Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3306/12.2TBPTM-A.E1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: CHEQUE
EXEQUIBILIDADE
CONTRATO DE MÚTUO
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
OPONIBILIDADE
EMBARGOS DE EXECUTADO
DAÇÃO EM FUNÇÃO DO CUMPRIMENTO
RELAÇÕES IMEDIATAS
CESSÃO DE CRÉDITOS
NULIDADE DO CONTRATO
Data do Acordão: 02/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADAS AS REVISTAS
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / REVISTA EXCEPCIONAL – PROCESSO DE EXECUÇÃO / TÍTULO EXECUTIVO / ESPÉCIES DE TÍTULOS EXECUTIVO.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / NULIDADE E ANULABILIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO / QUEM PODE FAZER E A QUEM PODE SER FEITA A PRESTAÇÃO / CAUSAS DE EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES ALÉM DO CUMPRIMENTO / DAÇÃO EM CUMPRIMENTO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 635.º, N.º 4, 672.º, N.º 3 E 703.º, N.º 1, ALÍNEA C).
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 289.º, 770.º E 840.º, N.º 2.
LEI UNIFORME RELATIVA AOS CHEQUES (LUCH): - ARTIGO 22.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 13-11-2003, PROCESSO N.º 03B3628;
- DE 09-03-2004, PROCESSO N.º 4109/03, AMBOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. A excepção de nulidade da relação jurídica subjacente (nulidade dos contratos de mútuo dos autos por vício de forma) é oponível ao exequente pelo executado embargante em sede de relações imediatas (cfr. art. 22º da LUCh), fazendo nascer para este a obrigação de restituição das quantias entregues (art. 289º do CC).

II. Tendo os cheques dados à execução sido emitidos por valor correspondente ao valor de cada um dos contratos de mútuos nulos, tais cheques consubstanciam, nos termos do art. 840º, nº 2, do CC, dações pro solvendo quanto à satisfação do crédito respeitante à restituição da quantia em causa, pelo que, de acordo com jurisprudência anterior deste Supremo Tribunal (que se mantém válida à luz do regime do art. 703º, nº 1, alínea c), do CPC de 2013), se conclui que, tal como entendeu a Relação, a nulidade dos mútuos não afecta a exequibilidade dos referidos cheques.

III. Tendo sido provado que, diversamente do que ocorre com os outros dois cheques dos autos, o terceiro cheque, ainda que passado à ordem do exequente, não se reporta a quantias por este entregues ao executado embargante, mas antes a montantes entregues por N ao executado, com o acordo de este os restituir, não merece censura o entendimento da Relação de que, sendo nulo o contrato de mútuo celebrado entre N e o aqui executado, nula será também a cessão do crédito celebrada entre N e o aqui exequente.

IV. Relativamente à parcela da quantia exequenda correspondente ao cheque indicado em III, é de confirmar a decisão de extinção parcial da execução, ainda que com fundamento na invalidade da obrigação exequenda e não em ilegitimidade.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




1. AA, Executado nos autos principais em que é Exequente BB, deduziu oposição à execução, peticionando a procedência da mesma e consequente absolvição do pedido exequendo.

Alegou para o efeito, e em síntese, que:

- Os cheques que o Exequente apresentou como títulos executivos não resultam de quaisquer quantias mutuadas por aquele, antes se destinando a esclarecer quais os valores que eventualmente, no futuro, poderiam ser devidos por AA ao Exequente, no âmbito do negócio CC;

- Tal negócio consubstanciou-se num contrato, celebrado entre o Oponente e a sociedade CC, no âmbito do qual esta sociedade adquiriria dois prédios rústicos, sendo um deles propriedade de AA e um outro um prédio cuja propriedade se viria a transmitir para o Exequente, estando já à data celebrado contrato-promessa, tendo em vista a concretização (após o competente loteamento) de uma construção com fins imobiliários.

- Na concretização de tal negociação entregou ao Exequente o montante total de € 1.296.380,00, sendo que parte destas quantias se reportava já ao referido acerto de contas, isto é, não visava uma entrega de capitais ao Exequente, mas sim garantir um eventual e futuro pagamento que apenas ocorreria se o negócio CC se concretizasse, sendo tal o motivo pelo qual não se procedeu ao preenchimento das datas de vencimento dos cheques.

- O negócio com a sociedade CC ainda não se concretizou na plenitude, pelo que o valor de tais cheques não é devido.

- No que concerne à letra que o Exequente igualmente apresentou como título executivo, no valor de € 135.000,00, a mesma resulta da celebração de um pacto de favor, em que é favorecente o Oponente e favorecido o Exequente, sendo que a emissão de tal título de crédito apenas visou permitir que o Exequente se pudesse financiar em instituições bancárias, isto é, funcionando como uma garantia, não contendo qualquer ordem de pagamento do Oponente ao Exequente.  

O Exequente contestou, alegando que:

- No concernente ao montante de € 1.296,380,00 (no âmago do negócio CC que refere não se relacionar com a emissão dos títulos executivos), o mesmo provém de um contrato de associação em participação, sendo referente à quota parte devida ao Exequente em tal negócio;

- O negócio consistia em adquirir dois prédios rústicos para posterior constituição de três lotes, sendo que um deles seria vendido à sociedade CC;

- No que diz respeito aos títulos executivos, os mesmos consubstanciam-se em meios/ordens de pagamento válidas, estando o Oponente obrigado ao pagamento dos montantes neles inscritos, não sendo verdadeira a versão relatada pelo Executado.

Pediu a condenação do Executado como litigante de má-fé.


Por sentença de fls. 1139 os embargos foram julgados improcedentes.

Inconformado, interpôs o Executado recurso para o Tribunal da Relação de Évora, pedindo a modificação da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de fls. 1216 foi proferida a seguinte decisão:

“Pelo exposto, acordam os juízes da 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação em:

- julgar extinta a execução, por ilegitimidade do recorrido, relativamente à quantia de € 47.320,28 inscrita no cheque com o n.º 85…9 dado à execução;

- não tomar conhecimento da apelação no que se refere ao objecto delineado pelas conclusões 37 a 41 da minuta recursória;

- julgar, no mais, improcedente a apelação.”


2. Veio o Executado/embargante interpor recurso, por via excepcional, para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões (das quais se excluem as conclusões relativas à admissibilidade do recurso por via excepcional, salvo na medida em que contêm argumentos sobre as questões a decidir no presente acórdão):

“1. Vem o presente Recurso interposto do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora prolatado no processo n.° 3306/12.2TBPTM-A.E1, o qual veio confirmar parcialmente a decisão proferida pelo Tribunal a quo, na parte em que veio considerar exigíveis e válidos 2 (dois) dos 3 (três) títulos cambiários (no caso em apreço, cheques) dados à execução pelo Exequente, não obstante ter considerado que todos os títulos cambiários tinham por subjacentes contratos de mútuo que por nem sequer terem sido reduzidos a escrito e atento os respetivos valores dos cheques, os considerou oficiosamente como nulos por falta de forma.

2. Nas respetivas alegações, o ora Recorrente veio defender a tese da inexigibilidade te tais títulos de crédito, em virtude dos mesmos terem na sua base contratos de mútuo nulos por falta de forma legal (escritura pública).

3. Ora, no caso do mútuo, tem sido entendimento jurisprudencial e doutrinário que sendo o negócio subjacente um negócio jurídico formal, a causa do negócio jurídico é um elemento fundamental do título executivo. E porque do título cambiário não consta a causa da obrigação, não pode este valer como título executivo.

4. Em caso de invalidade formal do negócio jurídico, afetada ficará, pois, não só a constituição do próprio dever de prestar, como, também, a eficácia do respetivo documento como título executivo.

5. Em resposta à tese defendida pelo Recorrente e supra sinteticamente expendida e como justificação para manter válidos 2 (dois) dos 3 (três) títulos dados à execução (e inviabilizar o terceiro), veio a decisão ora revidenda estribar-se em entendimento diverso do defendido pelo ora Recorrente (e também seguida por alguns tribunais superiores), no sentido da nulidade dos mútuos subjacentes à emissão de cheques não imporem a sua inexigibilidade como títulos de crédito, visto estes serem dotados de autonomia em relação à respetiva relação subjacente.

(…)

8. Da relevância jurídica da questão. Afigura-se manifesto que (pelo menos) a jurisprudência tem-se dividido sobre qual a repercursão da nulidade de um contrato de mútuo nulo por falta de forma sobre a exequibilidade do cheque que o representa ou garanta. Assim, enquanto para alguma jurisprudência "o cheque representa uma obrigação cambiária distinta da obrigação causal ou subjacente, caracterizada pela literalidade e abstracção, que tem vida própria e não sai afectada pela nulidade de mútuo que lhe esteja subjacente.", já para outra jurisprudência: "A nulidade do contrato de mútuo inquina de invalidade o título que o pretende representar - no caso um cheque - tornando-o inexequível, já que a nulidade da obrigação causal produz a nulidade da obrigação cartular" - vide, a título de exemplo, o Ac. RP de 06/05/2003 in JTRP00035738, acessível no sítio da Internet dgsi.pt.

9. Afigura-se, pois, que a resolução para a questão trazida em sede do presente recurso, por se mostrar bastante dividida na jurisprudência, inexistindo ainda qualquer acórdão uniformizador quanto a ela, preencherá o requisito imposto pela al. a) do n.° 1 do art.° 672.° do CPC.

10. Ademais, a mesma se afigura bastante relevante atenta a sua repercussão num universo indeterminado de possíveis (e expectáveis) casos futuros, uma vez que os mútuos entre particulares são recorrentes e ainda mais recorrentes serão os mútuos que não obedecem à forma prescrita pela lei atento os seus valores, não raro surgindo para os representar ou garantir a emissão e entrega de títulos de crédito pelo devedor mutuário, mais concretamente cheques.

11. Daí sendo de fulcral importância pacificar a comunidade jurídica quanto a saber da exigibilidade ou não de um determinado título de crédito em ação de execução (no caso em apreço um cheque) que tenha por subjacente um negócio jurídico nulo (mútuo) por falta de forma prescrita pela lei.

(…)

15. Da contradição do acórdão revidendo com o acórdão prolatado pelo Tribunal da Relação do Porto, de 06-05-2003, transitado em julgado. Por fim, afigura-se ainda existir uma convocada contradição entre o acórdão que ora se pretende impugnar (doravante acórdão recorrido) e um outro, já transitado em julgado, prolatado pelo Tribunal da Relação do Porto em 06-05-2003, e cuja cópia integral vai junta (doravante identificado como acórdão-fundamento).

(…)

19. O acórdão fundamento traz como seu sumário o seguinte: (...) «A nulidade do contrato de mútuo inquina de invalidade o título que o pretende representar - no caso um cheque -, tomando-o inexequível, já que a nulidade da obrigação causal produz a nulidade da obrigação cartular».

20. Tal aresto tem na sua génese um cheque que veio as ser dado à execução pela ali exequente, e cujo tribunal de primeira instância, tendo conhecido oficiosamente da circunstância de tal cheque se destinar ao pagamento de um mútuo concedido pela exequente ao executado nulo por falta de forma, julgou procedentes os embargos deduzidos pelo executado e declarou extinta a execução, com fundamento na nulidade, por falta de forma, do contrato de mútuo, subjacente ao título executivo.

21. Já o acórdão recorrido tem na sua génese três cheques os quais veio reconhecer estarem subjacentes contrato de mútuos os quais considerou oficiosamente nulos por falta de forma.

22. Porém, muito embora tivesse o acórdão recorrido decidido pela inexequibilidade do terceiro cheque (em virtude de ter subjacente não só um contrato de mútuo nulo, mas ainda uma cessão de créditos entre o mutuante original e o exequente), veio considerar os outros dois cheques como exequíveis.

23. Do confronto entre os arestos em apreço, resulta que em face de uma factualidade subjacente em tudo semelhante (de facto, em ambos os casos estamos perante cheques dados à execução que tiveram por subjacente contratos de mútuo oficiosamente considerados nulos por falta de forma legalmente prevista), deparamo-nos com duas soluções jurídicas diemetricamente antagónicas dadas à questão fundamental de direito apreciada.

24. É que enquanto no acórdão fundamento se entendeu (e na opinião do ora Recorrente, bem) que o título dado à execução deixou de ser exequível, em face da decretada nulidade da obrigação fundamental e da cartular, deixando, por isso, de ser título de crédito, com as inerentes características de abstracção, literalidade e autonomia, e não servindo de quirógrafo da obrigação causal, visto a mesma ser nula, tanto mais que emerge de um negócio jurídico formal (art.° 221°, n.° 1 do C. Civil) e daí que não pudesse valer como título executivo;

25. Já, porém, no acórdão recorrido se sufragou o entendimento de que a emissão dos cheques ali em apreço implicou a constituição de uma obrigação cambiária que é dotada de autonomia em face às relações subjacentes, não obstante se reconhecer serem estas últimas nulas e oponíveis ao respetivo portador (i.e. o ali exequente), sendo que este último (como portador legítimo dos cheques), poderá, ainda assim, exercer as seus direitos de acção contra o executado, como sacador e exigir-lhe o pagamento das quantias tituladas nos respetivos cheques e juros desde as respetivas datas da apresentação a pagamento (arts. 40.°, 44.° e 45.° da Lei Uniforme Relativa ao Cheque).

26. A tese sufragrada no acórdão fundamento afigura-se ser a posição atualmente dominante na jurisprudência. Na verdade, se formalmente o cheque dado à execução está revestido de exequibilidade (trata-se, pois, de documento assinado pelo devedor, no qual é reconhecida uma obrigação pecuniária de montante determinado), a verdade é que se a dívida é emergente de um contrato de mútuo, que atentas as quantias envolvidas é nulo por vício de forma (art.° 1143.° do Código Civil), tal será razão para retirar a exequibilidade ao respetivo título de crédito.

27. É que se o contrato de mútuo que deu origem ao documento que serve de título executivo é nulo, não pode tal documento (o cheque) estar revestido de força executiva, pois os efeitos daquela nulidade reflectem-se no título. Ou seja, se formalmente o documento em apreço (i.e. o cheque) tem os requisitos legais para ser título executivo, substancialmente não os tem pois a relação subjacente ao mesmo está viciada - nulidade.

28. Ora, a nulidade da relação subjacente - contrato de mútuo - afecta a validade do documento enquanto título executivo. Importa recordar que estamos perante uma acção executiva na qual se pretende realizar coercivamente um direito. Ora, este direito ainda não está declarado. O contrato do qual aquele direito pode emergir é nulo.

29. Assim ao credor/exequente importa ver, em primeiro lugar, declarado esse direito e para tanto necessita de propor contra o devedor/executado a respectiva acção declarativa e só após obter uma condenação (na restituição da quantia mutuada) é que poderá intentar a respectiva acção executiva.

30. Acrescente-se ainda que esta interpretação é a que mais se coadunará à exigência de forma imposta pelo legislador civil para mútuos a partir de determinado valor, pois uma interpretação diversa, designadamente que admita a exequibilidadade de títulos de crédito que têm por subjacente um contrato de mútuo nulo por falta de forma, no fundo esvaziaria a razão pela qual o legislador impõe para a validade de determinados contratos de mútuo uma forma mais solene (a escritura pública) visto que com a emissão de um cheque que titulasse o pagamento do mútuo, o mutuante teria acesso imediato à ação executiva. E nesse caso, pergunta-se: qual a grande vantagem das partes cumprirem com o dispositivo legal de forma imposto para mútuos a partir de determinado valor, se está ao seu dispor um mecanismo paralelo e bem mais barato (emissão de um cheque) que permitirá atingir o mesmo desiderato (lançar mão de uma ação executiva para a restituição do capital)?”


         Não houve contra-alegações.


 O Exequente/embargado interpôs também recurso de revista, por via normal, formulando as seguintes conclusões que, não obstante serem em grande medida repetitivas do corpo das alegações, ainda assim permitem identificar as questões objecto do recurso:

“A – A questão agora em causa circunscreve-se à nulidade dos contratos de mútuo e à decisão dos Exmos. Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora, que alteraram, oficiosamente, a decisão da 1.ª Instância, concluindo a final pela ilegitimidade do exequente, ora recorrente, para peticionar o crédito dado como provado no ponto 24. (fls. 48 da Douta Decisão de que se recorre), e cuja matéria de facto dada por provada foi, na integra, mantida pelo Venerando Tribunal de que ora se recorre, obtendo-se assim quanto aos factos provados e não provados, dupla conforme.

B – Foram emitidos 3 cheques pelo Senhor AA ao Senhor BB, ora recorrente, todos os referidos cheques foram entregues pelo 1.º ao 2.º, porquanto o mesmo devia e deve, as quantias que se encontram inscritas nos respectivos cheques.

C – No que respeita aos cheques melhor identificados nos pontos 18. e 21. da matéria de facto dada e confirmada como provada, entendeu o Venerando Tribunal da Relação do qual ora se recorre que: “A entrega desses cheques pelos valores correspondentes tais mútuos ajustados que padecem de nulidade por falta de forma, deve, por outro lado, ser considerado como uma dação pro solvendo (n.º 1 do art.º 840.º do Cod. Civil), a qual, tendo por base a cessão de um crédito se presume que não satisfaz o crédito (n.º 2 do mesmo preceito). O recorrido, como portador legítimo dos cheques, pode, assim, exercer os seus direitos de acção contra o recorrente, como sacador, podendo exigir-lhe o pagamento das quantias nele tituladas e juros desde a data da apresentação a pagamento (art.ºs 40.º, 44.º e 45.º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque).

D – No entanto, no que concerne ao cheque dado por provado e confirmado no Douto Acórdão do Venerando Tribunal do qual agora se recorre, o qual também se encontra emitido à ordem do ora recorrente, concluiu o Venerando Tribunal de modo diverso porquanto entendeu que o recorrente não tinha legitimidade para peticionar tal quantia, extinguindo desse modo parcialmente a execução.

E – Ora é exatamente quanto a esta questão em concreto, porquanto entende que o Venerando Tribunal olvidou tudo o demais quanto ficou provado, no que concerne ao cheque identificado no ponto 24.º, que o ora recorrente se insurge.

F – Isto porquanto o montante entregue pela sua familiar DD, ao Senhor AA foi de cinquenta mil euros e não de quarenta e sete mil, trezentos e vinte euros e vinte e oito cêntimos. Tal quantia, quarenta e sete mil, trezentos e vinte euros e vinte e oito cêntimos, foi aposta no cheque identificado no ponto 24.º, porquanto o Senhor AA emitiu o cheque ao ora recorrente, muito depois de este ter efectuado a cessão da posição contratual e ter liquidado o mútuo à sua Tia.

G – Tanto mais que o conhecimento de tal facto pelo Senhor AA, é tão óbvio, que permite aquando da emissão do cheque à ordem do recorrente BB, fazer um acerto de contas emitindo valor diferente do que lhe havia sido primeiramente mutuado pela Senhora DD.

H – Ou seja, à data da emissão, entrega e preenchimento do cheque identificado no ponto 24.º, o agora recorrido tem pleno conhecimento, que o dinheiro é devido ao Senhor BB, ora recorrente, e não à Senhora sua Tia, e só por esse motivo é que o emite à ordem do ora recorrente, não ocorrendo por tal motivo qualquer excepcção de ilegitimidade por parte do ora recorrente, porquanto o mesmo é titular do crédito, sendo que o titulo executivo agora em análise foi emitido à sua ordem.

I – Face ao exposto e tendo em atenção a substituição de uma primitiva prestação por outra, e a diferença no facto de a extinção daquela prestação ser incondicional no primeiro caso e, no segundo, depender da condição de realização do respectivo direito de crédito, tendo o mutuário de dinheiro entregue ao mutuante, na sequência de acerto de contas relativo a contratos de mútuo nulos por falta de forma, e reconhecimento face ao segundo pelo primeiro da sua obrigação de restituição, um cheque com determinado valor nele inscrito, a situação configura-se como mera datio pro solvendo.

J – A questão da ilegitimidade nunca se colocou, porquanto o devedor bem sabe que a pessoa a quem deve o dinheiro foi efectivamente a pessoa a quem passou os cheques.

K – Pelo que e no que concerne ao cheque identificado no ponto 24., e à semelhança dos identificados nos pontos 18 e 21 dos factos provados, deve proceder o raciocínio e conclusão expendidos na Douta Decisão prolatada pelo Venerando Tribunal da Relação, e considerar-se o ora recorrente “como portador legítimo dos cheques, pode, assim exercer os seus direitos de acção contra o recorrente, como sacador, podendo exigir-lhe o pagamento das quantias neles tituladas e juros desde a data da apresentação a pagamento (art.ºs 40.º, 44.º e 45.º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque).”


         Não houve contra-alegações.

        

3. Por acórdão de fls. 1385 da Formação a que alude o nº 3, do art. 672º do Código de Processo Civil, o recurso do Executado embargante foi admitido.

     O recurso de revista do Exequente embargado, interposto por via normal, é admissível.


         Cumpre decidir.


4. Vem provado o seguinte (mantêm-se a identificação e a redacção das instâncias):

1. AA garantiu ao Exequente que tinha um interessado na aquisição dos lotes por preço não concretamente determinado.

2. No âmbito do acordo em que participariam o Executado e o Exequente, aquele propôs que o Exequente financiasse a aquisição do prédio referido em 10 e ainda que o Exequente adquirisse o prédio referido em 11.

3. Em data não concretamente apurada, mas não posterior a Abril de 2006, o Oponente e a sociedade CC- Sociedade Imobiliária. S.A. encetaram negociações tendo em vista a venda pelo primeiro, do prédio rústico referido em 10.;

4. O Oponente informou a sociedade CC que o negócio poderia ainda incluir o prédio identificado cm 11.

5. A sociedade CC e o Exequente mostraram interesse na realização do negócio descrito.

6. Em data não concretamente apurada, mas não posterior ao ano de 2006, o Executado propôs ao Exequente a celebração de um acordo conjunto no âmbito do qual comprariam dois prédios, os referidos nos factos 15 e 16.

7. Ficou apalavrado entre as partes que da venda dos terrenos identificados em 15 e 16 seria efectuado um loteamento do qual resultariam três lotes, um deles destinado à construção de um empreendimento turístico, para imediata revenda, e os outros dois lotes, destinados à construção de duas moradias unifamiliares, uma a edificar em cada lote, ficando um lote pertencente ao Exequente e o outro ao Executado.

8. No âmbito do negócio de venda dos prédios à sociedade CC, cabia a cada um metade do valor pago por tal sociedade e ainda a repartição entre si de dois lotes destinados a edificação de duas moradias unifamiliares, cabendo ao Exequente um lote com 2.335 m2 e com 350,25m2 de área máxima construtiva, e ao Executado um lote com 4.379,80m2 c com 656.90m2 área máxima construtiva.

9. Exequente e Executado celebraram o acordo que é fls. 174 a 177 dos autos, que denominaram "contrato de mútuo" onde se lê: "Primeiros Outorgantes: BB (...) e EE (…) designados por MUTUANTES  

(…) Segundo Outorgante: AA (…) designado por MUTUÁRIO (...) e Terceiro Outorgante: FF (...)

A) O Segundo Outorgante pretende comprar o prédio (…) situado em Delgadas, com a área de 19.800m2 (dezanove mil e oitocentos melros quadrados), na Freguesia de …, Concelho de …, descrito na Conservatória de Registo Predial de … com o n.º 029031310300, e inscrito na respectiva matriz rústica sob o Art 54-Secção L e na urbana sob o Art. 4937

B) O prédio identificado na alínea A) do presente considerando destina-se a revenda, encontrando-se na presente data, já outorgado um contrato-promessa de compra e venda, celebrado entre o Segundo Outorgante e a sociedade comercial denominada por CC - SOClEDADE IMOBILIÁRlA, S.A.

C) Pelo presente contrato os MUTUANTES emprestam ao Mutuário a quantia de Eur. 200.000.00 (Duzentos Mil Euros).

2.1/,.1) Pela presente, o MUTUÁRIO declara que recebeu, dos MUTUANTES a quantia de Eur. 200.000,00 (...)

5. Por via do presente contrato, o Segundo Outorgante pagará aos Primeiros, metade do capital resultante do reforço de sinal previsto no contrato-promessa referido na alínea D) do Considerando, caso e na condição de reforço de sinal seja efectivamente pago, e nas condições previstas nesse contrato (...)

10. O Exequente pagou em 05/04/2006 à sociedade comercial GG - INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA, por conta do preço do prédio referido em 15. o montante de 100.000,00 (cem mil euros);

11. O Executado comprometeu-se a repartir com o Exequente metade do capital resultante dos pagamentos efectuados pela CC e descritos no acordo referido em 9.

12. Mostra-se registada a favor do Oponente, por aquisição de 5 de Abril de 2006, a propriedade do prédio misto sito em …, com a área de 19.800 m2, na freguesia de …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … com o n.º 2903 e inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o artigo 54-Secção L e na urbana sob o artigo 4937;

13. Mostra-se registada a favor do Exequente a propriedade do prédio, de natureza rústica sito em …, na freguesia de …, concelho de …, com a área de 6.480 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de … com o n.º 2191, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 17. Secção L;

14. Em 6 de Abril de 2006, o Opoente celebrou acordo que as partes denominaram de "contrato-promessa de compra e venda" com a sociedade CC, pelo qual aquele prometeu vender e esta última comprar os lotes que viessem a ser constituídos nos prédios referidos em 15 e 16.;

15. O negócio definitivo de aquisição e construção de lotes ainda não se mostra celebrado.

16. O Opoente recebeu da CC o valor global de €2.393.400,00 (dois milhões, trezentos e noventa e três mil e quatrocentos euros), tendo tal valor sido entregue através de oito cheques, a saber:

1) Cheque datado de 07.04.2006, no valor de € 278.680,00;

2) Cheque datado de 07.04.2006, no valor de € 200.000,00;

3) Cheque datado de 06.10.2006, no valor de € 478.680,00;

4) Cheque datado de 10.04.2007, no valor de € 478.680,00;

5) Cheque datado de 08.10.2007, no valor de € 478.680,00;

6) Cheque datado de 21.07.2008, no valor de f 190.680,00:

7)Cheque datado de 21.07.2008. 110 valor de € 190.680,00;

8) Cheque datado de 11.07.2008, no valor de € 188.000,00;

17. O Opoente entregou ao Exequente a quantia global de € 1.296.380,00 (um milhão duzentos e noventa e seis mil e trezentos e oitenta euros), relativa ao valor recebido por aquele da sociedade CC, tendo tal valor sido entregue através:

1) do cheque datado de 07.04.2006, no valor de EUR. 278.680,00, proveniente da sociedade CC, Lda;

2) do cheque datado de 21.07.2008, no valor de EUR. 190.680,00, proveniente da CC, Lda:

3) do cheque datado de 11.04.2006, no valor de EUR. 125.000,00;

4) do cheque datado de 16.10.2006, no valor de EUR. 226.840.00;

5) do cheque datado de 17.04.2007. no valor de EUR. 235.840,00;

6) do cheque datado de 15.10.2007. no valor de EUR. 239.340,00.

18. O Exequente juntou aos autos de execução cópia de documento com o número 13…7 onde se lê que "Pague por este cheque EUROS", mostrando-se inscrito em tal campo o montante de € 100.00,00 (cem mil euros) e mostrando-se inscrito na data de emissão o dia 2008/02/27. No campo designado "à ordem de" mostra-se preenchido o nome do Exequente.

19. Tal documento mostra-se emitido pelo Oponente e por si assinado.

20. No verso do mesmo mostram-se apostas as expressões "CEMG- APRES. COMP. LISBOA 2012•08•24" e "DEVOLVIDO NA COMPENS. LISBOA EM 2012-08-27 MOTIVO: FALTA/INSUF. PROV.”;

21. O Exequente juntou aos autos de execução cópia de documento com o número 80…4 onde se lê que "Pague por este cheque EUROS", mostrando-se inscrito em tal campo o montante de € 36.000,00 (trinta e seis mil euros) e mostrando-se inscrito na data de emissão o dia 2012/08/23. No campo designado "à ordem de" mostra-se preenchido o nome do Exequente.

22. Tal documento mostra-se emitido pelo Oponente e por si assinado.

23. No verso do mesmo mostram-se apostas as expressões "CEMG- APRES. COMP. LISBOA 2012-08-24" e "DEVOLVIDO NA COMPENS. LISBOA EM 2012-08-27 MOTIVO: FALTA/INSUF. PROV”;

24. O Exequente juntou aos autos de execução cópia de documento com o número 85…9 onde se lê que "Pague por este cheque EUROS", mostrando-se inscrito cm tal campo o montante de €47.320,28 (quarenta e sele mil, trezentos e vinte euros e vinte e oito cêntimos) e mostrando-se inscrito na data de emissão o dia 12/08/23. No campo designado "à ordem de" mostra-se preenchido o nome do Exequente.

25. Tal documento mostra-se emitido pelo Oponente e por si assinado.

26. No verso do mesmo mostram-se apostas as expressões "CEMG- APRES. COMP. LISBOA 2012-08-24" e "DEVOLVIDO NA COMPENS. LISBOA EM 2012-0R-27 MOTIVO: FALTA/INSUF. PROV”;

27. Os montantes inscritos nos documentos referidos em 18, 21 e 24 foram recebidos pelo Executado.

28. Os documentos referidos em 18 e 21 referem-se a montantes entregues pelo Exequente a AA, com o acordo de este os restituir ao Exequente.

29. O documento referido em 24 refere-se a montantes entregues por DD ao Executado com o acordo de este os restituir.

30. Tendo DD celebrado acordo com o Exequente, nos termos do qual as quantias referidas no documento em causa deveriam ser devolvidas, pelo Executado, ao Exequente BB.

31. Mostra-se junto a fls. 27 dos autos de execução documento onde se lê "No seu vencimento pagará/ão) V EXª por esta única via de letra a nós ou à nossa ordem o montante de cento e trinta e cinco mil euros ".

32. O campo destinado à "assinatura do sacado", encontra-se assinado pelo Executado.

33. O Banco HH enviou ao Exequente uma carta datada de 19 de Dezembro de 2012, onde informou o débito em 20 de Novembro de 2011, na conta bancária do Exequente do montante de € 138.674,02, referente ao pagamento do documento referido em 28.


5. Tendo em conta o disposto no nº 4, do art. 635º, do Código de Processo Civil, o objecto dos recursos delimita-se pelas respectivas conclusões. Assim, os presentes recursos têm como objecto as seguintes questões:


Recurso do Executado embargante

- Repercussão da nulidade dos contratos de mútuo, por falta de forma, sobre a exequibilidade dos cheques que os representam ou garantem.


Recurso do Exequente embargado

- Legitimidade do Exequente relativamente à execução do cheque identificado no ponto 24 dos factos provados.


6. Relativamente à questão do recurso do Executado embargante da repercussão da nulidade dos contratos de mútuo, por falta de forma, sobre a exequibilidade dos cheques que os representam ou garantem relevam os seguintes factos provados:


18. O Exequente juntou aos autos de execução cópia de documento com o número 13…7 onde se lê que "Pague por este cheque EUROS", mostrando-se inscrito em tal campo o montante de € 100.00,00 (cem mil euros) e mostrando-se inscrito na data de emissão o dia 2008/02/27. No campo designado "à ordem de" mostra-se preenchido o nome do Exequente.

19. Tal documento mostra-se emitido pelo Oponente e por si assinado.

20. No verso do mesmo mostram-se apostas as expressões "CEMG- APRES. COMP. LISBOA 2012•08•24" e "DEVOLVIDO NA COMPENS. LISBOA EM 2012-08-27 MOTIVO: FALTA/INSUF. PROV.”;

21. O Exequente juntou aos autos de execução cópia de documento com o número 80…4 onde se lê que "Pague por este cheque EUROS", mostrando-se inscrito em tal campo o montante de € 36.000,00 (trinta e seis mil euros) e mostrando-se inscrito na data de emissão o dia 2012/08/23. No campo designado "à ordem de" mostra-se preenchido o nome do Exequente.

22. Tal documento mostra-se emitido pelo Oponente e por si assinado.

23. No verso do mesmo mostram-se apostas as expressões "CEMG- APRES. COMP. LISBOA 2012-08-24" e "DEVOLVIDO NA COMPENS. LISBOA EM 2012-08-27 MOTIVO: FALTA/INSUF. PROV”;

24. O Exequente juntou aos autos de execução cópia de documento com o número 85…9 onde se lê que "Pague por este cheque EUROS", mostrando-se inscrito cm tal campo o montante de €47.320,28 (quarenta e sele mil, trezentos e vinte euros e vinte e oito cêntimos) e mostrando-se inscrito na data de emissão o dia 12/08/23. No campo designado "à ordem de" mostra-se preenchido o nome do Exequente.

25. Tal documento mostra-se emitido pelo Oponente e por si assinado.

26. No verso do mesmo mostram-se apostas as expressões "CEMG- APRES. COMP. LISBOA 2012-08-24" e "DEVOLVIDO NA COMPENS. LISBOA EM 2012-0R-27 MOTIVO: FALTA/INSUF. PROV”;

27. Os montantes inscritos nos documentos referidos em 18, 21 e 24 foram recebidos pelo Executado.

28. Os documentos referidos em 18 e 21 referem-se a montantes entregues pelo Exequente a AA, com o acordo de este os restituir ao Exequente.

29. O documento referido em 24 refere-se a montantes entregues por DD ao Executado com o acordo de este os restituir.


As instâncias declararam os contratos de mútuo dos autos nulos por falta de forma, tendo a Relação apreciado a questão da alegada (in)exequibilidade dos cheques, identificados nos factos 18, 21 e 24, da forma que aqui se sintetiza:

- Ainda que “a emissão dos cheques” tenha implicado “a constituição de uma obrigação cambiária que é dotada de autonomia em relação à relação subjacente”, há que ter em conta que, “porque nos encontramos no domínio das relações imediatas, a excepção proveniente da falta de forma dos negócios mutuários é oponível ao portador (art.º 22.º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque)”;

- Da nulidade dos contratos de mútuo resulta “que impenda[e] sobre o primeiro a obrigação de restituição das quantias mencionadas nos cheques (n.º 1 do art.º 289.º do Cód. Civil)”;

- Assim, a entrega dos “cheques pelos valores correspondentes aos mútuos ajustados que padecem de nulidade por falta de forma, deve (…) ser considerada como uma dação pro solvendo”;

- Pelo que a nulidade dos contratos de mútuo não afecta a exequibilidade dos cheques.


     Tal fundamentação da decisão do acórdão recorrido corresponde, no essencial, aos termos em que a questão tem sido apreciada pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, designadamente nas decisões em que foi mais amplamente tratada, isto é, nos acórdãos de 13/11/2003 (proc. nº 03B3628) e de 09/03/2004 (proc. nº 4109/03), consultáveis em www.dgsi.pt. Socorremo-nos da fundamentação do primeiro destes acórdãos:


“2. Conforme acima se referiu, a causa da emissão do cheque que a recorrida deu à execução foi um contrato de mútuo nulo por falta de forma.

Os cheques enunciam uma ordem de pagamento dirigida a um banqueiro em cujo estabelecimento o emitente tem fundos depositados ou crédito de saque (artigos 1º e 3º da Lei Uniforme Sobre Cheques).

  A emissão por parte da recorrente, a favor da recorrida, do cheque mencionado com o valor global inscrito correspondente ao mencionado contrato de mútuo nulo por falta de forma, traduziu-se na constituição de uma obrigação cambiária, com autonomia em relação à primeira, dita subjacente.

   A recorrida é legítima portadora do cheque em causa, por virtude do acto cambiário de endosso em branco operado por C (artigos 14º, 1ª parte, 16º e 19º da Lei Uniforme Sobre Cheques).

   Um cheque está no domínio das relações imediatas quando os sujeitos cambiários e os que figuram nas respectivas relações jurídicas extracartulares coincidem.

    Como o cheque em causa foi emitido pela recorrente a favor de uma pessoa que era procurador da recorrida, certo é, que se está, na espécie, no domínio das relações jurídicas imediatas.

    Em consequência, a recorrente pode discutir nos embargos à execução a excepção de nulidade da relação jurídica subjacente e impor à recorrida os efeitos jurídicos desse vício decorrente (artigo 22º, a contrario, da Lei Uniforme Sobre Cheques).


3. A lei reporta-se, por seu turno, à dação em função do cumprimento ou datio pro solvendo, expressando, por um lado, que se o devedor efectuar uma prestação diferente da devida, para que o credor obtenha mais facilmente, pela realização do valor dela, a satisfação do seu crédito, este só se extingue quando for satisfeito e na medida respectiva (artigo 840º, nº. 1, do Código Civil).

E, por outro, que se a dação tiver por objecto a cessão de um crédito ou a assunção de uma dívida, se presume feita nos termos do número anterior (artigo 840º, nº. 2, do Código Civil).

   Resulta do nº. 1 do referido artigo a realização pelo devedor de uma prestação diferente da devida ao credor, naturalmente no âmbito do acordo de ambos nesse sentido, não extingue a obrigação enquanto a prestação dada, simultânea ou subsequentemente, não satisfizer o direito de crédito do segundo.

     O traço característico da dação em função cumprimento traduz-se, pois, na circunstância de as partes não pretenderem a extinção imediata da obrigação do devedor, e que ela subsista até à satisfação integral do direito de crédito concernente, como se de um mandato conferido ao credor pelo devedor de se pagar por via da coisa ou do crédito em causa se trate.

Não raro surge a dúvida sobre se na espécie ocorre a intenção das partes de extinção do direito de crédito mediante a dação ou de condicionar essa extinção à realização do direito que a última envolve.

     Para obstar a esse impasse, no caso de o objecto da dação ser a cessão de um direito de crédito ou a assunção de uma dívida, a lei estabeleceu a presunção no sentido de que ela ocorreu para que o credor obtenha mais facilmente, pela realização do valor dela, a satisfação do seu direito de crédito.

      Trata-se, naturalmente, de uma presunção legal a favor do credor, que o dispensa de provar o facto presuntivo, incidindo sobre o devedor o ónus da sua ilisão (artigo 350º do Código Civil).

    Dir-se-á, em síntese, que na situação de datio pro solvendo, o direito de crédito não se extingue pela mera entrega da coisa, cessão de crédito, ou assunção de alguma obrigação, mas só pela realização efectiva do seu valor ou conteúdo, conforme os casos.

Assim, a emissão por parte da recorrente, a favor da recorrida, do cheque mencionado com o valor global inscrito correspondente ao mencionado contrato de mútuo, nulo por falta de forma, traduziu-se em mera datio pro solvendo.


4. Sabe-se que o cheque em causa não foi pago na data do vencimento e não está em causa no recurso que a recusa de pagamento não tenha sido verificada pela declaração do banco sacado, datada e escrita sobre ele, com indicação do dia da apresentação a pagamento.

    A recorrida, como portadora legítima do cheque, pode, assim, exercer os seus direitos de acção contra a recorrente, como sacadora, exigindo-lhe, além do mais, a importância respectiva não paga e juros desde a data da apresentação a pagamento (artigo 40º, proémio, nºs. 1º e 2º, 44º, 2ª parte, e 45º, proémio, 1º e 2º da Lei Uniforme Sobre Cheques).

   Acresce que a recorrida não tem de recorrer a acção declarativa a fim de realizar o seu direito cambiário, certo que pode recorrer à acção executiva desde que o cheque tenha a pertinente força executiva.

    Constituindo-se por via do cheque uma obrigação de pagamento de determinada quantia, certo é que ele vale como título executivo e, como tal, pode fundar a instauração de uma acção executiva (artigo 46º, alínea c), do Código de Processo Civil).

    Está subjacente à emissão do cheque, conforme já se referiu, a obrigação de restituição de € 24.939,89 decorrente da celebração de um contrato de mútuo nulo por falta de forma.

Como a nulidade do contrato de mútuo implica a obrigação de restituição da mencionada quantia à recorrida por D, a emissão do cheque tem uma causa justificativa da constituição da obrigação cambiária que ele envolve, autónoma daquele contrato e envolvida de validade.

    A afirmada pela recorrente afectação da relação jurídica cambiária em causa, de sua natureza abstracta, dependia da verificação da sua inexistência ou da existência de algum vício substancial ou formal que a envolvesse, o que não ocorre no caso vertente.

     Dir-se-á, em síntese, que a nulidade do contrato de mútuo não afecta a relação cartular constituída a título de datio pro solvendo a favor da recorrida, ou seja, a fim de ela realizar mais facilmente o seu direito de crédito (Acs. do STJ, de 23.7.80, BMJ, nº. 299, pág. 371; de 12.11.87, BMJ, nº. 371, pág. 465).

  O referido cheque tem, por isso, a força executiva que decorre da alínea c) do artigo 46º do Código de Processo Civil e, consequentemente, assume as características legais de título executivo idóneo a basear a acção executiva em causa.” [negritos nossos]


Considerando que esta orientação se mantém válida à luz do regime do art. 703º, nº 1, alínea c), do CPC de 2013, aplicável ao caso dos autos, entende-se que a excepção de nulidade da relação jurídica subjacente (nulidade dos contratos de mútuo dos autos por vício de forma) é oponível ao Exequente em sede das relações imediatas (cfr. art. 22º da Lei Uniforme relativa ao Cheque), fazendo nascer a obrigação de restituição das quantias entregues (art. 289º do Código Civil).

Tendo os cheques, identificados nos factos 18, 21 e 24, sido emitidos por valor correspondente a cada um dos contratos de mútuos nulos, consubstanciam, nos termos do art. 840º, nº 2, do Código Civil, dações pro solvendo relativamente à satisfação dos créditos respeitantes à restituição das quantias em causa.

Cada um dos cheques possui, assim, uma causa justificativa da constituição da obrigação cambiária que implica, a qual é válida e autónoma em relação ao contrato de mútuo.

Consequentemente confirma-se o entendimento da Relação, segundo o qual a nulidade dos contratos de mútuo não afecta a exequibilidade dos cheques.


7. Relativamente à questão do recurso do Exequente embargado, invocando a sua legitimidade relativamente à execução do cheque identificado no ponto 24 dos factos provados, relevam os seguintes factos provados:


24. O Exequente juntou aos autos de execução cópia de documento com o número 85…9 onde se lê que "Pague por este cheque EUROS", mostrando-se inscrito cm tal campo o montante de €47.320,28 (quarenta e sele mil, trezentos e vinte euros e vinte e oito cêntimos) e mostrando-se inscrito na data de emissão o dia 12/08/23. No campo designado "à ordem de" mostra-se preenchido o nome do Exequente.

25. Tal documento mostra-se emitido pelo Oponente e por si assinado.

26. No verso do mesmo mostram-se apostas as expressões "CEMG- APRES. COMP. LISBOA 2012-08-24" e "DEVOLVIDO NA COMPENS. LISBOA EM 2012-0R-27 MOTIVO: FALTA/INSUF. PROV”;

27. Os montantes inscritos nos documentos referidos em 18, 21 e 24 foram recebidos pelo Executado.

29. O documento referido em 24 refere-se a montantes entregues por DD ao Executado com o acordo de este os restituir.

30. Tendo DD celebrado acordo com o Exequente, nos termos do qual as quantias referidas no documento em causa deveriam ser devolvidas, pelo Executado, ao Exequente BB.


  Tendo sido provado que, diversamente do que ocorre com os outros dois cheques, o cheque indicado no facto 24, ainda que passado à ordem do Exequente, não se reporta a quantias por ele entregues ao Executado embargante, mas antes “a montantes entregues por DD ao Executado com o acordo de este os restituir”, a Relação considerou oficiosamente existir ilegitimidade do Exequente, com a seguinte fundamentação:


“No que respeita, enfim, à nulidade da cessão de créditos, há a observar que independentemente da forma que revestiu o acordo ajustado entre o recorrido e DD, o certo é que o crédito cedido por DD proveio de um contrato de mútuo nulo por falta de forma.

Nessa medida, a cessão de créditos, como negócio causal que é (como deriva do n.º 1 do art.º 578.º do Cód. Civil, os requisitos e efeitos definem-se em função da causa), será igualmente nula por impossibilidade do objecto

Dessa forma, importa concluir que os factos aduzidos no requerimento executivo relativamente ao cheque mencionado no ponto n.º 24 do elenco factual não atribuem ao exequente legitimidade relativamente a essa parcela da quantia exequenda (n.º 1 do art.º 56.º do CPC).

Assim, sendo a ilegitimidade um pressuposto essencial da acção executiva cuja verificação é de conhecimento oficioso e não sendo a mesma, no caso, passível de ser suprida, caberia rejeitar parcialmente a execução (al. b) do n.º 1 e n.º 2 do art.º 812.º-E do CPC).

Não tendo sido essa a solução seguida, impõe-se, nesta fase declarar a extinção parcial da execução (n.º 2 do art.º 820.º do CPC).

Importa, por isso, declarar extinta a execução quanto à parcela da quantia exequenda correspondente ao valor titulado por aquele cheque, mantendo-se quanto ao mais.” [negritos nossos]


  Contra esta decisão se insurge o Exequente, alegando, ainda que em termos imprecisos, que, tendo sido feita prova de que a DD lhe cedeu o seu crédito sobre o Executado, bem como de que o cheque indicado no facto 24, emitido à ordem do Exequente, “[se] refere(…) a montantes entregues por DD ao Executado com o acordo de este os restituir”, se deverá antes concluir ter o Exequente legitimidade para executar tal título de crédito.

         Vejamos.

   Antes de mais, considera-se que a questão em causa deve ser requalificada. Com efeito, aferindo-se a legitimidade pelo teor do título executivo, tendo o cheque indicado no facto 24 sido emitido em nome do Exequente, não ocorre ilegitimidade. A questão coloca-se antes ao nível da eventual (in)validade da obrigação exequenda.

  Não merece censura o entendimento da Relação de que, sendo nulo o contrato de mútuo celebrado entre a DD e o aqui Executado, nula é também a cessão do crédito celebrada entre aquela e o aqui Exequente.

Contudo, é admissível equacionar a pretensão do Exequente na perspectiva de que, uma vez que a nulidade do contrato de mútuo em causa implica o nascimento da obrigação legal de o Executado restituir a quantia “mutuada” à DD (cfr. art. 289º do Código Civil), o cheque identificado no facto 24 corresponderia a uma dação pro solvendo relativamente ao cumprimento de tal obrigação de restituição, dação essa realizada perante terceiro (o aqui Exequente).

Esta via de solução depara, porém, com um obstáculo intransponível. É que a credora da obrigação de restituição, a dita DD, não se encontra presente na acção, não podendo, pois, a decisão produzir efeitos em relação a ela. Pelo que, se se admitisse a execução do cheque em causa, poderia o Executado vir a ser obrigado a cumprir duas vezes a obrigação de restituição.

Ainda assim, poderá invocar-se ser aplicável ao caso alguma das alíneas do art. 770º do Código Civil, nas quais se prevê que a prestação feita a terceiro (aqui, o Exequente) produz efeito extintivo da obrigação relativamente ao credor (aqui, a DD)?

A resposta afigura-se ser negativa. Por um lado, porque o regime do art. 770º do CC não é directamente aplicável à dação pro solvendo (a qual não tem efeito extintivo imediato) e, por outro lado, porque, mesmo que o fosse, consideradas as diversas alíneas do referido preceito, da factualidade dos autos não resulta a verificação dos requisitos de qualquer das situações previstas nessas alíneas.

Deste modo, se a entrega da quantia pecuniária ao Exequente não extinguiria a obrigação de restituição da qual é credora a DD, por maioria de razão a emissão do cheque, identificado no facto 24, à ordem do aqui Exequente não exoneraria o aqui Executado perante a dita DD.  

Assim sendo, a tutela do interesse do aqui Exequente só poderá eventualmente ser alcançada no plano das relações directas entre o Exequente e a DD.

Para o que releva para os presentes embargos, conclui-se que, relativamente à parcela da quantia exequenda correspondente ao cheque identificado no facto 24, é de confirmar a decisão de extinção parcial da execução, ainda que com fundamento na invalidade da obrigação exequenda e não em ilegitimidade.


8. Pelo exposto, julgam-se ambos os recursos improcedentes, confirmando-se – com fundamentação parcialmente distinta – a decisão do acórdão recorrido.


Custas dos recursos pelos respectivos Recorrentes.


Lisboa, 7 de Fevereiro de 2019


Maria da Graça Trigo (Relatora)

Maria Rosa Tching

Rosa Maria Ribeiro Coelho