Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3076/11.1TBLLE.E1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÂO
Relator: JOÂO BERNARDO
Descritores: UNIÃO DE FACTO
REQUISITOS
FACTOS
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 07/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: ORDENADA A BAIXA DOS AUTOS
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / ARRENDAMENTO URBANO - DIREITO DA FAMÍLIA / CASAMENTO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO / INSTRUÇÃO DO PROCESSO / FORMAS DE PROCESSO.
Doutrina:
- A. Varela, Sampaio e Nora e Miguel Bezerra, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., 676, nota de pé de página.
- Cristina Araújo Dias, Revista Jurídica da Universidade Portucalense, n.º15, 2012, página 40.
- França Pitão, União de Facto e Economia Comum, 34.
- Jorge Pinheiro, O Direito da Família Contemporâneo, 4.ª Ed., 651, 653.
- Manuel de Andrade, NEPC, 187.
- Pamplona Corte-Real e Silva Pereira, Direito da Família, 47.
- Telma Carvalho, A União de Facto: A Sua Eficácia Jurídica, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, I, 236
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1577.º, 1615.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGOS 6.º, 7.º, N.ºS 1 E 2, 411.º E 547.º.
LEI N.º 6/2001, DE 11-5: - ARTIGOS 1.º, N.º2, 2.º, 3.º, 4.º, N.º2.
LEI N.º 7/2001, DE 11-5, NA REDACÇÃO DA LEI N.º 23/2010, DE 30.8: - ARTIGO 1.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 3.2.1999, NO BMJ 484.º, 384 E DE 22.10.2009, PROCESSO N.º409/09.4YFLSB, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
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ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR N.º 2/10, PUBLICADO NO DIÁRIO DA REPÚBLICA, I SÉRIE, DE 22.2.2010.
Sumário : 1 . A união de facto pressupõe, além do mais, que exista intimidade, a maior parte das vezes sexual, entre os unidos.

2 . Alegando a ré que vivia em união de facto com um homem, entretanto falecido, sem aludir expressamente a intimidade entre eles, mas referido que coabitaram a mesma casa, vinham observando os deveres próprios do casamento, nomeadamente o de fidelidade, se respeitavam mutuamente e não tiveram, em todo o tempo que durou a coabitação qualquer outra relação ou compromisso pessoal, deve considerar-se – atenta a necessária elasticidade processual em benefício do fundo sobre a forma – que está alegada a intimidade aludida em 1.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1 . O Instituto AA, I.P., instaurou, na Comarca de Loulé, contra:

BB,

Esta ação declarativa ordinária.

Alegou, em síntese, que:

É o proprietário do prédio urbano bloco D2-r/c dto., sito em …, inscrito na matriz respectiva sob o art…. e descrito na Conservatória Reg. Predial de Loulé sob o nº …/…;

Que foi dado de arrendamento a CC;

Este faleceu, pelo que caducou o contrato;

A ré está a ocupá-lo o que impossibilita que ele, autor, o arrende a outras pessoas, estando, assim, privado do recebimento das rendas, cujo montante mensal calcula em € 171,47;

Ascendendo o total, de Junho até ao mês de Setembro de 2011, a  € 685,88.

Pediu, em conformidade a condenação da ré a:

A reconhecer o seu direito de propriedade sobre o referido imóvel;

Restituir esse imóvel;

Pagar-lhe uma indemnização no montante de € 685,88 e respectivos juros de mora;

Pagar uma indemnização pela ocupação desse imóvel desde o mês Outubro de 2011 até à efetiva entrega livre e devoluto.

2 . Contestou a Ré, alegando que:

Viveu com o referido CC desde 2008 até à época do óbito, como se fossem marido e mulher, transmitindo-se-lhe assim o arrendamento;

É carenciada e reúne os requisitos para que lhe seja arrendado o imóvel.

Neste seguimento, deduziu reconvenção, pedindo que :

Se declare que se transmitiu para ela o arrendamento;

Se condene a autora a tal reconhecer;

Subsidiariamente se condene a autora a reconhecer que tem direito a novo arrendamento;

3 . Na réplica o A. respondeu à exceção e contestou a reconvenção.

4 . Prosseguiu a tramitação e, na devida oportunidade, foi proferida sentença.

Julgou-se a ação procedente por provada e condenando-se a ré a:

Restituir o imóvel ao autor;

Pagar ao autor a quantia indemnizatória de € 685,88 correspondente às rendas vencidas entre os meses de Junho e Setembro de 2011 e respectivos juros de mora à taxa legal, e a quantia indemnizatória correspondente às rendas mensais de € 171,47 que se venceram desde o mês de Outubro de 2011 até àquela efetiva entrega.

5 . Apelou a ré, sustentando, além do mais, que deve ser alterada a matéria de facto.

Mas o TRE não conheceu da pretendida alteração factual, que considerou prejudicada, por entender que os factos alegados são insuficientes para preencherem o conceito de união de facto.

Nessa conformidade, negou provimento ao recurso.

6 . Ainda inconformada, pediu revista excecional.

A formação a que aludem os artigos 721.º-A, n.º3 do Código de Processo Civil e 672.º n.º3 do NCPC entendeu que não se verificava dupla conforme e determinou, consequentemente, a remessa dos autos a distribuição normal.


Conclui a ré as alegações do seguinte modo:

A) O douto acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora de que se recorre confirma a decisão proferida na primeira instância por recurso a conhecimento de questão que considera prejudicial, não chegando sequer a conhecer da requerida reapreciação de prova gravada e das conclusões de recurso;

B) Considera o Venerando Tribunal da Relação de Évora ser inútil proceder à requerida reapreciação da prova por entender que a prova da vivência em "situação análoga à dos cônjuges" se não faz por "indagação de ocorrências da vida real que possam preencher aquele conceito".

C) Não se entende como é que a resposta ao quesito em que se pergunta "como se de marido e mulher se tratassem?" pode ser indiferente à prova da existência de vivência "em situação análoga à dos cônjuges".

D) A integração e verificação de conceitos jurídicos terá sempre de ser feita pela respectiva integração com factos, ocorrências da vida real, salvo nos casos de presunção.

E) Independentemente da alegação de relação de natureza sexual, a resposta das testemunhas ao quesito onde se pergunta se a Ré e o CC viviam no locado "como se de marido e mulher se tratassem" é adequada a verificar a existência de tal conceito e considerar integrada a previsão legal que faz operar a transmissão do arrendamento em caso de união de facto.

F) Com o douto Acórdão de que se recorre fez o Venerando Tribunal a quo errada interpretação das normas constantes dos artigos 57.º, n.º 1, al. b) da lei 6/2006, do n.º 2 do artigo 1.º da lei 7/2001.

G) Fez ainda errada interpretação e aplicação das normas contidas nos artigos 664° e 264º (por expressa remição daquele) do Código de Processo Civil vigente até 31 de Agosto de 2013.

H) A Ré beneficia de apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.


TERMOS EM QUE E SEMPRE COM O SEMPRE MUI DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS…,

deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o Acórdão da Relação e ordenando-se o que for de direito com vista à requerida alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos expostos na apelação e, em consequência, revogar-se a sentença proferida pela primeira instância, que deverá ser substituída por sentença que absolva a Ré do pedido, reconheça a existência de união de facto entre esta e CC e o seu direito a suceder ao referido CC na posição de arrendatário do imóvel objecto dos autos, condenando o A. a assim reconhecer…

Contra-alegou o autor, rebatendo, ponto por ponto, a alegação da contraparte.

7 . Ante as conclusões das alegações, há que tomar posição sobre se a alegação da defesa deve ser considerada bastante para, se for caso disso, se alcançar o conceito de união de facto.

8 . Na 1ª instância foram julgados provados os seguintes factos:

1) Na Conservatória Reg. Predial de Loulé, Freguesia de … está descrita sob o nº …/…, a fracção B composta por rés-do-chão direito, do prédio urbano denominado bloco D2 – … (Quinta do ….);

2) Pela Ap. de 27.4.1995 a aquisição do imóvel referido na alínea anterior ficou inscrita a favor de IGAPHE-Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado;

3) Pela Ap. 3572 de 7.12.2007 registou-se a aquisição do mesmo a favor do Instituto AA, I.P. por transferência de património;

4) O IGAPHE-Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado foi extinto tendo as suas atribuições sido integradas no Instituto AA, I.P.;

5) No dia 1.7.1988 o Instituto de Gestão e alienação do Património Habitacional do Estado, na qualidade de 1º outorgante, e CC, na qualidade de 2º outorgante, declararam “I. O 1º outorgante dá de arrendamento ao 2º outorgante o T2, fogo nº57 do prédio D2 – r/c dto., sito em …, no Bairro do …, de que é proprietário (…) II. O arrendamento é pelo prazo de 1 ano com início no dia 1.7.1998 considerando-se sucessivamente renovado por iguais períodos se não for denunciado por qualquer dos outorgantes com a antecedência mínima de 30 dias em relação ao termo do prazo contratual. III. A renda técnica é de quantia 11.010$00 (…)” (v. doc. fls.67 a 70);

6) O acordo referido na alínea 5) reporta-se ao imóvel referido na alínea 1);

7) CC faleceu no dia 6.5.2011, no estado de viúvo;

8) A Ré é solteira;

9) A Ré vive no imóvel referido na alínea 1);

10) Desde 2008 e até ao referido na alínea 7) que a Ré e CC moraram no prédio referido na alínea 1);

11) A Ré preparava as refeições e algumas delas eram partilhadas por ambos;

12) A mãe da Ré por vezes ia lá a casa;

13) Ali pernoitavam Ré e CC;

14) A Ré ajudava e amparava o falecido;

15) Desde 2008 que a Ré recebe correspondência nessa morada;

16) Actualmente a Ré vive só com 2 filhos que sustenta;

17) A Ré é empregada no supermercado “….”, em …, auferindo € 450,00 líquidos, por mês;

18) Não dispõe de outros rendimentos ou bens;

19) O imóvel referido na alínea 1) tem um valor locativo de € 171,47;

20) A A. cancelou o recebimento das rendas a partir de Junho.


9 . Interessando ainda para o presente recurso o que a seguir se transcreve da contestação/reconvenção:




A Ré vivia em união de facto com o arrendatário primitivo.



Com efeito, o casamento é o contrato através do qual os cônjuges se vinculam reciprocamente aos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência.



Desde pelo menos o ano de 2008 que a Ré e o primitivo arrendatário vinham obedecendo a tais deveres.

10°


Assim, desde então coabitaram a mesma casa (a fracção cuja restituição o A. agora vem pedir), respeitando-se mutuamente, socorrendo-se, auxiliando-se e assumindo em conjunto as responsabilidades inerentes à vida familiar, cada um na medida das suas possibilidades.

11º


Assumiram em conjunto a convivência entre si e com os filhos menores da Ré, que também sempre habitaram a mesma casa.

12°


Não tiveram, em todo o tempo que durou a coabitação, qualquer outra relação ou compromisso pessoal, com quem quer que fosse.

13°


Contribuíam com o produto dos seus rendimentos para os encargos da vida familiar.

14º


Preparavam e partilhavam as refeições, a organização da vida em família, recebiam amigos e familiares na casa em que coabitavam.

15º


A Ré e o primitivo arrendatário cuidavam um do outro em caso de doença, considerando as limitações da idade do mencionado CC.

16º


Para a mesma morada era endereçada e recebida toda a correspondência dirigida à Ré - cfr. documentos n.ºs 1 e 2 que se juntam e se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos.

17º


O arrendatário CC faleceu no estado de viúvo - cfr. certidão do assento de óbito que protesta juntar.

18°


A Ré é solteira - cfr. certidão do assento de nascimento que protesta juntar.

19°


A Ré sobrevive exclusivamente do vencimento que aufere como empregada do Supermercado …, em …, no valor ilíquido de € 510,00 (quinhentos e dez euros).

20º


É com dificuldades que sustenta o agregado familiar, composto, agora, exclusivamente por si e pelos seus dois filhos menores, Diogo Filipe Nunes e Fabrício Estevão Filipe.

21°


Como bem se vê, Ré e primitivo arrendatário, CC, viveram desde, pelo menos o ano de 2008, em união de facto.


EM RECONVENÇÃO


38°


Conforme se expôs supra, a R. e o primitivo arrendatário viveram desde pelo menos o ano de 2008 em união de facto, sendo a casa de morada de família a fracção propriedade do A. sita no Bairro … , Bloco 02 - 2° Direito, na cidade e freguesia de ….

39º


Ali viveram e conviveram até à morte do CC no corrente ano de 2011.

40º


No local arrendado prepararam e partilharam as refeições.

41°


Ali estabeleceram a sua casa de morada de família, em conjunto com os filhos menores da Ré.

42º


Ali recebiam familiares e amigos, com quem ali conviviam.

43°


Auxiliavam-se e amparavam-se mutuamente.

44°


Partilhavam as despesas e a organização da vida quotidiana.

45°


Constituíam assim uma família.

46°


É, pelo menos desde o ano 2008, no local arrendado que a Ré recebe a sua correspondência - cfr. documentos n.ºs 2 e 3, que se juntam.

47°


É ali que ainda hoje tem a Ré a sua residência, em conjunto com os seus filhos.

48º


Foi na morada do locado que a Ré foi citada para os termos da presente acção.

49°


Pelo que reúne os requisitos legais para ser transmitido a seu favor o arrendamento.


10  . À margem do casamento sempre existiram situações de pessoas que viviam como se casados fossem e de pessoas que, fora das anteriores situações, mantinham uma constância, se não mesmo exclusividade, no convívio sexual.

O casamento vem definido no artigo 1577.º do Código Civil como:

O contrato celebrado entre duas pessoas que pretendam constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste código.

Optou o legislador por fazer girar a definição em torno do acordo de vontades que é elemento essencial do contrato, ainda que submetido à intenção expressamente consignada.

O artigo 1615.º abre um capítulo epigrafado “Celebração do Casamento Civil”, dali resultando, assim como de outras disposições, que a dicotomia entre “casar” e não “casar”, entre ser ou não “casado” se resolve com facilidade. É casado quem “casou” e não o é quem não “casou” (agora abstraindo dos casos de dissolução que aqui não nos interessam).

Não importa, para a situação jurídica, se vivem ou não juntos, se mantêm, ou mesmo alguma vez mantiveram, relacionamento sexual ou qualquer outro tipo de intimidade e aí por diante.

11 . A união de facto tem na sua génese a ausência do mencionado contrato com as inerentes formalidades.

Daí que a sua conceptualização se não possa reportar ao “ato” fundador da relação.

Vai, então, a lei buscar o cerne do conceito ao tipo de vivência.

Dispõe o artigo 1.º da Lei n.º 7/2001, de 11.5, na redação da Lei n.º 23/2010, de 30.8, com valor interpretativo relativamente a legislação anterior (exceto quanto ao prazo da vivência, matéria que aqui não releva) que:

A união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos.   

Lançou mão da expressão “condições análogas às dos cônjuges” que pode levantar dificuldades, face à vastidão de tipos de vivência entre os cônjuges, já aflorada na parte final do número anterior.

Cremos, todavia, que a própria razão de ser da tutela da união de facto nos conduz à ideia de normalidade ou vulgaridade na vivência conjugal.

Ou seja, pensa-se na vivência de dois cônjuges em situação de normalidade ou vulgaridade, inseridos na cultura a que pertencemos, e é aí que se há-de encontrar o preenchimento do conceito de “condições análogas às dos cônjuges”.

12 . Nessa relação, aferida segundo critérios de normalidade e de vulgaridade, intervém, para além do mais que aqui não é motivo de discussão, a intimidade, a maior parte das vezes no plano sexual.

Pode-se viver na mesma casa, repartir os dinheiros ou as refeições, apoiar-se mutuamente na doença e fora dela, que, se não houver qualquer forma de intimidade, não se poderá dizer que se vive “em condições análogas às dos cônjuges”.

No fundo estamos perante a “comunhão de mesa, leito e habitação” a que tradicionalmente se recorre para caracterizar a relação (cfr-se Jorge Pinheiro, O Direito da Família Contemporâneo, 4.ª Ed., 651 e Telma Carvalho, A União de Facto: A Sua Eficácia Jurídica, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, I, 236). Sendo certo que a alusão a “comunhão de leito” é integrada pela comunhão sexual (Jorge Pinheiro, ob. cit. 653 e França Pitão – União de Facto e Economia Comum, 34).

Não cremos, todavia que, apesar da exigência de intimidade, esta seja, em todos os casos, de reportar ao cariz sexual. Sê-lo-á na esmagadora maioria, mas pode haver casos em que a idade, a doença ou a opção pessoal afastem o convívio sexual, mas permitam outras formas de vivência íntima, que são próprias do casamento ou de quem optou por viver “em condições análogas”.

Não se justifica que se subtraiam à união de facto pessoas cuja realidade sexual as não impediria de casar. Aliás, a alusão à convivência sexual não é uma constante. Pamplona Corte-Real e Silva Pereira (Direito da Família, 47) reportam-se a “uma profunda intersubjectividade e interrelacionalidade dos cônjuges e, ou, dos parceiros conviventes: dignidade, liberdade, intimidade, respeito pelo próximo e boa-fé”. E Cristina Araújo Dias (Revista Jurídica da Universidade Portucalense n.º15, 2012, página 40), a propósito da jurisprudência do TEDH, refere que tal tribunal “inclui na noção de vida familiar as relações matrimoniais, mas também as famílias de facto, assentes noutras formas de convivência afectiva constitutivas de laços familiares, sendo relevante, portanto, o critério da efectividade de laços interpessoais.”


Em reforço desta ideia de necessidade de convivência íntima, podemos lançar mão do cotejo com a figura das “pessoas que vivam em economia comum há mais de dois anos”, trazida pela Lei n.º 6/2001, de 11.5 e ali definida, nos seguintes termos (artigo 2.º):

Entende-se por economia comum a situação de pessoas que vivam em comunhão de mesa e habitação há mais de dois anos e tenham estabelecido uma vivência em comum de entreajuda ou partilha de recursos.

É clara a distinção relativamente à união de facto (cfr-se os artigos 1.º, n.º2, 3.º e 4.º, n.º 2) e é a ausência de intimidade que constitui a diferença.

13 .  Traçado este quadro, importa agora determinar se a alegação constante da peça processual que se transcreveu em 9 não é insuficiente para que possa vingar a defesa e ser julgada procedente a reconvenção.

A Relação considerou que é insuficiente, tendo em conta que só no recurso surge a alegação de comunhão de cama e que “é algo enigmático o ênfase que dá a esse mútuo respeito quando se sabe que nasceu no dia 15.9.1978 (v. certidão fls.41 a 43) e que tinha 32 anos de idade à data do falecimento dele, no dia 6.5.2011, com a avançada idade de 96 anos (v. certidão fls.40 e 41).”

É manifesto que a ré não alude expressamente a qualquer intimidade, mormente no plano sexual. Talvez atenta a proveta idade (mais de 90 anos) do entretanto falecido, quando ela foi viver para a casa.

Todavia, começando por referir que vivia em união de facto como o arrendatário, discorre sobre os deveres inerentes ao casamento, incluindo o de fidelidade, que afirma ter estado sempre presente. Nesta sequência surge a afirmação de coabitação e da inexistência, durante esse tempo, de “qualquer outra relação ou compromisso pessoal, com quem quer que fosse”.

Decerto que, numa primeira análise, temos aqui conceitos de direito e, todos o sabemos, perante o tribunal os conceitos de direito têm de ser preenchidos por factos.

Mas, já avisava Manuel de Andrade (NEPC, 187) que, por vezes, os mesmos termos são usados na linguagem jurídica e na linguagem comum e que, quando figurem no “questionário” devem entender-se que foram empregues no seu sentido vulgar. Nada impedindo que assim se tomem quando constam dos articulados das partes, se a inserção dentro da peça processual, a tal conduzir.

Então, temos de imaginar alguém sem a mínima formação jurídica ou preocupação nesse domínio lendo o articulado supra transcrito. E concluímos que essa pessoa ficará ciente de que lá está a intimidade caracterizadora da união de facto.

Acresce que, como referem A. Varela, Sampaio e Nora e Miguel Bezerra (Manual de Processo Civil, 2.ª ed., 676, nota de pé de página) e tem sido entendimento deste Tribunal (exemplificativamente, os Ac.s de 3.2.1999, no BMJ 484.º, 384 e de 22.10.2009, processo n.º 409/09.4YFLSB, disponível em www.dgsi.pt), a alegação implícita deve ser tida em conta.

Por outro lado, o ponto 2.º da BI (se a ré e o CC viviam “como se de marido e mulher se tratasse”), ainda que algo conclusivo, abre caminho a uma resposta que permita a fixação factual no sentido da aludida intimidade ou da sua não prova, em ordem à aplicação da lei relativa à sucessão no arrendamento, invocada pela defesa.

14 . Estas considerações têm como pano de fundo o modo como deve ser encarada a realidade processual.


Como consta dos fundamentos do Acórdão Uniformizador n.º 2/10, publicado no Diário da República, I Série, de 22.2.2010:

“…vêm-se sucedendo alterações das bases ideológicas do processo, com implementação dum regime “submetido ao activismo judiciário”, cujas linhas essenciais Teixeira de Sousa enumera, incluindo nelas a possibilidade de afastamento ou adaptação das regras processuais “quando não se mostrem idóneas para a justa composição do litígio.” (Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 59).

Na evolução dessas bases ideológicas, o legislador, delineou, no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, o que chama as “linhas mestras de um modelo de processo”, entre as quais as que aqui nos importam:

“Distinção entre o conjunto de princípios e de regras, que, axiologicamente relevantes, marcam a garantia do respeito pelos valores fundamentais típicos do processo civil, e aquele outro conjunto de regras, de natureza mais instrumental, que definem o funcionamento do sistema processual.”

“Garantia de prevalência do fundo sobre a forma, através da previsão de um poder mais interventor do juiz, compensado pela previsão do princípio de cooperação, por uma participação mais activa das partes no processo de formação da decisão.”

Surgiram, assim, os princípios da adequação formal (artigo 265.º A) – que o próprio legislador refere, no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 180/96, de 25.11, ser a “expressão do carácter funcional e instrumental da tramitação relativamente à realização do fim essencial do processo” -, o princípio da cooperação (artigo 266.º) e a imposição ao juiz relativa ao suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação (artigo 265.º, n.º2).

Temos aqui todo um “pano de fundo”, vindo de longe, mas particularmente intensificado com a reforma de 1995-1996, caracterizado pela elasticidade do regime processual em benefício da justa composição do litígio. A lei processual civil não constitui um fim em si mesma, devendo antes ser encarada, tendo precisamente em conta o seu papel adjectivo. O fim disciplinador que ela também encerra deve ser confinado àquela finalidade.”

Este modo de entender o processo mantém-se no NCPC, nomeadamente atento o disposto nos artigos 6.º, 7.º, n.ºs 1 e 2, 411.º e 547.º.

15 . Com todo este modo de ver não se compagina a posição assumida pela Relação de considerar a insuficiência de alegação factual para se chegar à pretendida união de facto.

16 . Nestes termos, concede-se parcialmente a revista, determinando-se que o processo baixe à Relação onde, se possível pelos mesmos Senhores Desembargadores, se conheça da pretendida alteração factual e do demais dela dependente, constante do recurso de apelação.

Custas a final.

Lisboa, 9.7.2014

João Bernardo

Oliveira Vasconcelos

Serra Baptista