Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
21112/16.3T8LSB-A.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: VALOR DA CAUSA
CRITÉRIOS
PEDIDO DE PAGAMENTO DE QUANTIA
PEDIDO GENÉRICO
VALOR TRIBUTÁRIO
TAXA DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 03/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / INCIDENTES DA INSTÂNCIA / VERIFICAÇÃO DO VALOR DA CAUSA.
Doutrina:
- Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, p. 199.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 296.º, 297.º, 299.º, N.ºS 3 E 4 E 303.º.
REGULAMENTO DAS CUSTAS PROCESSUAIS (RCP): - ARTIGOS 6.º, N.º 7 E 14.º, N.º 9.
Sumário :

1. Sem embargo dos casos em que o valor processual é ficcionado (art. 303º do CPC sobre “interesses imateriais”), o mesmo é determinado objetivamente segundo as regras e critérios previstos nos arts. 296º e ss. do CPC.

2. Quando o autor formula um pedido de indemnização e alega que o valor a receber do réu poderá se reduzido em função de um evento futuro e incerto relacionado com o resultado que venha a ser obtido noutro processo judicial, com outros sujeitos, o valor do processo não se determina em função do nº 4 do art. 299º do CPC, mas segundo o critério previsto no art. 297º.

3. Nos casos em que é admissível a formulação de pedidos genéricos, designadamente em ações de responsabilidade civil, o valor do processo indicado pelo autor ou fixado pelo juiz tem cariz provisório, podendo ser modificado em função de novos elementos que venham a ser adquiridos.

4. Porém, mesmo nesses casos, a sua determinação não segue em nenhum momento um critério arbitrário ou de mera conveniência das partes, devendo ser o reflexo dos elementos objetivos que o processo forneça na ocasião em que é indicado pela parte ou em que, em termos provisórios ou definitivos, é fixado pelo juiz (art. 299º, nº 3, do CPC).

5. O valor do processo também não é determinado pelo valor da taxa de justiça ou dos efeitos que o pagamento desta pode projetar no exercício do direito de acesso aos tribunais.

6. Tais efeitos, além de poderem relevar para obtenção de apoio judiciário, são regulados pelas normas do RCP, no qual se estabelece uma limitação do quantitativo máximo da taxa de justiça a pagar, com eventual dispensa ou redução de pagamento do valor remanescente (art. 6º, nº 7) e se prevê ainda o diferimento do pagamento da taxa de justiça remanescente (art. 14º, nº 9).


A.G.
Decisão Texto Integral:

I - AA, S.A., veio intentar a presente ação declarativa com processo comum contra BANCO BB, CC, S.A. (anteriormente designada por DD, S.A., e EE, pedindo a condenação solidária dos RR. no pagamento da quantia que resultar da diferença entre o montante que seja recuperado pela A. em resultado da liquidação da entidade emitente do instrumento financeiro “Fiduciary Time USD. 2,9% 08.05.2014-07.11.2014 ESBP PN (155928)”, com data de vencimento a 7-11-14, e o montante de USD 11.000.000,00 (aproximadamente € 9.858.490,00) que foi investido pela A., acrescido dos juros convencionados à taxa de 2,9%, no valor de € 285.896,21, e dos juros vencidos e vincendos, à taxa legal desde13-8-14 até integral pagamento.

A A. indicou € 30.000,01 como sendo o valor da ação, o qual não foi impugnado por nenhum dos RR.

Notificada judicialmente para esclarecer o valor que atribuiu, a A. veio alegar que, à data da propositura da ação, não conseguia quantificar a importância da indemnização a pagar pelos RR. e, por isso, formulou um pedido genérico, em consonância com a al. b) do art. 556º, nº 1 do CPC e do art. 569º do CC. Referiu ainda que, embora pretenda obter uma quantia certa em dinheiro, não é ainda possível definir a utilidade económica imediata do pedido, pelo que terá de ser atribuído à ação o valor da alçada da Relação e mais € 0,01 que dá acesso ao Supremo Tribunal de Justiça.

Foi proferido despacho que fixou em € 10.144.386,21 o valor da ação, desatendendo ao “critério” invocado pelo A.

A A. apelou e a Relação confirmou a decisão recorrida.

A A. interpôs recurso de revista, que foi admitido ao abrigo do art. 629º, nº 2, al. d), do CPC, uma vez que se verificava uma contradição entre o acórdão recorrido e outro acórdão da Relação sobre a mesma questão de direito em torno do critério de fixação do valor do processo num caso em tudo semelhante.

Importa, pois, verificar se, na data em que foi fixado por despacho do juiz de 1ª instância, o valor processual deve corresponder ao indicado pela A. - € 30.000,01 - ou ao que foi fixado pelas instâncias - € 10.144.386,21.

II – Decidindo:

1. Argumenta a A. que o valor que atribuiu à ação resulta do facto de não ser possível a sua quantificação imediata, uma vez que a utilidade económica que está em causa depende de circunstâncias que só serão determinadas no futuro e, concretamente, de se apurar se a A. irá recuperar ou não na liquidação da entidade emitente algum do dinheiro que investiu. Considera que esse valor deve ser fixado em € 30.000,01, sem embargo de a liquidação posterior revelar um valor diverso.

Os RR. não se opuseram a esta pretensão que, a ser consentida, determinaria para todos, e essencialmente para a A., a solução ideal, ou, de outra forma, “o melhor dos dois mundos”: por um lado, a garantia do acesso a toda a cadeia de recursos ordinários, considerando que aquele valor supera a alçada da Relação; por outro lado, a benefício de que, enquanto outro valor não fosse fixado, a mobilização do aparelho judiciário bastar-se-ia com o pagamento de uma taxa de justiça calculada a partir do referido valor de € 30.000,01.

2. O sistema tem evoluído no sentido de impedir os efeitos de estratégias processuais com os contornos da referida, que se traduziu na indicação de um valor processual inferior ao que emerge dos critérios legais, mas que, noutros casos, aposta na sobreavaliação com o objetivo de ultrapassar os obstáculos que a regra das alçadas coloca à recorribilidade das decisões, nos termos do art. 629º, nº 1, do CPC.

Nem uma nem outra opção quadram com os dispositivos legais que induzem à objetividade e legalidade na fixação do valor processual, em consonância com a natureza publicística das normas de processo, já que tal elemento da instância é suscetível de interferir em diversos aspetos relevantes e que ultrapassam os meros interesses subjetivos das partes.

Vejamos:

A toda a causa deve ser atribuído um valor, a indicar na petição inicial, sob pena de esta não ser recebida pela secretaria (arts. 305º, nº 3, 552º, nº 1, al. f), e 558º, al. e), do CPC).

Tal elemento é suscetível de influir designadamente na forma de processo (art. 550, nº 2, al. d)), na competência do tribunal (art. 66º e LOSJ), na obrigatoriedade ou não de patrocínio judiciário (art. 40º) ou mesmo em alguns segmentos da tramitação processual (arts. 597º, 468º, nº 5, 511º, nº 1 e 604º, nº 5). É ainda a partir desse dado objetivo que, em regra, se afere a recorribilidade das decisões (art. 629º, nº 1) e se determina o valor tributário (art. 296º, nº 3, do CPC e art. 11º do RCP) que, por seu lado, serve de padrão à liquidação da taxa de justiça que cada parte deve pagar em diversos momentos processuais.

A diversidade e o relevo das implicações do valor processual, designadamente quando interfere na intervenção de tribunais hierarquicamente superiores ou no montante da taxa de justiça, explicam a necessidade de o mesmo se ajustar aos critérios legais, evitando a sua manipulação em função de meros interesses particulares. Ainda que não deixe de constituir uma questão marginal, a racionalização dos recursos humanos e materiais apela a uma correta aplicação dos critérios legais na fixação do valor do processo, tal como apela a necessidade de cada parte contribuir de forma proporcionada para a prestação dos serviços judiciários que a resolução de qualquer litígio de direito privado implica.

O certo é que, apesar disso, ou por isso, são frequentes as situações em que o valor processual indicado pelo A. ou aceite pela contraparte não corresponde a tais critérios, pecando umas vezes por excesso, quando se pretende acautelar o recurso ordinário nas diversas instâncias judiciárias, e outras por defeito, prosseguindo o objetivo de assim obter uma redução da taxa de justiça.

3. Até às alterações que o DL nº 303/07, de 24-8, introduziu no CPC de 1961 e que vigoraram a partir de 1-1-08, quando ocorria tal discrepância, era dado, por regra, relevo ao acordo expresso ou tácito das partes, intervindo o juiz apenas quando o acordo obtido pelas partes a esse respeito estivesse “em flagrante oposição com a realidade” (art. 315º, nº 1, do CPC de 1961, na versão anterior àquele diploma).

Na prática judiciária, a frequente passividade ou mesmo uma certa lassidão no controlo desse aspeto de natureza puramente adjetiva conduzia bastas vezes à sobreposição da vontade das partes aos critérios legais.

Foi esse resultado que o legislador pretendeu impedir com medidas que foram introduzidas pelo DL nº 303/07 no CPC de 1961 e que se traduziram essencialmente na alteração do art. 315º, nº 1, que passou a impor ao juiz, em todos os processos, a verificação do valor processual, independentemente da posição assumida pelas partes.

Esta solução transitou depois para o art. 306º do CPC de 2013, e foi precisamente ao abrigo dessa disposição que o Mº Juiz de 1ª instância - e muito bem - começou por questionar a A. sobre o critério que adotara na indicação do valor processual, para de seguida, desatendendo o critério que fora exposto, o fixar em € 10.144.386,21, de acordo com o previsto no art. 297º, nºs 1 e 2, e na regra geral do art. 296º, nº 1, do CPC. Deste modo, ultrapassou por larguíssima margem o “valor de conveniência” que a A. indicara: € 30.000,01 (fls. 626 e ss.).

Os argumentos que foram empregues nessa decisão e que a Relação veio a confirmar e a reforçar partem da consideração de que se trata de uma ação em que a A. pretende obter a condenação dos RR. num montante que poderá atingir a soma do capital de € 9.858.490,00 com os juros remuneratórios de € 285.896,21 e juros vencidos e vincendos desde 13-8-14, à taxa legal, sendo desconsiderada a eventualidade de o A. vir a obter o reembolso de algum capital que investiu no âmbito de um processo de liquidação da entidade com quem contratou

3. Antes de se avançar, fixemo-nos no relevo do valor processual para efeito de determinação da taxa de justiça, pois é este o principal aspeto que releva destes autos, já que de uma forma ou de outra não está em causa o acesso ao 3º grau de jurisdição.

Nos termos do art. 297º, nº 3, do CPC, o valor tributário é determinado pelos critérios constantes do RCP cujo art. 11º prescreve que, em regra, corresponde ao valor processual. É a partir desse valor que se calcula a taxa de justiça que cada parte deve pagar (com o limite máximo que emerge do art. 6º, nº 7, do RCP).

Daqui decorre que a operação de fixação do valor processual é anterior à do valor tributário, ainda que este possa ser determinado por aquele. Podendo a taxa de justiça ser calculada a partir de outros fatores enunciados no RCP e Anexos, como ocorre nos casos previstos no art. 12º, o critério-base que atribui relevo ao valor processual acaba por ter a vantagem da objetividade. Aliás, também em princípio, existe uma certa correspondência entre o valor do processo e a complexidade ou a morosidade da tramitação processual ou as dificuldades que rodeiam a resolução dos litígios.

Seja como for, num modelo em que a administração da justiça é, em regra, remunerada, a taxa de justiça constitui a contrapartida devida ao Estado pela prestação dos serviços judiciários, na certeza de que, para situações de carência económica, existe o instituto do apoio judiciário e para outras em que se revele um diferencial significativo entre o valor da taxa de justiça e a complexidade do processo, está prevista a possibilidade de o juiz dispensar ou reduzir o montante da taxa de justiça remanescente, nos termos do art. 6º, nº 7, do RCP.

O debate entre um sistema de justiça gratuita e outro que admita o seu custeio pelos interessados diretos já é antigo e encontra-se exposto por Alberto dos Reis no CPC anot., vol. II, p. 199, que conclui, como o fizeram outros autores estrangeiros aí mencionados, que, sem prejuízo de o Estado inscrever no Orçamento Geral as verbas necessárias ao funcionamento dos tribunais, os litigantes não devem ficar dispensados do pagamento de taxa que tenha correspondência com os serviços prestados. Esse debate tem prosseguido e envolveu já diversas intervenções do Tribunal Constitucional que sempre tem mantido que não existe motivo para assacar ao regime geral que vigora qualquer violação de regras ou princípios constitucionais, sem embargo de num ponto ou outro ter verificado essa desconformidade, como ocorreu antes da previsão da norma limitadora da taxa de justiça que agora constitui o art. 6º, nº 7, ou, mais recentemente (com força obrigatória geral), com a obrigatoriedade de a parte vencedora pagar o remanescente da taxa de justiça, nos termos do disposto no art. 14º, nº 9 (Ac. nº 615/2018) ou ainda com o disposto no art. 33º, nº 2, da Portaria nº 419-A/09, de 17-4 (Ac. 73/2019) que obrigava ao depósito de 50% do valor da nota de custas como condição para a reclamação.

Não é, pois questionável que, devido a razões de justiça distributiva, exista uma relação de proporcionalidade entre o valor tributário e o valor da taxa de justiça que cada parte suporta ao longo da tramitação processual, de acordo com critérios, as tabelas ou os limites objetivos que constam do RCP.

Daí a necessidade, que foi imposta pelo legislador, de se aferir casuisticamente se o valor processual indicado pelo autor ou o acordado pelas partes, está ou não em consonância com os critérios legais, independentemente da repercussão que determine no valor da taxa de justiça que lhe esteja associado.

 

4. A A. considera que, diversamente do que decidiram as instâncias, o valor do processo no caso sub judice deve ser encontrado a partir da aplicação do critério previsto no art. 299º, nº 4, do CPC, e não do art. 297º, plataforma de onde parte para concluir que, faltando elementos mais concretos, o valor (bem conveniente, aliás) deve ser fixado por ora em € 30.000,01, ficando a sua determinação final dependente do que vier a ser reembolsado relativamente ao investimento que está em causa nos autos, através do processo de liquidação da entidade que menciona.

É uma argumentação algo engenhosa, mas sem capacidade para ultrapassar as dificuldades que objetivamente emergem da pretensão que deduziu e que estabelece a base para a determinação do valor processual de acordo com as regras adjetivas para o efeito estabelecidas.

4.1. Comecemos pela identificação do critério a que deve obedecer a indicação e a fixação do valor: se o do art. 299, nº 4, se o do art. 297º, nº 1, do CPC.

Em certos casos, como sucede em todos os processos de liquidação de patrimónios (v.g. insolvência e inventário) ou no processo especial de prestação de contas, a liquidação do valor económico é resultado da evolução da tramitação processual.

O mesmo pode acontecer quando ao autor é legítimo formular pedidos integralmente genéricos, como prescreve o art. 556º do CPC, incluindo os casos em que pretenda usar da faculdade excecional conferida pelo art. 569º do CC.

Em todas estas situações, o valor inicialmente indicado está sujeito a revisão em função das vicissitudes posteriores, designadamente da liquidação que venha a ocorrer antes da audiência de julgamento ou na sentença final, nos termos do art. 299º, nº 4, do CPC.

Ao abrigo do art. 556º do CPC e do art. 569º do CC, a A. poderia ter deduzido um pedido genérico., ainda que nem assim tivesse suporte o valor conveniente de € 30.000,01. Porém, a A. optou por colocar uma fasquia máxima para o seu pedido de condenação correspondente ao valor do interesse económico.

Esta opção poderia legitimar que, para efeitos de indicação do valor, se partisse do valor dos prejuízos, procedendo ao abatimento do montante que prospectivamente poderia ser obtido na liquidação da entidade emitente. Todavia, não autoriza uma metodologia inversa, e bem mais favorável à A., de reduzir ao mínimo conveniente o valor, apesar das dúvidas que coloca quanto ao recebimento de alguma quantia.

O facto de tal valor poder ser reduzido em função de evento futuro e incerto ligado ao processo de liquidação da entidade emitente do produto financeiro, não contradiz os pressupostos da aplicação obrigatória do critério legal ínsito no art. 297º do CPC.

4.2. O caso dos autos não merece tratamento diverso de um outro qualquer em que um autor, podendo demandar diversos réus em regime de litisconsórcio, com fundamento em obrigação solidária, opta por demandar cada réu em ações autónomas, exigindo de cada um (por via da solidariedade subjacente) o montante global. Em tais circunstâncias hipotéticas, ainda que não possa receber em duplicado o montante do seu crédito, o valor processual e os encargos inerentes a cada processo não fica dependentes do facto de o autor vir a receber ou não alguma quantia ao abrigo de um ou de outro processo.

Este exemplo acentua a ideia de que, salvo nos casos em que o autor opta por um pedido genérico (ou seja, por um pedido que não está quantificado), o valor do processo é fixado com base nos elementos que se recolhem dos articulados, em confronto com os critérios legais, mantendo-se depois disso inalterado e sem interferência de qualquer outra circunstância posterior àquela fixação.

Deste modo, o valor do processo não pode deixar de ser fixado, como assumiram as instâncias, tendo por base o valor da indemnização que vem peticionada pelo A. Para além de serem muito remotas - segundo a própria A. - as hipóteses de receber alguma reembolso do seu investimento em resultado da liquidação da referida entidade, o que surge como relevante para o caso é o facto de a ação visar discutir o direito da A. correspondente ao montante do capital e dos juros remuneratórios e moratórios, nos termos do art. 297º, nºs 1 e 2, do CPC.

4.3. Mas ainda que porventura fosse caso de aplicação do critério previsto no art. 299º, nº 4, para os pedidos genéricos, ainda assim, o valor inicial (provisório) a indicar pela parte e sujeito a verificação pelo juiz não poderia conduzir ao valor de € 30.000,01.

Trata-se de um valor que emerge de um critério arbitrário, tributário de meras razões de conveniência, no qual se manifesta a conjugação do máximo benefício (recorribilidade sem os entraves derivados do valor da causa), com o menor custo (redução do valor das taxas de justiça).

Ao invés, mesmo nas circunstâncias em que a utilidade económica imediata do pedido (art. 296º) ainda não é quantificável em termos objetivos, dependendo de vicissitudes posteriores (art. 299º, nº 4, do CPC), o valor processual deve ser fixado, ainda que provisoriamente, a partir dos elementos objetivos que já decorram dos autos, sendo submetido a ajustamentos quando o processo fornecer outros elementos reveladores do real interesse económico da ação.

Ou seja, o preceituado no nº 4 do art. 299º alude à modificação do valor inicialmente aceite, o que não se confunde com o valor inicialmente indicado, a significar, pois, que mesmo nestes casos, o juiz não deixará de verificar o valor indicado pelo autor, o que apenas poderá ser feito através da aplicação dos outros critérios com especial destaque para a regra do art. 296º e para o critério objetivo do art. 297º.

Ora, para este efeito, não poderia deixar de se atribuir relevo - relevo incontornável - ao valor que a própria A. indica como correspondente ao seu prejuízo patrimonial (v.g. arts. 476º, 512º, 514º, 515º, 517º, 538º ou 598º da petição inicial), mesmo no contexto de alguma incerteza – pouca, aliás – que continua a pairar sobre o sucesso da sua pretensão creditícia no processo de liquidação da entidade emitente do valor mobiliário.

Por outro lado, não poderiam deixar de ser considerado o que a própria A. alegou sobre o eventual reembolso do capital investido, sendo certo é a própria A. que põe em dúvida que venha a receber na liquidação da entidade emitente o reembolso parcial do seu investimento, o que a levou a demandar de imediato os RR. para obter o ressarcimento do seu prejuízo ao abrigo das regras que sugerem a responsabilidade civil extracontratual (arts. 477º e ss. da petição) ou do enriquecimento sem causa (v.g. arts. 528º e ss.).

A fls. 3 das alegações alude à “possibilidade de algo ainda poder recuperar do montante investido”, alegação que a seguir evoluiu para uma situação de dúvida ainda maior, já que aludiu ao “produto da liquidação que caberá à Requerente (se algum houver)” (sic).

A flexibilidade do valor processual em tais situações não autoriza o autor a indicar um valor arbitrário, continuando a obedecer à regra geral que consta do art. 296º, nº 1, nos termos da qual o valor se afere através da utilidade económica imediata do pedido, a qual é determinada em função dos elementos que em cada momento se mostrem disponíveis.

Por conseguinte, ainda que porventura estivéssemos perante uma situação suscetível de se enquadrar na regra especial do nº 4 do art. 299º, na fixação do valor processual intercalar entrariam os elementos objetivos que relevam dos autos e que refletem o valor económico em causa na ação. De modo algum se justificaria o recurso ao critério a que a A. se apegou e que especificamente foi criado para as ações em que se discutem interesse imateriais (art. 303º do CPC), sem qualquer conexão com o caso concreto e, além disso, sem qualquer ligação à realidade litigada, ao interesse económico subjacente e ao objetivo final procurado pela A.

A pressão que a A. pretende fazer em torno da aplicação do valor provisório de € 30.000,01 resultante do art. 303º, ou mesmo do valor de € 50.000,01 a que a lei atribui reflexos na atribuição da competência aos Juízos Cíveis Centrais não esconde a marca da pura arbitrariedade ou das meras razões de conveniência subjetiva, ficando longe – muito longe, aliás - do plafond que serve limitador à liquidação da taxa de justiça que a lei fixou em € 275.000,00 (art. 6º, nº 7, do RCP).

5. Não fazem sentido os argumentos invocados pela recorrente. Foram recolhidos de acórdãos da Relação de Lisboa que citou.

Tal serviu de fundamento á admissibilidade deste recurso de revista que, noutras circunstâncias, não ultrapassaria a barreira do art. 671º, nº 1, do CPC, mas não basta para afirmar a sua correspondência com o que decorre do ordenamento jurídico.

A argumentação empregue em tais arestos denota, aliás, que numa questão de natureza essencialmente objetiva que deveria ser tratada com objetividade interferiram elementos fluidos e com marcada condescendência, sem suporte nos critérios interpretativos das normas legais.

Ora, foi o legislador que fixou os critérios determinativos do valor processual (ainda que com reflexos no valor tributário) e a eles devem os tribunais obedecer dentro dos limites constitucionais.

Menos sentido faz o recurso à equidade a que a recorrente e os referidos acórdãos também fazem apelo, pois um tal instrumento de realização do direito material não está inscrito nos poderes do juiz para este efeito processual, além de não se coadunar de modo algum nem com o elevadíssimo valor dos interesses patrimoniais inerentes à presente ação, nem com o facto de se tratar de uma ação a que subjaz uma operação financeira realizada por uma sociedade anónima (holding com sede no Panamá) que aplicou cerca de 10 milhões de Euros.

6. Também não faz sentido o apelo que a A. faz a regras ou princípios constitucionais em matéria de acesso aos tribunais, importando que se estabeleça uma delimitação clara entre o valor processual e as exigências legais de natureza tributária.

Ainda que o valor processual interfira no valor tributário (art. 11º do RCP), não podem assimilar-se os dois fatores que são autónomos: o valor processual obedece a critérios objetivos que constam do CPC, ao passo que as questões relacionadas com o acesso ao tribunal por via do pagamento de taxas de justiça encontram regulação noutros diplomas. É o valor do processo que pode determinar o valor tributário e não o inverso. Não existe qualquer fundamento legal que permita estabelecer o valor processual a partir do valor tributário ou a partir da taxa de justiça que em função deste valor deve ser paga.

Aliás, como já se disse, o RCP contém mecanismos que visam tutelar razoavelmente o direito de acesso aos tribunais, designadamente nos termos que resultam do art. 6º, nº 7, de onde deriva que a taxa de justiça a pagar por cada parte ao longo do processo não é calculada invariavelmente a partir do valor tributário, estabelecendo-se para este efeito o valor máximo de € 275.000,00.

Por outro lado, o pagamento da taxa de justiça remanescente apenas será exigível em momento ulterior, nos termos do art. 14º, nº 9 (sendo dispensado se acaso a A. obtiver vencimento total, como decidiu recentemente o Trib. Constitucional). Ademais, pode ser dispensado ou alvo de redução por via de decisão judicial (art. 6º, nº 7). Por fim,  em casos extremos, pode ser concedida dispensa de pagamento de taxa de justiça de acordo com o regime do apoio judiciário.

Deste modo, é incorreto colocar no mesmo plano uma questão de natureza objetiva, como o valor processual, e aspetos de natureza parafiscal que são objeto de regulamentação específica noutros preceitos em função das circunstâncias que o legislador, em obediência a diretrizes de ordem constitucional, assegurou.

7. Deve, pois, confirmar-se o que as instâncias decidiram, tal como já se decidiu também num caso semelhante que foi apreciado no Ac. do STJ de 31-1-19, 21190/16, em que o ora relator interveio como adjunto.

III – Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista, confirmando o acórdão recorrido.

Custas da revista a cargo da A. recorrente.

Notifique.

Lisboa, 7-3-19


Abrantes Geraldes

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo