Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
104/07.9TBAMR.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: PIRES DA ROSA
Descritores: SUCESSÃO
INDIGNIDADE SUCESSÓRIA
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 01/07/2010
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CJASTJ, ANO XVIII, TOMO I/2010, P.14
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1 – O art.2033º, nº1 do CCivil estabelece um princípio geral de capacidade sucessória passiva, sendo que um sucessor é um beneficiário, é alguém que vê ingressar no seu património os bens de quem morreu.
2 – Há, todavia, e no que à sucessão legal diz respeito, duas situações em que, na perspectiva relacional entre quem morre e quem lhe vai suceder, a lei não suporta de todo em todo a transmissão beneficente – que o autor da sucessão ( ou os seus mais próximos ) tenha sido vítima por parte do ( original ) sucessor de um atentado à vida, ou de um atentado grave ao seu património moral, através da utilização ínvia da máquina da justiça.
3 – A regra é, portanto, a da capacidade ( art.2033, nº1 do CCivil ); no que à sucessão legal se reporta, a excepção são – e são apenas, taxativamente – as excepções previstas nas alíneas a ) e b ) do art.2034º.
4 – No mais, ficará no património da vítima a “punição civil” da perda da capacidade sucessória: na sucessão legítima dispondo livremente dos seus bens, usando o mecanismo da sucessão testamentária; na sucessão legitimária, utilizando o mesmo mecanismo para deserdar o seu agressor, nas situações previstas no art.2166º do CCivil.
5 – Não pode todavia reconhecer-se capacidade sucessória a um pai que violou uma filha de 14 anos, a obrigou a abortar aos 15 anos, após cumprir a pena de prisão em que foi condenado persistiu na ofensa a sua filha ( que nuca lhe perdoou ) e se vem habilitar à herança desta sua filha por morte dela aos 29 anos, em acidente de viação – reconhecer-lhe essa capacidade seria manifestamente intolerável para os bons costumes e o fim económico e social do direito de lhe suceder e portanto ilegítimo, por abusivo, esse mesmo direito.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA instaurou, em 23/2/2007, no Tribunal Judicial de Amares, contra
BB acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo que o R. seja declarado carecido de capacidade sucessória, por indignidade, na herança de sua filha CC.
Alegou, em suma:
o réu, seu pai e pai de CC, foi condenado por crime de violação na pessoa da referida filha CC, quando ela tinha apenas quinze anos de idade e era órfã de mãe;
das relações sexuais, resultou a gravidez da CC, tendo-a o réu obrigado a fazer um aborto;
desde então, o réu desinteressou-se dos filhos, deixando de com eles conviver e de providenciar pela sua alimentação e educação;
quando avistava a CC, o réu insultava-a, o que a transtornava;
a CC nunca perdoou ao réu;
veio a morrer em consequência de um acidente de viação, tendo o réu instaurado uma acção contra a seguradora do veículo a pedir indemnização pela sua morte;
este comportamento do réu fá-lo carecer de capacidade sucessória, por indignidade, nos termos do art. 2034º, al. b) do CCivil.
Citado, contestou o réu ( fls.115 ) alegando:
o crime foi cometido numa fase difícil da sua vida, decorrente da viuvez precoce e do alcoolismo que se lhe seguiu;
após o cumprimento da pena, procurou a filha, que o perdoou, tendo ambos reatado relações de pai e filha;
a sua conduta não se integra em qualquer das situações estabelecidas no art. 2034º do CCivil, norma de natureza excepcional que não pode ser interpretada analogicamente.
Replicou o autor ( fls.54 ), impugnando os factos apresentados pelo réu e pugnando pela procedência do pedido.
Foi elaborado ( fls.67 ) o despacho saneador, com fixação dos factos assentes e alinhamento da base instrutória.
Efectuado o julgamento, com respostas aos quesitos da base instrutória nos termos do despacho de fls.174, foi proferida a sentença de fls.180 a 184 que julgou a acção totalmente improcedente por não provada e, em consequência, absolveu o réu do pedido.
Inconformado, o autor interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão de fls.232 a 243, julgou procedente a apelação e, revogando a sentença recorrida, julgou… procedente a acção e, consequentemente, declarou o réu, BB, carecido de legitimidade sucessória relativamente à herança de sua filha CC, por motivo de indignidade previsto na al. b) do art. 2034º do CCivil.
Pede agora o réu revista para este Supremo Tribunal, apresentando a fls.254 alegações.
CONCLUI:
1) Os fundamentos da indignidade sucessória estão taxativamente enumerados no art. 2034º do CCivil.
2) Esta é uma norma excepcional, pois a regra é a da capacidade sucessória.
3) Como, aliás, consta do disposto no nº1 do art. 2033º do CCivil.
4) As normas excepcionais não podem ser aplicadas por analogia, nos termos do art.11º do CCivil.
5) Os factos praticados pelo recorrente não são subsumíveis no disposto no art.2034º do CCivil.
Em contra alegações ( fls.273 ) o autor/recorrido, pugnando pela confirmação do decidido, apresentou as seguintes CONCLUSÕES:
1) As alegações do Recorrente são ineptas e, por tal, devem ser, desde logo, rejeitadas, porquanto não obedecem ao preceituado no art.685º-A do CPCivil.
2) As conclusões, em resposta, são desconexas das alegações a que se reportam, não constituindo uma síntese ou resumo do alegado, mas antes um desenvolvimento de enumeração de preceitos legais, não previstos, referenciados ou desenvolvidos em sede de alegações, propriamente ditas.
3) O presente recurso deve ser rejeitado e considerar-se legítima a interpretação analógica efectuada pelo Tribunal a quo do art.2034º do CCivil, o qual pode ser objecto de interpretação analógica e, até, extensiva.
4) Apesar de nenhuma das alíneas do preceito qualificar a prática do crime de violação sobre o autor da sucessão como comportamento indigno, não constitui entendimento pacífico, na doutrina e jurisprudência, que o art. 2034.º consagre uma tipicidade taxativa e que, por isso, afaste todo e qualquer tipo de analogia.
5) A indignidade sucessória reveste natureza sancionatória civil, sendo opinião do Prof. Oliveira Ascensão, que “é uma consequência autónoma no plano civil e funda-se no acto reprovável do indigno, vis a vis do autor da sucessão e a sua incidência é tal no relacionamento entre ambos que é capaz de remover todos os entraves da ordem pública que o legislador impôs à vontade do testador, devolvendo-lhe a sua plenitude”.
6) Aquele Professor conclui pela necessidade de se efectuar uma analogia legis, ou delimitativa, do art. 2034º CCivil, admitindo que a lei estabeleça “modelos dentro dos quais a indignidade deva caber” concluindo que, “se uma situação se revelar análoga às previstas nesses modelos, não haverá razão para banir o recurso geral à analogia”.
7) O caso sub judice cabe no instituto da indignidade sucessória, na medida em que o crime de violação de que o réu foi condenado cabe na grande categoria dos crimes contra a honra, a que se reporta a al. b) do art.2034.º, não podendo este normativo ser entendido como taxativo, mas antes objecto de um interpretação por analogia legis ou delimitativa.
8) O crime de violação, como crime contra a honra que é, não pode deixar de caber na al. b) do art. 2034.º, que refere o crime de denúncia caluniosa ou falso testemunho relativamente a crime a que corresponda pena de prisão superior a dois anos. Os crimes contra a honra, traduzem perfídia, afronta e têm repercussões na ordem pública sendo graduados pela pena que a cada um cabe.
9) E a razão justificativa da aplicação analógica do art.2034.º ao caso concreto reside na natureza do crime praticado – crime de violação praticado pelo pai na pessoa da filha menor – o qual é caracterizado como o mais grave dos crimes contra a honra – valorado após a vida –, penetrando, por isso, no modelo daqueles que o legislador pretendeu integrar na al. b) do art.2034.º.
10) É necessário integrarmos a interpretação deste normativo, justificando-se o recurso à analogia por razões de coerência do sistema e de justiça relativa, tudo postulado pelo princípio da igualdade e pela certeza do direito, tendo por fim evitar uma clamorosa desigualdade e injustiça, pois, de outra forma pode ser afastado da sucessão o autor de um crime menor, não podendo arredar-se o autor – já condenado – de um crime maior.
11) Dispõe o art.11º, n.º 1, do Civil que deve o julgador aplicar aos casos omissos as normas que directamente disponham para casos análogos, referindo Pires de Lima e Antunes Varela, que “a analogia das situações mede-se em função das razões justificativas da solução fixada na lei, e não por obediência à mera semelhança formal das situações”.
12) Torna-se imperioso aliar à analogia, a designada ratio legis, ou até mesmo a interpretação teleológica, sendo curial que se questione sobre qual a interpretação que melhor corresponde à intenção reguladora do legislador ou à sua ideia normativa, referindo Karl Larenz, que “a intenção reguladora do legislador e as decisões valorativas por ele encontradas para alcançar manifestamente esse desiderato continuam a ser arrimo obrigatório para o juiz mesmo quando acomoda a lei (…) a novas circunstâncias, não previstas pelo legislador, ou quando a complementa”.
13) O mesmo Autor defende o tratamento igual daquilo que é igual.
14) O crime de violação não pode deixar de se considerar o maior dos crimes contra a honra da mulher e que tem de ser valorado imediatamente após o valor vida.
15) E, considerando que o instituto da indignidade sucessória, como causa especial de incapacidade sucessória, tem maior repercussão na vida social que o instituto da deserdação, o qual tem mais carga a nível familiar e, por isso, agrava as causas de incapacidade em relação à indignidade e que o bem jurídico protegido no crime de violação é a honra no seu conceito mais amplo, não se vislumbram razões para não subsumir a conduta do recorrente na causa de indignidade prevista no art.2034.º, al. b), efectuando uma interpretação analógica do mesmo – analogia legis.
16) O art.2034º tem de ser interpretado por analogia, de maneira a que formas mais graves de ofensa à honra caibam, num modelo que pretendeu excluir da sucessão aqueles que cometeram crimes, mais leves, desta natureza e, por ele, foram condenados.
17) A ratio legis do art.2034º CCivil vai no sentido de permitir a inclusão, quer por extensão interpretativa, quer por analogia legis, de crimes mais graves que aqueles referidos no normativo.
18) O Prof. Capelo de Sousa refere que o art.2034º do CCivil, “castigando atentados contra a honra do autor da sucessão e seus familiares, preceitua na sua al. b) a incapacidade do “condenado por denúncia caluniosa ou falso testemunho (….). Aqui, entre os diversos crimes contra a honra, o legislador foi sensível ao que estes traduzem de afrontoso e de perfídia e às suas repercussões de ordem pública, não sem deixar de exigir uma especial gravidade traduzida no patamar da pena e a aludida segurança da prática da infracção”, sendo certo que, in casu, a condenação existe e por um crime, não tipificado naquele normativo 2034º CCivil, mas mais grave e pertencendo ao mesmo modelo ou categoria: crime contra a honra.
19) Não se aceitando a interpretação analógica da al. b) do art.2034º, por via da interpretação que se dá ao art.11º do CCivil, sempre se poderá alcançar o mesmo resultado através do argumento a majore ad minus como explicita, Karl Larenz, “a verdadeira justificação do argumentum a majore ad minus radica, do mesmo modo que a do argumento de analogia, no imperativo de justiça de tratar igualmente hipóteses que, do ponto de vista valorativo, são iguais, sempre que não seja imposto pela lei, ou esteja justificado por razões especiais, a um tratamento desigual”.
20) A interpretação do art.2034.º do CCivil, defendida pelo recorrente, no sentido de afastar a sua interpretação analógica, viola não só o art.11º do CCivil, como constitui uma clara ofensa aos princípios fundamentais constitucionalmente consagrados, nomeadamente uma violação clara do conceito de dignidade humana, e da integridade moral e física, princípios que os arts.25º e 26º da CRP dispõem como invioláveis e protegidos contra quaisquer formas de descriminação e, ainda, protegidos pelas principais Leis Fundamentais, e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Estão corridos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
FACTOS:
A) O A. AA encontra-se registado como filho do R. BB e de DD.
B) CC, registada como filha do réu BB e de DD, nasceu em 27 de Maio de 1977 e faleceu em 28 de Fevereiro de 2006, vítima de acidente de viação, intestada e sem disposição escrita de última vontade.
C) Por sentença proferida no processo comum colectivo n.º 106/94.3GAAMR, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Amares, já transitada em julgado, o réu foi condenado a 6 anos de prisão efectiva, pela prática, em 1993, do crime de violação, previsto e punido pelo art. 210º e 208º, n.º 1, al. a) e n.º 3 do Código Penal de 1982, na pessoa da sua filha CC.
D) Na sequência da violação referida em C) a CC engravidou, aos quinze anos.
E) Tendo o réu obrigado a sua filha a proceder a um aborto no início do ano de 1994.
F) Em consequência do referido em C), D) e E), CC e o seu irmão AA deixaram de viver com o seu pai, o réu BB, desde 1994.
G) Desde os factos referidos em F), o réu não mais conviveu com a sua filha CC ou com o seu filho AA.
H) Não mais os procurou, não contribuiu para a sua alimentação, para sua educação ou para o seu vestuário.
I) Pelo que os seus filhos CC e P.... foram criados e cuidados pelos seus tios maternos.
J) Ocasionalmente, sempre que o réu avistava a sua filha CC, injuriava-a, envergonhando-a e humilhando-a perante quem estivesse presente.
K) O que sucedeu em Amares e em Santa Marta do Bouro.
L) A actuação aludida em J) e K) voltou a repetir-se, no ano de 2005, junto à estação rodoviária de Braga, quando se dirigiu à CC apelidando-a de “puta”.
M) Em consequência do referido, CC recolheu a casa com tremuras, em pranto e grande aflição.
N) Como consequência directa do referido nos factos assentes e nos artigos anteriores, a CC vivia aterrorizada, angustiada, com vergonha e medo de vir a sofrer novas injúrias de seu pai.
O) Nunca o tendo perdoado.
P) O R. nunca se arrependeu, até à morte da filha, que não lamentou.
São estes os factos.
E com eles, olhados à luz das conclusões da alegação de recurso - que, aqui como em qualquer recurso, delimitam os respectivos âmbito e objecto, de acordo com o que dispõem os arts.684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do CPCivil - haveremos que decidir da única questão que nos é colocada ( posto que já decidido pelo Relator nada obstar ao seu conhecimento, uma vez que dessas conclusões se retira o sentido da não concordância com o decidido ): saber da capacidade do réu BB relativamente à sucessão de sua filha CC ( no caso, a sucessão legal ) ou da sua eventual incapacidade ( ou, mais precisamente, ilegitimidade ) sucessória por indignidade.
Vejamos:
o art.2033º, nº1 do CCivil estabelece um princípio geral de capacidade sucessória passiva ( na sucessão legal como na sucessão testamentária, que aqui desprezaremos) – têm capacidade sucessória, além do Estado, todas as pessoas nascidas ou concebidas ao tempo da abertura da sucessão, não exceptuadas por lei.
À morte de alguém não partem com quem morre os bens terrenos.
Que ficam e que, no que à sucessão legal ( que aqui nos importa ) diz respeito – art.2131º - devem ser transmitidos a alguém que fique e que, com quem parte, tenha uma ligação próxima ( pelo casamento, pelo sangue ) ou, se não houver alguém nessas condições, ao Estado ( estamos, naturalmente, a desprezar aqui, como dissemos, a sucessão testamentária ou contratual, onde o autor da sucessão dispõe ele próprio sobre o destino post mortem dos seus bens ).
Mas, naturalmente, um sucessor é um beneficiário, é alguém que vê ingressar no seu património os bens de quem morreu.
E há duas situações, na perspectiva relacional entre quem morre e quem lhe vai suceder ( e por isso se vem entendendo, por vezes, mais apropriado o conceito de legitimidade em detrimento da capacidade ) em que a lei não suporta a transmissão beneficente. Situações que têm a ver com a vida e o respeito pela vida – a vida humana é inviolável ( art.24º, nº1 da Constituição ) – por um lado;
a realização da justiça, por outro, ou - dito no reverso - com a utilização da máquina da justiça para conseguir a injustiça de atingir de forma particularmente grave a personalidade, a honra, do transmitente ( arts.360º e 365º do CPenal e 202º da Constituição ).
E é assim que o art.2034º estabelece que carecem de capacidade sucessória, por motivo de indignidade:
a) o condenado como autor ou cúmplice de homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o autor da sucessão ou contra o seu cônjuge, descendente, ascendente, adoptante ou adoptado;
b) o condenado por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mesmas pessoas, relativamente a crime a que corresponde pena de prisão superior a dois anos, qualquer que seja a sua natureza.
O que de todo em todo a lei não suporta – a mesma lei que reconhece um princípio geral de capacidade sucessória – é que, na vertente relacional de que já se falou, o autor da sucessão ( ele e os seus mais próximos, num círculo perfeitamente definido ) tenham sido vítimas por parte do ( original ) sucessor de um atentado à vida ou de um atentado – grave - ao seu património moral, através da utilização ínvia da máquina da justiça.
Aqui o interesse público sobrepõe-se à vontade privada e o agressor é punido civilmente - perde a capacidade sucessória que originariamente lhe era reconhecida, quer a sua vítima queira quer não.
Esta é a excepção.
Para além dela, está a regra ( da capacidade sucessória ).
E deixa-se no património da vítima a vontade de punir ou não punir:
no que à pura e simples sucessão legítima diz respeito, não é preciso dizer nada – a vítima pode sempre dispor livremente, usando o mecanismo da sucessão testamentária;
no que diz respeito à sucessão legitimária, institui-se o mecanismo da deserdação, inscrito no art.2166º, possibilitando-lhe que, em testamento, prive o agressor da legítima a que ab initio teria direito.
Ora a excepção é a excepção – ela define, por referência à regra, uma particular situação que a esta última é subtraída.
E – art.11º do CCivil – as normas excepcionais não comportam aplicação analógica …Não é possível transformar em regra, através da analogia, aquilo que é ( apenas ) uma particularidade.
Como escreve Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1995, pág.327 « proibido é transformar a excepção em regra, isto é, partir dos casos taxativamente enumerados pela lei para induzir deles um princípio geral que, través da analogia juris, permitiria depois regular outros casos não previstos, por concretização dessa cláusula ou princípio geral ».
Mas – ainda o mesmo autor, obra e local - « não já que seja proibido estender analogicamente a hipótese normativa que prevê um tipo particular de casos a outros caso particulares do mesmo tipo e perfeitamente paralelos ou análogos aos casos previstos na sua própria particularidade ».
Todavia, não é possível fazer essa extensão analógica para além, para fora, daquilo que é a própria particularidade.
E a particularidade aqui é ( para além desse definitivo atentado à vida que é o homicídio doloso ) não um genérico atentado à honra mas a ignominiosa utilização dos mecanismos da justiça para perpetrar esse mesmo atentado.
O que a lei subtrai à vontade da vítima é não o puro e simples atentado à honra ( através da imputação da prática de um crime especialmente grave ) mas a dimensão pública do instrumento(s) utilizado(s) para esse atentado.
Sair fora desta dimensão pública é sair da própria particularidade. E por isso se não pode falar em caso particular do mesmo tipo quando a honra foi atingida – como aqui foi o acaso - por uma outra via, embora com uma censurabilidade social eventualmente mais grave.
Se a analogia não é aqui possível – nem a analogia juris nem também a analogia legis – muito menos o é a chamada interpretação extensiva a que o art.9º, nº1 do CCivil abre portas – a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos texto , tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
É que o texto do art.2034º - no que nos interessa agora, a alínea b ) – é absolutamente claro: o legislador disse o que quis dizer, apenas o que quis dizer e disse tudo o que quis dizer. E disse-o de uma forma incontroversa, por contraponto aliás com o que veio a dizer um pouco mais à frente, para a deserdação, no art.2166º abrindo ao autor da sucessão as portas da sua própria vontade anti-sucessória.
Ou seja, a enumeração das causas de indignidade constante do art.2034.º é ( ao menos para o que nos importa ) taxativa.
Assim resulta da ordem literal das coisas: a letra do art.2034º do CCivil não revela nenhum elemento gramatical que demonstre o carácter eventualmente exemplificativo das causas de indignidade ou dos tipos legais de crimes nele enunciados;
Assim se pode dizer do contexto histórico da disposição, remontando aos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966 – o texto passou com o mesmo texto, passe o pleonasmo, pelo Anteprojecto da parte relativa ao Direito das Sucessões, da autoria do Professor Inocêncio Galvão Telles - cujo pensamento afirmava expressamente essa taxatividade - pela 1.ª Revisão ministerial do Projecto de Direito das Sucessões, pela 2ª Revisão, até se fixar na redacção final, ainda em vigor, do código;
Assim se dirá também do entrosamento sistemático: o art.2034.º do C.C segue-se, como excepção, à regra do art.2033º.
Consequentemente, não arrasta a incapacidade por indignidade, tal como vem definida no art.2034º do CCivil, maxime na sua alínea b ), a condenação do réu, com trânsito em julgado, a 6 anos de prisão efectiva, pela prática, em 1993, do crime de violação, previsto e punido pelo art. 210º e 208º, n.º 1, al. a) e n.º 3 do Código Penal de 1982, na pessoa da sua filha CC.
Quer então isto dizer, inelutavelmente, que ao réu BB deve ser reconhecida a capacidade sucessória na herança aberta por óbito de sua filha CC, deve ser-lhe reconhecido o direito de suceder a esta sua filha, que violou em 1993 quando ela tinha apenas quinze anos, que em 1994 obrigou a abortar, e que depois de cumprida a pena de seis anos que lhe foi aplicada continuou a injuriar, envergonhando-a e humilhando-a perante quem estivesse presente, como aconteceu ainda no ano de 2005, junto à estação rodoviária de Braga, quando se lhe dirigiu apelidando-a de “puta”?
Não, não deve.
Isso seria de todo em todo intolerável, inaceitável para uma consciência ética e de valores, que não suportaria premiar com a vida, o valor da vida, aquele pai que sem contemplações roubou a honra de sua filha.
Isso brigaria frontalmente, e de uma forma violenta, com o princípio da dignidade da pessoa humana inscrito logo no art.1º da Constituição da República Portuguesa como conformador da nossa identidade enquanto povo soberano, porque seria dar a vida de alguém a quem a esse alguém roubou a honra.
Seria um atentado manifesto aos bons costumes e mesmo ao fim social e económico desse direito, o direito de suceder.
E quando os limites assim impostos ao direito são dessa maneira tão manifestamente excedidos, o direito não é, o direito não existe.
O direito tem limites internos cuja ultrapassagem é a entrada no não direito.
É o abuso do direito tal como o define o art.334º do CCivil.
Parece aqui haver alguma intrínseca contradição naquilo que vimos dizendo, uma vez que afirmámos atrás que o crime praticado pelo réu não está incluído na taxatividade definida como excepção no art.2034º e então, porque está fora dela, haveria que aceitar a regra da capacidade sucessória.
Não há contradição alguma.
Continuaremos a afirmar que, por si só, o crime praticado pelo réu não o faria cair na excepção da incapacidade por indignidade.
O que dizemos é que as circunstâncias concretas do caso conduzem a que o reconhecimento do direito do réu a suceder a sua filha – tão mais evidentes quanto a herança é o direito à indemnização por morte dela! – viola manifestamente aquilo que são as concepções ético-jurídicas dominantes; o reconhecimento desse direito afrontaria de uma forma clamorosa aquilo que a moralidade e os bons costumes exigem, afrontaria clamorosamente ( também ) aquilo que o direito tem em vista ao garantir, mesmo constitucionalmente ( art.62º da Constituição ), o direito à transmissão dos bens e que a lei civil, no caso da sucessão legal – art.2131º e seguintes – reconduz ao cônjuge e aos ( certos ) parentes ( para além do inevitável estado, à falta daqueles ).
A ideia de que os bens devem permanecer no domínio da família quando as gerações se sucedem umas às outras seria afrontosamente torturada se se concedesse a este, ao réu BB, o direito de suceder à falecida CC porque ele se auto-excluiu da substancial ideia de família.
Porque é um pai que roubou a honra de sua filha de apenas 15 anos, que lhe quer ficar agora com a vida, e que não fez nada de motu próprio para expiar o seu “pecado” e recuperar o afecto que criminosamente destruiu. Pelo contrário, depois de cumprir a pena ( que lhe foi imposta ) persistiu na sua conduta ofensiva da honra da filha de tal modo que, ainda em 1995 – no ano anterior ao acidente que a vitimou – a fez recolher a casa com tremuras, em pranto e grande aflição.
Dir-se-á que à filha, deste modo criminoso vítima do pai, estava aberto o caminho da deserdação previsto no art.2166º para, de forma total e definitiva, o afastar do caminho da sua herança. E que, portanto, quando a lei colocou no seu património privado, como se disse, o juízo da sua própria vontade, ela o não exercitou e por isso a capacidade do pai se mantém.
Mas não é assim.
Não é assim nesta situação concreta e é do concreto exercício do direito, de um direito, que falamos quando falamos de abuso de direito.
Esta mulher morre muito nova, antes dos 30 anos, e o réu é seu pai.
A lógica da vida – quando a vida tem lógica – conduz a que a filha sobreviva ao pai. Sobretudo quando ainda se não tem 30 anos e toda a lógica parece possível.
Na cabeça desta jovem não passaria nunca a necessidade de deserdar seu pai – o tempo encarregar-se-ia de colocar as coisas no seu devido lugar.
Sobretudo na cabeça desta jovem, cheia ainda do temor do pai que a violara e que persistia no comportamento ofensivo e que a fazia viver aterrorizada, angustiada, com vergonha e medo de vir a sofrer novas injúrias de seu pai. ( por isso nunca o tendo perdoado ), não haveria sequer tempo ( e espaço ) para colocar a necessidade de afastar o pai da sua herança quando a ordem natural das coisas seria colocá-la a ela a herdar do pai.
E este, que nunca se arrependeu, até à morte da filha, que não lamentou essa morte, como pode querer agora, sem atentar contra as concepções éticas e jurídicas que nos guiam, ficar-lhe com vida?!
Reconhecer ao réu BB capacidade sucessória na herança de sua filha CC seria sancionar um intolerável abuso do direito do réu a suceder-lhe.
E onde há abuso, abuso nos termos definidos no art.334º do CCivil, não há direito.
Com estes fundamentos, o recurso improcede.

D E C I S Ã O
Na improcedência do recurso, nega-se a revista.
Custas a cargo do recorrente, aqui e nas instâncias.

Lisboa, 07 de Janeiro de 2010

Pires da Rosa (Relator)

Alberto Sobrinho

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza