Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2247/20.4YRLSB.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
UNIÃO DE FACTO
PRINCÍPIOS DA ORDEM PÚBLICA PORTUGUESA
ANALOGIA
NACIONALIDADE
RESIDÊNCIA HABITUAL
Data do Acordão: 09/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I – Na exegese do disposto na al. f) do artº 980º CPCiv, entende-se que a acção preclusiva da ordem pública internacional incide directa e unicamente sobre os efeitos jurídicos que, para o caso, defluem da lei estrangeira e não sobre a lei em si e que qualquer apreciação de mérito está afastada, restando verificar se o resultado da decisão vai contra alguma norma ou princípio que deva considerar-se intocável, na ordem jurídica do Estado português.

II – Não ofende a ordem pública internacional do Estado português a decisão judicial brasileira que reconheceu a união estável entre duas pessoas do mesmo sexo, à semelhança da união de facto em Portugal, ainda que a decisão revidenda tenha entendido que “não é necessário que o casal resida sob o mesmo teto para a constituição da união estável”.

III – Mesmo na ausência de uma “coabitação contínua”, os factos relatados podem conduzir ao reconhecimento da situação de união de facto, na lei portuguesa.

IV – Se a informalidade da constituição da união de facto não é suficiente para desencadear todas as consequências de um casamento, não fica excluída a possibilidade de aplicação analógica à união de facto de algumas normas próprias da união conjugal.

V - Se existe norma de conflitos para a “forma do casamento” e para as “relações entre os cônjuges” – artºs 50º e 52º CCiv, mas não existe norma semelhante para a união de facto, seria necessário que existisse tal norma, face à crescente desformalização das relações afectivas, de convívio e de comunhão material entre os seres humanos e à crescente internacionalização de tais referidas relações.

VI - Tal lacuna deve ser preenchida pelas normas aplicáveis ao caso análogo das relações entre os cônjuges, que, não tendo eles a mesma nacionalidade, são reguladas pela lei da sua residência habitual comum e, na falta desta, a lei do país com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa (artº 52º nº 2 CCiv).

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



            Súmula do Processo

AA intentou a presente acção de revisão de sentença estrangeira contra BB, enquanto herdeira habilitada de CC, pedindo que fosse revista e confirmada a sentença que reconheceu a existência da união de facto entre o Requerente e o falecido CC.

Invoca em abono da sua pretensão que tal união de facto perdurou por mais de quarenta anos, como foi reconhecido pela sentença a rever, proferida que foi no processo n.º 049…-… do Cartório …. Vara de Família e Sucessões da Comarca …, Poder Judiciário do Estado …., Brasil.

A Requerida deduziu oposição, alegando que existe uma grande diferença entre o conceito de união de facto na lei brasileira e designadamente no artº 1723º do Código Civil brasileiro e o conceito de união de facto na lei portuguesa, conforme previsto no artº 1º nº 2 da Lei nº 7/2001, sendo este mais exigente.

Violando a decisão a ordem pública internacional do Estado português, tal conduz a que não deva ser revista e confirmada em Portugal, pois conduziria, em concreto, a um resultado intolerável e em violação dos princípios da ordem pública, permitindo reconhecer como válida e merecedora de tutela jurídica uma situação que nunca nenhum tribunal português reconheceria como tal.

Por outro lado, nos termos do artº 983º nº 2 CCiv, sempre teria sido a decisão mais favorável ao nacional caso o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português - a lei pessoal aplicável, por força do artº 25º CCiv seria a portuguesa e, nos termos da Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, não seria reconhecida a união de facto pois exigiria a coabitação, sendo que esta resulta como não provada na sentença cuja revisão se pretende.

Exigindo a lei portuguesa a comunhão de vida, tida como comunhão de mesa, leito e habitação, estes requisitos não se verificam, pois não consta do elenco dos factos da sentença a prova de que ambos viviam juntos numa casa, que recebiam nela amigos, que tomavam refeições no lar, que recebiam o correio no mesmo endereço, faziam compras de supermercado juntos, dividiam as contas da casa onde viviam ou mantinham uma economia comum. Mesmo as testemunhas ouvidas não relataram tal situação.

O Requerente invocou ainda que a Requerida pretende voltar a discutir os factos, quando na acção que correu termos no Brasil tal tema já foi debatido e entender diferentemente determinaria reiniciar um processo, o que é incompatível com a forma como se processa a revisão.

Por outro lado, a Requerida acordou no Tribunal do Brasil em desistir da oposição no mesmo apresentada, pelo que a invocação nesta altura é fundamento para litigância de má fé.

O Digno Magistrado do Ministério Público pugna pela inexistência de obstáculo legal à pretendida revisão e confirmação.

Finalmente, na decisão final proferida, o Tribunal da Relação decidiu julgar o pedido procedente e conceder a revisão, para o efeito de confirmação, da sentença que reconheceu judicialmente a condição de união de facto entre o Requerente e CC.


Do Acórdão proferido, recorre de revista a Requerida, formulando as seguintes conclusões:

A) Vem o presente recurso interposto do Acórdão que concedeu a revisão da sentença que reconheceu judicialmente a condição de união de facto entre o requerente e CC.

B) Efectivamente, da perspectiva da ora recorrente a decisão recorrida interpretou e aplicou erradamente os normativos constantes dos arts 980º, alínea f) e 983º, nº 2 do CPC.

C) A decisão brasileira cuja revisão é pedida conduz a um resultado

manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, e concretamente do direito da Família português, que é muito mais exigente quanto à relevância jurídica de determinadas relações interpessoais que o direito brasileiro.

D) Há uma grande diferença entre o conceito de união de facto na lei brasileira e designadamente no citado art 1723º do Código Civil e o conceito de união de facto na lei portuguesa, conforme previsto no art. 1º, nº 2 da Lei 7/2001.

E) Sendo muitíssimo evidente que a lei portuguesa tem um conceito de união de facto muitíssimo mais exigente que o da lei brasileira,

F) Não dispensando o requisito da coabitação, como declaradamente faz a lei brasileira, na sua interpretação jurisprudencial, vertida aliás na sentença em análise.

G) E assim, reconhecer uma união de facto nestes termos constituiria uma obliteração total do conceito jurídico da figura como previsto na lei portuguesa,

H) E distorceria por completo o equilíbrio do Direito da Família no Estado Português, que adoptou para a união de facto um conceito muito mais restritivo que a lei brasileira.

I) Note-se que a figura da união de facto é muito recente na nossa legislação, que tem um regime muito próprio, regulado em lei autónoma, com direitos, deveres e requisitos muito concretos,

J) Que obedecem a um exercício profundamente estudado e reflectido pelos doutrinadores e magistrados.

K) Na verdade, não se querendo equiparar a figura à do casamento, também não se pretendeu que ela se confundisse com um qualquer vínculo emocional de namoro ou companheirismo.

L) Por isso, mesmo se estabeleceu na lei portuguesa um período mínimo de dois anos para a constituição dessa situação de unido de facto

M) e para que uma pessoa nessa circunstância possa beneficiar do feixe de direitos que conferem protecção a essa figura jurídica, como seja a protecção fiscal ou relativa ao uso da casa de morada de família.

N) Ora, da sentença revidenda, pese embora não haja uma elencagem dos factos considerados provados e não provados, decorre cristalinamente que se considerou que CC e o requerente mantinham uma relação homoafectiva, em que partilhavam o leito algumas vezes, quando viajavam com amigos,

O) E com eles faziam refeições.

P) Na sentença não se vislumbra qualquer facto ou respectiva prova de que ambos viviam juntos numa casa, que recebiam nela amigos, que tomavam refeições no lar, que recebiam o correio no mesmo endereço, faziam compras de supermercado juntos, dividiam as contas da casa onde viviam ou mantinham uma economia comum.

Q) Ou seja, dos factos provados não se pode retirar, como o próprio tribunal reconhece, que CC e o requerente tinham um centro de vida partilhado.

R) Nunca as testemunhas ouvidas relatam que foram recebidos em casa por ambos, não se conhece ou foi ouvida uma empregada que descreva os seus hábitos, enquanto casal,

S) não se conhece, nos testemunhos relatados, uma casa que fosse do casal, onde tenham visto móveis de um e outro, objectos pessoais, roupas, etc.

T) Ora, face ao exposto, reconhecer esta união de facto em Portugal era reconhecer como válida e merecedora de tutela jurídica uma situação que nunca nenhum tribunal português reconheceria como tal,

U) Elevando à condição de unido de facto, com os inerentes direitos, todo e qualquer relacionamento, e em particular todos os relacionamentos que “não foram vividos em condições análogas às dos cônjuges”,

V) No que representaria uma claríssima violação do princípio da igualdade, previsto no art. 13º da CRP,

W) Uma vez que a lei seria muito mais exigente para os cidadãos nacionais que vivem em união de facto em Portugal do que para os que viram as suas relações reconhecidas como tal em país estrangeiro e pretendem beneficiar do respectivo regime no nosso país.

X) Além disso, esta decisão manifestamente viola o sentimento geral e ético da comunidade portuguesa,

Y) Que como colectivo não reconhece no relacionamento entre CC e o requerente, a existência de uma união de facto.

Z) Por tudo o exposto, forçoso é concluir que não podia o Tribunal recorrido ter confirmado a sentença em análise, porque ela manifestamente viola os princípios da ordem jurídica internacional, nos termos e para os efeitos do art. 980º, alínea f) do CPC.

AA) Sem conceder e se assim não se entender, o tribunal recorrido devia ter aplicado in casu o art 983º, nº 2 do CPC, o que não fez,

BB) Sendo que evidentemente o resultado da acção seria, pelas razões expostas, no sentido de não reconhecer esta união de facto à luz da lei portuguesa.

CC) A requerida é parte legitima no processo, porque como herdeira tem interesse em contraditar a acção, que, por conseguinte, lhe pode ser desfavorável, dado que pode fazer impender sobre a herança que é sua, encargos relacionados com o reconhecimento desta união de facto.

DD) A aceitação da decisão revidenda no Brasil pela recorrente não pode determinar uma preclusão de a ela se opor em território nacional,

EE) Na medida em que a aceitação da existência da união de facto no Brasil, prendeu-se tão só com o parecer que lhe foi dado pelos advogados que ali contratou,

FF) E que lhe explicaram que no Brasil a união de facto para ser declarada tinha requisitos menos exigentes que os que vigoravam em Portugal para o mesmo efeito.

GG) Ora, no caso, estamos sob jurisdição portuguesa e ao abrigo de legislação portuguesa, pelo que o resultado da apreciação dos factos terá que ser necessariamente diferente,

HH) Sendo certo que, ao abrigo da lei portuguesa, a relação entre CC e o requerente jamais seria reconhecida como configurando uma união de facto, uma vez que não existiu coabitação entre os dois.

II) Por esta razão e também por este facto jamais poderia a sentença

recorrida ser revista e confirmada por este Douto Tribunal.


Por contra-alegações, o Requerente pugna pela confirmação da decisão recorrida.

Incidentalmente, invoca ser o recurso intempestivo, posto que o prazo para recorrer se deva achar na conjugação dos artºs 671º nº 2 al. a) e 677º CPCiv.

Igualmente defende a condenação do Recorrente como litigante de má fé.

Resultaram, dos documentos juntos, os seguintes Factos Provados:

1. O Autor é nacional brasileiro, sendo CC português.

2. CC faleceu no dia 26 de Abril de 2012, no estado de solteiro, com a idade de 85 anos – cf. Certidão e óbito junta aos autos.

3. Na herança do falecido CC figura como cabeça de casal e única herdeira BB, irmã do falecido, nos termos constantes da certidão da Autoridade Tributária e Aduaneira.

4. Por sentença, datada de 12/02/2018, proferida no processo n.º 049…-… do Cartório … Vara de Família e Sucessões da Comarca …, do Poder Judiciário do Estado …, Brasil, foi reconhecida judicialmente a condição de União Estável entre o requerente e CC, desde 1970 e até à morte do requerido.

5. A sentença referida foi proferida em regular acção de Reconhecimento E/ou Dissolução de União Estável Ou Concubinato C/C União Homoafetiva / União Estável Ou Concubinato, conforme documento junto com requerimento REFª: ….550 devidamente apostilhado e cujo teor se reproduz.

6. Na sentença consta, além do mais, o seguinte: «Os arts. 4° e 5° da Lei de Introdução do Código Civil autorizam o julgador a reconhecer a união estável entre pessoas de mesmo sexo. 4. A extensão, aos relacionamentos homoafetivos, dos efeitos jurídicos do regime de união estável aplicável aos casais heterossexuais traduz a corporificação dos princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana. 5. A Lei Maria da Penha atribuiu às uniões homoafetivas o caráter de entidade familiar, ao prever, no seu artigo 5°, parágrafo único, que as relações pessoais mencionadas naquele dispositivo independem de orientação sexual. 6. Recurso especial desprovido. (REsp 827…../…, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUARTA TURMA, julgado em 21/06/2011, DJe 08/08/2011).

Portanto, vê-se plenamente possível o reconhecimento de união estável de natureza homoafetiva, pois não há vedação legal alguma ao referido direito, devendo os arts. 226, caput e § 3° da Constituição da República e 1723 do Código Civil ser interpretados de forma a dar a maior abrangência possível aos princípios da igualdade (art. 5°, caput, da CRFB) e dignidade da pessoa humana (art. 1°, III, da CRFB), afastando qualquer tipo de odioso preconceito que ainda reste em nossa sociedade. (…) Ultrapassada a questão, verifica-se que o autor obteve êxito em comprovar, que vivia em relacionamento familiar estável, público, contínuo e duradouro com CC, respaldado pelo afeto, formando um núcleo familiar semelhante ao casamento.

A prova toda é no sentido de que se cuidava de uma relação Homoafetiva, cumprindo deveres de assistência, permeado por amor e respeito mútuos, com objetivo de constituir um lar. E o estreitamento entre os laços familiares se deu de uma forma bastante cristalina, sendo este último padrinho de casamento de uma sobrinha de mimar e padrinho de batismo de outra. Criaram, ainda, como se filho fosse DD, até os 8 anos de idade, filho da empregada que possuíam, o que denota um indício suficientemente forte para a constituição de uma família.

Indiscutível também a duração do relacionamento e a sua continuidade.(…)

A prova oral, com uma clareza ímpar, mostra que não se tratava de uma simples amizade entre AA e CC, nem que este fosse seu secretário particular ou colaborador como quer fazer crer a defesa, mas sim - de um relacionamento homoafetivo, iniciado nos idos de 1970 e dali em diante tendo a relação perdurado sem interrupções até o falecimento do último, ocorrido em 26/04/2012.(…)

Em que pese a argumentação da ré também no sentido de caracterizar a não coabitação entre o autor e CC, ficou provado que ambos residiram por algum momento na rua …. e havia a "comunidade de leito" a consubstanciar a tantas vezes referida união estável.

A doutrina e jurisprudência pátrias esclarecem não ser necessário que o casal resida sob o mesmo teto para a constituição da união estável, pois o que importa, como aduzido anteriormente, é a comunhão de vida e o ânimo de constituir uma família, não sendo a residência comum indispensável à caracterização de tais elementos.(…)

O fato é que na época em que o relacionamento se iniciou, pela idade de CC, por sua posição na empresa e pelo preconceito da família deste e pelas desumanas concepções da época que consideravam a homossexualidade uma doença mental, penso que aceitável que o cargo na empresa, como secretário do Presidente da ... lhe impusesse realmente "um anonimato sexual, com temor à reação social", como bem afirma o autor.

A homossexualidade sempre foi um tabu social, havida inicialmente como pecado, em 1898 passou a ser considerada doença mental de natureza congênita, até recentemente chegar a ser considerada um comportamento natural. É de todos sabido que na época da ditadura militar, embora a repressão fosse motivada por questões políticas, a homossexualidade sempre mereceu uma espécie de retaliação pelo governo e pela Igreja católica, pois o comportamento homossexual contrariava os costumes da família tradicional da época.

Mas AA e CC apresentavam-se como se casados fossem para as pessoas do seu círculo de convivência mais próximo, inclusive para a família de AA que os acolhia e isto é bastante para a procedência de sua pretensão(…).No mais, não se verifica nenhuma das hipóteses previstas nos arts. 1521 e 1523 do Código Civil a impedir o reconhecimento da união estável em questão.»

7. BB no âmbito da acção que correu termos na …Vara de Família e Sucessões da Comarca …, do Poder Judiciário do Estado …, Brasil, deduziu oposição, pelo que foi condenada nas custas face ao decaimento nessa acção – cf. Sentença junta supra aludida.

8. Com data de 1 de Julho de 2019, na acção referida, o requerente e BB juntaram requerimento, na parte relevante, do seguinte teor: «(…) nos autos do Recurso Especial interposto na Apelação Cível da Ação de Reconhecimento de União Estável Post Mortem proposta pelo Primeiro em face da Segunda, vêm, respeitosamente, comunicar a Vossa Excelência a celebração de composição amigável entre as partes, nos termos que ora se seguem:

1. A Segunda-Acordante, BB, desiste expressa e irretratavelmente dos termos do Recurso Especial interposto ás e-fls. 1.039/1.067, submetendo-se, por conseguinte, aos efeitos da sentença de procedência proferida pelo MM. Juízo de Direito … Varada de Família da Comarca … do Estado …, lançada nestes autos no indexador 825 (antigas fls. 745/750), com republicação constante indexador 833 (antigas fls. 753/761) em razão de erros materiais e da sentença de rejeição de embargos de declaração constante do indexador 863 (antiga fl. 782), ambas integralmente confirmadas pelos v. acórdãos de e-fls. 1.015/1.021 e 1.035/1.037, da Colenda … Câmara Cível do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado ....

2. O Primeiro-Acordante, AA, declara de forma expressa e irretratável sua concordância à desistência manifestada pela Segunda-Acordante, reconhecendo ambos os Acordantes, outrossim, desde já, a eficácia, materialidade e autoridade da coisa julgada que se forma nestes autos em razão da desistência aqui manifestada e aquiescida, para que surtam, imediatamente, todos os seus efeitos juridicos.(…)» - cf. Documento junto com a resposta do requerente Refª ….484, cujo teor se dá por reproduzido.

9. Tal desistência foi homologada pelo Tribunal de recurso, por sentença proferida a 10/07/2019, pelo que a sentença transitou em julgado – cf. Documento junto com o requerimento REFª: …484 cujo teor se reproduz.


Conhecendo:


Comece por se afirmar a integral tempestividade do recurso interposto pela Requerida – o prazo para recorrer era o prazo geral de 30 dias, posto que a decisão da Relação pôs termo à instância, não possuindo, contrariamente ao alegado, qualquer característica de “decisão interlocutória”, como se uma decisão proferida ao longo de um processo.

Improcede assim, neste particular, a alegação do Recorrido.



I


Em matéria de reconhecimento de sentenças estrangeiras, é sabido que a ordem jurídica pode oscilar entre duas posições extremas – seja a da revisão de mérito, seja a da aceitação plena.

Entre esses dois sistemas ou posições encontra-se o direito português, consagrando um sistema de delibação, ou seja, de revisão meramente formal, que implica verificar se a sentença proferida satisfaz certos requisitos de forma, recusando o conhecimento do fundo ou mérito da causa, mas sem prejuízo de a mesma sentença dever obedecer a um conjunto de outros requisitos enumerados no artº 980º CCiv, destes se destacando, no que ao presente recurso diz respeito, a sentença de conteúdo manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português – artº 980º al. f) CPCiv.

Ao mesmo tempo, se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou colectiva de nacionalidade portuguesa, a impugnação a cargo do requerido pode também fundar-se na circunstância de que o resultado da acção lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este direito devesse ser resolvida a questão, segundo as normas de conflitos da lei portuguesa – artº 983º nº 2 CPCiv.

Na apreciação concreta subsuntiva destes dois polos situa-se a apreciação do recurso.



II


Se a ordem pública interna restringe a liberdade individual, a ordem pública internacional limita a aplicabilidade de leis estrangeiras.

Esta “ordem pública internacional” concebe-se como a síntese de vários critérios gerais de orientação, que não procuram uma definição impossível, visando tão só critérios aproximativos de auxílio ao terceiro julgador.

Nessa linha, e seguindo a fundamentação do Ac. S.T.J. 19/2/2008 Col.I/112 – Paulo Sá, são leis de ordem pública internacional a expropriação sem indemnização (confisco), as leis que proíbem a poligamia e que impedem um segundo casamento sem que o primeiro tenha sido dissolvido (editada por razões morais), e também teria de intervir a reserva de ordem pública internacional se a aplicação do direito estrangeiro atropelasse grosseiramente a concepção de justiça material como o Estado do foro a entende, abalando os próprios fundamentos da ordem jurídica interna, pondo em causa interesses da maior transcendência e dignidade, que choquem a consciência, como seria o caso de lei estrangeira que admitisse a morte civil ou a escravidão, ou a norma estrangeira que estabelecesse como impedimento à celebração do casamento a diversidade de raça ou de religião.

Na formulação de Baptista Machado, Lições de Direito Internacional Privado, 1974, pgs. 254 e 256, “são de ordem pública aquelas normas que estabelecem as regras fundamentais da organização económica, as que visam garantir a segurança do comércio jurídico e proteger terceiros, as que tutelam a integridade dos indivíduos e a independência da pessoa humana e protegem os fracos e incapazes, as que respeitam à organização da família e ao estado das pessoas, visando satisfazer um interesse geral da colectividade”.

Voltando ao Ac. S.T.J. 19/2/2008, “são características da ordem pública internacional, para além da feição nacional (as exigências da ordem pública internacional variam de Estado para Estado, segundo os conceitos dominantes em cada um deles) a excepcionalidade, a imprecisão e actualidade. A excepcionalidade e a imprecisão já resultam do que ficou dito; as leis de ordem pública internacional são um limite à aplicação da lei normalmente competente para regular as relações jurídicas, consistindo a sua função em desviar a aplicação dessa lei, substituindo-a pela lex fori, a imprecisão da sua noção é um mal sem remédio, e a sua actualidade ou mobilidade, mostra que as leis de ordem pública internacional têm um cunho nacional, são função das concepções no tempo e no espaço do País onde a questão se põe, hão-de vigorar na ocasião do julgamento, e podem deixar de o ser e vice-versa, visto que podem variar de acordo com a variação das exigências do interesse geral (cf. Ferrer Correia, Lições de Direito Internacional Privado, I, 2000, pgs. 409 e ss.).”

A excepção de ordem pública internacional ou reserva de ordem pública, implícita em toda a remissão que o direito internacional privado opera para os direitos estrangeiros, visa impedir que a aplicação de uma norma estrangeira, pela via indirecta da execução de sentença estrangeira, conduza, no caso concreto, a um resultado intolerável.

Uma incompatibilidade intolerável da norma estrangeira para os princípios da ordem pública internacional do direito português, no sentido de incompatibilidade “notória, patente, flagrante ou significativa”, na caracterização do Ac. R.P. 7/12/2017 Col.V/193 – Aristides Almeida.

Toda a acção preclusiva da ordem pública internacional incide directa e unicamente sobre os efeitos jurídicos que, para o caso, defluem da lei estrangeira e não sobre a lei em si (cf. Baptista Machado, Lições de Direito Internacional Privado, 1974 p. 254).

Não é, portanto, a decisão propriamente que conta, nem os seus fundamentos, mas o resultado a que conduziria o seu reconhecimento (cf. A. Marques dos Santos, Aspectos do novo Código de Processo Civil, Revisão e confirmação de sentenças estrangeiras, 1997, pg. 140 e Ferrer Correia, op. cit., pg. 483).

Qualquer apreciação de mérito está afastada e restará verificar se o resultado da decisão vai contra alguma norma ou princípio que deva considerar-se intocável, na ordem jurídica do Estado português.

O direito internacional privado assenta no princípio da tolerância para com as regras do sistema jurídico estrangeiro, do respeito pela diversidade de regulamentações e do reconhecimento da diferença entre as várias ordens jurídicas (assim, Ac. S.T.J. 10/11/2020 Col.III/95 – Manso Rainho).



III


A decisão revidenda procedeu ao reconhecimento de uma União Estável entre o Requerente e o falecido CC, desde 1970, até à morte do último.

Dispõe o artigo 1723º do Código Civil brasileiro, que “é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objectivo de constituição de família”.

Como se observa do direito brasileiro (consulta efectuada na internet ao Acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, acórdão nº ….137), “a Constituição Federal, no seu artigo 226, § 3º, assegura a proteção do Estado à união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar. De outro lado, o artigo 1.723, do Código Civil, dispõe que é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.

“O principal e inafastável elemento para o reconhecimento da união estável, sem sombra de dúvidas, é o teleológico ou finalístico: o objetivo de constituição de família. Este, seguramente, não poderá faltar. Isto porque o casal que vive em uma relação de companheirismo – diferentemente da instabilidade do simples namoro – realiza a imediata finalidade de constituir uma família, como se casados fossem. Essa aparência de casamento, essa finalidade de constituição de um núcleo estável familiar é que deverá ser investigada em primeiro lugar, pelo intérprete, ao analisar uma relação apontada como de união estável. Trata-se da essência do instituto no novo sistema constitucionalizado, diferenciando uma união estável de uma relação meramente obrigacional.”

“Vida em comum, mútua assistência entre os companheiros e objetivos comuns, isto é, um projeto de vida compartilhado, caracterizam a união estável, diferenciando-a de uma simples relação de namoro, ainda que qualificado e prolongado no tempo.”

Da mesma forma, o Acórdão do Superior Tribunal de Justiça, de 19/5/2011, no sentido de que “os princípios da igualdade e da dignidade humana, que têm como função principal a promoção da autodeterminação e impõem tratamento igualitário entre as diferentes estruturas de convívio sob o âmbito do direito de família, justificam o reconhecimento das parcerias afetivas entre homossexuais como mais uma das várias modalidades de entidade familiar”.

“O art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil permite a equidade na busca da Justiça. O manejo da analogia frente à lacuna da lei é perfeitamente aceitável para alavancar, como entidades familiares, as uniões de afeto entre pessoas do mesmo sexo. Para ensejar o reconhecimento, como entidades familiares, de referidas uniões patenteadas pela vida social entre parceiros homossexuais, é de rigor a demonstração inequívoca da presença dos elementos essenciais à caracterização de entidade familiar diversa e que serve, na hipótese, como parâmetro diante do vazio legal - a de união estável - com a evidente exceção da diversidade de sexos.”

“Demonstrada a convivência, entre duas pessoas do mesmo sexo, pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família, sem a ocorrência dos impedimentos do art. 1521 do Código Civil, na redacção de 2002, com a exceção do inc. VI quanto à pessoa casada separada de fato ou judicialmente, haverá, por consequência, o reconhecimento dessa parceria como entidade familiar, com a respectiva atribuição de efeitos jurídicos dela advindos.”

Assim procedeu, de facto, a decisão revidenda.

Em Portugal, desde a vigência da Lei nº 7/2001 de 11 de Maio, que as uniões de facto entre pessoas do mesmo sexo estão legalmente reconhecidas, atribuindo a lei à união de facto, independentemente do sexo dos parceiros, direitos no que respeita à casa de morada comum, relações laborais, fiscalidade e segurança social.

Define-se a união de facto como “a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos” (artº 1º nº 2 Lei nº 7/2001).

É patente a similitude da união estável do direito brasileiro com a união de facto do direito português – embora ali se destaque a “convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objectivo de constituição de família” e no direito português a necessária comunhão de leito, mesa e habitação, como marido e mulher (cf. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, I, 4ª ed., pg. 62), consagração da definição de casamento como “o contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida”, nos termos das disposições do Código Civil (artº 1577º CCiv), reciprocamente vinculadas por deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência (artº 1672º CCiv).

O que importa porém salientar, neste ponto, é que a decisão proferida em nada bole com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, antes estes mesmos princípios confirmam a possibilidade de ser proferida decisão como a revidenda, na ordem jurídica portuguesa.

E ainda que se deva reconhecer que a coabitação é um requisito indispensável à verificação de uma união de facto no direito português, a sua não verificação não atingiria qualquer resultado intolerável na nossa ordem jurídica, posto que verificada a vinculação recíproca pelos demais deveres de respeito, fidelidade, cooperação e assistência, tal como referidos no artº 1672º CCiv.

Sendo certo que a decisão revidenda entendeu que “não é necessário que o casal resida sob o mesmo teto para a constituição da união estável”, ao contrário do que vem suscitado na revista, dessa decisão não se extrai radicalmente a não existência de coabitação – refere-se ali que “ficou provado que ambos residiram por algum momento na rua .... e havia a “comunidade de leito” a consubstanciar a tantas vezes referida união estável” e que existiu o objectivo de “constituir um lar”, em relacionamento que, com características de assistência, amor e respeito mútuos, perdurou de 1970 a 2012 (data esta do falecimento de CC).



IV


Todavia, se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou colectiva de nacionalidade portuguesa, a impugnação a cargo do requerido pode também fundar-se na circunstância de que o resultado da acção lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este direito devesse ser resolvida a questão, segundo as normas de conflitos da lei portuguesa – artº 983º nº 2 CPCiv.

Trata-se, como a inserção sistemática da norma denuncia, na actualidade, de uma circunstância exceptiva, a invocar pelo demandado, como o foi.

A Requerida sustenta que a lei pessoal aplicável, por força do artº 25º CCiv, seria a portuguesa e que, repetindo o argumento anterior, nos termos da Lei nº7/2001 de 11/5, à luz do direito português não cabia o reconhecimento da união de facto, por este exigir a coabitação.

Vimos já como este elemento de coabitação vem expressamente referenciado na sentença revidenda.

Todavia, mesmo na ausência de uma eventual “coabitação contínua”, os factos relatados sempre conduziriam ao reconhecimento da situação de união de facto, em vista da lei portuguesa.

Como ali se expressou: “(…) O autor obteve êxito em comprovar, que vivia em relacionamento familiar estável, público, contínuo e duradouro com CC, respaldado pelo afeto, formando um núcleo familiar semelhante ao casamento.”

“A prova toda é no sentido de que se cuidava de uma relação homoafetiva, cumprindo deveres de assistência, permeado por amor e respeito mútuos, com objetivo de constituir um lar. E o estreitamento entre os laços familiares se deu de uma forma bastante cristalina, sendo este último padrinho de casamento de uma sobrinha de mimar e padrinho de batismo de outra. Criaram, ainda, como se filho fosse DD, até os 8 anos de idade, filho da empregada que possuíam, o que denota um indício suficientemente forte para a constituição de uma família. Indiscutível também a duração do relacionamento e a sua continuidade.(…) Em que pese a argumentação da ré também no sentido de caracterizar a não coabitação entre o autor e CC, ficou provado que ambos residiram por algum momento na rua .... e havia a "comunidade de leito" a consubstanciar a tantas vezes referida união estável.”

Independentemente dessa constatação de união de facto, respeitando a simples apreciação positiva (o reconhecimento) desta união de facto ao estado das pessoas, em princípio deveria ser regulada pela lei pessoal dos respectivos sujeitos, a qual, no caso do falecido CC, era a nacionalidade portuguesa – artºs 25º e 31º nº 1 CCiv.

Acontece que existe norma de conflitos para a “forma do casamento” e para as “relações entre os cônjuges” – artºs 50º e 52º CCiv, mas não existe norma semelhante para a união de facto, instituto que apenas viu a sua primeira referência legal na reforma do Código Civil de 1977.

E se a informalidade da constituição da união de facto não é suficiente para desencadear todas as consequências de um casamento, não fica excluída a possibilidade de aplicação analógica à união de facto de algumas normas próprias da união conjugal – assim, Jorge Duarte Pinheiro, Direito da Família Contemporâneo, 5ª ed., pg.557.

O quid da analogia no sistema das regras de conflitos está em saber se a hipótese omissa é merecedora de tutela jurídica, em face do plano ou teleologia intrínseca do sistema – se se trata de uma omissão de um tipo tal que a alternativa para o seu não preenchimento só poderia ser uma denegação de justiça (Baptista Machado, op. cit., pgs. 145 e 150).

A lacuna é uma incompletude relativamente a algo que protende para a completude – é uma “incompletude contrária a um plano” (Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1983, pg. 184).

Ora, a especificidade da união de facto, tal como no casamento, está em que se trata de uma ligação não simplesmente negocial, mas também existencial, envolvendo não duas pessoas separadas, mas um conjunto, em conceito jurídico, uma comunhão.

Daí que a forma do casamento seja regulada pela lei do Estado em que é celebrada (artº 50º CCiv) e que as relações entre os cônjuges (relações essas que, na união de facto, são decisivas para a constituição da união), não tendo os cônjuges a mesma nacionalidade, são reguladas pela lei da sua residência habitual comum e, na falta desta, a lei do país com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa (artº 52º nº 2 CCiv).

Não existe semelhante norma de conflitos para a união de facto e seria necessário que existisse, até face à crescente desformalização das relações afectivas e de convívio e ainda, na sequência, de comunhão material, entre os seres humanos e à crescente internacionalização de tais referidas relações.

Existe lacuna, porque a lei não prevê norma de conflitos para a constituição e regime da união de facto.

A lacuna deve ser preenchida pelas normas aplicáveis ao caso análogo das relações entre os cônjuges, que, não tendo os cônjuges a mesma nacionalidade, são reguladas pela lei da sua residência habitual comum e, na falta desta, a lei do país com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa (artº 52º nº 2 CCiv).

Finalmente, a actuação da Requerida, na acção de reconhecimento da união estável no Brasil, culminou na composição amigável com o ora Requerente, desistindo do recurso interposto, aceitando expressamente a sentença proferida e reconhecendo, com aceitação do aqui Requerente, a autoridade de caso julgado da sentença.

Esta referida actuação não converte a revisão da sentença na apreciação de um negócio jurídico e teve efeitos apenas no trânsito em julgado da sentença do Brasil.

Desta forma, não existiu qualquer ofensa à norma do artº 25º CCiv.

A fundada diferenciação entre as situações e as normas conduz a que não exista qualquer violação do princípio constitucional da igualdade – artº 13º CRP.

Igualmente, não existem sinais de litigância de má fé, posto que o recurso se situou apenas na interpretação diversa das normas jurídicas aplicáveis.

Em suma, não existem razões para a concessão da revista, impondo-se a confirmação do acórdão recorrido.

Concluindo:

I – Na exegese do disposto na al. f) do artº 980º CPCiv, entende-se que a acção preclusiva da ordem pública internacional incide directa e unicamente sobre os efeitos jurídicos que, para o caso, defluem da lei estrangeira e não sobre a lei em si e que qualquer apreciação de mérito está afastada, restando verificar se o resultado da decisão vai contra alguma norma ou princípio que deva considerar-se intocável, na ordem jurídica do Estado português.

II – Não ofende a ordem pública internacional do Estado português a decisão judicial brasileira que reconheceu a união estável entre duas pessoas do mesmo sexo, à semelhança da união de facto em Portugal, ainda que a decisão revidenda tenha entendido que “não é necessário que o casal resida sob o mesmo teto para a constituição da união estável”.

III – Mesmo na ausência de uma “coabitação contínua”, os factos relatados podem conduzir ao reconhecimento da situação de união de facto, na lei portuguesa.

IV – Se a informalidade da constituição da união de facto não é suficiente para desencadear todas as consequências de um casamento, não fica excluída a possibilidade de aplicação analógica à união de facto de algumas normas próprias da união conjugal.

V - Se existe norma de conflitos para a “forma do casamento” e para as “relações entre os cônjuges” – artºs 50º e 52º CCiv, mas não existe norma semelhante para a união de facto, seria necessário que existisse tal norma, face à crescente desformalização das relações afectivas, de convívio e de comunhão material entre os seres humanos e à crescente internacionalização de tais referidas relações.

VI - Tal lacuna deve ser preenchida pelas normas aplicáveis ao caso análogo das relações entre os cônjuges, que, não tendo eles a mesma nacionalidade, são reguladas pela lei da sua residência habitual comum e, na falta desta, a lei do país com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa (artº 52º nº 2 CCiv).

Decisão:

Nega-se a revista.

Custas a cargo da Recorrente.                                        


S.T.J., 23/09/2021


Vieira e Cunha (relator)                                         

Abrantes Geraldes                                             

Tomé Gomes