Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02A199
Nº Convencional: JSTJ00042881
Relator: FARIA ANTUNES
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
NEGÓCIO ONEROSO
MÁ FÉ
Nº do Documento: SJ200203050001991
Data do Acordão: 03/05/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 541/01
Data: 06/18/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Indicações Eventuais: M PINTO IN TEORIA GERAL PAG279.
A VARELA IN ANOT I PAG629
A VARELA IN OBG GERAL II PAG452
A COSTA IN RLJ 127 PAG270.
Área Temática: DIR CIV - DIR OBG.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 612.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1992/01/23 IN BMJ N413 PAG548.
Sumário : O acto oneroso só está sujeito à impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má fé, entendendo-se por má fé a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor - não se exige a intenção de o prejudicar nem o conhecimento da insolvência do devedor.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

O Estado Português (Fazenda Nacional), representado pelo Ministério Público, instaurou acção ordinária (impugnação pauliana) contra os réus A e mulher B e C, pedindo que se decrete que tem direito:
- À restituição dos bens objecto da alienação efectuada pelo casal dos 1ºs réus ao 3º demandado, na medida do seu interesse, no valor de 4605591 escudos, acrescida de juros de mora à taxa legal;
- A poder executar tais bens no património do terceiro réu, e a praticar todos os actos de conservação de garantia patrimonial autorizados por lei;
- A haver do réu adquirente desses bens o valor dos que porventura tenha entretanto alienado.
Para tanto, alegou que:
- Em devido tempo, o réu A não pagou à Fazenda Nacional as importâncias de IVA que discriminou, bem como as contribuições devidas ao Centro Regional de Segurança Social de Aveiro, que igualmente referiu, pelo que foram contra ele instauradas execuções fiscais e penhorados vários prédios e um automóvel;
- Conhecedor das execuções e montantes dos débitos e instado para os pagar, o réu A não o fez;
- O mesmo réu era ainda dono dos prédios inscritos na matriz predial rústica da freguesia de São Miguel do Mato sob os artºs 533º e 569º, de ¼ do prédio inscrito sob o artº 495º e da nua propriedade dos prédios inscritos sob os artºs 624º, 605º, 532º e 534º, todos descritos na Conservatória de Registo Predial respectiva apenas no dia 12.7.93;
- A Fazenda Nacional procedeu às penhoras desses prédios em 23.7.93;
- Por escritura pública celebrada no dia 21.6.93, no Cartório Notarial de Arouca, os réus A e B deram em cumprimento ao réu C todos estes últimos referidos prédios;
- Os quais constituíam o património que restava aos réus A e B;
- As quantias em dívida discriminadas no petitório provêm da actividade de comerciante de madeiras do réu A;
- O casal dos dois primeiros réus celebrou a escritura com objectivo de ficar impossibilitado de dar satisfação aos créditos da Fazenda Nacional, de cujos montantes tinha conhecimento;
- O adquirente desses prédios também conhecia esses objectivos e fins.
Contestaram os réus, arguindo a legitimidade da ré mulher e por impugnação dos factos carreados pelo autor, aduzido ainda estarem convencidos de que os bens penhorados e eventualmente vendidos pelo Fisco seriam suficientes para o pagamento das dívidas, e que os restantes bens foram dados pelos dois primeiros réus, ao terceiro demandado, em cumprimento de uma dívida existente para com este.
Houve resposta do A. à matéria da excepção, pugnando pela sua improcedência.
No saneador foi a excepção da ilegitimidade julgada improcedente.
Condensado, instruído e julgado o processo, foi proferida sentença que julgou a acção procedente, ordenando a restituição ao património dos 1ºs réus dos imóveis por eles dados em pagamento ao terceiro réu através da escritura celebrada em 21.6.93 no Cartório Notarial de Arouca, na medida em que tal seja necessário à satisfação dos créditos do autor, podendo executar tais bens no património do terceiro réu e neles praticar os actos de conservação de garantia patrimonial, condenando ainda os réus (todos eles, sem qualquer espécie de dúvida, diga-se desde já) como litigantes de má fé, na multa de 250000 escudos.
Apelaram os três réus.
Todavia, só o casal dos dois primeiros alegou.
A Relação do Porto, por acórdão de 18.6.01, julgou a apelação procedente, revogando a decisão da 1ª instância e absolvendo os réus do pedido e da condenação como litigantes de ma fé.
Inconformado com o assim decidido, recorreu o autor, por intermédio do Ministério Público, para este Supremo, finalizando a sua minuta com as seguintes
Conclusões;
1- O acórdão recorrido é nulo por excesso de pronúncia - artºs. 668º, nº 1 - d) e 716º do CPC -, na parte em que conheceu do recurso relativamente ao réu C;
2- Não tendo a Relação usado dos poderes que lhe são conferidos pelo artº 712º do CPC - que aqui, de resto, não se justificava - e tendo, inclusivamente, transcrito, como factos provados, os assim julgados pela 1° instância, são esses, e apenas esses, os relevantes para a definição do direito do caso (artº 659º do CPC);
3- Do conjunto dos factos provados resultam inquestionavelmente preenchidos os requisitos da procedência da impugnação pauliana exigidos pelos artºs 610º e 612º do CCivil;
4- A Relação ao julgar não verificado o requisito da má fé descrito no segundo daqueles preceitos, assentou essa decisão em factos que não ficaram provados;
5- Do mesmo modo, também a revogação da condenação dos RR como litigantes de má fé se baseou em factos que não ficaram provados;
6- Os factos que efectivamente ficaram provados impõem essa condenação, nos termos do artº 456º do CPC;
7- Decidindo revogar a sentença da 1ª instância, o acórdão recorrido violou as disposições legais apontadas nas conclusões anteriores, devendo ser revogado e ser confirmada a sentença.
Contra-alegaram os três réus, pedindo a manutenção do acórdão da Relação.
Corridos os vistos legais, passemos a apreciar e a decidir.
Foram dados como provados, nas instâncias, os seguintes factos:
O réu A é comerciante, estando sujeito ao Imposto sobre o Valor Acrescentado (A));
Em devido tempo, este réu não pagou à Fazenda Nacional as seguintes importâncias a título de IVA: 1423212 escudos, referente a 1988; 1167961 escudos, referente a 1989; 1141366 escudos, referente a 1990; e 3012060 escudos, referente a 1991 (B));
O réu também não pagou, aquando do seu vencimento, as contribuições devidas ao Centro Regional de Segurança Social de Aveiro, relativas aos meses de Dezembro de 1991 e Novembro de 1992, num total de 37992400 escudos (C));
Para pagamento coercivo dessas quantias e respectivos juros de mora, foram instaurados, pela Repartição de Finanças de Arouca, diversos processos de execução fiscal, que correm agora apensados ao processo executivo nº 273.2/90, cujo valor é de 10981812 escudos, e ao processo de execução fiscal nº 272.4/92, cujo valor total é de 600779 escudos (D));
No âmbito do processo executivo nº 273.2/90, foi o dito réu citado em 6.9.90 para proceder ao pagamento voluntário da quantia de 1423212 escudos em dívida de IVA de 1988, acrescida de juros de mora (E));
O réu não procedeu a esse pagamento, pelo que foram efectuadas, em 24.10.90, penhoras sobre os prédios a si pertencentes, inscritos na matriz predial rústica da freguesia de São Miguel do Mato, sob os artºs 367º e 544º, descritos na Conservatória do Registo predial de Arouca sob os nºs 23/090387- mato, respectivamente (F));
No dia 20.6.91, no mesmo processo, foi o aludido réu citado, agora para pagar voluntariamente a quantia de 1558213 escudos de IVA, do ano de 1990 (G));
Porém, não o fez, pelo que, em 4.7.91, para garantia do pagamento da quantia de 2183617 escudos de IVA de 1989 e 1990, foram-lhe penhorados os prédios inscritos na matriz predial rústica da freguesia de São Miguel do Mato, sob os artºs 571º, 642º e 514º, respectivamente, o primeiro descrito na Conservatória do Registo Predial de Arouca sob o nº 29168, a fls. 32 do Livro B-76, e os restantes omissos (H));
No dia 19 de Agosto de 1991, para garantia do pagamento da quantia de 317.721$00 de IVA de 1990, foi-lhe também penhorado o veículo automóvel a si pertencente, com a matrícula RD (I));
Desta e das demais referidas penhoras, foi o réu devidamente notificado aquando da sua efectivação (J));
Em 27.9.91, foi o réu ainda citado para proceder ao pagamento voluntário da quantia de 2015133 de IVA de 1990 (L));
Em 15.5.92, foi o réu citado para proceder ao pagamento voluntário da quantia de 1546330, de IVA de 1991 (M));
Em 8.7.92, foi o réu citado para pagar a quantia de 2485548 escudos de IVA de 1989 e 1990 (N));
O réu A era ainda dono dos prédios inscritos na matriz predial rústica da freguesia de São Miguel do Mato, sob os artºs 533º e 569º, de ¼ do prédio inscrito sob o artº 495º, e da nua propriedade dos prédios inscritos sob os artºs 624º, 605º 532º e 534º, todos descritos na Conservatória do Registo Predial apenas no dia 12.7.93 (O));
A Fazenda Nacional procedeu às penhoras desses prédios em 23.7.93 (P));
Por escritura pública celebrada no dia 21.6.93, no Cartório Notarial de Arouca, os réus A e B deram em pagamento ao réu C todos os prédios rústicos identificados na alínea O) (Q));
Os referidos prédios constituíam o património que restava aos réus A e B (R));
Os réus A e B casaram em 28.1.67, sem escritura antenupcial (S));
As especificadas quantias em dívida provêm da actividade de comerciante de madeiras do réu A (T));
Os réus celebraram a escritura especificada em Q) com o objectivo de ficarem impossibilitados de pagar as dívidas referidas à Fazenda Nacional (1º);
Com o fim manifesto de impedir a satisfação desses créditos (2º);
De cujos montantes tinham conhecimento (3º);
O adquirente desses prédios também conhecia esses objectivos e fins (4º);
O réu A encontra-se desempregado há já alguns anos (5º);
O réu C vendera ao réu A madeiras num total de 3000000 escudos (10º);
Durante os anos de 1988 e 1989 (11º).
O recorrente começa por ter razão logo na primeira conclusão recursória.
Efectivamente, os três réus recorreram da sentença da 1ª instância, mas depois só o casal dos dois primeiros réus minutou o recurso para a Relação.
Apresentadas as alegações na 1ª instância, devia a apelação do réu C sido logo ali julgada deserta, ex vi artº 690º, nº 3 do CPC, e não foi.
A Relação, por seu turno, devia ter detectado o lapso cometido e ordenado a devolução do processo à 1ª instância, para que aquele recurso fosse ali julgado deserto. Mas não reparou no lapso, e conheceu do recurso como se o réu C fosse também recorrente.
Não se podendo considerar suprida a nulidade processual consistente na omissão da decisão da deserção do sobredito recurso, veio o ora recorrente Estado Português reclamar da nulidade do acórdão apontada na conclusão primeira.
Com inteira razão o faz, pois a Relação, ao considerar que o réu C era recorrente - que o seu recurso não devia ser julgado deserto - e ao julgar o seu suposto recurso procedente, cometeu uma nulidade por excesso de pronúncia, pois conheceu de questões de que não podia conhecer (artº 668º, nº 1, d), 2ª parte), ex vi artº 716º do CPC).
Assim, o acórdão terá de ser considerado nulo e de nenhum efeito, nessa parte.
Todavia, havendo no caso vertente litisconsórcio necessário, a apelação dos dois primeiros demandados aproveitou ao comparte C, nos termos do artº 683º, nº 1 da lei adjectiva.
Posto isto, diga-se desde já que também as demais conclusões da revista merecem provimento.
Passemos a justificar.
Os requisitos gerais da acção pauliana constam do artº 610º do Código Civil, não vindo suscitadas quaisquer dúvidas acerca do seu efectivo preenchimento no caso sub judice.
A clivagem entre as instâncias verifica-se a propósito do requisito da má fé, contemplado no artº 612º da lei substantiva, do qual deflui que:
- O acto oneroso só está sujeito à impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má fé;
- Entendendo-se por má fé a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor.
A ajuizada escritura de dação em pagamento consubstancia, formalmente, um negócio jurídico oneroso, na medida em que aparente uma prestação correspectiva (a contrapartida consistente na entrega dos prédios) de uma outra prestação anterior e alegadamente feita pelo réu adquirente ao réu alienante (cfr. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, pág. 279).
Efectivamente, o adquirente vendeu madeiras ao alienante, no valor de 3000000 escudos, como aliás resultou provado, e o casal deste último, segundo o texto da escritura, entregou-lhe, em substituição da verba em dívida, os prédios indicados na alínea O) da especificação.
A dação em pagamento funcionava pois como meio de extinção da invocada obrigação do réu A para com o co-réu C, traduzido-se em o devedor dar ao credor, em vez do objecto devido (o dinheiro), um outro (os prédios) que o credor aceitou como tal.
Havendo um acto oneroso, exige-se, para a procedência da pauliana, a verificação da má fé bilateral requerida pelo nº 1 do artº 612º, e consistente na consciência do prejuízo que o acto causa ao credor Estado, consoante o nº 2, ibidem.
Entendeu-se na sentença da 1ª instância que existiu em todos os réus a consciência do prejuízo que para o credor Estado resultava da dação em pagamento.
Na Relação outro foi, porém, o entendimento que prevaleceu.
Com efeito, lê-se no acórdão em crise o seguinte:
Na decisão recorrida diz-se que houve dolo na génese da escritura de dação em pagamento... por o acto causar prejuízo ao credor... Perfilharíamos deste entendimento se não existissem os factos constantes das alíneas O) e Q) em que se refere que os réus deram em pagamento ao réu C todos os prédios rústicos identificados na al. O), conjugado com as respostas aos quesitos 10º e 11º (o réu C vendera ao Réu A madeiras num total de 3000000 escudos durante os anos de 1988 e 1989), montante que os Réus A e mulher confessam dever à data da escritura da dação em pagamento, referindo até nesta escritura os pormenores da existência da passagem de um cheque que não foi pago na data do vencimento.
Da conjugação destes factos resulta claramente que o Réu A (queria aqui certamente escrever-se C) também era credor dos restantes RR e até a sua dívida era anterior à do Estado. Obter um meio de pagamento legalmente permitido não pode ser interpretado como uma actuação dolosa e de má fé, razão porque não estão provados todos os requisitos necessários à procedência da acção. A acção pauliana a proceder consubstanciaria um atropelo aos interesses do Réu C, que veria o seu crédito anterior ao do Estado ser preterido por uma impugnação pauliana com base numa génese de má-fé que não se consegue concretizar.
Não podemos esquecer que a má fé exigida pelo artº 612º do CC... tem de ser bilateral, pelo que não vislumbramos como pode estar de má-fé um credor que procura cobrar o seu crédito por um meio que a lei lhe põe ao dispor e o utiliza adequadamente.
Não se pode sufragar este entendimento.
Quando na al. Q) da especificação se escreveu que por escritura celebrada no dia 21 de Junho de 1993, no Cartório Notarial de Arouca, os réus A e B deram em cumprimento ao réu C todos os prédios rústicos identificados na alínea O), não se quis dar como assente que na realidade houve uma verdadeira dação em pagamento, a entrega dos prédios para extinguir um crédito de 3000 contos de que era titular o adquirente sobre os alienantes, circunstância sobre a qual não havia acordo das partes ou confissão do autor.
A economia daquela alínea da especificação foi apenas a de que os outorgantes declararam que se tratava de uma dação em pagamento.
A confissão de dívida ao adquirente feita pelos alienantes na escritura em referência, não tem aqui relevância, por ter sido feita pelos primeiros dois réus ao terceiro, e a confissão, na noção emprestada pelo artº 352º do CC, ser o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a contraparte.
Para determinar se na realidade havia um crédito do réu C sobre os outros co-réus é que se formularam os quesitos 10º a 19º, dos quais apenas os 10º e 11º ficaram provados.
Tendo os réus claudicado na prova dos quesitos 12º a 19º, há que concluir que, ao invés do considerado no acórdão recorrido, não está provado que os réus A e mulher deviam ao réu C 3000000 escudos, à data da escritura da dação em pagamento, que este réu era credor daqueloutros por dívida anterior à do Estado.
Apenas se provou que o réu C durante os anos de 1988 e 1989 vendeu ao A madeiras no valor de 300000 escudos.
E que foi celebrada a ajuizada escritura de 21.6.93.
Quanto à razão de ser da feitura da escritura, o que se provou não foi a versão dos réus, de que se tratou de uma genuína dação em cumprimento, mas a versão do autor, isto é, que os réus celebraram a escritura com o objectivo de ficarem impossibilitados de pagar as dívidas referidas à Fazenda Nacional, com o fim manifesto de impedir a satisfação desses créditos, de cujos montantes tinham conhecimento.
Mas mesmo que se considere o acto como oneroso, sempre a má fé bilateral se deve dar como provada.
Com efeito, como se lê no nº 2 do artº 612º, entende-se por má fé a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor.
Ora, provou-se, através das respostas positivas aos quesitos 1º, 2º, 3, que:
Os réus celebraram a escritura especificada em Q) com o objectivo de ficarem impossibilitados de pagar as dívidas à Fazenda Nacional e com o fim manifesto de impedir a satisfação desses créditos, de cujos montantes tinham conhecimento.
Donde, relativamente aos réus alienantes, fácil é inferir que agiram com a consciência de que causavam prejuízo à Fazenda Nacional ao "darem em pagamento" os prédios discriminados na al. O) da especificação.
E também o 3º réu teve a consciência do prejuízo que o acto causava ao Estado credor.
Quanto a ele, resulta da resposta positiva ao quesito 4º que:
Ele conhecia os objectivos e fins perseguidos pelos co-réus alienantes e referidos nos ditos três primeiros quesitos.
Portanto, não podia deixar de ter a consciência do prejuízo que o acto causava ao Estado.
Não se provou, é certo, que tinha a intenção de prejudicar o credor Estado, mas como salienta Antunes Varela (no Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª Edição Revista e Actualizada, pág. 629), não se exige que haja com o acto a intenção de prejudicar o credor, o intuito de causar um dano (animus nocendi), bastando a consciência do prejuízo.
O réu C, como os demais, tinha a consciência de que o crédito do Estado sairia efectivamente defraudado com a ajuizada escritura, e como expende ainda Antunes Varela, desta feita nas Obrigações Em Geral, Vol. II, Reimpressão da 7ª Edição, pág. 452, essencial é que o devedor e terceiro tenham consciência do prejuízo que a operação causa aos credores.
A consciência do prejuízo que o acto causa ao credor é o quantum satis, nos negócios onerosos, para que também pelo lado do réu adquirente se mostre preenchido o requisito exigido pelo artº 612º para a procedência da acção pauliana, por não se exigir a intenção de prejudicar o credor ou o conhecimento da insolvência do devedor.
A decisão da Relação não pode ser mantida, pois, mesmo na hipótese de o acto ter sido oneroso. Também o réu adquirente agiu de má fé, traduzida no conhecimento da má fé dos alienantes, esta bem patenteada nas respostas aos três primeiros quesitos.
Como pondera Almeida Costa em anotação ao acórdão deste Supremo, de 23.1.92, publicado na RLJ ano 127º, pág. 270 e segs. (bem como no BMJ 413, pág. 548 e segs.), o artº 612º do CC impõe para os negócios onerosos tanto o dolo do devedor como a participação dolosa do terceiro, ainda que sob a forma de puro conhecimento da intenção fraudulenta daquele.
Diga-se, finalmente, que a solução não seria diferente caso se tivesse provado que o réu C à data da escritura era credor do réu A da referida importância de 3000 contos, por isso que ao ora suposto devedor não era consentido optar pela extinção dessa dívida através de uma genuína dação em pagamento, conhecendo, como conhecia, e querendo, como queria, o prejuízo do Estado, do que o co-réu C tinha perfeito conhecimento.
Fechado este capítulo, vejamos agora a questão da absolvição dos réus como litigantes de má fé.
Na 1ª instância foram condenados como litigantes de má fé com a seguinte fundamentação:
...alegaram factos cuja falta de fundamento conheciam, fazendo uso reprovável do processo: para tanto basta analisar os factos alegados na contestação e os que restaram provados em audiência.
No acórdão da Relação, ao invés, ponderou-se que:
Em primeiro lugar a decisão recorrida não faz qualquer destrinça entre os RR, ficando a dúvida se foram condenados como litigantes de má fé os Réus A e mulher ou também ... o Réu C. É evidente que da parte deste último réu tal condenação seria um absurdo porque apenas se limitou... a cobrar o montante de uma dívida.
... Não só os RR deduziram oposição consciente e pertinente, pelas razões acima mencionadas... mas também não estão preenchidos os requisitos da má-fé...
Porém, os réus não lograram provar que existia um crédito do réu adquirente sobre os réus alienantes subjacente à escritura de dação em pagamento, como ressumbra das repostas negativas aos quesitos 12º a 19º, contendo matéria articulada na contestação conjunta dos três réus.
Dessas respostas negativas nenhum relevo resulta em matéria de má fé processual, pois que a falta de prova significa apenas que o tribunal se não convenceu da sua verificação, não tendo o condão de se provar a situação inversa da espelhada pela parte que os alegou.
Mas, os mesmos réus, ao epitetarem de falsa, na contestação, a versão explanada na petição inicial e levada aos quatro primeiros quesitos, negaram um circunstancialismo pessoal, deles próprios, que foi em devido tempo dado como provado e era de suprema importância para a decisão da lide.
Agiram por conseguinte com dolo, ao negarem factos pessoais relevantes para a decisão do pleito.
Patenteia-se, assim, à saciedade, mas em termos diferentes dos considerados na 1ª instância, a litigância maliciosa por banda dos réus, a reclamar a sanção aplicada, por forma bem doseada, na 1ª instância.
Termos em que acordam em:
I- Julgar a apelação do réu C deserta, por falta de alegações, com custas por esse réu;
II- Declarar nulo e de nenhum efeito o acórdão da Relação relativamente à apelação interposta pelo réu C;
III- conceder a revista, revogando o acórdão da Relação, para ficar a valer a sentença proferida na 1ª instância, mas com diferente fundamento quanto à condenação por litigância de má fé, com as custas, na 2ª instância e neste Supremo, apenas pelos réus A e mulher, a quem se retira o apoio judiciário concedido, nos termos da al. d) do nº 1 do artº 37º da Lei 30-E/2000, de 20/12.

Lisboa, 5 de Março de 2002.
Faria Antunes,
Lopes Pinto,
Ribeiro Coelho.