Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
066562
Nº Convencional: JSTJ00001526
Relator: RODRIGUES BASTOS
Descritores: EXECUÇÃO
LETRA
PENHORA
MORATORIA
BENS COMUNS
DIVIDA DE CONJUGES
NATUREZA COMERCIAL
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ197804130665621
Data do Acordão: 04/13/1978
Votação: MAIORIA COM 1 DEC VOT E 7 VOT VENC
Referência de Publicação: DR IS 1978/07/20, PÁG. 1387 A 1390 - BMJ Nº 276 ANO 1978 PÁG. 99
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO
Decisão: TIRADO ASSENTO.
Indicações Eventuais: ASSENTO DO STJ.
Área Temática: DIR PROC CIV. DIR COM - TIT CREDITO.
Legislação Nacional: CPC67 ARTIGO 763 ARTIGO 766 N3 ARTIGO 825 N1 N2 ARTIGO 1038 N2 C.
CCOM888 ARTIGO 10.
DL 363/77 DE 1977/09/03.
CCIV66 ARTIGO 1692 B ARTIGO 1696 N1 N3.
CE54 ARTIGO 56.
CCJ62 ARTIGO 161.
LULL ARTIGO 17.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1966/12/02 IN BMJ N162 PAG299.
ACÓRDÃO STJ DE 1967/06/06 IN BMJ N168 PAG285.
ACÓRDÃO STJ DE 1970/05/01 IN BMJ N197 PAG349.
ASSENTO STJ DE 1964/11/27 IN BMJ N141 PAG172.
ACÓRDÃO STJ DE 1941/07/01 IN RLJ ANO74 PAG216.
ACÓRDÃO STJ DE 1947/04/18 IN RLJ ANO80 PAG169.
ACÓRDÃO STJ DE 1951/03/06 IN RLJ ANO84 PAG149.
Sumário :
Nas execuções fundadas em titulos de credito, o pagamento das dividas comerciais, de qualquer dos conjuges, que tiver que ser feito pela meação do devedor nos bens comuns do casal, so esta livre da moratoria estabelecida no n. 1 do artigo 1696 do Codigo Civil, ao abrigo do dispoto no artigo 10 do Codigo Comercial, mesmo no dominio das relações mediatas, se estiver provada a comercialidade substancial da divida exequenda.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em Pleno, os juizes do Supremo Tribunal de Justiça:

O Banco A em acção com processo ordinario que correu seus termos na 6 Vara Civel de Lisboa, obteve decisão condenatoria de B, "C, Lda", D e mulher, a pagarem-lhe, solidariamente, a quantia de 130943 escudos, acrescida de juros vencidos e vincendos, e despesas de protesto, como subscritores de quatro letras de cambio, de que aquele Banco e portador, sacadas pelo primeiro reu, aceites pela segunda re e avalizadas pelos terceiros e quarto reus.
Transitada em julgado essa decisão, o Banco autor moveu, por apenso, execução daquela sentença, mas so contra o reu B, pela importancia de 135749 escudos e oitenta centavos.
Citado o executado não deduziu este qualquer oposição, nem nomeou bens a penhora, pelo que veio o exequente faze-lo, indicando, para serem penhorados, dois imoveis, um urbano e outro misto, que identificou, terminando por pedir que fosse ordenada a citação do conjuge do executado para, nos termos do n. 2 do artigo 825 do Codigo de Processo Civil, requerer, querendo, a separação de bens do casal.
O meretisimo Corregedor indeferiu liminarmente este requerimento, por não se mostrar verificada qualquer das situações que afastam a aplicação da moratoria a que se refere o n. 1 daquele artigo 825.
Esse despacho, porem, veio a ser revogado por acordão da Relação de Lisboa, por sua vez confirmado por este Supremo Tribunal, por acordão de 11 de Junho de 1976, certificado a folhas 8.
E desse aresto que recorrem, para tribunal pleno, o executado e sua mulher, e o digno agente do Ministerio Publico junto deste Tribunal, alegando estar ele em oposição, sobre a mesma questão fundamental de direito, com o acordão deste Supremo Tribunal, de 1 de Maio de 1970 (Boletim do Ministerio da Justiça, n. 197, pagina 349), ambos proferidos no dominio da mesma legislação.
O acordão de folhas 27 e seguintes, conhecendo da questão preliminar de que trata o artigo 766, n. 3 do Codigo de Processo Civil, declarou verificado o condicionalismo legal, previsto no artigo 763 do mesmo diploma, para o prosseguimento do recurso.
Foi este doutamente alegado, quer pelos recorrentes, quer pelo recorrido.
O ilustre representante do Ministerio Publico produziu o seu douto parecer de folhas 34.
O processo correu os vistos legais, estando, por isso, em condições de se conhecer do recurso.
Tudo visto.
Cumpre-nos, em primeiro lugar, de harmonia com o disposto no n. 3 do artigo 766 do Codigo de Processo Civil, reexaminar a questão de saber se existe a alegada oposição de julgados que justifique o recurso para Pleno.
No acordão recorrido, proferido em execução movida pelo portador-endossado de letras de cambio, contra o sacador delas, entendeu-se que o exequente, para invocar e chamar a si o beneficio que lhe proporciona o artigo 10 do Codigo Comercial, de se fazer pagar pela meação do devedor nos bens comuns do casal, antes de dissolvido o casamento não tinha necessidade de provar a comercialidade substancial da divida, visto aquelas letras terem entrado no dominio das relações mediatas.
No acordão de 1 de Maio de 1970, dito em oposição, proferido tambem em execução movida por um portador-endossado contra o aceitante de uma letra, tendo o exequente requerido penhora sobre a meação do executado em bens comuns do casal e a citação da mulher do executado para requerer a separação judicial de bens, nos termos do artigo 10 do Codigo Comercial, o tribunal decidiu que, para os efeitos dos artigos 825, n. 2, e 1038, n. 2, alinea c), ambos do Codigo de Processo Civil, so conta a comercialidade substancial ou material da divida exequenda, mesmo quando o credor seja um portador mediato da letra.
Examinando estas duas decisões e facil constatar que em ambas se pos uma questão fundamental de direito
- a de saber se, constando as dividas de titulos de credito mercantil, bastaria a comercialidade formal destes para afastar a moratoria a que alude o n. 1 do artigo 825 do Codigo de Processo Civil, de harmonia com o preceituado no artigo 10 do Codigo Comercial, ou se seria necessario, para tal, demonstrar, mesmo no dominio das relações mediatas, a comercialidade substancial da divida, por ser esta a natureza da relação juridica subjacente - e que esta questão teve soluções opostas nos dois arestos em confronto.
Existe, pois, conflito de jurisprudencia a que ha que por termo.
Começaremos por observar que a expressão "dividas comerciais", empregada pelo artigo 10 do Codigo Comercial, deu, muito cedo, lugar a duvidas de interpretação, centradas, principalmente, nesta dualidade de entendimentos: enquanto uns a julgavam referida tanto a comercialidade formal como a comercialidade substancial, outros sustentavam que so esta ultima era de ter em conta. Assim, quando a divida derivasse da assinatura de titulo de credito mercantil, a divida seria, para os primeiros, sempre, de natureza comercial, enquanto que, para os segundos, essa comercialidade dependia de a relação juridica subjacente ser um acto ou operação comercial.
Neste ultimo sentido se manifestaram, na doutrina, Guilherme Moreira (Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, ano 5, pagina 229), Mario de Figueiredo (Caracteres dos Titulos de Credito, Pagina 119) e Alberto dos Reis (Revista de Legislação e de Jurisprudencia, ano 81, pagina 30).
Do mesmo modo este Supremo Tribunal adoptou tal interpretação, entre outros, nos seus acordãos de 1 de Julho de 1941 (Revista de Legislação e de Jurisprudencia, ano 74, pagina 216), de 18 de Abril de 1947 (Revista de Legislação e de Jurisprudencia, ano 80, pagina 169), de 6 de Março de 1951 (Revista de Legislação e de Jurisprudencia, ano 84, pagina 149), de 2 de Dezembro de 1966 (Boletim do Ministerio da Justiça, n. 162, pagina 299), de 6 de Junho de 1967 (Boletim, n. 168, pagina 285) e de 1 de Maio de 1970 (Boletim n. 197, pagina 349), tendo sido esta interpretação, alias firmada, quando no dominio das relações imediatas, pelo assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 27 de Novembro de 1964 (Boletim, n. 141, pagina 172), nessa parte ainda em vigor.
Esclarecidos, assim, que, no dominio das relações imediatas o artigo 10 do Codigo Comercial se deve entender referido a comercialidade da relação juridica subjacente, resta saber se tal regra tambem e aplicavel quando, derivando a obrigação da assinatura de um titulo de credito mercantil, este entrou em circulação.
Este e que e, propriamente, o objecto do presente recurso.
A dificuldade esta, agora, grandemente simplificada.
Questão dificil e melindrosa era a primeira: a de saber se o titulo de credito mercantil encorpora, ou não, sempre, um acto comercial, teoria na afirmativa da qual se bateram, entre nos, alguns eminentes jurisconsultos: Barbosa de Magalhães (Revista da Ordem dos Advogados, ano II, pagina 367 e seguintes), Jose Gabriel Pinto Coelho (Revista de Legislação e de Jurisprudencia, ano 97, paginas 8 e seguintes), Jose Gualberto de Sa Carneiro (Das Letras de Cambio, pagina 64), Fernando Olavo (Manual de Direito Comercial, volume I, pagina 34, da 1 edição).
Encerrada, porem, essa questão com a publicação do assento de 27 de Novembro de 1964, o que ficou por decidir e uma dificuldade que parece basear-se num simples equivoco.
Na verdade, quando em linguagem tecnico-juridica nos referimos, relativamente a letras de cambio, a relações mediatas ou imediatas, queremos distinguir os casos em que tais titulos, saindo do poder do tomador, entraram em circulação, daqueles em que o portador e ainda um dos titulares da relação juridica subjacente.
Com essa distinção tem-se apenas em vista a responsabilidade do signatario do titulo, e a definição da especie de excepções que este ainda pode (relações imediatas), ou ja não pode (relações mediatas) opor ao portador. Tal problema esta ligado aos caracteres de literalidade, abstracção e autonomia dos titulos de credito, por força dos quais, se o signatario, a quem se pede o pagamento, não esteve ligado ao portador na criação do titulo, não pode opor-lhe vicios ou causas de exoneração que daquele não constem.
Este simples enunciado mosta a inaplicabilidade desta distinção a exigencia, feita ao conjuge do executado, de consentir na imediata excussão da meação deste em bens comuns do casal. Não se trata aqui do exercicio de qualquer acção cambiaria, visto que o conjuge nem sequer foi subscritor da letra, pelo que se mostra inteiramente inadequada a restrição que, nesta materia, se vem fazendo, ao caracter mediato das relações entre o portador e os subscritores do titulo.
Assim, a abstracção do titulo, a sua literalidade e a sua autonomia, caracteres tão importantes para a circulação das letras de cambio, nada tem a ver com a invocação, quer da moratoria do artigo 1696 do Codigo Civil, quer das excepções que o legislador entendeu abrir-lhe, ao pretender equilibrar o interesse na conservação do patrimonio familiar com as exigencias do comercio.
E que a faculdade reconhecida ao credor pelos preceitos que fazem excepção ao disposto no n. 1 do artigo 1696 do Codigo Civil - artigo 65 do Codigo da Estrada; artigo 10 do Codigo Comercial; artigo 161 do Codigo das Custas, e artigos 1692, alinea b), e 1696, n.3, do Codigo Civil - apresenta-se inteiramente distinta e independente da eventual forma que revistam os creditos a reclamar.
Tendo o aludido assento de 27 de Novembro de 1964, fixado, pois, a doutrina de que, no dominio das relações imediatas, se pode discutir, para os efeitos do artigo 10 do Codigo Comercial, se as obrigações cambiarias tem ou não natureza substancialmente comercial, a mesma interpretação e de fazer, pelas razões expostas, quando tais titulos tiverem ja entrado em circulação.
Não interfere com esta solução a nova redacção que o Decreto-Lei n. 363/77, de 3 de Setembro, veio dar aquele artigo 10 do Codigo Comercial.
Realmente o novo preceito não pode ser tido em conta no aspecto jurisdicional deste acordão - em que se decide o caso concreto -, porque, na parte em que não reproduz a disposição anterior, e um preceito inovador, que rege para o futuro, sendo inaplicavel a disciplina de relações juridicas ja findas; e não influencia o aspecto normativo desta decisão - em que se resolve o conflito de jurisprudencia -, porque nem a anterior redacção do artigo, nem a actual, se referem ao ponto concreto agora apreciado e decidido.

Pelos fundamentos expostos concede-se provimento ao recurso, para o efeito de ficar subsistindo nos autos o despacho da 1 instancia, e, para resolução do conflito de jurisprudencia, lavra-se o seguinte assento:
"Nas execuções fundadas em titulos de credito, o pagamento das dividas comerciais, de qualquer dos conjuges, que tiver que ser feito pela meação do devedor nos bens comuns do casal, so esta livre da moratoria estabelecida no n. 1 do artigo 1 696 do Codigo Civil, ao abrigo do disposto no artigo 10 do Codigo Comercial, mesmo no dominio das relações mediatas, se estiver provada a comercialidade substancial da divida exequenda".
Custas pelo recorrido.

Lisboa, 13 de Abril de 1978

Rodrigues Bastos (Relator) - Costa Soares - Alberto Alves Pinto - Octavio Dias Garcia - João Moura, Vencido. Entendi que o portador mediato de letras de cambio, que obteve sentença condenatoria dos respectivos montantes contra o devedor casado, pode na subsequente execução fazer penhorar bens comuns do casal, mesmo que o outro conjuge não tivesse intervindo por qualquer forma na respectiva acção declarativa. Isto porque o Decreto-Lei n. 363/77, de 2 de Setembro, que tem de aplicar-se a hipotese em causa, pois não ha qualquer situação definida que afaste tal aplicação, preceitua que pode ser exigido de qualquer dos conjuges o cumprimento duma obrigação emergente de acto de comercio, ainda que este seja apenas em relação a uma das partes e afastando textualmente a moratoria do n. 1 do artigo 1696 do Codigo Civil.
Ora, a letra e acto de comercio por especialmente regulada na lei comercial, a interpretação dada pelo acordão de 27 de Novembro de 1964, foi afastada pelo mencionado Decreto, como consta do relatorio, e o desconto bancario que o titulo incorpora e acto comercial, pelo menos em relação ao Banco. Alem de tudo, face ao artigo 17 da Lei Uniforme ao portador mediato não pode ser aposta a natureza não substancial da divida incorporada no titulo.
Daniel Ferreira, Vencido: Votei no sentido da prevalencia da doutrina do acordão recorrido que subscrevi como relator.
Tem voto de conformidade dos Excelentissimos Conselheiros Abel de Campos, Santos Vitor, Eduardo Botelho de Sousa,
Avelino da Costa Ferreira, Hernani de Lencastre,
Aquilino Ribeiro, Amandio Cruz, Acacio de Carvalho, Jose Montenegro e Jose Garcia da Fonseca, que não assinam por não se encontrarem presentes, tendo os dois ultimos destes deixado de pertencer a este Tribunal. Tem voto de vencido dos Excelentissimos Conselheiros Bruto da Costa,
Artur Moreira da Fonseca, Antonio Viana Correira Guedes,
Rui de Matos Corte-Real e Adriano Vera Jardim, que não assinam, por não estarem presentes.