fixaram, por acordo, o conteúdo dos contratos-promessa que celebraram – artigos 341º; 342º, nº 1, do Código Civil e 516º, este do CPC.

Ficando afastada a anulação com fundamento no regime dos contratos de adesão.

5.2.

Da boa - fé contratual e do abuso do direito

Invocam os autores que o contrato contém cláusulas manifestamente desequilibradas no que importa ao regime dos prazos, de mora e incumprimento, e aos fundamentos do incumprimento.

Conforme dispõe o artigo 334º, do Código Civil, “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda, manifestamente, os limites impostos pela boa - fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Infere-se do citado preceito que o exercício de um direito só poderá qualificar-se de abusivo quando exceda manifesta, clamorosa e intoleravelmente, os limites impostos pela boa - fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, ou seja, quando esse direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante[15].

O sentido da boa-fé assenta, como o refere Coutinho de Abreu[16], no princípio de que “as pessoas devem ter um certo comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros”.

No abuso de direito não há falta ou ausência de direito: estamos sempre dentro do direito e não fora dele. Temos o exercício de um poder formal, consubstanciado num direito subjectivo, que é seu pressuposto, conferido pela ordem jurídica ou por determinada pessoa.

O exercício de um direito, a priori legítimo, se feito de forma que ofenda manifestamente a boa - fé, os bons costumes ou o seu fim social ou económico, em suma, o sentimento jurídico socialmente dominante, torna-se ilegítimo, daí advindo a paralisação dos respectivos efeitos, tudo se passando como se aquele direito não existisse na esfera patrimonial do titular (na realidade, a sua existência será tão-só aparente). Pode, por isso, entender-se juridicamente por exercício abusivo do direito “um comportamento que tenha a aparência de licitude jurídica - por não contrariar a estrutura formal definidora (legal ou conceitualmente) de um direito, à qual mesmo externamente corresponde - e, no entanto, viole ou não cumpra, no seu sentido concreto - materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado, ou de que o comportamento realizado se diz exercício”[17].

Para que haja lugar ao abuso de direito, é necessário a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito[18]”.

O instituto do abuso de direito é uma verdadeira «válvula de segurança» para impedir ou paralisar situações de grave injustiça que o próprio legislador preveniria se as tivesse previsto, é uma forma de antijuricidade cujas consequências devem ser as mesmas de todo o acto ilícito.

Importa ainda que o titular do direito invocado se proponha exercê-lo “em termos, clamorosamente, ofensivos da justiça”.

Para determinar os limites impostos pela boa - fé e pelos bons costumes, há que lançar mão dos valores éticos predominantes na sociedade e para os impostos pelo fim social ou económico do direito deverão considerar-se os juízos de valor positivamente consagrados na lei.

A penalização do abuso de direito exige também, apesar da concepção objectiva decorrente do preceito legal, a necessidade de que, ao comportamento abusivo do autor se juntem os requisitos gerais, designadamente o nexo de imputação do facto ao agente, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano[19].

Deste modo, como ensina o Prof. Batista Machado[20] «duma pura relação de causalidade não pode concluir-se para a responsabilidade» pois é preciso, designadamente:

Que haja uma espécie de «culpa do agente perante si próprio», no sentido de que conscientemente assim se quis conduzir, podendo e devendo prever, se usasse do cuidado usual, que tal conduta o poderia vincular de futuro segundo os ditames da boa-fé;

Que a confiança digna de tutela radique em algo objectivo;

Que o «investimento» na confiança (organização de planos de vida de que surgirão os danos) haja sido feito apenas com base na dita confiança e que o dano que provocaria a conduta violadora da fides não seja removível através de outro meio jurídico capaz de conduzir a uma solução satisfatória; e,

Que haja boa-fé da parte que confiou e que esta tenha agido com cuidado e precauções usuais no tráfico jurídico.

Sempre seria indispensável que os limites impostos pela boa-fé tivessem sido manifestamente, clamorosamente, excedidos. O seu aproveitamento sempre seria consentido pela ordem jurídica civil. Importa, portanto, que o titular do direito invocado se proponha exercê-lo “em termos clamorosamente ofensivos da justiça[21]”.

O Prof. Menezes Cordeiro[22] define o conteúdo do abuso do direito em cinco modalidades (ou tratamentos): a exceptio doli; o venire contra factum proprium; A inalegabilidade de nulidades formais; a supressio (situação de um direito que não tendo sido exercido num determinado lapso de tempo não pode mais sê-lo, por contrariar a boa fé) e a surrectio; o tu quoque (o aflorar de uma regra pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não poderia, sem abuso, exercer a situação jurídica que a mesma norma lhe tivesse atribuído); e o desequilíbrio no exercício do direito (desproporção inadmissível entre a vantagem própria e o sacrifício que impõe aos outros).

Invocando os autores a desproporção ou desequilíbrio nos prazos e fundamentos de mora e incumprimento das partes, reflectidos no teor das clausulas 5ª, 6ª e 7ª dos contratos, importa dizer, a propósito, que, no contrato promessa em análise, a obrigação a que se vinculam autores e ré é a de celebrar a escritura de compra e venda, após a sua construção, para a qual não foi estabelecido qualquer prazo à ré, mas apenas uma previsão (Dezembro de 2009), devendo aquela ser marcada pela ré, avisando os autores com pelo menos 60 dias de antecedência.

Não tendo as partes fixado qualquer prazo (obrigação pura) ou regime, resulta inequívoco que a sua fixação pode ocorrer por alguma das formas previstas na lei (artigo 777º do CC), designadamente recorrendo ao processo especial previsto nos artigos 1456º e 1457º do CPC.

Ultrapassado este, constitui-se o vendedor em mora a qual pode ser convertida em incumprimento, através do regime do artigo 808º do CC., que legitima a resolução do contrato-promessa por parte dos promitentes-compradores.

Regime que igualmente é supletivamente aplicável à obrigação de celebrar o contrato prometido, por parte dos promitentes-compradores, já que nada foi estipulado pelas partes.

Sendo o regime aplicável, o legal, supletivo, afastado fica o desequilíbrio das prestações, por culpa de uma das partes na elaboração do contrato.

Por outro lado, quanto aos prazos de restituição ou entrega do valor do sinal em dobro o prazo fixado aos compradores foi de 30 dias, acrescidos de outros 30 (nº 1 e 2 da Cláusula 7ª), prazo que também é de o de 60 dias para entrega do sinal em dobro pelo vendedor (nº 3 da mencionada cláusula).

Por último, como se deixou dito nas instâncias, depois de finalizada a construção do apartamento, caso a escritura de compra e venda objecto do presente contrato não esteja outorgada nos termos nele previstos, nomeadamente por a respectiva licença de utilização não estar ainda na posse da promitente vendedora, os promitentes - compradores poderão interpelar a promitente vendedora para proceder à marcação da respectiva escritura e, caso tal não seja efectuado no prazo de 180 dias, poderão então resolver o contrato (cláusula 6ª).

Acresce que as partes, neste caso, estabeleceram um regime de indemnização mediante cláusula penal compensatória.

Além do mais, o prazo de 180 dias para marcação das escrituras está previsto para a eventualidade de os vendedores a não marcarem, nomeadamente por não terem obtido a licença de utilização.

Ora, sendo a obtenção, pela vendedora, dependente de uma acto de terceiro, designadamente da entidade que emite as licenças, não pode tal prazo ser comparado ao de 30 dias para a mora decorrente do atraso de pagamento de uma prestação do preço pelos compradores.

Mormente para preencher a ideia de desproporção e desigualdade das partes, em violação do princípio da boa - fé nos termos supra expostos.

Improcedendo os fundamentos por que pretendem ver alterado o decidido no pedido principal formulado pelos autores.

6.

Da resolução do contrato

Improcedendo o pedido principal, pediram os autores que se declarasse a resolução do contrato por alteração anormal das circunstâncias em que contrataram.

A resolução é uma declaração unilateral recipienda ou receptícia pela qual uma das partes, dirigindo-se à outra põe termo ao negócio retroactivamente, destruindo assim a relação contratual.

O Código Civil prevê e regula a resolução em termos gerais no artigo 432.º e seguintes.

Ao contrário da revogação, que é em princípio livre, “a resolução é vinculada e só admitida se fundada na lei ou em convenção” (artigo 432º).

Ainda que motivada, a resolução ou modificação do contrato é admitida em termos propositadamente genéricos, para que, em cada caso, o tribunal, atendendo à boa - fé e à base do negócio, possa conceder ou não a resolução ou modificação.

Assim, “ao lado da resolução legal, como, por exemplo, nos casos de não cumprimento da obrigação, impossibilidade do cumprimento ou alteração das circunstâncias que fundaram a decisão de contratar, em que o direito é conferido por lei a uma das partes, admite este artigo que, por convenção, se atribua a uma das partes ou a ambas elas o direito de resolver o contrato”[23].

Deste modo, o direito de resolução dum contrato, enquanto meio de extinção do vínculo contratual, quando não convencionado pelas partes, depende da verificação de um fundamento legal, correspondendo, nessa medida, ao exercício de um direito potestativo vinculado (artigo 432.º). Fica, pois, a parte que invoca o direito à resolução obrigada a alegar e a demonstrar o fundamento que justifica a destruição do vínculo contratual (resolução fundamentada).

Dispõe o artigo 437º, n.º 1, do Código Civil:

“1 – Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa - fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.

2 – Requerida a resolução, a parte contrária pode opor-se, declarando aceitar a modificação do contrato nos termos do número anterior”.

Analisando este preceito, considera o Prof. Galvão Telles[24] que circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar “são as circunstâncias que determinaram as partes a contratar, de tal modo que, se fossem outras, não teriam contratado ou tê-lo-iam feito ou pretendido fazer, em termos diferentes. Trata-se de realidades concretas de que as partes não tiveram consciência, pois nem sequer pensaram nelas, dando-as como pressupostas; ou de realidades concretas de que tiveram consciência, mas convencendo-se de que não sofreriam alteração significativa, frustradora do seu intento negocial. Ou não passou sequer pela cabeça dos interessados que o status quo se modificaria: ou admitiram que tal ocorresse, mas em medida irrelevante. Aquela pressuposição ou esta convicção inexacta tem de ser comum às duas partes, porque, se não se deu em relação a uma e ela se calou, deixa de merecer protecção”.

“Que a alteração deve ser significativa, que deve assumir apreciável vulto ou proporções extraordinárias, põe-no em relevo a lei ao falar de alteração anormal (artigo 437º, n.º 1)”.

“As aludidas circunstâncias constituem a base do negócio. Mas a base do negócio apresenta-se aqui, quanto à configuração e ao regime, como algo de diverso da base do negócio em matéria de erro. A base do negócio no domínio do erro tem carácter subjectivo, porque se traduz na falsa representação psicológica da realidade. A base do negócio no domínio da alteração das circunstâncias tem carácter objectivo, visto não se reconduzir a uma imaginária falsa representação psicológica da manutenção de tais circunstâncias”.

“A base do negócio no erro é unilateral: respeita exclusivamente ao errante. A base do negócio na alteração das circunstâncias é bilateral: respeita simultaneamente aos dois contraentes. A lei (artigo 437º, n.º 1) fala, acentuadamente, das circunstâncias em que as partes (plural) fundaram a decisão de contratar; não refere as circunstâncias em que o lesado com a superveniente modificação teria fundado a sua decisão de contratar, proposição destituída de todo o sentido”.

“Aliás, no momento da outorga do contrato não pode ainda falar-se de lesado, porque lesado só existirá, futura e eventualmente, se as circunstâncias em que os estipulantes fundaram a decisão de contratar vierem a sofrer modificação que torne o contrato prejudicial para um deles: lesado será esse”.

A resolução ou modificação do contrato é admitida em termos propositadamente genéricos, para que, em cada caso, o tribunal, atendendo à boa-fé e à base do negócio, possa conceder ou não a resolução ou modificação.

Este normativo citado reconhece, pois, à parte lesada, pela ocorrência de alterações anormais das circunstâncias em que fundou a sua vontade de contratar, o direito à resolução ou à modificação do contrato.

De acordo com Almeida e Costa[25], para que o lesado possa valer-se de algum dos direitos previstos no citado artigo, é necessário:

a) – Que a alteração a ter por relevante diga respeito a circunstâncias em que as partes tenham fundado a decisão de contratar.

b) – É necessário que essas circunstâncias fundamentais hajam sofrido uma alteração anormal.

c) – Torna-se indispensável, além disso, que a estabilidade do contrato envolva lesão para uma das partes.

d) – Mostra-se ainda forçoso que tal manutenção do contrato ou dos seus termos afecte gravemente os princípios da boa-fé.

e) – Também é necessário que a situação não se encontre abrangida pelos riscos próprios do contrato.

f) – Exige-se, por último, a inexistência de mora do lesado.

Diferentemente do erro, em que a base do negócio é unilateral, respeitando exclusivamente ao errante, na alteração das circunstâncias a mesma é bilateral, respeitando simultaneamente aos dois contraentes (i.e., que se produza uma alteração anormal das circunstâncias em que ambas as partes fundaram a decisão de contratar) – neste sentido os acórdãos de 28-05-2009 (Revista n.º 197/06.6TCFUN.S1, relator Oliveira Vasconcelos); de 30-06-2009 (Revista n.º 329/09.2YFLSB, relator Alves Velho) e de 10-01-2013 (Revista n.º 187/10.4TVLSB.L2.S1, relator Orlando Afonso)[26].

De onde decorre, tout court, que a alteração das circunstâncias pessoais dos contraentes, são insusceptíveis de preencher o instituto.

Designadamente a invocada “diminuição significativa do poder de compra dos autores e a situação de desemprego em que se encontra a autora desde Outubro de 2009.

Afloramento aliás da proibição da sua invocação como fundamento para exigir qualquer redução, desconto ou abatimento da dívida, ou dilação da data do seu vencimento, como decorre do beneficium competentiae ou ne egeant do direito romano[27].

Perante este quadro legal, que se encontra, na maioria dos casos, directa ou indirectamente relacionado, com um quadro de crise, o nosso Supremo Tribunal, tem vindo a entender que nas situações de crise, a alteração relevante carece ainda de ser anormal, requisito ligado à imprevisibilidade, pois que, sendo a alteração normal, as partes poderiam tê-la previsto e acautelado, na conclusão do contrato, as suas consequências – cf. acórdão de 18-06-2013 (Revista n.º 4633/06.3TBLSB.L1.S1, relator Alves Velho)[28].

Ora, as alterações da taxa de juro e de esforço; o desemprego e a desvalorização da moeda, mais a mais desacompanhada da invocação das concretas circunstâncias de vida dos autores à data da outorga dos contratos-promessa, não são fundamentos ligados à ideia de imprevisibilidade.

Falece também este argumento.

7.

Concluindo:

I - O contrato promessa caracteriza-se especificamente pelo seu objecto, uma obrigação de contratar, a qual pode ser relativa a qualquer outro contrato.

II - A regra da livre fixação do conteúdo dos contratos está sujeita a limitações em que aflora o princípio da boa - fé, quer na preparação ou formação dos contratos (artigo 227º, n.º 1, do CC), quer na sua execução (artigo 762º, n.º 2, do CC).

III - Nos contratos de adesão (em que as cláusulas são preparadas genericamente para valerem em relação a todos os contratos singulares de certo tipo) a lei intervém em favor do aderente, adoptando critérios de maior exigência em salvaguarda dos seus interesses como parte contratual, não sendo alheios, todavia, motivos de ordem pública, sopesada a finalidade do contrato e o tipo de contratação padronizada.

IV – Para que o contrato seja analisado à luz do regime em vigor para tal tipo de contratos (DL n.º 446/85 de 25-10), o aderente tem o ónus de alegar e provar que o contrato em causa reveste a natureza de contrato de adesão.

V – O desequilíbrio no exercício do direito (desproporção inadmissível entre a vantagem própria e o sacrifício que impõe aos outros) constitui uma das modalidades em que se desdobra o abuso do direito.

VI - Sendo diferentes a obrigação do promitente-vendedor, que é também construtor, e do promitente-comprador, a simples estipulação de prazos diferentes para a verificação da mora e do incumprimento (cujo regime aplicável é, parcialmente, o legal, supletivo) não permite concluir pelo desequilíbrio das prestações, em termos susceptíveis de ofender o princípio da boa - fé.

VII - O direito à resolução ou modificação do contrato por alteração anormal das circunstâncias pressupõe (i) que a alteração a ter por relevante diga respeito a circunstâncias em que as partes tenham fundado a decisão de contratar; (ii) que essas circunstâncias fundamentais hajam sofrido uma alteração anormal (iii) que a estabilidade do contrato envolva lesão para uma das partes (iv) que tal manutenção do contrato ou dos seus termos afecte gravemente os princípios da boa-fé (v) que a situação não se encontre abrangida pelos riscos próprios do contrato e, (vi) por último, a inexistência de mora do lesado.

VIII - Diferentemente do erro, em que a base do negócio é unilateral, respeitando exclusivamente ao errante, na alteração das circunstâncias a mesma é bilateral, respeitando simultaneamente aos dois contraentes (i.e., que se produza uma alteração anormal das circunstâncias em que ambas as partes fundaram a decisão de contratar).

IX - Nas situações de crise, a alteração relevante carece ainda de ser anormal, requisito ligado à imprevisibilidade, pois que, sendo a alteração normal, as partes poderiam tê-la previsto e acautelado, na conclusão do contrato, as suas consequências, pelo que as alterações da taxa de juro e de esforço na concessão de empréstimo bancário pagamento do preço do contrato prometido, o desemprego e a desvalorização da moeda são insusceptíveis de preencher tal requisito.

8.

Pelo exposto, não se concede provimento à revista, mantendo-se o acórdão recorrido.

As custas deste recurso, tal como as custas de ambas as instâncias são a cargo dos autores.

Lisboa, 23 de Janeiro de 2014

Manuel F. Granja da Fonseca

António Silva Gonçalves

Pires da Rosa

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[1] Diploma para que se consideram efectuadas as demais remissões sem menção expressa de origem.
[2] Pires de Lima e A. Varela, in “Código Civil Anotado”, Volume I, 3ª edição, página 353; Prof. Antunes Varela – “Das Obrigações em Geral”, 10ª edição, Volume I, página 248.

[3] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 10ª edição, Almedina, páginas 247-248.

[4] Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, volume IV, em nota ao artigo 1648º.
[5] Direito das Obrigações, 2006, página 120.
[6] Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume II, página 138/139.
[7] Menezes Cordeiro, in “Direito das Obrigações”, Volume I, 1980, página 93 e Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 6.ª edição, página 197).

[8] DL n.º 446/85, de 25/10, com as alterações a que adiante se fará referência.
[9] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 7.ª edição, pág. 262.

[10] Oliveira Ascensão, Teoria Geral do Direito Civil, vol. III, pág.364.
[11] Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6.ª edição, página 75.
[12] As três características básicas das cláusulas contratuais gerais (CCG) são: a) a pré-elaboração; b) a rigidez ou inalterabilidade por via negocial; e, c) a generalidade.
[13] Diploma que foi modificado, a fim de ficar em conformidade plena com a Directiva 93/13/CE, do Conselho, de 5 de Abril de 1993, pelo DL n.º 220/95, de 31-08, e pelo DL nº 249/99, de 7/07, e para o qual se consideram efectuadas as demais remissões sem menção expressa de origem.
No sentido da aplicação do regime instituído pelo DL n.º 446/85 a todos os contratos de adesão, cf. António Pinto Monteiro, Cláusulas Contratuais Gerais: da desatenção do legislador de 2001 à indispensável interpretação correctiva da lei, in Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Heinrich Ewald Höster, 2012, páginas 141 a 150 (nota de rodapé n.º 10).
[14] Neste sentido, e a propósito do regime da boa - fé nas cláusulas contratuais gerais, cf., os acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça de 14/11/2013 (Revista 122/09.2TJLSB.L1.S1, relator João Trindade); de 26/09/2013 (Revista n.º 15/10.0TJLSB.L1.S1, Relator Serra Baptista); de 19/10/2010 (Revista n.º 10552/06.6TBOER.S1, Relator Moreira Alves), todos disponíveis in www.igfej.pt e o acórdão de 8/05/2013 (Revista n.º 813/09.8YXLSB.S1, Relator João Bernardo), este com sumário disponível no site deste Tribunal.
[15] Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume I, 4ª edição, página 229.
[16] Do Abuso do Direito, página 55.

[17] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/1/2003, citando Castanheira Neves, in Coletânea de Jurisprudência do Supremo, T. I, pág. 64.
[18] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume I, 6ª edição, página 76.
[19] Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito, página 76 e Antunes Varela, Obrigações em Geral, 1970, páginas 371 e seguintes.
[20] Obra citada, páginas 415 e seguintes, citado no Ac. da Relação do Porto de 19/12/1996, Colectânea de Jurisprudência, Tomo V, página 226.
[21] Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume I, páginas 298 e seguintes.
[22] Da Boa - Fé no Direito Civil, II, 719 e seguintes.
[23] Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Volume I, 4.ª edição, página 409.
[24] Prof. Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, página 343 e seguintes.
[25] Direito das Obrigações, 5ª edição, páginas 265 a 271.

[26] Disponíveis in www.igfej.pt.
[27] Pires de Lima e A. Varela, obra citada, volume II, a folhas 3, em anotação ao artigo 762º.

[28] Com sumário disponível no site deste Supremo Tribunal.