Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
333/14.9TELSB.L1-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: NUNO GONÇALVES
Descritores: RECLAMAÇÃO
ACORDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
NULIDADE
TIPICIDADE
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
INCONSTITUCIONALIDADE
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 02/16/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA /RECUSA
Decisão: ACLARAÇÃO INDEFERIDA
Sumário :
I - Omitir pronúncia sobre determinada questão é, simplesmente, nada dizer sobre a mesma, não tomar sobre essa concreta questão, substantiva ou processual, qualquer posição, expressa ou implícita, mas claramente entendível.

II - O tribunal pode, alterando a coloração jurídica dada pelos sujeitos processuais a pretensão apresentada, convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objeto diverso do peticionado.

III - São os fundamentos que suportam o pedido e não o inverso;

IV - O pedido, não tem qualquer aproveitamento quando não se fundar em atos ou factos que, pelo seu sentido e relevância jurídica, se apresentam minimamente adequados a ampará-lo.

V - A sentença ou acórdão em processo penal não admitem reforma. O regime consagrado no CPC a tal respeito não tem aplicação no processo penal.

VI - As nulidades do processo penal estão previstas no CPP. Ademais, vigora aqui o princípio da legalidade – art. 118.º do CPP.

VII - As nulidades da sentença têm um regime específico concentrado no art. 379.º do CPP. Não sendo aplicável o regime das nulidades consagradas no CPC.

VIII - A decisão de um tribunal judicial que interpretou e aplicou à situação sub judicio um determinado complexo normativo e afastou a aplicação de outro, circunscrevendo-se ao âmbito do seu poder jurisdicional próprio, não admite, nesse aspeto, revisão pelo TC. Este mais não pode que ajuizar e decidir da conformidade com a Lei Fundamental da interpretação com que foi aplicado o direito ordinário na decisão do tribunal.

Decisão Texto Integral:

O Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção criminal, acorda:


I. RELATÓRIO:

a. a decisão:

Este Supremo Tribunal, por acórdão de 12.01.2022, proferido nos autos em epigrafe, em que é requerente o arguido: --------------------------------------

- AA com os demais sinais dos autos, -------

apreciando requerimento pelo mesmo apresentado naquele processo, no qual, em reação ao acórdão do Tribunal da Relação de … que, em recurso, confirmou a sua condenação decretada em 1ª instância, peticionou o afastamento da Juíza Desembargadora relatora alegando suspeitas sobre a sua imparcialidade e isenção, decidiu: ------------------------

a) Não tomar conhecimento da “arguição de afastamento da Ex.mª Desembargadora relatora” BB e da pronúncia desta, por inexistência de recurso;

b) Não tomar conhecimento das nulidades arguidas e da impugnação da decisão em matéria de facto, pela mesma razão e por os poderes de cognição do STJ se circunscreverem à matéria de direito – art. 344º do CPP

c) Não conhecer das deduzidas inconstitucionalidades por as normas a que são atribuídas não intervirem na ratio decidiendi; e

d) indeferir o (que poderia ser o) pedido de recusa por extemporâneo.

b. as arguições:

Inconformado, veio contestar a decisão, reclamando que se reforme o acórdão de modo a deferir ao por si requerido e, não se atendendo, esgrimindo com o que qualifica de nulidades e, se não atendidas, de inconstitucionalidades.

Questões suscitadas que assim se sumariam: -------------------

a) Nos pontos 5º a 25º argui a nulidade do acórdão imputando-lhe omissão de pronúncia que entende resultar de não ter deferido o seu pedido de devolução do requerimento ao Tribunal da Relação, vertido no requerimento de 17.12.2021, endereçado aos “Exmos. Senhores Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça”, argumentando que a autuação como recusa, naquele Tribunal, constitui a nulidade por erro na forma do processo empregue esclarecendo ter requerido o impedimento e não a recusa da Juíza Desembargadora relatora do acórdão confirmatório;

b) 1. Nos pontos 26º a 32º argui o que qualifica de nulidade que, a seu ver, resultaria de se ter entendido que o prazo legal do requerimento de impedimento e da arguição de nulidades correm separadamente;

2. Nos pontos 34º a 48º pede a reforma da decisão no segmento referente à contagem do prazo ou, subsidiariamente, o que qualifica de nulidade que pretende amparar na previsão do art.º 616º n.º 2 al.ª b) do CPC;

3. Nos pontos de 49º a 65º argui o que qualifica de nulidade que atribui a não ter sido notificado para pagar a multa processual devida pela prática do ato fora do prazo legal, invocando como amparo as normas que cita do CPC;

c) 1. Nos pontos 95º a 101º insiste em que requereu o impedimento e não a recusa, afirmando que diferente entendimento constitui nulidade;

2. Nos pontos 66º a 94º, discorda dos fundamentos do acórdão, que considera ter valorado erradamente, terminando a qualificar a fundamentação de nulidade, que também pretende situar naquela norma do CPC;

3. Nos pontos 102º e 103º, insurge-se contra o segmento iv da decisão qualificando-a de nulidade sem que, todavia, a subsuma a qualquer preceito legal.

4. Nos pontos seguintes – 105º a 109º - afirma a sua discordância com exposto na decisão a respeito da mesma questão, qualificando-a de nulidade sem que, todavia, a subsuma a qualquer preceito legal.


*


Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO:

a) da omissão de pronúncia:

O arguido, somente por “lapso manifesto” – a expressão é sua -, confunde omissão de pronúncia, com a decisão de “não tomar conhecimento da «arguição de afastamento da Ex.mª Desembargadora relatora» BB e da pronúncia desta, por inexistência de recurso”.

Omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre questões ou matérias, de direito substantivo ou processual, que conformam o objeto da concreta pretensão de justiça penal.

A omissão de pronúncia causadora de nulidade de sentença ou acórdão, prevista no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, preenche-se com a falta de pronúncia sobre questão ou questões que, suscitadas pelos sujeitos processuais ou de conhecimento oficioso, o tribunal devia ter apreciado.

Omitir pronúncia sobre determinada questão é, simplesmente, nada dizer sobre a mesma, não tomar sobre essa concreta questão, substantiva ou processual, qualquer posição, expressa ou implícita, mas claramente entendível, a não ser que resulte claramente prejudicada pela decisão de outras.

No caso, o arguido situa a omissão de pronúncia alegando que o acórdão visado não deferiu a sua pretensão de que os «Exmos. Senhores Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça» ordenassem “a devolução dos presentes autos ao Tribunal da Relação de … a fim de a Mm. Juiz Desembargadora, BB, proferir o despacho previsto no n.º 1 do Art.º 41.º do CPP, seguindo-se os ulteriores termos da tramitação e julgamento do incidente de impedimento previstos na lei.”

Ao invés do que alega o arguido, essa concreta pretensão foi ali especificadamente apreciada e decidida nos seguintes termos: -------

Já com a vertente apenso neste Supremo Tribunal o arguido veio aclarar ter requerido o “impedimento da Mm.ª Juiz Desembargadora, BB”, enquadrando-o “no n.º 2 do Art.º 41.º, do CPP”, afirmando, inveridicamente, que ali – no artigo 65º e no “pedido formulado in fine” - alegou e invocou essa norma legal.

Os impedimentos do juiz natural para intervir no processo que lhe foi legalmente distribuído estão previstos, taxativamente, nos artigos 39º e 40º (do CPP e subsidiariamente no art. 115º do CPC.

Qualquer impedimento do juiz, não opera “ipso facto”, sem declaração expressa do próprio juiz.

Ocorrendo algum impedimento e não se declarando o juiz, ele próprio, inibido de intervir no processo, podem os sujeitos processuais requerer-lhe, diretamente, que se declare impedido. Se o Juiz não reconhece o impedimento que lhe é atribuído, podem os sujeitos processuais recorrer do correspondente despacho, peticionando ao tribunal superior que o revogue e determine que seja substituído por outro em que o juiz reconheça o seu impedimento para intervir no processo.

O Juiz relativamente ao qual se verifique algum daqueles fundamentos está obrigado a, por despacho irrevogável, declarar-se imediatamente impedido, apartando-se do processo.

Se o juiz que tenha algum impedimento que o inabilite de exercer no processo não o declarar, ele mesmo, a lei permite que qualquer sujeito processual lhe requeira, diretamente, que se declare impedido.

O que não se verifica no caso.

Explicitando-se, assim, pormenorizadamente, porque se entendeu que o arguido não requereu formalmente e, sobretudo e decisivamente, com argumentos que não pudessem confundir-se com outro dos motivos legais que permitem que o juiz natural seja afastado do processo.

Efetivamente, entendeu-se que o arguido, com aquele requerimento atravessado nos autos, já com os mesmos neste Supremo Tribunal, quis emendar a forma da sua pretensão. Mas, sem que outro tanto tenha feito com a substância que pudesse servir para amparar requerimento de declaração de impedimento. Ao invés, manteve – e agora insiste em reafirmar – que aquela sua “arguição de afastamento /impedimento” da Sr.ª Juíza Desembargadora relatora se funda, exclusivamente, na suspeita pessoal que alimenta sobre a imparcialidade e isenção daquela Juíza.

Foi por isso que o Supremo Tribunal julgou e decidiu que a sua pretensão era irremediavelmente ininteligível. Não apenas por aquilo que o arguente adjetiva de “pormenor[es] contingente[s]”. Decidiu-se pela ininteligibilidade porque, ademais dos elementos externos ou de forma, naquela sua “arguição de afastamento/ impedimento”, o arguido convocou, genericamente, e a esmo, tanto os preceitos legais que contêm o regime dos impedimentos como os que regulam a recusa e a escusa do juiz natural em processo penal. E, mormente, porque, apesar de ter vindo esclarecer que tinha requerido o impedimento, todavia, em vez de alegar situação fáctica enquadrável em qualquer das previsões constantes do catálogo, taxativo, firmado nos artigos 39º e 40º do CPP, o que alegou realmente - e que não alterou (e reafirma outra vez) -, a demonstrar-se, configuraria situação típica enquadrável na previsão do disposto no art.º 43º n.ºs 1 e 2, também do CPP. Jamais podendo subsumir-se a qualquer das alíneas do art. 39º do CPP. Sendo incontestável que está completamente arredada a aplicação ao caso da norma do art.º 40º do CPP, consistente em impedimento por participação anterior no processo.

Ainda que o arguido tenha entendido muito bem, mesmo assim, repte-se o que respeito da apreciação dos fundamentos e respetivo enquadramento legal se motivou no acórdão (sublinhando-se agora, apenas para realçar): -----

“Se tanto já não bastasse, a ininteligibilidade do requerimento exponencia-se com a inconfundível diversidade das situações de facto e de direito que têm previsão nas normas adjetivas invocadas pelo arguido – os artigos 39º, 40º e 43º - com vista a nelas fundar, por alegada interpretação extensiva, a “arguição de afastamento da Ex.mª Desembargadora relatora”. Não se compreende, não é mesmo possível entender e o arguido não justifica de modo nenhum, se a extensão do âmbito haveria de incidir sobre as normas do art.º 39º (que consagra impedimentos do juiz resultantes das suas relações familiares ou funcionais), ou sobre as normas do art. 40º (em que o impedimentos decorre exclusivamente de anterior participação judicante no processo), ou então sobre as normas do art.º 43º n.º 1 e 2 (que contêm o regime da escusa e da recusa), preceitos estes citados do CPP.

Ante a incontestável diversidade substancial e adjetiva do instituto jurídico dos impedimentos do juiz natural em processo penal relativamente aos institutos jurídicos da escusa e da recusa, o arguido concordará, certamente, que somente da alegada interpretação extensiva das normas dos artigos 39º ou 40º do CPP poderia, com um mínimo de coerência lógica e de racionalidade, pretender albergar no seu âmbito outros motivos de impedimento do juiz ali não expressamente consagrados. Como haverá de concordar, crê-se, que da reclamada interpretação extensiva do regime consagrado no art.º 43º do CPP, jamais poderia decorrer qualquer impedimento, pela simples, mas evidente razão de que regula especificamente apenas a escusa e a recusa, a interpretação extensiva dessa norma mais não permitiria do que alargar os motivos que poderiam legitimar o pedido de escusa ou o requerimento de recusa. Aliás, estes institutos só podem funcionar se não existir impedimento do juiz. Este está completamente à margem de considerações subjetivas e existe desde sempre, isto é, desde o momento em que ocorre o facto que o motiva - a relação familiar ou funcional do juiz com o processo ou a sua anterior participação judiciante nos autos -, operando ex tunc. Os atos processuais praticados pelo juiz impedido são nulos – art. 41º n.º 3 do CPP. Não se verifica o mesmo com a escusa ou a recusa.”

“Para fugir da ininteligibilidade deveria o arguido ter sido claro, dirigir o requerimento à Ex.ma Juiza Desembargadora relatora, requerendo-lhe que declarasse o seu impedimento para intervir no processo. O que, manifestamente, não fez. Ao invés, afirma naquele requerimento que as circunstâncias que enuncia sãosusceptíveis de, a qualquer pessoa, motivar, ao arguido motivam, sérias e graves suspeitas acerca da imparcialidade”; assevera, repetidamente - pelo menos 4 vezes – que “revelam a aparente ausência de imparcialidade e isenção; concluindo que a intervenção no processo da Ex.mª Desembargadora relatora “seja também vista pela comunidade com desconfiança e suspeita e não apenas pelo arguido”.

Concluindo: ----------------------------------------

“Circunstancialismo descrito que torna o requerimento ininteligível, erroneamente endereçado, incorporando três pedidos, que não podem ser decididos pela mesma autoridade judiciária ou tribunal. Configurando-o ao mesmo tempo como requerimento de declaração de impedimento – ou de recusa (só esta logra justificação para a invocação do art.º 43º do CPP) -, arguição de nulidades e recurso de impugnação da decisão em matéria de facto e de recurso quanto à aplicação do direito. Concordará o arguido que a primeira pretensão é manifestamente incompatível com as restantes.”

Articulado ou requerimento que se considerou ininteligível, não apenas pela forma (se assim fosse teria sido convertido) mas sim pela sua substância, razão pela qual não pôde salvar-se com a mera atribuição de diferente nomem juris, conforme se motivou e decidiu no acórdão visado e aqui se reproduz: --

Por não estar legalmente prevista não é possível convidar o arguido a corrigir o requerimento em apreço de modo a que o expurgasse dos elementos que o tornam imprestável e o completasse com a formulação exigida a poder servir como requerimento endereçado à Ex.mª Desembargadora relatora para que reconhecesse impedimento que, supostamente, lhe é oposto e se declarasse impedida e inibida de intervir no processo.

Também não é legalmente conforme aceitar-se que a exposição e requerimento do arguido, ainda que imperfeitamente expressa e mesmo sem ter invocado com a especificação exigida a pertinente norma legal, consubstancia uma pretensão que colhe amparo no disposto no art.º 41º n.º 2 do CPP. E que, se assim fosse, deveria devolver-seao Tribunal da Relação de ... a fim de a Mm. Juiz Desembargadora, BB, proferir o despacho previsto no n.º 1 do Art.º 41.º do CPP”, como veio o arguido requerer a este Supremo Tribunal, já com o processo distribuído como incidente de recusa.

É que, procedendo assim, por incontestáveis razões de igualdade de tratamento, não haveria como não interpretar a veemente pronúncia da Ex.mª Juíza Desembargadora relatora visada, como decisão de indeferimento do requerimento do arguido consubstanciando dessa maneira o não reconhecimento de qualquer motivo que a impeça de intervir no processo. Se esclarece as imputações e, a final, se pronuncia pela inexistência de fundamentos para que possa proceder a recusa, dúvidas não restam de que não reconhece qualquer impedimento para intervir no processo.

Obviamente que o aludido requerimento jamais poderia servir ao mesmo tempo como tal – isto é, como convolada petição a requer à própria que se declarasse impedida de intervir no processo e servir, também como alegação de recurso contra o referido despacho judicial com a pronúncia da Ex.mª Juíza visada com a “arguição de afastamento”.

Destarte, contrariamente ao que o arguido ora argui, a pretensão vertida naquele seu requerimento “adicional” foi, pois, apreciada, especificadamente, decidindo-se que não podia proceder por o requerimento inicial que visou corrigir, tão-somente quanto à forma procedimental, substancialmente permaneceu ininteligível, porque, além do mais, alegando fundamentos típicos da recusa e escusa, visava a arguição de afastamento / impedimento”.

Ilustrativamente, o arguente insiste exatamente na mesma substância, argumentando queao decidir autuar e tramitar o incidente de Impedimento de juiz, como de recusa, a Mm.ª Juiz Desembargadora Relatora inscreveu nos autos, pelo seu próprio punho, mais um sinal, aliás mais do que um mero indício, uma verdadeira prova da sua incapacidade em, in casu, ser imparcial e isenta e consubstancia uma deliberada intenção de prejudicar os direitos e garantias de defesa do arguido” (sublinhou-se para realçar).

Ainda que o arguido bem tenha entendido, acrescenta-se que a questão do erro na forma do processo – incidental – apenas se colocaria se o Supremo Tribunal de Justiça tivesse avançado para a apreciação da recusa.  Mas não entrou porque o arguido não quis, por ter entendido – afirma - saber bem que da mesma já nenhum efeito decorreria para o acórdão confirmatório e que, de qualquer modo, seria intempestiva (como, alias se deixou expresso no ponto final do dispositivo). E não pôde salvá-lo, convertendo-o em requerimento a pedir o reconhecimento de impedimento porque, repete-se, a argumentação do arguido não se enquadra em qualquer das situações de impedimento taxativamente catalogadas na lei adjetiva processual penal – concretamente no disposto no art.º 39º do CPP, (ou processual civil), sendo uma questão típica que tem a sede própria no incidente de recusa.

Distinguindo os motivos de um e do outro dos fundamentos que legitimam que o juiz se iniba ou seja apartado do processo, sustou-se no acórdão de 9/06/2010, deste Supremo Tribunal: “os impedimentos, porque não envolvem qualquer juízo de desconfiança concreta sobre o juiz, relacionada com a causa que lhe foi atribuída, ou com as respetivas partes, têm uma função preventiva, razão pela qual têm de ser apostos antes de o juiz se ver confrontado com a necessidade de decidir, devendo ser declarados pelo próprio juiz imediatamente, por despacho proferido nos autos, nos termos do art. 41º do CPP, logo que ocorram. Já as suspeições arrancam de uma posição muito especifica e pessoal, de uma particular posição do julgador ante a causa, que pode comprometer aquela incontornável postura de independencia e imparcialidade, nos termos do art.º 43º n.ºs 1 e 2 do CPP, desde que se perfile o concreto risco de verificação de motivo sério e grave aduaquedo a gerar desconfiança sobre a imparcialidade, não podem ser declaradas voluntariamente, antes e nos termos do n.º 4 daquele art. 43º, ser requeridas (…) ao tribunal competente que o  [escuse ou] recuse de intervir”[1].

Entendimento claro e evidente que ali, no acórdão visado, como aqui, se adota.

Finalmente, realça-se que a determinação da forma do processo afere-se pela causa de pedir e o pedido.

Como vem de dizer-se são os fundamentos que suportam o pedido e não o inverso. O pedido não tem qualquer utilidade se não se fundar em atos ou factos que, pelo seu sentido e relevância jurídica, se apresentam minimamente adequados a ampará-lo.

A convolação de uma forma de processo para outra só pode efetuar-se quando apresenta alguma utilidade prática. Quando a nova forma possa corresponder não só ao pedido como, necessariamente, a uma causa de pedir concordante, isto é, quando os fundamentos do pedido correspondam a uma possível forma do processo, nova e diversa[2].

Um requerimento substancialmente ininteligível não tem utilidade para suportar a determinação da utilização de qualquer outra forma processual incidental diferente daquela que lhe foi atribuída no tribunal onde foi apresentada a pretensão de tutela jurídica. Que pede um determinado efeito – ainda que imperfeitamente expresso, mas que o pretende fundamentar alegando factos que têm efeito jurídico bem distinto. Como sucede no caso com o requerimento do arguido.

Não sendo possível o aproveitamento ou convolação conforme se expôs.

Perante a ininteligibilidade do requerimento, claro está, que não havia que decidir se deve tramitar-se como impedimento ou como recusa. E, sobretudo, mesmo que se quisesse reconvertê-lo num ou no outro dos referidos incidentes, sempre seria inaproveitável para servir como requerimento de declaração de impedimento da Sr.ª Juíza Desembargadora relatora.

E, por conseguinte, improcedendo a requerida devolução, resultou, naturalmente, prejudicado o conhecimento da nulidade arguida no mesmo requerimento “adicional”.

Destarte, porque o acórdão não enferma de omissão de pronúncia, improcede, por manifesta falta de fundamento a nulidade em apreço que o arguido, assim, lhe imputa.

b) quanto ao prazo:

O arguido reclama a reversão do acórdão no segmento que se refere ao prazo da apresentação do seu requerimento inicial. Quer apresentando diferente contagem – (1) entende que o prazo se conta desde a notificação da sua defensora -, (2) quer argumentando que não foi notificado para pagar a multa devida pela prática do ato no 1º dia útil seguinte ao termo final do aludido prazo; e (3), finalmente, juntando o DUC do pagamento efetuado, posteriormente.

Somente porlapso manifesto– a expressão é do próprio -, pode ter desconsiderado em primeiro lugar que esse segmento da fundamentação do acórdão não teve qualquer relevância decisória, não se traduzindo em nenhuma das alíneas do dispositivo.

O requerimento do arguido não foi indeferido por intempestivo. Bem diferentemente, foi apreciado e conclui-se pela sua ininteligibilidade.

A única alínea do dispositivo que se reporta ao tempo da prática do ato é a última, concluindo-se, concordantemente com o arguido, que, se pretendesse “salvar-se” o requerimento como pedido de recusa – o que seria bem mais conforme com os motivos alegados para afastar a Sr.ª Juíza Desembargadora relatora -, haveria de indeferir-se, por extemporaneidade. E tal sucederia, não, evidentemente, por ter sido praticado o ato na data em que foi apresentado o requerimento, mas simplesmente porque a recusa da Juíza natural apenas podia requer-se, tempestivamente, até ao início da conferência em que foi prolatado o acórdão da Relação – art. 44º do CPP. Mas não foi.

Neste conspecto, apenas porlapso manifesto– expressão do arguido – poderá conceber que a notificação pela secretaria, a que alude, ou o pagamento da multa, antes ou agora, poderia/poderá ter a virtude de tornar inteligível aquele seu requerimento e lhe conferir a potencialidade para servir como pedido de suscitação, perante a própria Sr.ª Desembargadora relatora, da declaração de um qualquer impedimento inexistente no taxativo catálogo legal.

Tanto basta para se concluir pela manifesta falta de fundamento da arguição do requerente.

c) da “reforma do aresto

O arguido expressando a sua veemente discordância com o decidido, pretende a sua reversão – os seus termos são:a reforma do referido aresto (no introito do requerimento);reformado no sentido de considerar a dedução do impedimento da M.M.ª Juiz Desembargadora Relatora como tempestivo(31º);reforma do acórdão(60º);o acórdão ser reformado(63º, 93º, 102º e petitório final) -, reclamando que  (1) se decida que o seu requerimento inicial consubstancia um pedido de declaração de impedimento; (2) se substitua a fundamentação; (3) se elimine a referência à intempestividade de eventual recusa; (4) se defira ao por si requerido.

Seguramente que bem mais do que somente por “lapso manifesto” pode ter a ousadia, - atropelando normas constitucionais fundamentais, as leis de organização judiciária, as leis estatutárias e os poderes matérias e funcionais dos Tribunais, dos Juízes e do Ministério Publico -, de pretender e reclamar que o Supremo Tribunal de Justiça, decida e decrete aqui, neste incidente procedimental, que determinados intervenientes no processo cometeram os crimes que, na sua visão muito interessada e pessoalíssima, lhes atribui.

Enfim, neste domínio, pela insofismável anormalidade – pretende que o Supremo decretasse, sem contraditório, à margem do procedimento legalmente estabelecido, e por decisão definitiva e irrevogável, que certas pessoas tinham cometido determinados crimes -, mais não se justifica que remeter para as referidas normas entre as quais uma daquelas que o arguido convocada diretamente da própria CRP – o art. 219º.

No demais, certamente saberá ao arguido - se não for por lapso manifesto (na sua expressão) -, que nos termos de norma adjetiva expressa – art.º 613º n.º 1 do CPC ex vi do art.º 4º do CPP -, o poder jurisdicional do tribunal quanto à matéria da causa, esgota-se com a prolação da decisão, não mais podendo corrigir o sentido ou a fundamentação da mesma, salvo em cumprimento de determinação de tribunal hierarquicamente superior, proferida nos termos da lei. O despacho, sentença ou acórdão mais não admite que a correção de erro material – de escrita ou de cálculo -, lapso evidente - ortográfico ou de expressão -, obscuridade ou ambiguidade, contanto que não importem modificação essencial da fundamentação e da decisão – art.º 380º n.º 1 e 2 do CPP.  

A sentença ou acórdão em processo penal não admitem reforma. O regime consagrado no CPC a tal respeito não tem aplicação no processo penal como é entendimento sedimentado na jurisprudência deste Supremo Tribunal. Assim, no acórdão de 14.04.2016, sustentou-se que “a norma do n.º 2 daquele preceito, nomeadamente na parte referente à reforma da sentença, não tem aplicação no processo penal, por aí não haver lacuna sobre a matéria, como decidiu o Supremo Tribunal de Justiça em acórdãos de 12/12/2013, proc. 6138/12.4TOPRT-A.P1.S1; de 27/11/2014, pro c. 281/07.9GELLE.E1-A.S1; e de 24/04/2014, proc. 772/11.7YRLSB.S1, (…) tendo-se afirmado no último:

A figura da reforma da sentença prevista no n.º 2 do artigo 669° CPC (actualmente 616°, n.º 2) não tem aplicação no processo penal.

Com efeito, o CPP prevê e regula os casos em que a sentença pode ser modificada pelo tribunal que a proferiu, suprindo nulidades nos moldes previstos no artigo 379°, n.º 2, e fazendo as correcções que caibam na previsão do artigo 380°.

E a previsão desses casos deve ter-se como completa, pois não se coadunaria com o modelo de legislador presumido pela regra do n.º 3 do artigo 9° do Código Civil que, prevendo-se uns, não se previsse outros que se quisesse admitir. Não se pode, pois, dizer que existe lacuna a integrar com recurso às normas do processo civil. O que há é uma regulação diversa em ambos os ramos do direito processual.

A reforma da sentença com os fundamentos do n.º 2 do art.º 669.º do CPC, envolvendo uma alteração do sentido da decisão, é mesmo afastada pela disposição da alínea b) do n.º 1 do art.º 380° do CPP, que não admite a correcção de erros «cuja eliminação importe modificação essencial»".

A não admissibilidade da reforma de sentença no processo penal foi ainda decidida no acórdão do pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 06/02/2014, no âmbito do processo 414/09.0PMAI-B.P1-AS1.[3]

Entendimento reafirmado no acórdão de 17.02.2021, tirado no proc. n.º 342/16.3IDAVR-AZ.P1-A.S1, sendo o aqui relator ali Juiz Conselheiro adjunto.

Considerando a arguição do arguido à luz do disposto no art.º 380º do CPP, conclui-se, parafraseando aresto deste Supremo Tribunal, que “o acórdão questionado assenta num discurso claro e consequente sobre a questão que lhe competia apreciar, tendo sido proferido juízo decisório com os exatos fundamentos que a sustentam, não havendo qualquer erro ou lapso a relevar, muito menos manifesto, que não importe modificação essencial, como é exigido pela norma em causa, pelo que, não havendo erro, lapso, ambiguidade ou obscuridade de que o acórdão padeça e que importe corrigir, indefere-se o pedido de reforma do mesmo[4].

No caso, é, pois, patente que o requerimento de reforma do acórdão extravasa, claramente, a finalidade adjetiva permitida pelo disposto no art. 380º, nº 1, al. b), do CPP. O que o arguido alega, nada tem a ver com erros, lapsos, obscuridade ou ambiguidade.

Destarte, o que consta da fundamentação e do dispositivo do acórdão visado, não pode corrigir-se, nem contendo qualquer daqueles “vícios” textuais que devam corrigir-se. Acresce, como vem de dizer-se, que a questão do prazo não influi, de modo nenhum, no dispositivo.

Abundante parece ter de repetir-se que o arguido discorda da decisão, insistindo em dar por assente que o seu requerimento inicial cumpre com as exigências, de forma e de substância, de um pedido de declaração de um qualquer impedimento, que haveria de ciar-se à margem do catálogo legal. Mas não cumpre, nem na forma nem, decisivamente, em substância, conforme se expôs.

É tão patente que não alega factos suscetíveis de integrar qualquer das situações do catálogo legal dos impedimentos do juiz natural em processo penal. O próprio reconhece, expressis literis ,que aincapacidade do juiz em ser imparcial não está especificamente prevista na lei como “impedimento(71º e 79º), que a “situação factual, uma vez que, repetimos, a mesma não se encontra especificamente prevista na lei processual portuguesa como fundamento de “impedimento” ou “recusa” (83º). Se é exato que a suspeita da falta de imparcialidade que o arguido imputada à Sr.ª Juíza Desembargadora relatora não integra o numerus clausus dos impedimentos vertido no CPP ou sequer no CPC, é incontestável que esse é fundamento fáctico vertido na norma do art.º 43º n.º1 do CPP, que define as situações que podem legitimar o pedido de escusa ou o requerimento de recusa, estatuindo: a intervenção do juiz no processo penal pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade” (sublinha-se para realçar). Notando-se que já acima se deu conta da radical diversidade dos fundamentos dos impedimentos e da recusa do juiz natural.

Enfim, compreenderá o arguido quão infundada e descabida porque contra legem, mesmo laborando no que o próprio qualifica delapso manifesto”, se apresentava a sua argumentação visando que se convertesse a mera suspeita sobre a imparcialidade e isenção, em impedimento do juiz natural, situação que o legislador definiu como fundamento de recusa. A previsão normativa é para respeitar, não podendo o interprete converter o que o legislador definiu como motivo de recusa em fundamento legal de impedimento.

Contudo, o Supremo Tribunal não se deixou ludibriar e, não se desviando dos regimes normativos, mais não fez que, interpretando-os nos precisos termos, extrair as consequências legalmente previstas, decidindo em conformidade.

A discordância do arguido, ademais de infundada, é manifestamente impertinente, porque mais não consubstancia que um recurso “encapotado”, visando reverter, completamente, o decidido no acórdão “impugnado”.

d) das nulidades:

Para o arguido, constitui nulidade tudo quanto se decidiu no acórdão sem ter acolhido as suas alegações e pretensões. Para amparar aquela arguição convoca, para umas a norma adjetiva processual penal que regula as nulidades da sentença, concretamente o art. 379º n.º 1 al.ª c) do CPP -, para outras apela a normas do CPC, e para algumas não indica qualquer norma.

Quanto à alegada omissão de pronúncia já acima se apreciou.

Quanto às demais arguições, salienta-se, em primeiro lugar que as nulidades do processo penal estão previstas no CPP. Não sendo, pois, aplicável o regime das nulidades consagradas no CPC. Ademais, vigora aqui o princípio da legalidade – art.º 118º do CPP -, nos termos do quala violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando este for expressamente cominada na lei”.

Segundo Henriques Gasparo princípio da legalidade do processo e dos atos desdobra-se, deste modo, em matéria de nulidade ou invalidade, na consequência que se afirma na expressão de um numerus clausus dos fundamentos da invalidade; a nulidade do ato não resulta da simples violação ou inobservância de disposições legais, mas tem de estar expressamente prevista como consequência da violação ou inobservância das condições ou pressupostos que a lei expressamente referir[5].

O arguido não imputa ao acórdão visado com a arguição qualquer nulidade do processo ou dos atos que esteja cominada como tal em lei processual penal expressa.

A nulidade cominada no art.º 41º n.º n.º 3 do CPP ocorre apenas quando o juiz que praticou os atos estiver impedido, por facto anterior que, nos termos do disposto nos arts. 39º ou 40º do CPP, o iniba de intervir no processo.

No caso, nenhum juiz que praticou atos no processo se declarou impedido, nem foi decretado o seu impedimento, em recurso contra a decisão de não reconhecer impedimento que lhe tivesse sido oposto.  

Por isso, a nulidade ali cominada está aqui fora de cogitação.

Salienta-se, em segundo lugar, que as nulidades da sentença têm um regime específico concentrado no art.º 379º do CPP. Nos termos da alínea c) – para corresponder às citações do arguido -, é nula a sentença ou acórdãoquando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

O arguido convoca esta norma adjetiva em três pontos da arguição em apreço – n.º 23º, 32º e 47º -.

O primeiro, reportando-a à alegada omissão de pronúncia, já acima apreciada.

O segundo e terceiros, reportam-se à contagem do prazo, de que o arguido discorda. A decisão contra o alegado e pretendido pelo arguido não constitui nulidade de qualquer espécie, não sendo nulidade subsumível à previsão do disposto no art.º 379º n.º 1 al.ª c) do CPP.

Evidentemente que o tribunal pode e deve conhecer oficiosamente da tempestividade dos atos processuais.

E, de qualquer modo, repete-se, a contagem efetuada, inquestionavelmente correta – como o arguido acaba concordando -, não teve qualquer repercussão no dispositivo.

Em face do que mais não resta que concluir que o acórdão visado com as arguições em apreço, não enferma desses pretensas nulidades ou de qualquer outra cominada no art.º 379º do CPP.

As arguições que o requerente qualifica de nulidades, mas que, em substância, se traduzem apenas na reafirmação da sua discordância com o decidido, porque destituídas de qualquer previsão ou suporte legal, são manifestamente infundadas.

e) das inconstitucionalidades:

O arguido seguiu a metodologia de arguir o que qualificou de nulidades e quando assim não se entenda – ou seja, não se lhe dando razão -, considerar que a decisão enferma de inconstitucionalidade, por violação, quase sempre e genericamente, de todas ou da maior parte dos artigos da CRP que enumera. A saber: os artigos 2º, 18.º n.ºs 1 e 2, 20.º n.ºs 1 e 4, 32.º, n.ºs 1 e 219.º n.º 1 da CRP – máxime: pontos 25º, 33º, 44º, 48º, 64º, 94º, 101º, 103º e 109º (neste subtraiu o art. 2º e acrescentou o art. 13º). Contudo, não enuncia os motivos pelos quais a decisão contrária às suas pretensões ofende os preceitos constitucionais que convoca. Em suma, entende que a decisão é, em si mesma, quanto ao mérito, inconstitucional.

A decisão de um tribunal judicial que interpretou e aplicou à situação sub judicio um determinado complexo normativo e afastou a aplicação de outro, circunscrevendo-se ao âmbito do seu poder jurisdicional próprio, não admite, nesse aspeto, revisão pelo Tribunal Constitucional. Este mais não pode que ajuizar e decidir da conformidade com a Lei Fundamental da interpretação com que foi aplicado o direito ordinário na decisão do tribunal. “Assim, não cabe ao Tribunal Constitucional saber se foi ou não correta a interpretação que o tribunal a quo fez da norma contida na alínea b), do n.º 1, do artigo 380.º, do CPP, como lhe não cabe tomar posição quanto ao problema da aplicabilidade ao caso, por via subsidiária, das pertinentes normas do Código de Processo Civil (em especial, a contida no n.º 2, do artigo 613.º, CPC), pronunciando-se sobre a ocorrência, ou não, de uma lacuna no Código de Processo Penal[6].

Não basta, pois, alegar que o decidido no acórdão violou uma norma qualquer da Constituição da República/CRP. Exige-se que se explicite como ou de que modo a norma ou complexo normativo foi aplicado, in concreto, com um sentido ofensivo dos preceitos ou princípios consagrados na nossa Carta Magna.

Que assim é, evidencio muito bem a circunstância de o arguido não explicitar que norma aplicada ou mesmo como a decisão proferida no acórdão visado, em síntese, a julgada ininteligibilidade do seu requerimento inicial - e que o subsequente nada aditou quanto à substância -, poderia ter violado o princípio do Estado de direito democrático consagrado no art. 2º da CRP. 

Este preceito, segundo J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, tem “essencialmente uma função aglutinadora e sintetizadora, a regra do Estado de direito democrático, em princípio, não produz preceitos de per si, ou seja, preceitos que não encontrem tradução em outras disposições constitucionais[7].

O arguido também não apresenta qualquer explicação, nem este Supremo Tribunal vislumbra como o seu acórdão ou as normas jurídicas nele aplicadas podem ter violado o princípio da igualdade consagrado no art. 13º da CRP.

Na jurisprudência do Tribunal Constitucional o princípio da igualdade “desdobra-se em duas «vertentes» ou «dimensões»: uma, a que se refere especificamente o n.º 1 do artigo 13.º, tem sido identificada pelo Tribunal como proibição do arbítrio legislativo; outra, a referida especialmente no n.º 2 do mesmo preceito constitucional, tem sido identificada como proibição da discriminação. Em ambas as situações está em causa a dimensão negativa do princípio da igualdade. Do que se trata - tanto na proibição do arbítrio quanto na proibição de discriminação - é da determinação dos casos em que merece censura constitucional o estabelecimento, por parte do legislador, de diferenças de tratamento entre as pessoas. Mas enquanto, na proibição do arbítrio, tal censura ocorre sempre que (e só quando) se provar que a diferença de tratamento não tem a justificá-la um qualquer fundamento racional bastante, na proibição de discriminação a censura ocorre sempre que as diferenças de tratamento introduzidas pelo legislador tiverem por fundamento algumas das características pessoais”[8].

Manifestamente, não tem sentido a invocação no caso do princípio da igualdade material, ademais de nada se explicitar sobre a alegada violação.

O arguido também não justifica como e de que modo a decisão que julgou ininteligível o seu requerimento pode ter ofendido a regra constitucional que estabelece a força jurídica, direta e imediata, dos direitos fundamentais consagrados na CRP e a proibição da retroatividade das leis restritivas daqueles direitos.

Estando aqui fora de cogitação a aplicação retroatividade de quaisquer leis, não se vislumbra como, onde, de que modo e por que é o decidido no acórdão pode ter violado aquele preceito constitucional. Qual tenha sido o direito fundamental com consagração constitucional foi desaplicado pelo dispositivo do acórdão arguido de inconstitucionalidade.

Quanto direito à via judiciária, foi garantido. O arguido apresentou a sua pretensão de tutela jurídica ao tribunal, que a julgou ininteligível (sem condições substanciais mínimas de poder converter-se numa diferente providência processualmente estruturada e aceitável).

O direito fundamental ao recurso ordinário não é absoluto. Exemplar das restrições constitucionalmente admissíveis é irrecorribilidade da decisão do Supremo Tribunal de Justiça proferida sobre requerimento de recusa de juiz Desembargador. No caso, a decisão visada pelo arguido foi proferida pela secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça. Não admite recurso ordinário.

De qualquer modo, na prática, a pretensão do arguido foi apreciada e julgada pelo Tribunal da cúspide da ordem judiciária comum. Na prática, a sua pretensão de justiça foi inadmitida no tribunal inferior – a Sr.ª Juíza Desembargadora, entendeu não se verificar qualquer dos motivos substanciais alegados pelo arguido para se apartar do processo. E reexaminada no tribunal hierarquicamente superior, ainda que o Supremo Tribunal de Justiça tenha julgado ininteligível, por manifesta incompatibilidade entre a causa de pedir e o pedido e por evidente adequação da mesmo com pedido legalmente previsto, mas que o arguido recusa.

A decisão de ininteligibilidade do requerimento não é, quanto ao seu mérito, reexaminável por outro tribunal, incluindo o Tribunal Constitucional. Este pode vir apreciar e decidir da conformidade com a CRP do sentido com que determinada lei foi interpretada e aplicada, mas não da bondade ou do acerto de uma decisão de um tribunal judicial.

Finalmente não só não vem motivada a invocação do art.º 219º n.º 1 da CRP, como, de qualquer modo, jamais poderia ter qualquer pertinência para amparar as deduzidas inconstitucionalidades. Apenas se compreendendo que o arguido a cite por “lapso manifesto” – na sua fraseologia - ou por mera invocação, a esmo, de normas da CRP, na esperança de que alguma houvesse de aproveitar-se. Rememora-se que este preceito da Lei Fundamental estatui sobre as funções do Ministério Público, dispondo:1 - Ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática”.

Deve o arguido tomar boa nota de que este comando da CRP atribui ao Ministério Público a exclusivamente da titularidade da ação penal.

Seja como for, no vertente procedimento – único que agora e aqui incumbe ao Supremo Tribunal de Justiça apreciar e decidir - o Ministério Público não só não decidiu, como nem tão-pouco teve qualquer intervenção.

É, por isso, incompreensível a invocação da citada norma constitucional.

Resulta, assim, do exposto que o decidido no acórdão visado pelo arguente não só não enferma de inconstitucionalidade, como nem sequer vem adequadamente suscitadas questões de constitucionalidade normativa. O arguido não circunscreve a sua discordância com o decidido a qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, como exige o disposto no art. 280º n.º 6 da CRP. E, de qualquer modo, não fundamenta como e por que razões a decisão ofende cada um dos preceitos da Lei Fundamental que convoca.

Improcedem, assim, por manifesta falta de fundamento, as deduzidas inconstitucionalidades imputadas ao acórdão visado.


III. DECISÃO

Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça - 3ª secção criminal -, decide indeferir por manifesta falta de fundamento legal: -----------

a)  as arguidas nulidades;

b)  as deduzidas inconstitucionalidades.


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Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 3UCs (art. 8.º, n.º 9, e da Tabela III do Regulamento das Custas Judiciais).

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Supremo Tribunal de Justiça, 16 de fevereiro de 2022.


Nuno Gonçalves (Juiz Conselheiro relator)

Paulo Ferreira da Cunha (Juiz Conselheiro adjunto)

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[1] Proc. n.º 2290/07.PABRG.G1-A.S1.
[2] Acórdão STJ de 7/04/2016, proc. 842/10.9TBPNF.P2.S1 in www.dgsi.pt
[3] Proc. n.º 7846/11.2TAVNG-B.S1, sumário in www.dgsi.pt
[4] Ac. de 17/06/2015, proc. n.º 1149/06.1TAOLH-A.L1.S1, in www.dgsi.pt
[5] Código de processo Penal Comentado, 3ª ed. Revista, Henriques Gaspar; Santos Cabral; Maia Costa; Oliveira Mendes; Pereira Madeira; Pires da Graça, pag. 329.
[6] Acórdão n.º 851/2017 do Tribunal Constitucional.
[7] Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.º ed., pag. 74.
[8] Acórdão n.º 266/2015.