Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1407/13.9TACBR.C1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: MAIA COSTA
Descritores: RECURSO PENAL
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVEL
DANO BIOLÓGICO
INCAPACIDADE PERMANENTE PARCIAL
Data do Acordão: 10/18/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
Doutrina:
- João Álvaro Dias, Dano corporal, Quadro epistemológico e aspectos ressarcitórios, Revista Portuguesa do Dano Corporal, Ano X, n.º 11, p. 37-75 e 113-158;
- Maria da Graça Trigo, Responsabilidade Civil, Temas Especiais, p. 78-82.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 496.º, N.º 1 E 564.º, N.ºS 1 E 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 07.02.2002, PROCESSO N.º 3985/01;
- DE 17.12.2009, PROCESSO N.º 340/03.7TBPNH.C1.S1;
- DE 27.10.2009, PROCESSO N.º 560/09.0YFLSB;
- DE 23.11.2010, PROCESSO N.º 456/06.8TBVGS.C1.S1;
- DE 02.01.2012, PROCESSO N.º 220/2001.L1.S1;
- DE 28.01.2015, PROCESSO N.º 142/05.6SRLSB.L1.S1.
Sumário :
I  -   O dano biológico não é um tertium genus, indemnizável só por si, antes um dano-evento, gerador de danos patrimoniais e/ou não patrimoniais, servindo essencialmente para fundamentar a indemnização por danos patrimoniais em caso de não diminuição de rendimentos apesar de verificação de uma IPP.
II -  A ressarcibilidade dos danos é disciplinada no CC português em termos de distinção entre os danos patrimoniais, que abrangem os danos emergentes e os lucros cessantes (art. 564.º, n.º 1, do CC), e os danos não patrimoniais (art. 496.º, do CC).
III - Os danos patrimoniais futuros também devem ser indemnizados, desde que previsíveis (art. 564.º, n.º 2, do CC). Estabelece ainda o mesmo preceito que se os danos não forem determináveis a fixação da indemnização será remetida para decisão ulterior.
IV -      O conceito de dano biológico, oriundo do direito italiano, fez caminho na nossa jurisprudência apesar de não existir no nosso direito o problema com que se defrontava o direito italiano no ressarcimento dos danos não patrimoniais, pois no nosso sistema todos os danos não patrimoniais devem ser indemnizados (ou compensados) desde que possam ser considerados “graves” (citado art. 496.º, n.º 1, do CC), cláusula suficientemente ampla para abranger nomeadamente as situações acima referidas de incapacidade permanente que determina maior penosidade na realização das tarefas quotidianas.
V - O conceito de dano biológico não exprime uma categoria autónoma de dano, um tertium genus relativamente aos danos patrimoniais e não patrimoniais, constitui um mero dano-evento, gerador desses danos-consequência. Insiste-se: o interesse do conceito será meramente operativo, na medida em que permitirá uma identificação mais exaustiva das diversas componentes do dano-evento, para permitir uma integral indemnização das mesmas.
VI - O conceito de dano biológico revelou-se, é certo, especialmente apto a identificar duas componentes do dano-evento: a perda de capacidade laboral e o aumento de penosidade no exercício de funções laborais ou tarefas pessoais sem reflexo no rendimento do lesado. É nesta perspectiva que se aceita a relevância do conceito de dano biológico.
VII - Não se pode aceitar que uma incapacidade parcial permanente represente, em si mesma, quer afecte quer não a capacidade laboral, um dano patrimonial futuro, que acresça aos danos não patrimoniais.
VIII - A perda de qualidade de vida resultante da IPP, só em si mesma considerada, não se provando perda de rendimentos ou de capacidade laboral futura, não pode ser simultaneamente indemnizada como dano patrimonial e não patrimonial.
Decisão Texto Integral:                            


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

            I. Relatório

           AA foi condenado pela Secção Criminal da Instância Local de ..., por sentença de 9.6.2016, como autor material de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148°, n° 1, do Código Penal, na pena de 90 dias de multa à razão diária de € 7,50.

Foi ainda julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por BB contra a Companhia de Seguros CC, que foi condenada a pagar àquela a quantia de 1 819,28 € a título de danos patrimoniais e de 20 000,00 a título de danos não patrimoniais.

Desta sentença recorreram para o Tribunal da Relação de Coimbra o arguido, a demandante e a Companhia de Seguros CC. Por acórdão de 8.2.2017, este tribunal decidiu:

a) negar provimento ao recurso do arguido;

b) negar provimento ao recurso da recorrente Companhia de Seguros CC quanto à diminuição da indemnização fixada a título de danos não patrimoniais, mantendo o valor de 20 000,00 €;

c) julgar procedente o recurso da demandante BB quanto à fixação da indemnização a título de danos patrimoniais (dano biológico) e consequentemente condenar a demandada Companhia de Seguros CC a pagar-lhe a quantia de 1 819,28 € a título de danos patrimoniais stricto sensu e de 25 000,00 € a título de danos patrimoniais pelo “dano biológico”.

Deste acórdão recorreu DD, SA, atual denominação social da Companhia de Seguros CC, para este Supremo Tribunal, alegando em conclusão:

1 - A recorrente não se conforma com a decisão que a condenou a pagar à demandante BB a quantia de 25.000,00€, a título de compensação pelo dano biológico não compreendido no dano não patrimonial já fixado por sentença;

2 - Salvo o devido respeito por opinião diversa, entende a recorrente que a indicada verba se mostra indevida, devendo a recorrente ser absolvida desta parte do pedido.

3 - O Tribunal da Relação de Coimbra decidiu atribuir à recorrida uma indemnização pelo restante dano biológico não compreendido no dano não patrimonial, o valor de 25.000,00€, em virtude da sua perda de qualidade de vida e do seu nível de vida.

4 - Para avaliar tal núcleo de danos (que a decisão recorrida não concretiza), a decisão recorrida baseou o seu julgamento de natureza claramente equitativa num raciocínio lógico-dedutivo efectuado a partir da análise dos custos em que a demandante incorreria com a necessidade de terceira pessoa, numa média de duas horas diárias, a um valor de seis euros à hora e durante os 11 anos de esperança média de vida que lhe restam à data do acidente.

5 - Assim, o Acórdão recorrido, deixando de esclarecer, em concreto, qual o núcleo de danos a indemnizar nesta sede, não contido nos danos por ele indemnizados a título de danos não patrimoniais, concluiu que a quantia de 25.000,00€, peticionada pela demandante, não fere nem choca o superior critério da equidade, até por corresponder tão-somente “a metade do valor que a demandante terá que gastar para ver assegurada a ajuda de terceira pessoa”.

6 - Sucede que a demandante não logrou provar nos autos que necessita de apoio de terceira pessoa, durante duas horas diárias, como forma de superar as suas limitações físicas, que necessita do apoio de terceira pessoa para a ajudar nas diversas tarefas, quer sejam domésticas, quer sejam de natureza pessoal.

7 – A autora invocou que padecia deste mesmo prejuízo, mas não demonstrou o seu pressuposto basilar: carecer efectivamente de terceira pessoa.

8 - Deste modo, e salvo o devido respeito por opinião diversa, não parece à recorrente fazer quer sentido estribar a decisão ora sob recurso, a qual reveste uma natureza puramente equitativa, em factos que a recorrida não logrou provar.

9 - Não existe qualquer relação entre o alegado núcleo de danos que o Tribunal da Relação de Coimbra considera não incluídos na indemnização que arbitrou à demandante, a título de danos não patrimoniais, e o montante que ora atribuiu à demandante, sob capa de um juízo dito equitativo, para a indemnizar desses mesmos danos

10 - A respeito da parcela do dano biológico que o Tribunal da Relação de Coimbra ora entendeu indemnizar à demandante, mediante o arbitramento da quantia de 25.000,00€, não se provaram outros factos senão aqueles que foram também considerados para indemnizar a autora pelos danos não patrimoniais emergentes deste sinistro.

11 - Por tal motivo, a decisão de condenação da aqui recorrente no pagamento à recorrida da quantia de 25.000,00€, pelo remanescente do seu dano biológico não contemplado na indemnização por danos não patrimoniais, viola claramente o preceituado no sobredito n.º 3 do artigo 566º do C. Civ.

12 - Tal decisão, por ser manifestamente injusta e não dispor de fundamento de facto ou de direito, deve ser revogada e substituída por outra que absolva a recorrente desta parte do pedido.

13 – Por outro lado, face à matéria de facto que resultou provada nos autos, crê a recorrente que a demandante não logrou demonstrar a existência de quaisquer outros danos subsumíveis no conceito do dano biológico que não tenham sido contemplados pela indemnização fixada pelo Tribunal recorrido a título de danos não patrimoniais.

14 - Parece à recorrente, salvo o devido respeito, que a decisão ora posta em crise assenta num jogo de palavras, por via do qual se surpreende sempre a mesma realidade, ou, se se quiser, os mesmos danos, já contemplados pela indemnização arbitrada pelo Tribunal por danos não patrimoniais.

15 - A perda de nível de vida da demandante, ou da sua qualidade, a que o douto Acórdão da Relação de Coimbra faz referência para justificar a existência de um núcleo de danos não contemplados por via do arbitramento de uma indemnização por dano não patrimonial, mais não é do que a concretização, na vida da demandante, das sequelas e limitações decorrentes do dano corporal por ela sofrido: são as limitações de movimentos, são as dores, são as dificuldades a caminhar e são, também, a necessidade do uso de uma bengala, a mágoa, o desgosto e a prostração que sente em virtude do défice funcional que emergiu o acidente dos autos.

16 – No entanto, tais limitações, dificuldades, dores, desgosto e prostração, que consubstanciam uma perda de qualidade de vida, ou do nível de vida, foram consideradas pelo Tribunal recorrido para justificar a manutenção da decisão que atribuiu a quantia indemnizatória de 20.000,00€ à demandante, por danos não patrimoniais.

17 - Não consubstanciam, porém, em si mesmas, uma categoria autónoma de danos, distinta da de “danos não patrimoniais” e que deva ser indemnizada separadamente.

18 – Tais danos ou padecimentos, que se traduzem em danos não patrimoniais, devem ser compensados mediante a atribuição de uma quantia que sirva de lenitivo/compensação à lesada, por deles padecer ou ter padecido, tal como os demais danos não patrimoniais.

19 - Por conseguinte, também por este motivo deve a decisão de condenação ora em apreço ser revogada e substituída por outra que a absolva desta parte do pedido. 

 20 - Tal decisão viola o preceituado no artigo 566º do Código Civil.

Contramotivou a demandante BB nos seguintes termos:

1. Atendendo à matéria de facto provada é inequívoco que: i) a demandante viu afetada a sua integridade física e psicossomática, as suas potencialidades e a sua qualidade de vida; ii) a demandante, em consequência do acidente, viu o seu viver quotidiano afetado, a sua vida social e sentimental; iii) a demandante cível perdeu qualidades físicas.

2. No presente caso, estamos perante um dano corporal, emergente de acidente de viação, com extensão, incidências, consequências e reflexos diversos, não apenas no presente, mas também no futuro, merecedor de especial atenção, já que os efeitos danos se projetam no futuro.

3. Por dano deve entender-se a "privação dum ou mais benefícios, concretamente considerados ou de uma generalidade de benefícios, motivada pela colocação do bem, com o qual era lícito ao prejudicado atingir esse benefício, em situação de ele não o poder utilizar para tal fim."

4. A doutrina e a jurisprudência são unânimes em atribuir ao lesado uma indemnização para reparação do dano futuro, mesmo que o lesado não exerça à data do acidente qualquer profissão e é devida mesmo que não se prove ter resultado da incapacidade física diminuição dos proventos da vítima.

5. A afetação da pessoa do ponto de vista funcional, na envolvência do que vem sendo designado por dano biológico, determinante de consequências negativas a nível da sua atividade geral, justifica a indemnização no âmbito do dano patrimonial, para além da valoração que se imponha a título de dano não patrimonial.

6. A incapacidade funcional numa perspetiva geral da indemnização implica a ressarcibilidade, enquanto dano patrimonial futuro, o qual compreende as utilidades futuras e as simples expetativas de aquisição de bens.

7. A recorrente, não obstante estar reformada, se precisar de trabalhar, a sua aptidão funcional está comprometida, havendo para este efeito, que ponderar todo o tempo de vida expetável.

8. O dano biológico, resulta da afetação da integridade psicossomática, devendo ser primordialmente qualificado como dano patrimonial se o acidente causou no lesado sequelas físicas permanentes, como acontece no caso em apreciação, no futuro terão repercussão na atividade física da lesada.

9. A incapacidade parcial permanente afetando, ou não, a atividade laboral, representa, em si mesma, um dano patrimonial futuro, nunca podendo reduzir-se à categoria dos danos não patrimoniais.

10. A lesada, em virtude das lesões causadas pelo acidente, viu as suas capacidades físicas consideravelmente diminuídas, o que se repercute na sua qualidade de vida, incluindo do ponto de vista psicológico.

11. Os danos patrimoniais futuros não determináveis deverão ser fixados com a segurança possível e a temperança própria da equidade, sem adesão a critérios ou tabelas puramente matemáticas, pelo que, é justa e adequada, para ressarcibilidade dos danos patrimoniais futuros, a compensação de 25.000,00 euros que foi atribuída no Tribunal recorrido.

12. Devem, pois, ser julgadas improcedentes todas as conclusões do recurso interposto pela demandada.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II. Fundamentação

A recorrente DD, SA, impugna o acórdão da Relação na parte em que a condenou no pagamento de uma indemnização a título de danos patrimoniais por dano biológico no montante de 25 000,00 €, sustentando, em síntese, que os factos considerados para o ressarcimento autónomo, a título de dano patrimonial, do “dano biológico” são afinal os mesmos que foram atendidos para a compensação por danos não patrimoniais, devendo portanto ser absolvida dessa parte do pedido, a que a Relação deu acolhimento.

É a seguinte a matéria de facto fixada:

            1 – No dia 12 de Junho de 2013, pelas 13H10, na Rua do Brasil, em Coimbra, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros (de serviço de táxi) com a matrícula ...;

                2 – Fazia-o no sentido Calhabé – Estação Parque;

                3 – A via, no local, é de traçado recto;

                4 – Com duas hemi-faixas de rodagem;

                5 – Uma no sentido seguido pelo arguido e outra no sentido oposto;

                6 – O piso era asfaltado;

                7 – E encontrava-se em bom estado de conservação;

                8 – O piso apresentava-se seco;

                9 – O tempo estava seco;

                10 – Junto ao n.º 530 daquela rua existe, assinalado no pavimento, um local próprio para travessia de pessoas a pé, vulgarmente denominado “passadeira”;

                11 – Tal local encontrava-se assinalado com sinais verticais;

                12 – Na ocasião havia luz natural;

                13 – Não se verificavam obstáculos físicos que impedissem a visualização desafogada de tal local por parte do arguido;

                14 – A via encontra-se localizada no interior da cidade de Coimbra;

                15 – O local é, usualmente, de muito movimento de pessoas e veículos;

                16 – E situa-se próximo de zona residencial e comercial;

                17 – Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, BB efectuou, a pé, a travessia da via;

                18 – No supra referido local destinado à travessia de peões;

                19 – Da direita para a esquerda, atento o sentido de marcha seguido pelo arguido;

                20 – E depois de se ter certificado que não existiam veículos nas proximidades;

                21 – Caminhando sobre o mencionado local destinado à travessia de peões;

                22 – Quando BB se encontrava a efectuar a travessia da faixa de rodagem, o arguido surgiu, imprimindo ao veículo que conduzia, velocidade não concretamente determinada, mas superior àquela que lhe permitisse efectuar a imobilização do veículo à aproximação da travessia de peões;

                23 – Na ocasião, o arguido não observava o trânsito dos outros veículos e dos peões;

                24 – O arguido veio a embater, com a parte frontal do veículo por si conduzido, em BB, caindo a mesma ao solo;

                25 – Quando a mesma se encontrava a efectuar a travessia da faixa de rodagem;

                26 – Ocorrendo o embate na hemi-faixa de rodagem por onde circulava o veículo conduzido pelo arguido;

                27 – E sobre o local destinado à travessia de peões;

                28 – Em consequência do embate e da subsequente queda, resultou, para BB: dores; as lesões examinadas e descritas nos autos de exame médico constantes de fls. 44 a 46 e 53 a 54 dos autos, cujo teor aqui se dá como integralmente reproduzido;

                29 – O que demandou, para consolidação, o período de 155 (cento e cinquenta e cinco) dias de doença, todos com afectação da capacidade de trabalho;

                30 – O arguido não prestou atenção para a existência ou não de peões a efectuar a travessia da faixa de rodagem, como podia e devia e lhe era exigível naquelas circunstâncias;

                31– Era do conhecimento do arguido que naquele local existia uma passagem para peões assinalada por sinal vertical;

                32 – O arguido podia e era capaz de imprimir ao veículo que conduzia um movimento inferior ao que levava;

                33 – O arguido não tem inscrita, no seu registo criminal, qualquer condenação;

                34 – O arguido tem inscritas, no seu registo individual do condutor, duas contra-ordenações, respeitantes a infracções praticadas em 10/05/2010 e em 19/06/2011, atinentes à condução de veículo automóvel em velocidade superior à permitida, a primeira fora de localidade e a segunda dentro de localidade;

                35 – O arguido é casado, vivendo na companhia da sua mulher;

                36 – O arguido encontra-se reformado, auferindo pensão de reforma no valor mensal de € 412,00;

                37 – Presta trabalho como motorista de táxis, com tal actividade obtendo o rendimento médio mensal de cerca de € 105,00;

                38 – A mulher do arguido não exerce actividade profissional remunerada;

                39 – O agregado familiar do arguido habita casa tomada de arrendamento, sendo a filha do arguido quem custeia o pagamento da respectiva renda;

                40 – O arguido é reputado, pela sua entidade empregadora e pelos seus colegas de trabalho, como bom trabalhador, zeloso e cumpridor;

*

                41 – À data de 12 de Junho de 2013, havia sido celebrado com a COMPANHIA DE SEGUROS CC, S.A., contrato de seguro, a respeito da responsabilidade civil emergente por danos causados a terceiros em consequência da circulação rodoviária do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..., titulado pela apólice com o n.º 0002410971;

   42 – Em consequência da colisão, BB foi socorrida pelo INEM;

                43 – O INEM prestou-lhe os primeiros socorros no local;

  44 – E transportou-a para os HUC (Hospitais da Universidade de Coimbra);

                45 – Depois de observada e radiografada, foi diagnosticada a BB fractura proximal dos ossos da perna esquerda e dos pratos da tíbia direita;

                46 – O que levou ao engessamento da perna esquerda;

                47 – BB ficou internada enquanto aguardava cirurgia;

                47 – Em consequência do referido embate, BB foi submetida a uma cirurgia em 21/06/2013;

 48 – Cuja consistiu na osteossíntese com placa da tíbia proximal do joelho esquerdo e imobilização com gesso cruro-podálico do membro inferior direito;

                49 – BB ficou internada no Bloco de Celas dos HUC (Hospitais da Universidade de Coimbra) até 09/07/2013;

                50 – No dia 09/07/2013, BB foi transferida para a Unidade de Convalescença Fernão Mendes Pinto, para fazer reabilitação activa e persistente dos membros inferiores;

   51 – Em 28/08/2013, BB foi transferida para a Residência do ..., onde fez fisioterapia;

                52 – BB foi presente a consulta externa de Ortopedia em 12/09/2013, na qual retirou o gesso e regressou com indicação para iniciar carga parcial com apoio de andarilho;

                53 – BB cumpriu plano de fisioterapia e deslocou-se a pé com auxílio de bengala;

                54 – BB teve alta, com apoio domiciliário, em 20/11/2013;

                55 – Necessitando, então, do auxílio de terceira pessoa;

    56 – Em consequência da colisão, BB apresenta uma “Incapacidade Parcial Permanente” (défice funcional permanente da integridade físico-psíquica) de 12 pontos;

                57 – BB nasceu em 22 de Janeiro de 1940;

                58 – À data de 12 de Junho de 2013, BB encontrava-se reformada;

  59 – Antes da colisão, BB gozava de saúde normal para a respectiva idade;

   60 – Era independente e vivia sozinha, executando por si e sem apoio as tarefas diárias domésticas e de higiene pessoal;

  61 – Na cidade de Coimbra o custo médio da hora de trabalho de uma pessoa para ajudar nas tarefas domésticas diárias é de € 6,00;

  62 – Com o internamento nas Residências ..., durante o período de convalescença, para efectuar a recuperação e fisioterapia, BB despendeu a quantia global de € 1.664,04, com o internamento nos meses de Agosto de 2013 (dos dias 28 a 31 de Agosto), Setembro, Outubro e Novembro de 2013 (do dia 1 a 20 de Novembro);

    63 – Com deslocações para as consultas de Ortopedia, do local onde estava internada (Residências Montepio) para o serviço de Ortopedia do Centro Hospital Universitário de Coimbra, BB despendeu a quantia de € 60,00, com o transporte de ambulância nos dias 22/10/2013 e 18/11/2013;

                64 – Com deslocações para a consulta externa de ortopedia aos HUC e ao Instituto de Medicina Legal, para realização de exame médico-legal, BB despendeu a quantia de € 11,75, com transporte em serviço de táxi, nos dias 12/03/2014 e 08/04/2014;

 65 – Com a medicação prescrita, BB despendeu o montante de € 12,38;

                66 – Em virtude do embate, BB despendeu o montante de € 30,00, com a realização de uma ecografia;

  67 – Para uso no período de convalescença, e conforme prescrição médica, BB teve que adquirir uma bengala e uns sapatos adequados, com o que despendeu o montante de € 41,11;

   68 – Desde a colisão até ao presente, BB sentiu angústia pelos ferimentos sofridos;

 69 – BB, em consequência da colisão, encontrou-se com défice funcional temporário total de 28 dias, correspondente ao tempo de internamento;

 70 – BB, em consequência da colisão, encontrou-se com défice funcional temporário parcial de 127 dias, correspondente ao restante período de tempo até à consolidação das lesões;

    71 – BB padeceu, desde a colisão até à consolidação das lesões, de um quantum doloris em grau 4, numa escala de 7 graus de gravidade crescente;

   72 – BB era, até à colisão, uma pessoa alegre, dinâmica, com gosto pela vida, vaidosa, gostava de sair, divertir-se, fazer as suas compras e executar as tarefas domésticas sozinha;

                73 – Em consequência do défice funcional que agora afecta BB sente mágoa, desgosto e prostração;

                74 – Actualmente, BB caminha com dificuldade, tendo a função de apoio dos membros inferiores ficado afectada;

                75 – O que torna necessário o uso de bengala;

                76 – Actualmente, BB sente dores;

                77 – Tem dificuldade em aceder aos transportes públicos;

                78 – Não consegue transportar cargas de peso superior a 5 kg, o que dificulta fazer as compras para casa;

                79 – Tem dificuldade em subir e descer escadas, o que cria restrições à sua mobilidade;

                80 – BB habita um 2.º andar sem elevador;

     81 – BB enfrenta dificuldades para fazer a sua higiene pessoal, nomeadamente tomar banho;

                82 – Em consequência da cirurgia decorrente da colisão, BB ficou com uma cicatriz de natureza cirúrgica, na face anterior do joelho esquerdo, com 18 cm de comprimento;

                83 – O que traduz um dano estético permanente fixável em grau 3, numa escala de 7 graus de gravidade crescente;

                84 – Tal circunstância envergonha e causa desgosto a BB, sentindo-se inferiorizada do ponto de vista estético.

                FACTOS NÃO PROVADOS:

                Não se provaram os seguintes factos:

     1 – BB tinha atravessado a quase totalidade da faixa onde o arguido seguia;

                2 – O arguido embateu, com o veículo por si conduzido, em BB, quando a mesma estava quase a terminar a travessia;

      3 – Em consequência da colisão, BB apresenta uma “Incapacidade Parcial Permanente” de 35%;

                4 – Desde a data do acidente até ao presente, a demandante tem estado incapacitada para exercer as suas actividades, tarefas domésticas e até mesmo a sua higiene pessoal, necessitando do apoio de terceira pessoa, durante duas horas diárias, como forma de superar as suas limitações físicas;

                5 – A demandante, no futuro, vai continuar impossibilitada de fazer o seu trabalho e a necessitar do apoio de terceira pessoa para a ajudar nas diversas tarefas;

     6 – De 12/06/2013 a 19/11/2013, BB padeceu de uma incapacidade temporária genérica total;

    7 – De 20/11/2013 a 30/06/2014, BB apresentou uma incapacidade temporária genérica parcial fixável em 80%;

                8 – Desde o acidente que a demandante está impossibilitada de fazer o seu trabalho, situação que permanecerá ao longo de toda a sua vida;

                9 – Vendo-se obrigada a contratar uma terceira pessoa para a apoiar em todas as tarefas, quer domésticas quer de higiene pessoal;

                10 – BB só pode fazer a sua higiene pessoal com a ajuda de terceira pessoa, o que a deixa vexada;

                Não se provaram outros factos com relevo para a decisão da causa.

A Relação justificou a sua decisão de dar provimento ao recurso da demandada quanto à indemnização pelo “dano biológico” da seguinte forma:

            Não sendo fácil definir a fronteira do que deve ser indemnizado a título de dano não patrimonial e a título de dano biológico, a verdade é que existem factos geradores de um dano não patrimonial típico e outros susceptíveis de gerar ou integrar o dito dano biológico.

                Mas, mais que esta preocupação de distinta qualificação ou integração nestas categorias de danos, o que deve ser levado em conta é a valoração de todos os factos e respectivos danos, mas sem dupla valoração.

                As dores, os incómodos, os transtornos, a mágoa, o desgosto, a prostração, as cicatrizes, o dano estético, a dificuldade geral de realizar mais penosamente as tarefas e outros, integram-se, em nosso entender, mais facilmente no dano não patrimonial.

                O facto de antes da colisão a demandante gozar de uma saúde normal para a respetiva idade, ser independente e viver sozinha, executando por si e sem apoio as tarefas diárias domésticas fazendo as compras e de higiene pessoal e após a colisão, a demandante passar a caminhar com dificuldade, tendo a função dos membros inferiores ficado afetada o que a obriga a usar bengala, ter dificuldade em aceder aos transportes públicos, não conseguir transportar cargas de peso superior a 5 kg, dificultando-a a fazer as compras para a casa e com dificuldade em subir e descer escadas, criando restrições à sua mobilidade, sendo certo que vive num 2º andar sem elevador e enfrentando dificuldades para fazer a sua higiene pessoal, nomeadamente tomar banho, sendo certo que todo este circunstancialismo tenderá a agravar-se com o decurso da idade da demandante para além de um grau ou coeficiente superior ao normal caso não tivesse sido vítima do acidente, integram-se, em nosso entender, no designado “dano biológico”.

                  E, não sendo diretamente um dano patrimonial concreto, deve ser visto como um dano, não só já existente no presente, na medida em que estas dificuldades e limitações já se fazem sentir, mas também futuro, tendencialmente a agravar-se, com reflexos patrimoniais.

                Na verdade, a demandante perdeu qualidades físicas, o seu quotidiano está mais afetado quanto à realização das tarefas diárias e pessoais, perdeu visível qualidade de vida. Que pode vir a refletir-se no próprio nível de vida, nomeadamente com a necessidade de auxílio de terceira pessoa na execução de muitas tarefas que poderia realizar só por si. A que a cresce a dificuldade na própria mobilidade que, não só torna mais penoso o quotidiano da demandante como torna previsível a necessidade de auxílio ou despesas acrescidas nessa mesma mobilidade.

     Às dificuldades normais e naturais da idade, que são crescentes, há que somar agora, as emergentes da colisão de que foi vítima.

 Este dano, como bem fundamenta a demandante com jurisprudência vária, é indemnizável a título de danos patrimoniais.

Apoia-se o acórdão da Relação numa corrente jurisprudencial que considera o denominado “dano biológico” um dano autónomo, ressarcível a título de dano patrimonial.

Este conceito foi introduzido em Portugal pela doutrina, nomeadamente por João Álvaro Dias, no seu artigo “Algumas considerações sobre o chamado dano corporal”[1], que data de 2001, depois desenvolvido na sua obra Dano corporal - Quadro epistemológico e aspectos ressarcitórios[2], do mesmo ano.

Parte este autor da premissa de que “o direito à saúde ou dano corporal, como componente central do dano à pessoa, configura-se assim como um tertium genus com a sua natureza específica que não se esgota nem num qualquer dano patrimonial em sentido estrito (v.g. casos de incapacidade permanente ou temporária mas com repercussões sobre a atividade laboral) nem num simples dano moral (bastante restrito nos seus pressupostos de admissibilidade ressarcitória.)”[3] 

Chama o mesmo autor a atenção para as situações de pequenas incapacidades permanentes para daí retirar a importância e operacionalidade do conceito de dano biológico: “Nunca será excessivo sublinhar que o plano em que nos movemos é o da avaliação das lesões à integridade anátomo-funcional ou deficit fisiológico (ou, se se preferir, incapacidade parcial permanente no sentido do direito comum) e as eventuais repercussões sobre a diminuição ou perda de autonomia (problema situacional) com a virtual necessidade de recurso a ajudas técnicas ou a terceiras pessoas. A incapacidade para o trabalho ou inaptidão para o trabalho, genérica ou específica, é outro e bem distinto problema.”[4]

O dano biológico (ou corporal), enquanto lesão do direito constitucional à saúde, seria pois digno de reparação autónoma, independentemente dos danos patrimoniais (lucros cessantes e danos emergentes) e das dores e sofrimentos do lesado.

Esse conceito nasceu no direito italiano, e recebeu acolhimento jurisprudencial sólido nesse país a partir da sentença nº 184, de 14.7.1986, do Tribunal Constitucional, que “construiu” um direito à reparação do “dano biológico”, entendido como lesão do direito constitucional à saúde (um direito fundamental do cidadão, distinto do interesse da coletividade na promoção da saúde), a indemnizar de forma autónoma quer do dano por perda de rendimento, quer dos danos não patrimoniais.[5]

A decisão do Tribunal Constitucional italiano compreendia-se no âmbito do direito desse país, no qual, a uma cláusula muito ampla do princípio geral da responsabilidade civil (art. 2043 do Código Civil, que se basta com a verificação de um “dano injusto” causado a outrem) corresponde uma proteção muito restrita dos danos não patrimoniais, pois o art. 2059 do CC determina que esses danos (os danos morais subjetivos) apenas são ressarcidos quando a lei o impuser. Subtrair a indemnização do dano corporal ao art. 2059, e consequentemente à sua qualificação como dano não patrimonial, era a solução adequada para assegurar a indemnização desse dano.

Contudo, essa posição foi posteriormente abandonada em Itália. Na verdade, em 2003, o Tribunal Constitucional italiano, na sentença nº 233, de 11.7.2003, afirma claramente: “… pode considerar-se ultrapassada a afirmação tradicional segundo a qual o dano não patrimonial previsto no art. 2059 do Código Civil se identificaria com o chamado dano moral subjetivo. Em duas recentes decisões do Tribunal de Cassação, que têm o incontestável mérito de reconduzir à racionalidade e à coerência o atormentado capítulo da tutela ressarcitória do dano à pessoa, vem assumida – no quadro de um sistema bipolar e danos patrimoniais e de danos não patrimoniais – uma interpretação constitucionalmente orientada do art. 2059 do Código Civil tendente a abranger na previsão abstrata da norma todos os danos de natureza não patrimonial derivados de valores inerentes à pessoa: quer o dano moral subjetivo, entendido como perturbação transitória do estado anímico da vítima; quer o dano biológico em sentido restrito, entendido como lesão do interesse, constitucionalmente garantido, à integridade psíquica e física da pessoa; quer por fim o dano (muitas vezes definido na doutrina e na jurisprudência como existencial) derivado da lesão de (outros) interesses de nível constitucional inerentes à pessoa.”[6]

Como diz Maria da Graça Trigo expressivamente: “Deste modo, verificou-se um retorno ao uso da dicotomia dano patrimonial/dano não patrimonial, considerando-se que o segundo é suficientemente amplo para nele se compreenderem consequências da lesão não avaliáveis pecuniariamente: os danos morais, bem como danos que correspondam à afetação de valores da pessoa constitucionalmente protegidos (o dito dano biológico e o dano existencial).”[7]

Em Portugal seguiu-se o caminho inverso, a partir de uma receção do conceito de “dano biológico” que ignorou o específico contexto em que ele fora forjado em Itália.

O Supremo Tribunal de Justiça vinha afirmando há muito que a repercussão da IPP na diminuição da condição física, resistência e capacidade de esforço do lesado, traduzindo-se numa deficiente capacidade de utilização do corpo no desenvolvimento das atividades pessoais em geral, e numa consequente maior penosidade, dispêndio de esforços e desgaste físico na execução das tarefas anteriormente desempenhadas regularmente, deveria ser indemnizada, por danos patrimoniais futuros, ainda que não se verificasse diminuição dos rendimentos atuais ou conjecturais futuros, ou seja, ainda que não houvesse perda ou diminuição da capacidade de ganho. Neste sentido, e recenseando jurisprudência anterior, veja-se o acórdão de 7.2.2002, proc. nº 3985/01 (Cons. Ferreira de Almeida).

Esta orientação mostrava-se pois apta a ressarcir as situações que o conceito de dano biológico visava assegurar.

Mas a adoção desse conceito, acolhido de forma acrítica, vai abrir as portas a uma imprecisão de conceitos e de soluções na jurisprudência, que acabou por redundar por vezes na admissão da ressarcibilidade do mesmo dano simultaneamente como dano patrimonial e dano não patrimonial, solução que se afigura de todo intolerável.

Contra essa tendência se insurgiu o acórdão de 17.12.2009, proc. nº 340/03.7TBPNH.C1.S1 (Cons. Custódio Montes) que recusa frontalmente o ressarcimento do dano biológico simultaneamente como dano patrimonial e dano não patrimonial, rejeitando que o dano biológico possa ser indemnizado a título de danos não patrimoniais, para além da indemnização da perda de ganho.

Por sua vez, o acórdão de 27.10.2009, proc. nº 560/09.0YFLSB (Cons. Sebastião Póvoas), recusando também a indemnização cumulativa do dano biológico, considerou: “O chamado dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como compensado a título de dano moral. A situação terá de ser apreciada casuisticamente, verificando se a lesão originou, no futuro, durante o período ativo do lesado ou da sua vida, e só por si, uma perda de capacidade de ganho ou se traduz, apenas, uma afetação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade. E não parece oferecer grandes dúvidas que a mera necessidade de um maior dispêndio de esforço e energia mais traduz um sofrimento psico-somático do que, propriamente, um dano patrimonial.”

Da mesma forma, o acórdão de 23.11.2010, proc. nº 456/06.8TBVGS.C1.S1 (Cons. Hélder Roque), aceitando a relevância do conceito de “dano biológico”, pronuncia-se igualmente pela não simultaneidade das duas vertentes dos danos: “Verificando-se o dano biológico, deverá o mesmo ser reparado e, eventualmente, deverá ser ressarcido, também, o dano patrimonial da redução da capacidade laboral, caso se demonstre a sua existência e o nexo de causalidade com o dano biológico. Ficando a autora com uma marcada intensidade, ao nível das sequelas psico-somáticas sobrevindas, como consequência necessária e direta do acidente que sofreu, muito embora sem se ter demonstrado qualquer quebra na sua capacidade de ganho, tendo sido afastado o rebate profissional, o dano biológico ocorrido é catalogável no quadro tipológico do dano moral, desde que um eventual acréscimo de esforço físico e/ou psíquico se não repercuta, direta ou indiretamente, no estatuto remuneratório profissional ou na sua carreira, em si mesma, e não se traduza, necessariamente, numa perda patrimonial futura ou na frustração de um lucro. O dano biológico pode ser ressarcido como dano patrimonial, ou compensado, a título de dano moral, mas não nas duas vertentes, simultaneamente, devendo a situação ser apreciada casuisticamente.”

Uma referência merece ainda o acórdão de 2.1.2012, proc. nº 220/2001.L1.S1 (Cons. João Bernardo). Vinha a ré condenada no pagamento de indemnização por danos patrimoniais futuros e por danos não patrimoniais. Pretendia o autor indemnização pelo dano biológico, que em seu entender acresceria ao resultante da IPP. O acórdão, partindo do entendimento do dano biológico como dano-evento, negou essa pretensão, produzindo as seguintes considerações como fundamentação: “O dano biológico merece, logo porque tem lugar, tutela indemnizatória, compensatória ou ambas; a extrema amplitude que o nosso legislador confere ao conceito de incapacidade para o trabalho, aliada à orientação sedimentada da jurisprudência de que é de indemnizar, quer esta leve a diminuição de proventos laborais, quer não leve, já o contempla indemnizatoriamente, ainda que noutro plano; do mesmo modo a relevância que a nossa lei confere aos danos não patrimoniais também aliada à amplitude deste conceito que jurisprudência vem acolhendo – englobando, nomeadamente os prejuízos estéticos, os sociais, os derivados da não possibilidade de desenvolvimento de atividades agradáveis e outros – já o contempla neste domínio. Pelo que a concetualização do dano biológico não veio ‘tirar nem pôr’ ao que, em termos práticos, já vinha sendo decidido pelos tribunais, quanto a indemnização pelos danos patrimoniais de caráter pessoal ou compensação pelos danos não patrimoniais; onde releva é na fundamentação para se chegar a tal indemnização, afastando as dúvidas que poderiam surgir perante a não diminuição efetiva de proventos apesar da fixação da IPP ou, em casos de verificação muito rara, como aqueles em que o lesado já estava totalmente incapacitado para o trabalho antes do evento danoso ou até, no que respeita aos danos não patrimoniais, em que ficou definitivamente incapacitado para ter consciência e sofrer com a sua situação.”

Convergentemente, diz o acórdão de 28.1.2015, proc. nº 142/05.6SRLSB.L1.S1 (Cons. Santos Cabral): “Por nós, estamos em crer que a importância ora atribuída ao dano biológico reflete vertentes importantes, mas não pode omitir a circunstância de que a lei já dispõe de amplos regimes de ressarcibilidade dos danos-consequência, quer de natureza patrimonial, quer de natureza não patrimonial, e que esta dicotomia mantém a mesma virtualidade apta a abarcar a totalidade dos efeitos de qualquer categoria de dano-evento. Ao conceito de dano biológico caberá, então, o papel resultante de salientar os componentes que o integram, conduzindo ao significativo alargamento da compreensão do âmbito dos prejuízos efetivamente sofridos pelas vítimas de factos geradores de responsabilidade civil delitual e não mais do que isso.”

Nesta perspetiva, o dano biológico não é um tertium genus, indemnizável só por si, antes um dano-evento, gerador de danos patrimoniais e/ou não patrimoniais, servindo essencialmente para fundamentar a indemnização por danos patrimoniais em caso de não diminuição de rendimentos apesar de verificação de uma IPP.

A ressarcibilidade dos danos é disciplinada no Código Civil português em termos de distinção entre os danos patrimoniais, que abrangem os danos emergentes e os lucros cessantes (art. 564º, nº 1, do CC), e os danos não patrimoniais (art. 496º do CC).

Os danos patrimoniais futuros também devem ser indemnizados, desde que previsíveis (art. 564º, nº 2, do CC). Estabelece ainda o mesmo preceito que se os danos não forem determináveis a fixação da indemnização será remetida para decisão ulterior.

Como vimos, o conceito de “dano biológico” fez caminho na nossa jurisprudência apesar de não existir no nosso direito o problema com que se defrontava o direito italiano no ressarcimento dos danos não patrimoniais, pois no nosso sistema todos os danos não patrimoniais devem ser indemnizados (ou compensados) desde que possam ser considerados “graves” (citado art. 496º, nº 1, do CC), cláusula suficientemente ampla para abranger nomeadamente as situações acima referidas de incapacidade permanente que determina maior penosidade na realização das tarefas quotidianas.

O conceito de dano biológico não exprime uma categoria autónoma de dano, um tertium genus relativamente aos danos patrimoniais e não patrimoniais, constitui um mero dano-evento, gerador desses danos-consequência. Insiste-se: o interesse do conceito será meramente operativo, na medida em que permitirá uma identificação mais exaustiva das diversas componentes do dano-evento, para permitir uma integral indemnização das mesmas.

O conceito de dano biológico revelou-se especialmente apto a identificar duas componentes do dano-evento: a perda de capacidade laboral e o aumento de penosidade no exercício de funções laborais ou tarefas pessoais sem reflexo no rendimento do lesado.

Mas essa função não impõe a autonomização do dano biológico, a sua conversão num tertium genus.

Como diz Maria da Graça Trigo: “Dispondo o direito português de alargados regimes de ressarcibilidade dos danos-consequência, quer de natureza patrimonial quer de natureza não patrimonial, e afigurando-se-nos que esta dicotomia se mantém apta a abarcar a totalidade dos efeitos de qualquer categoria de dano-evento, a rutura com a estrutura tradicional não traria vantagens particulares. Ainda assim, o estudo do dano biológico – que não a adoção do conceito como dano autónomo – reveste-se de potencialidades inegáveis, na medida em que a análise das componentes que integram esta categoria tem conduzido ao significativo alargamento da compreensão do âmbito dos prejuízos efetivamente sofridos pelas vítimas de factos geradores de responsabilidade civil delitual. Por outras palavras, a vantagem do estudo do dano biológico seria a de, num primeiro nível, se ampliar as componentes de dano-evento ou dano real a ter em conta; para, num segundo nível, se determinar, de forma mais justa, a indemnização devida pelo responsável, em regra quanto às consequências de natureza não patrimonial. Mas não apenas quanto estas. Também no domínio dos efeitos de natureza patrimonial, há que ter em conta a referida perda de capacidade laboral geral.”[8]

É nesta perspetiva que se aceita a relevância do conceito de dano biológico.

Mas já não se pode aceitar que uma incapacidade parcial permanente represente, em si mesma, quer afete quer não a capacidade laboral, um dano patrimonial futuro, que acresça aos danos não patrimoniais.

A perda de qualidade de vida resultante da IPP, só em si mesma considerada, não se provando perda de rendimentos ou de capacidade laboral futura, não pode ser simultaneamente indemnizada como dano patrimonial e não patrimonial.

Vejamos agora o caso dos autos.

Ficou provado, em síntese, para o que aqui importa, que a demandante, em consequência da lesão:

- apresenta uma incapacidade parcial permanente de 12 pontos (nº 56 dos factos provados);

- passou a caminhar com dificuldade, tendo a função dos membros inferiores ficado afetada, o que a obriga a usar bengala (nos 74 e 75 dos factos provados);

- tem dificuldade em aceder aos transportes públicos (nº 77 dos factos provados);

- não consegue transportar cargas de peso superior a 5 kg, o que lhe dificulta trazer as compras para a casa (nº 78 dos factos provados);

- tem dificuldade em subir e descer escadas, o que cria restrições à sua mobilidade, tendo em conta que vive num 2º andar sem elevador (nºs 79 e 80 dos factos provados);

- e enfrenta dificuldades para fazer a sua higiene pessoal, nomeadamente tomar banho (nº 81).

Estes factos caracterizam inquestionavelmente uma situação de maior esforço e penosidade na realização das tarefas diárias indispensáveis à sobrevivência da demandante.

Porém, não ficou provado:

- que desde a data do acidente a demandante tenha estado incapacitada para exercer as suas atividades, tarefas domésticas e até mesmo a sua higiene pessoal, necessitando do apoio de terceira pessoa, durante duas horas diárias, como forma de superar as suas limitações físicas (nº 4 dos factos não provados);

- que a demandante, no futuro, virá a continuar impossibilitada de fazer o seu trabalho e a necessitar do apoio de terceira pessoa para a ajudar nas diversas tarefas (nº 5 dos factos não provados);

- que desde o acidente a demandante esteja impossibilitada de fazer o seu trabalho, situação que permanecerá ao longo de toda a sua vida (nº 8 dos factos não provados);

- que a demandante se veja obrigada a contratar uma terceira pessoa para a apoiar em todas as tarefas, quer domésticas quer de higiene pessoal (nº 9 dos factos não provados);

- que a demandante só possa fazer a sua higiene pessoal com a ajuda de terceira pessoa (nº 10 dos factos não provados).

Estes factos, se tivessem sido declarados provados, poderiam integrar o conceito de dano patrimonial, pois seguramente comportariam repercussões no património da demandante.

Contudo, o dano que se provou, traduzido nas limitações acima referidas, que redundam afinal numa maior penosidade na realização das tarefas domésticas e pessoais quotidianas, que no entanto executa sem necessidade de ajuda alheia, não têm nenhum reflexo no património, sendo pura ficção atribuir-lhe uma natureza patrimonial. Aliás, o próprio acórdão recorrido reconhece que não há um “dano patrimonial concreto”…

Note-se que a demandante se encontra reformada, tendo neste momento 77 anos de idade (73 anos à data do dano), estando portanto fora de causa o seu regresso por qualquer forma à vida ativa.

Também é inconsistente apelar ao “previsível agravamento futuro” do dano, já que esse agravamento, imputável apenas ao decorrer do tempo, não é certamente consequência da ação lesiva.

O “dano biológico” identificado pela Relação, consistente na diminuição das capacidades físicas da demandante e consequente maior penosidade na realização das tarefas diárias, tem a natureza de dano não patrimonial.

Compulsando a sentença da 1ª instância, constata-se que, na ponderação dos danos não patrimoniais, se consideraram os seguintes fatores: “… a situação de reformada da demandante (quanto a este particular, inexistiu rebate na vertente patrimonial da capacidade de ganho); a idade da demandante (à data do evento danoso, 73 anos, presentemente, 76 anos); a esperança média de vida, atendendo ao género da demandante, da mulher portuguesa, presentemente, de 84 anos; o défice funcional permanente de 12 pontos, com a elencada afetação da sua mobilidade e esforço acrescido na realização das atividades quotidianas diárias [itálico nosso]; a afetação da sua ‘joie de vivre’, com a demonstrada extensão; o quantum doloris de 4 pontos; os períodos de défice funcional temporário total e de défice funcional temporário parcial; o dano estético de grau 3.” (fls. 547)

Quer dizer: a sentença entrou expressamente em linha de conta com a afetação da mobilidade da demandante e o esforço acrescido na realização das atividades quotidianas no cômputo dos danos não patrimoniais.

Consequentemente, o “dano biológico” já foi tido em conta na indemnização de 20 000,00 € atribuída a título de dano não patrimonial.

Por outro lado, não foram identificados quaisquer danos patrimoniais futuros previsíveis.

Portanto, a condenação da demandada precisamente pelo mesmo dano, já que outros danos não foram reconhecidos, a título de dano patrimonial constitui uma duplicação da condenação pelos mesmos factos, que não pode evidentemente subsistir.

O recurso merece pois provimento.

III. Decisão

Com base no exposto, concede-se provimento ao recurso da demandada DD, SA, revogando-se o acórdão da Relação, na parte em que deu provimento ao recurso interposto pela demandante BB da sentença de 1ª instância, mantendo-se, no mais, a decisão recorrida.

Custas, quanto ao recurso, pela demandante, porque deduziu oposição, tendo decaído.

                                    Lisboa, 18 de outubro de 2017

------------------------------
[1] Revista Portuguesa do Dano Corporal, ano X, nº 11, pp. 37-75.
[2] Ver em especial pp. 113-158.
[3] Dano Corporal, cit., p. 125.
[4] Ob. cit., p. 126.
[5] Maria da Graça Trigo, Responsabilidade Civil – Temas especiais, pp. 78-80.
[6] Maria da Graça Trigo, Responsabilidade civil, cit., pp. 80-81.
[7] Maria da Graça Trigo, ob. cit., p. 81.
[8] Ob. cit., p. 82.