Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08P3180
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARMINDO MONTEIRO
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
PERDA DE BENS A FAVOR DO ESTADO
PRESUNÇÃO DE PROVENIÊNCIA ILEGÍTIMA
CONSTITUCIONALIDADE
EQUIDADE
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
IN DUBIO PRO REO
Nº do Documento: SJ20081112031803
Data do Acordão: 11/12/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :
I - No art. 1.º, al. a), da Lei 5/2002, de 11-01 (alterada pela Lei 19/2008, de 21-04), que estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira, fixa-se um regime especial de recolha de prova, quebra do segredo profissional e perda de bens a favor do Estado, relativa, além do mais, aos crimes de tráfico de estupefacientes, nos termos dos arts. 21.º a 23.º e 28.º do DL 15/93, de 22-01.
II - Nos termos do seu art. 7.º, em caso de condenação pela prática de crime referido no art. 1.º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de actividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.
III - O legislador, rompendo com a nossa tradição jurídica, introduz, de motu próprio, uma presunção juris tantum: se alguém se dedica a certa actividade ilícita que propicia, como regra, rendimentos avultados, nem sempre fáceis de quantificar, é de presumir que esses benefícios patrimoniais são de proveniência ilegítima.
IV - Tal presunção legal de ilicitude na proveniência nada tem de inaceitavelmente agressivo aos direitos fundamentais do cidadão, na medida em que, em primeiro lugar, opera apenas no âmbito de crimes de catálogo (os mencionados no seu art. 1.º); depois, porque a presunção, base do confisco, supõe a prévia condenação por um daqueles crimes; por outro lado, ela é direccionável, apenas, ao seu produto, às vantagens dele derivadas, assente num propósito de prevenção da criminalidade em globo, ligado ao velho aforismo de que o crime não compensa, de reafirmar tanto sobre o agente do facto típico (prevenção especial individual) como sobre a sociedade em geral, com reflexo ao nível do reforço da vigência da norma (prevenção geral positiva ou de integração); por fim, e não menos essencial, o arguido pode arredar a presunção, demonstrando, no exercício do seu pleno direito de contraditório, a proveniência lícita dos bens ou vantagens supostamente liquidados pelo MP com o rótulo de ilícitos.
V - O TC tem frisado, e constitui entendimento doutrinário assente, que o direito de propriedade, tal como previsto no art. 62.º, n.º 1, da CRP, não é garantido em termos absolutos, mas sim dentro dos limites e com as restrições definidas noutros lugares do texto constitucional ou na lei, quando a Constituição para ela remeter, ainda que possa tratar-se de limitações constitucionalmente implícitas – cf. Ac. TC n.º 294/2008, Proc. n.º 11/08 - 3.ª secção.
VI - E, na mesma linha de orientação, o Ac. TC n.º 340/87 (DR n.º 220, II Série, de 24-09-1987) entendeu que o art. 108.º do CP82 (também na sua redacção originária), que prevê a perda a favor do Estado de objectos de terceiro, não é inconstitucional, por violação do direito de propriedade, por ser de considerar que esse direito constitucional pode ser sacrificado em homenagem aos valores da segurança das pessoas, da moral ou da ordem pública, enquanto elementos constitutivos do Estado de Direito democrático, posicionados, na colisão de direitos estabelecida, num plano hierárquico superior.
VII - A previsão de um mecanismo especial de perda de bens a favor do Estado por força da Lei 5/2002, tomando por base a presunção de obtenção de vantagens patrimoniais ilícitas através da actividade criminosa – afirmou-se no mencionado aresto do TC, citando Damião da Cunha (Perda de Bens a Favor do Estado, CEJ, 2002, págs. 7, 10 e 26) –, estando em causa graves crimes, como é o caso do tráfico de estupefacientes, é perfeitamente conforme à CRP.
VIII - Não deixa de impressionar, em favor da legalidade da presunção, que a recente Lei 19/2008, de 21-04, que alterou a Lei 5/2002, tenha deixado intocada a presunção, o que vem em reforço da tese de uma firme e incontornável posição do legislador na matéria, que entendeu, conscientemente, não dever alterar.
IX - Mas o estabelecimento de uma presunção é uma indicação clara de que a Lei 5/2002 introduziu no processo penal um procedimento que se afasta dos seus cânones, pelo que o julgador deve verificar se estão reunidos os pressupostos que configuram a base factual daquela presunção e, depois, constatar se o arguido deduz contraprova quanto à presunção da proveniência ilícita do produto do crime.
X - Prioritariamente, o julgador deve socorrer-se da prova produzida em tribunal e, depois, fazer funcionar a presunção, fixando o facto legalmente presumido, na esteira de que quem usufrui de uma presunção está dispensado de provar os factos a que ela conduz, nos termos do art. 344.º, n.º 1, do CC.
XI - A presunção estende-se, apenas, à ilicitude da proveniência de bens ou produta sceleris, não já ao conteúdo material deste, à sua amplitude: quanto ao exacto quantitativo daqueles rege o poder-dever de o tribunal, com o figurino dos sujeitos processuais, proceder à sua indagação.
XII - A metodologia de cálculo com base na equidade apenas tem lugar quando a lei o permita (art. 4.º, al. a), do CC), e em processo penal não tem aplicação, salvo no caso do enxerto cível, mas aí por incorporação das regras de direito substantivo civil – arts. 129.º do CP e 124.º, n.º 2, do CPP.
XIII - E as provas admissíveis em processo penal, enquanto factos jurídicos com relevância para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança, por força do art. 124.º do CPP, são as que não forem proibidas por lei, visto o art. 125.º do mesmo diploma, que enuncia o princípio da legalidade, da taxatividade dos meios de prova.
XIV - O STJ não se intromete na matéria de facto fixada, como tribunal de revista que é, estando-lhe vedado sindicar a assente nas instâncias, porque não teve acesso às provas que desfilaram perante o Colectivo, mas em sede de recurso pode exercer a adequada censura sobre a legalidade das provas de que o tribunal se serviu para fixar a matéria de facto, designadamente se elas envolvem violação da lei, porque se está perante matéria de direito.
XV - Em processo penal, ou se produz prova convincente sobre a realidade de um facto ou a dúvida sobre tal realidade funciona em favor do arguido, e, no aspecto em que o princípio se prende com o controlo da legalidade dos meios de prova, «das violações do grau de convicção necessário para a decisão, das proibições de prova e da presunção da inocência pelo tribunal de recurso» (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário ao Código de Processo Penal, pág. 347), a questão já reveste a natureza de matéria de direito, assistindo a este STJ o poder de sindicabilidade do uso devido ou indevido daquele princípio estruturante do processo penal.
XVI - Numa situação em que o Colectivo se serviu do art. 566.º, n.º 3, do CC para, com base na equidade, fixar o quantitativo dos ganhos derivados do tráfico de droga, por inexistência do seu específico valor e em ordem a superar a indefinição do volume do lucro ilegítimo, importa concluir que decidiu, na dúvida em que incorreu – pois de outro modo não faria apelo ao juízo ex aequo et bono –, contra o arguido, violando o princípio in dubio pro reo na afirmação daquele efeito penal da condenação.
XVII - Consequentemente, por insuficiência de base factual, revertendo a dúvida em favor do arguido, a condenação na perda a favor do Estado (do valor de € 11 090) não pode manter-se, sendo de revogar, nessa parte, o decidido.
Decisão Texto Integral: