Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3538/17.7T8AVR.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANA RESENDE
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
CONHECIMENTO OFICIOSO
ALTERAÇÃO DOS FACTOS
CONTRADIÇÃO
MATÉRIA DE DIREITO
MATÉRIA DE FACTO
RECURSO DE REVISTA
REVISTA EXCECIONAL
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 07/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO SE CONHECE DO OBJECTO DO RECURSO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

A modificação oficiosa da matéria de facto realizada pela Relação, devida à existência de uma contradição na mesma, efetuada tendo por base os elementos probatórios constantes dos autos, não pode ser sindicada pelo Supremo.

Decisão Texto Integral:


REVISTA n.º 3538/17.7T8AVR.P1.S1

ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

           

I - Relatório

1. M..., Lda. veio interpor contra PARAÍSO DA ENSEADA INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, LDA. e AA, ação declarativa, pedindo:

a) a declaração da anulabilidade da escritura de compra e venda e contrato promessa de compra e venda celebrados no dia 29.09.2016, entre a A. e os RR, sendo ordenado o cancelamento do registo de propriedade a favor da R., devendo ser registado o imóvel a favor da A.

b) condenar o R. AA na restituição/pagamento do valor pago de 13.500,00€, em virtude da assinatura sem poderes do Contrato Promessa de Compra e Venda.

2. Alega para tanto, no relevante, que no âmbito da sua atividade de construção civil, a situação desta e a realidade do país levaram a uma necessidade imediata de liquidez a fim de serem pagos fornecedores e trabalhadores, de modo a manter a empresa em laboração.

Sendo proprietária de uma casa, com o valor patrimonial de 197.740,00€, vendeu-a à R. por escritura celebrada em 29.09.2016, pelo preço de 200.000,00€, assim como uma moradia[1], tendo estes negócios sido propostos pelo legal representante da R., AA, sugerindo um empréstimo em que as casas ficariam como garantia, como forma de obtenção de liquidez imediata pela A., e asseverando que esta não perderia as casas, pelo que o sócio gerente da A. sempre teve a convicção que a outorga da escritura constituía a formalização de uma garantia sobre o imóvel e assegurando o pagamento da dívida constituída perante a R., enquanto o contrato-promessa também celebrado se consubstanciava num plano de pagamento a prestações dessa dívida.

Contudo, pouco tempo antes da celebração da escritura pública, a R. impôs-lhe um contrato de compra e venda, tendo recebido não o valor do preço aposto de 200.000,00€, conforme o declarado, mas apenas 78.638,12€. Foi então assinado um contrato promessa de compra e venda em que a R. prometia vender à A. o mesmo imóvel, pelo preço de 220.250,00€, sendo pago a título de sinal e início de pagamento o valor de 89.750,00€ no momento da assinatura do contrato, e a título de sinais mensais (outubro e novembro), 3.375,00€, pagos os seguintes com o valor mensal de 1.687,50€, a partir de novembro de 2016 e o remanescente do preço no ato da escritura, que devia ser realizada em 29.09.2017, cabendo à A. a marcação. Em caso de incumprimento, foi convencionada uma cláusula penal de 20.000,00€, fazendo a R. o imóvel seu, com a resolução do contrato.

Nunca pagou qualquer quantia a título de sinal, conforme o clausulado no contrato-promessa, mas sim as prestações mensais acordadas, no montante total de 13.500,00€.

O contrato promessa de compra e venda mais não era que um plano de pagamento de um mútuo com garantia real, tendo os contratos celebrados sido construídos de molde a ocultar um contrato de mútuo remunerado de forma usurária, e que em caso de incumprimento levava a obter lucros elevadíssimos sem qualquer contrapartida – o valor expresso de 210.500,00€, acrescido da cláusula penal de 20.000,00€.

O R. interveio na escritura de compra e venda, só ele assinando o contrato, não obrigando a sociedade R., que podia sempre recusar-se a outorgar a escritura do contrato prometido.

Assim, os contratos celebrados, escritura de compra e venda e contrato promessa de compra e venda entre os RR e a A, são negócios simulados, para camuflar o negócio dissimulado, um mútuo com garantia real. Tratando-se de simulação relativa, é válido o negócio dissimulado, o mútuo com garantia real, que contudo também está ferido de ilegalidade, por ter havido a exploração de uma situação de necessidade da A., e desse modo configurando manifestamente um negócio usurário que, em conformidade, devia ser anulado.

3. Citada, a R. veio alegar que foram celebrados dois contratos entre a R. e a A., um contrato de compra e venda e um contrato promessa de compra e venda, tendo a vendedora recebido o montante descrito na escritura, satisfazendo a mesma algumas das prestações convencionadas no contrato promessa, encontrando-se o sócio gerente da R munido de um documento de delegação de poderes para os atos praticados.

Afastando a existência de qualquer negócio simulado, pois as partes tinham plena consciência dos contratos que celebravam, impugnou o factualismo quanto à alegada situação de engano por parte da A, invocou que esta não marcou a escritura até à data, verificando-se o incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda, imputável àquela, pelo que, em reconvenção, a R. pede que seja reconhecido o incumprimento definitivo e a resolução do contrato promessa de compra e venda, por culpa única e exclusiva imputável à A., devendo esta ser condenada a pagar o sinal em dobro, bem como a cláusula penal (220.000,00€ + 20.000,00€).

4. O R., citado, veio aderir à contestação apresentada pela R. sociedade.

5. A A. veio responder.

6. Em sede de audiência prévia consignou-se no despacho proferido que, face aos factos articulados e que já podiam ser dados como assentes, os dois contratos – compra e venda e contrato-promessa de compra e venda –  eram contratos coligados ou em união interna, devendo a sua interpretação ser realizada em conjunto, foi admitido o pedido reconvencional e reportando ao objeto do litígio[2], por se entender que se configurava uma alienação em garantia, o mesmo delineado no sentido de se saber se tinha havido incumprimento do contrato-promessa e respetivas consequências, bem como da existência de negócio usurário.

7. Realizado o julgamento foi proferida sentença, que considerou[3] não comprovados os requisitos da usura, concluiu pelo incumprimento definitivo do contrato-promessa pela A, e resolvido o contrato, cessada a obrigação de a R. (re)vender o imóvel àquela, procedendo a reconvenção quanto às quantias entregues e à cláusula penal, consignando no dispositivo: julgo: A) improcedente a ação, absolvendo os RR dos pedidos; B) parcialmente a reconvenção, e por via disso: a) decreto a resolução do contrato-promessa de compra e venda; b) declaro perdidas a favor dos RR, as quantias entregues pela A, à R. sociedade, constantes do n.º 11, dos FP; c) condeno a A a pagar à R. Sociedade, 20.000,00€ da cláusula penal”.

8. Inconformada veio a A. apelar para o Tribunal da Relação ..., invocando não constarem da matéria apurada factos relevantes para aferir da desproporcionalidade das prestações das partes, face à prova que apenas recebeu 78.633,13€ e não o valor de 200.000,00€ que declararam na escritura considerado como não provado, e em sede do direito como questão principal a decidir, a existência de pacto comissório[4], havendo alienação em garantia, cuja obrigação fosse um mútuo, verificada estava também a aludida desproporcionalidade, e configurada a usura, pugnando pela inexistência de incumprimento quanto ao pedido reconvencional.

9. O Tribunal da Relação ... proferiu Acórdão no qual foram conhecidas: as arguidas nulidades da sentença, feita a apreciação requerida e oficiosa da matéria de facto, a (in)existência de um negócio usurário, a nulidade do contrato de compra e venda na violação da proibição do pacto comissório, e a reconvenção, na verificação da existência de incumprimento definitivo do contrato-promessa, com exclusão da verba de 20.000.00,00€, por ser uma decisão ultra petitum, consignando no dispositivo: “alterar a decisão recorrida, revogando-a na parte em que condena a A. a pagar à R. Sociedade €20.000 a título de cláusula penal. Em tudo o mais confirmam a sentença recorrida, improcedendo o recurso.”      

10. Novamente inconformada, veio a A. interpor recurso de revista, formulando nas suas alegações, as seguintes conclusões:  (transcritas)

- Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão confirmar a improcedência do pedido formulado conforme julgado em primeira instancia, porém ao abrigo do art.º 662º nº 2 c) do Código de Processo Civil, vem oficiosamente modificar a decisão da matéria de facto, com manifesto erro de direito.

2- Regra geral o Supremo Tribunal de Justiça não conhece de matéria de facto, competindo-lhe apenas aplicar o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelas instâncias (art.º 682º, nº 1, do CPC). Porém, pretende a Recorrente que o STJ sindique o incorreto uso dos poderes da Relação, ao efetuar a dita apreciação, por não estar em conformidade com a lei e é esta a questão de direito que é da competência do STJ e que fundamenta o presente recurso.

3- No caso em concreto e como se verá, A relação alterou a matéria de facto oficiosamente, fundando a mesma numa contradição verificada na matéria de facto provada em primeira instancia. Procedendo a uma reapreciação apenas e tão só formal, através da adesão a uma parte transcrita do teor da motivação da decisão de facto, sem uma análise de todo o teor da mesma, nem avaliando os elementos probatórios produzidos nos autos. Pelo que é nulo o acordo nos termos do art. 615º nº 1 d) e 674º nº 1 c) do CPC. Tal alteração da matéria de facto resultou ainda numa contradição entre a matéria de facto alterada e a fixada na sentença, que faz com que o objeito dos autos não faça qualquer sentido, diante do direito material. Sendo ainda nula nos termos do art. 615º c) parte final. Pelo que urge a intervenção do STJ nos termos do art. 674º, nº 1, b) e c), 682º nº 3 e ainda caso assim não se entenda, nos termos do art. 672º nº 1 a) do C.P.C.

 4- Depois da análise de algumas questões suscitadas pela Recorrente no que tange à alteração da matéria de facto, considerou a Relação “Dispõe-se, no entanto, no artº 662º do CPC que para além da alteração da matéria de facto a requerimento das partes – nº 1 - o tribunal da Relação pode ainda alterar oficiosamente a matéria de facto quando, dispondo dos elementos de prova que poderiam ter sido apreciados no tribunal recorrido, “... repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto...” – alínea c) do nº 2, do citado artº 662º do CPC. Impõe-se por isso apreciar a prova produzida em relação aos referidos pontos da matéria de facto, alterando a factualidade a que se reportam aqueles pontos por forma a corrigir a contradição verificada.

5- Quais eram os pontos da matéria de facto em contradição para o Tribunal da Relação? Refere-se “Para além do que é requerido pela recorrente em termos de alteração da matéria de facto, impõe-se atentar na contradição que se verifica quando no ponto 1 se dá como provado que a sociedade Autora “... vendeu, pelo preço de € 200.000,00 já recebido ...” o imóvel ali referido, ao mesmo tempo que se consigna que “Não se provou qualquer outro facto, designadamente que: a) a Ré sociedade entregou, efetivamente, à A. o montante de € 200.000,00”. Trata-se, como é evidente de duas afirmações contraditórias.”

6- Considerou então o Tribunal da Relação que para evitar contradição, altera o ponto 1 quando dá como provado ter recebido o preço da venda- €200.000,00 - impondo-se sim eliminar a alínea a) dos factos não provados para evitar a contradição que neste momento se verifica.

7- Ora, não se pode a A. conformar com tal decisão, na medida em que não existe qualquer contradição, como refere o douto acórdão, se não vejamos:

8- Do ponto 1 resulta - Por escritura pública de 29/09/2016, outorgada no Cartório Notarial ..., BB, na qualidade de sócio-gerente e em representação da sociedade M..., Lda. vendeu, pelo preço de €200.000,00, já recebido, à Paraíso Enseada- Investimentos Imobiliários, Lda., representada no ato pelo sócio gerente AA, livre de ónus e encargos, o prédio urbano composto de casa de três pisos destinada a habitação e logradouro, sito na Rua .../53- freguesia ..., inscrita na matriz sob o artigo urbano nº ...34 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...24- fls 13/14 (A). E da alínea a) dos factos não provados: a) a Ré sociedade entregou, efetivamente, à A. O montante de €200.000,00€.

9- Não existe qualquer contradição na medida em que no Ponto 1, não resulta, como entende o Tribunal da relação, que se provava ali que a Sociedade Autora “ vendeu, pelo preço de € 200.000,00 já recebido” o imóvel ali referido. De facto, tal não corresponde à verdade, o que resulta provado daquele ponto é que no dia 29 de Setembro de 2016, no Cartório Notarial ..., a A. declarou vender, pelo preço de €200.000,00 que declarou já recebido, à Ré, o prédio objeto dos autos.

10- Considerou então o Tribunal da Relação que para evitar contradição, altera o ponto 1 quando dá como provado ter recebido o preço da venda- €200.000,00 - impondo-se sim eliminar a alínea a) dos factos não provados para evitar a contradição que neste momento se verifica. Ora, não se pode a A. conformar com tal decisão, na medida em que não existe qualquer contradição, como refere o douto acórdão, se não vejamos: Do ponto 1 resulta - Por escritura pública de 29/09/2016, outorgada no Cartório Notarial ..., BB, na qualidade de sócio-gerente e em representação da sociedade M..., Lda. Vendeu, pelo preço de €200.000,00, já recebido, à Paraíso Enseada- Investimentos Imobiliários, Lda., representada no ato pelo sócio gerente AA, livre de ónus e encargos, o prédio urbano composto de casa de três pisos destinada a habitação e logradouro, sito na Rua .../53- freguesia ..., inscrita na matriz sob o artigo urbano nº ...34 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...24- fls 13/14 (A). E da alínea a) dos factos não provados: a) a Ré sociedade entregou, efetivamente, à A. O montante de €200.000,00€.

11-Efectivamente consta na motivação da decisão de facto que o referido ponto 1 foi dado como provado por ter ido considerado assente na audiência prévia com a anuência das partes. Mas já o mesmo não acontece, por não estar, confirmada qualquer anuência ou concordância das partes quanto ao efetivo recebimento do preço de €200.000,00 euros que está dado como provado no referido ponto 1. Ora o ter declarado vender por determinada quantia ou o ter recebido, efetivamente tal quantia são factos diferentes, não contraditórios e o verdadeiro cerne da questão para a resolução do objeto do litígio.

12- De forma alguma e como o próprio acórdão acaba por admitir, na sua fundamentação, e aí sim em total contradição com o que conclui, que a escritura onde se declarou o recebimento do preço é um documento autêntico e assim apenas faz prova plena dos factos neles atestados com base na entidade documentadora- nº 1 do art. 371ª CC- onde se incluí o declarado pelas partes. A prova plena não abrange a veracidade dessas declarações.

13- Nunca, a A, em algum momento disse que não declarou perante o notário que havia recebido o preço de €200.000,00, o que disse é que efetivamente não os recebeu, e apenas recebeu o valor de €78.636,13. A prova apenas do facto provado sobre o ponto 1 não basta para prova do valor efetivamente recebido pela A. , só prova que a A. disse no acto da escritura que recebeu o valor ali aposto.

14- Porém o Tribunal da Relação vem justificar a prova desse ponto, ou seja o recebimento por parte da A. do valor aposto na escritura., recorrendo ao entendimento que se o vendedor afirma perante o notário, qual o montante do preço e afirma já o ter recebido, esta sua declaração implica o reconhecimento de um facto que lhe é desfavorável e beneficia os RR, porque se trata de uma confissão extrajudicial nos termos do art.º 352º, 355º nº 1 e 4 e 358º nº2, que tem força probatória plena contra o confidente. E que esta só pode ser contrariada por meio de prova do contrário nos termos do art. 347º do CC e que recaia sobre a autora o ónus dessa prova.

15- “Ora essa prova não foi feita. Com efeito, conforme se extrai da motivação da sentença recorrida, sobre a referida factualidade a prova produzida foi essencialmente documental, tendo-se ouvido as testemunhas CC, filho de BB, sócio-gerente da A, e a testemunha DD é funcionária administrativa da Ré Sociedade, que não tinham qualquer conhecimento da matéria em questão. Foi ainda ouvido em declarações o sócio-gerente da A, BB, que referiu que na escritura de compra e venda recebeu, apenas, o cheque de fls. 60 no valor de € 78.638,12, versão que o tribunal não considerou credível, face à normalidade das coisas - “A A. tem uma moradia sobre a qual não incide qualquer ónus. Precisa de realizar dinheiro. E o que faz é declarar perante um Notário que vendeu a moradia e que já recebeu o preço da mesma. E fá-lo não só sem ter recebido qualquer quantia (ao contrário do que reconhece na petição inicial) pois os € 78.638,12. foram, alegadamente, entregues ao Sr. EE”. Para além de pouco credíveis as declarações do representante legal da autora sempre seriam insuficientes para provar que, conforme alegava na sua petição inicial, não teria recebido os referidos €200.000,00 euros, mas apenas € 78.638,12.

16- De tal fundamentação temos de concluir, pela leitura de toda a decisão de facto e motivação da mesma na sentença, que o Tribunal da relação copiou a parte que lhe favorecia o raciocínio, sem atender minimamente nem à restante prova produzida, nem aos outros pontos de facto julgados provados, nem à motivação dessa decisão de facto. O que a lei impõe, nos termos do art. 662º nº 1 do CPC.

17- Para além desses factos, certo é que a douta sentença, proferida em primeira instância, considerou provada outra factualidade, a saber: Ponto 8 - A compra e venda realizada pela escritura de 29/09/2016 do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...24 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º ...34, freguesia ..., foi celebrado para garantir o empréstimo de €78.633,13 feito pela Ré sociedade à A.. Ponto 9 - A Ré sociedade entregou, efetivamente, à A. o montante de € 78.633,13.

19- Ora tais pontos estavam em plena consonância com o ponto que o Tribunal da relação eliminou, ou seja, que não se considerou provado que A Ré Sociedade entregou, efetivamente, à A o montante de €200.000,00.E com a alteração desse ponto, toda a matéria de facto deixa de fazer qualquer sentido no âmbito do unanimemente considerado, de que o negócio objeto dos autos é uma alienação fiduciária em garantia.

20- E também com o ponto 1 julgado como provado estava em consonância na medida em que dizia que na escritura a A ter declarado ter recebido €200.000,00€. Assim a ora Recorrente alegou e provou que de facto apesar de o ter dito na escritura e em cumprimento com o art. 347º do CC, veio provar, o que consta dos pontos 8 e 9 da sentença em primeira instancia que apenas e só recebeu 78.633,13€.

21- Daí o presente recurso para o mais Alto Tribunal, nos termos do art. 672º do CPC e ainda nos termos do art. 674º al b) e c) do mesmo diploma, por violação do art. 662º nº 2 al c), uma vez a alteração da matéria de facto não ter cumprido com o ali disposto, não haver qualquer contradição da matéria de facto que justifique a sua alteração oficiosa, por não ter analisado toda a prova produzida e assim, com a alteração levada a cabo, inviabilizar uma decisão jurídica sobre o pleito ( 615º nº 1 c) parte final).

22- Não basta, como o Tribunal da Relação fez, recorrer a parte da motivação da matéria de facto para justificar a alteração do ponto 1 da matéria de facto. Uma vez que, se lermos toda a motivação da prova dos pontos 8, 9 e 10, lemos ainda O que nos parece credível e relato até dos documentos juntos é ter sido a compra e venda realizada pela escritura de 29/09/2016 celebrada para garantir um empréstimo de € 78.633,13 feito pela Ré Sociedade à A. Ora como se afirma da douta sentença a credibilidade foi aferida em documentos juntos aos autos.

23- Efetivamente não se trata nos autos de uma simples compra e venda, mas como ficou sobejamente definido o negócio entre a A e RR foi uma verdadeira Alienação em garantia. Cujo negócio garantido era um empréstimo, provado de 78.633,13€ garantido com um imóvel que a A declarou ter vendido por 200.000,00€ que nunca recebeu, muito menos em função de qualquer compra. Pelo que o Ponto 1 não pode ter tal interpretação que o Tribunal da Relação lhe quer dar e visto fora do contexto de um negócio que não se resume a um contrato de compra e venda outorgado através de uma escritura.

24- Com a modificação da decisão de facto levada a cabo pela Relação, e da leitura dos factos provados e não provados, existe uma contradição insanável, que inviabiliza a decisão jurídica, e que pela sua relevância material terá necessariamente apreciada para uma melhor aplicação do direito.

25- Como decidido em primeira instancia e não modificado pelo Tribunal da Relação, em que se lê: decidimos a) que o contrato de compra e venda e o contrato promessa de compra e venda, do mesmo imóvel e celebrado na mesma data (29/09/2016) são contratos em coligação, não por serem celebrados na mesma data ( união externa), mas porque só fazem sentido em conjunto ( união interna) B) Que o contrato de compra e venda visto à luz ( interpretado em conjunto com ) o contrato promessa de compra e venda é uma verdadeira alienação em garantia…. E o que se discutia era então se essa alienação em garantia era usurária, nos termos do art. 282º do CC, o que implicaria a procederia do pedido da A., a anulação de ambos os contratos, o de compra e venda e contrato promessa de compra e venda, ou se até estávamos perante a nulidade decorrente do pacto comissório, previsto no art. 694º do CC.

26- Conforme a Recorrente alega nas suas conclusões de recurso e relativamente à matéria de direito ( ponto 18) - Por forma a analisar a questão de direito, é absolutamente essencial saber de que contrato ou contratos estamos a falar, qual a relação entre a escritura de compra e venda e o contrato promessa de compra e venda, em concreto.

27- Na sentença afasta-se, tal questão de direito, fulcral, quando se diz: 3.º - decidimos: a) que o contrato de compra e venda e o contrato- promessa de compra e venda, do mesmo imóvel e celebrados na mesma data (29/09/2016), são contratos em coligação, não por terem sido celebrados na mesma data (união externa), mas porque só fazem sentido se interpretados em conjunto (união interna); b) que o contrato de compra e venda visto à luz (interpretado em conjunto com) do contrato-promessa de compra e venda é uma verdadeira alienação em garantia, sendo este (contrato-promessa) celebrado em função daquele, ou seja, o contrato-promessa de compra e venda é instrumental em relação ao de compra e venda, tendo por função ou a garantia de alienação, por recompra do imóvel pela A. à Ré, em caso de cumprimento deste contrato-promessa, ou, no caso de incumprimento pela ora A. do contrato-promessa, de tornar (digamos) firme a compra e venda em termos de a Ré (promitente vendedora) poder dispor dele livremente – 8ª Cláusula do Contrato-promessa (fls. 57). No despacho proferido na segunda audiência prévia mantivemos o despacho anterior nos seus precisos termos.

29[5]-  Apenas acrescentámos ao objeto do litígio a causa de pedir de anulação invocada da usura. A contaminação da alienação (fiduciária) em garantia por eventual pacto comissório (ali referida) é mais uma chamada de atenção para este problema que poderia colocar-se em abstrato e não uma questão concreta a dirimir em julgamento. (Ponto19-Ora a questão essencial a dirimir é precisamente essa, o da existência ou não de um pacto comissório e não uma alienação em garantia. Uma vez que se se achar que essa obrigação é o pagamento do preço do imóvel declarado na compra e venda, estamos perante um pacto comissório, ferido de nulidade, nos termos do art.694º do Código Civil. Nulidade que é de conhecimento oficioso. ( Ponto 23) Esta questão - se a alienação (fiduciária) em garantia está contaminada ou não por eventual pacto comissório. - que não foi nunca decidida e que deveria ser a primeira a ser aflorada, por ter como cominação a de uma nulidade.

30- Tudo isto foi absolutamente esquecido pelo Tribunal da Relação, que analisou o contrato de compra e venda, escritura, isoladamente, sem considerar que a mesma foi tão só uma garantia de um outro negócio, um mútuo. E que ambos os contratos não podem ser vistos isoladamente, como o Tribunal da Relação aqui faz.

31- Provanda que está a matéria constante do ponto 13 dos factos provados, ainda assiste menos razão ao Tribunal da Relação para modificar a decisão de facto. Uma vez que da conjugação desse ponto com o ponto 8 dos mesmos factos provados e como se disse acima “a compra e venda (referida em 8 dos Factos Provados) foi determinada pela necessidade imediata que a A. tinha de liquidez para pagar aos seus fornecedores e trabalhadores” – nº 13 dos Factos Provados (FP). E que esta situação era do conhecimento dos RR. – nº 14 dos FP. E resultando, ainda do ponto 8 da matéria provada que “ A compra e venda realizada pela escritura de 29/09/2016 do imóvel…. Foi celebrado para garantir um empréstimo de 78.633,13€. Ficou provado, conforme alegado um vício de vontade com a qual impugnou a declaração que fez naquela escritura do recebimento de €200.000,00€. E que deveria também ser atendido pelo Tribunal da Relação, porque alegando e provando o declaraste um vício de vontade na declaração confessaria documentada, afasta nos termos do art. 347º a prova legal plena da confissão feita.

32- Não alterado aquele ponto de facto, que o Tribunal da Relação levou a cabo em plena violação da lei, teria de se concluir que a alienação em garantia, cuja a obrigação garantida é um mútuo no valor provado de 78.633,13€, e que por tal empréstimo, a A. pela quantia emprestada de 78.633,13€ iria pagar o valor de 220.250,00€ (facto 3-2º FP), o que corresponderia a pagar um “juro” ou remuneração do negócio, como se lhe queira chamar de 141.617,00€. (quase duas vezes mais do valor mutuado). Para já não falar das consequências do incumprimento. Como é dito nas conclusões.

33- Assim não faz qualquer sentido tal modificação oficiosa da decisão de facto. Como se pode ler do douto acórdão, o mesmo recorre ao art. 662º nº 2 c) do Código de Processo Civil, para fundamental essa alteração da decisão de facto, que dispõe que se “ pode ainda alterar oficiosamente a matéria de facto que repute por deficiente, obscura, contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto” a fim de eliminar uma suposta contradição que não existe.

34- E de facto, se se atendesse ao que consta do processo e de toda a prova documental, e não apenas a parte do teor da motivação da decisão de facto da sentença proferida pelo Tribunal de 1º Instância, se iria inferir, que se o A vendedor alegou e provou que apenas recebeu do negócio ( alienação em garantia) o valor de 78.638,12€.

35- E se algumas dúvidas tivesse, relevante seria também a sentença proferida nos autos nº 3338/17.... do Juízo Central Cível ... Juiz ..., a qual a Ré juntou aos presentes autos.

36- Naquele outro processo a “estória” é exatamente a mesma dos presentes autos, em que o mesmo A e Ré celebram outro negócio, uma alienação em garantia, exatamente com as mesmas delimitações deste, apenas variando o imóvel em causa e os valores envolvidos. E em que mais uma vez, o que ficou provado e que não foi posto em crise pela Ré, que o A recebeu o valor de 180.000,00€, tendo declarado na escritura de compra e venda, ter recebido o valor de 300.000,00€.

37- Efetivamente, tendo tal decisão sido junta aos presentes autos, comprovando que nenhum dos cheques cuja cópia foi junta com a PI foi entregue à A. em virtude dos negócio em discussão nos presentes autos, o único que foi entregue, efetivamente foi o de folhas 60 no valor de 78.638,12€.

38- Mas prova-se ainda com a junção daquela decisão, que no dia 28 de Outubro de 2016, A e Ré celebraram, à semelhança do negócio discutido nos presentes autos, contrato de compra e venda de uma moradia, pelo preço de 300.000,00€, que receberam apenas o valor de 180.000,00€ e que na mesma data, e à semelhança do negócio aqui em discussão, celebraram ainda um contrato promessa para que o A. Retomasse a propriedade do imóvel, pagando para o efeito 353.500,00€.

39-Provando-se assim que é uma prática da Ré que não tem objeto social para tal, emprestar dinheiro garantido com imóveis que tais mútuos têm sempre um valor bastante inferior à respetiva garantia.

40- Tal documento por estar junto aos autos, também deveria ter sido apreciado a fim de se perceber o negócio objeto dos mesmos que não era apenas uma escritura de compra e venda.

41- Como aliás se referiu na resposta ao despacho saneador o elemento chave de todo o processo, era o preço efetivamente recebido pela A em virtude da escritura de compra e venda celebrada no dia 29 de Setembro de 2016. A decisão da Relação, ao decidir que se deu como provado que a A. recebeu efetivamente 200.000,00€, eliminando a alínea a) dos factos não provados, só com a análise que faz de parte do teor da sentença e sem se referir a análise de todos de todos os outros elementos que impediriam tal modificação da decisão de facto, está por um lado a violar o preceituado no art. 662º, uma vez que oficiosamente a Relação não pode alterar os pontos de facto não impugnados por nenhuma das partes (como aliás a decisão refere expressamente), só podendo decidir dentro dos limites do nº 2 do referido art. 622º. E de facto não pode socorrer-se da alínea c) do art. 662º uma vez que tal alínea, tem por base que exista uma contradição na matéria de facto que não existe, como acima já expusemos e desta forma altera o ponto de facto crucial a todo o pleito.

42- Faz tal alteração sem ter em conta, todo o teor da douta sentença proferida em primeira instancia, toda a matéria de facto provada e não apenas aquele ponto isolado, sem integrar no âmbito do negócio que é objeto do litígio, todos os elementos de prova existentes nos autos.

43- Com a alteração da matéria de facto que levou a cabo, o negócio objeto do autos deixa de ter sentido, como deixa de ter sentido a leitura conjugada dos pontos de facto considerados provados, estando estes em plena contradição e cuja relevância impede que a Tribunal da Relação profira qualquer decisão sobre o objeto dos autos.

44- Desta forma, ainda, nos termos do 615º nº 1 d) a Relação conhece de questões de que não podia tomar conhecimento, pelo que nos termos do art. 674º este é o fundamento da presente revista.

45- Tal decisão implica ainda a privação do contraditório e veda à A. o duplo grau de jurisdição.

46- Ou seja, a aceitação de que a Relação é também um tribunal de instância, com o poder/dever de reapreciar os meios de prova sujeitos à livre apreciação, não impede que se questione o modo como exerce esse poder/ dever, devendo o STJ sindicar essa utilização quando haja abuso.

47- Já um entendimento menos lasso do referido n.º 1 do art. 662.º não diminui nem prejudica o princípio do duplo grau de jurisdição, já que este foi também assegurado pelo art. 662.º aqui se definem os termos em que a Relação reaprecia o facto nos casos em que a prova produzida não impõe solução diversa, mas convence diferentemente.

48- Ora, as dúvidas serão sempre sérias ou fundadas quando se considere que a apreciação do tribunal da primeira instância é lógica e racional, objetiva e objetivável, pois nestes casos nunca poderá afirmar-se que a prova produzida impõe uma solução diversa mas quando muito que admite uma solução diversa.

49- Ora, nestas exigências, que o legislador entendeu por bem fixar, dever-se-ão ter por incluídas as previstas para as hipóteses das alíneas do nº 2 do art. 662.º: a Relação só modificará a decisão de facto(s) na medida em que cumpra o que aí se dispõe (renovação e/ou produção de meios de prova), não podendo, nos casos em que forma diferente convicção, ficcionar que está em causa a imposição de uma decisão diversa face à prova produzida para poder atuar nos termos do n.º 1 do art. 662º.

50- Desta feita, na reapreciação da matéria de facto, está vedado à Relação, sem qualquer produção e/ou renovação da prova, alterar factos com a afirmação, com base num depoimento transcrito na sentença. O tribunal de recurso não pode tratar estas situações como estivesse perante a prevista no n.º 1 do art. 662º e, assim, alterar a matéria de facto, omitindo o cumprimento das exigências legais.

51- Impõe-se a audiência prévia das partes quando o enquadramento legal convocado pelo julgador for absolutamente dispar daquele que as partes haviam preconizado ser aplicável, de tal forma que não podiam contar com a sua aplicação ao caso. O Tribunal da Relação, não facultou as partes a possibilidade de se pronunciarem com o novo enquadramento legal que razoavelmente não podiam contar. E assim vedou o duplo grau de jurisdição, violando o art. 20º nº 1 da Constituição da República Portuguesa.

 11. Os RR nas suas contra-alegações formularam as seguintes conclusões: (transcritas)

1)   O douto Acórdão foi proferido com inegável brilho pelo que deve ser confirmado in totum;

2)   O acórdão sob censura procedeu à análise global de toda a prova produzida no processo: alegações das partes deduzidas nos articulados, documentos, declarações de parte, depoimento de parte, testemunhal e outros, pelo que, não procedeu a uma reapreciação apenas e tão só formal, através da adesão a uma parte transcrita do teor da motivação da decisão de facto da primeira instância, pelo que, não incorreu na nulidade estatuída no art.º 615º nº 1 d) e 674º nº 1 c) do CPC.

3) Como tal, não existe qualquer contradição na alteração da matéria de facto preconizada no Acórdão, diante do direito material aplicável.

4) Sendo assim, não é admissível a intervenção do STJ nos termos do art. 674 nº 1 b) e c), 682º nº 3 ou ainda o art. 672º nº 1 a) do C.P.C, atenta a dupla conforme patenteada no acórdão.

5) Sem prescindir, o Tribunal da Relação decidiu alterar a decisão sobre a matéria de facto porque decidiu ouvir a prova gravada e convenceu-se do confronto do alegado nos articulados, dos documentos, das declarações de parte e das testemunhas arroladas que a decisão sobre a matéria de facto definida pelo Tribunal de 1.ª Instância na sentença merecia o devido aperfeiçoamento, sem prejuízo, manteve inalterada a decisão sobre as questões de direito na medida em que a matéria de facto dado como provada era mais do que suficiente para decidir as questões de direito invocadas.

6) Daí que se subscreve do douto acórdão do Tribunal da Relação nos termos do qual: “Sendo embora as nulidades de nulidades de conhecimento oficioso e não estando o tribunal sujeito ao alegado pelas partes no que concerne à aplicação e interpretação do Direito, o não conhecimento de qualquer nulidade só importará a nulidade da sentença prevista na alínea d) do n° 1 do referido art° 615° do CPC quando a questão tiver sido suscitada pelas partes, como claramente resulta do disposto no n° 2 do art° 608° do CPC

12. Foi ordenado o cumprimento do disposto no n.º 2, do art.º 655, do CPC[6], considerando a questão prévia suscitada nas contra-alegações pelos Recorridos da inadmissibilidade do recurso.

13. A Recorrente veio responder, reafirmando o alegado no sentido de o recurso ser admitido como revista nos termos dos artigos 662.º, 674.º, n.º1, b) e c), 682.º, n.º3, e caso assim não se entenda, como revista excecional, art.º 672, n.º1, b) e c), devendo o processo voltar ao Tribunal da Relação, a fim de dissipar a contradição/ambiguidade que inviabiliza qualquer decisão jurídica da causa.

14. Cumpre apreciar.

*

            II – Enquadramento facto-jurídico

a) dos factos

O Tribunal da Relação, no Acórdão sob recurso, considerou como provada, a seguinte factualidade:

1. Em escritura pública de 29/09/2016, outorgada no Cartório Notarial ..., BB, na qualidade de sócio e gerente e em representação da sociedade “M..., Lda.”, vendeu, pelo preço de € 200.000,00 já recebido, à sociedade “Paraíso da Enseada – Investimentos Imobiliários, Lda.”, representada no ato pelo sócio e gerente AA, livre de quaisquer ónus ou encargos, o prédio urbano composto de casa de três pisos destinada a habitação e logradouro, sito na Rua ..., ... – freguesia ..., inscrita na matriz sob o artigo urbano n.º ...34, e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...24 – fls. 13/15 (A), ao qual correspondia o valor patrimonial tributário de 197.740,00€.

2 - Ficou a constar da escritura que o imóvel adquirido se destinava a revenda – fls. 155 (B).

3 - Por escrito particular datado de 29/09/2016, foi celebrado entre a sociedade “Paraíso da Enseada – Investimentos Imobiliários, Lda.”, representada pelo seu sócio e gerente AA, como 1ª Outorgante e promitente vendedora, e a sociedade “M..., Lda., representada pelo sócio e gerente BB, como 2ª Outorgante e promitente compradora, o Contrato-Promessa de Compra e Venda” de fls. 56/59, nos termos do qual (além do mais):

1.º - a 1ª Outorgante promete vender à 2ª Outorgante, e esta promete adquiri-lo, o prédio urbano composto de casa de três pisos destinada a habitação sita na Rua ..., ... da freguesia ..., descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...25 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º ...34 – Cláusulas 1ª a 3ª;

2.º - o preço de € 220.250,00 será pago: a) € 89.750,00, no ato de assinatura do contrato-promessa; b) a título de sinal e início de pagamento, a 2ª Outorgante entregará, a 29/09/2016, à 1ª Outorgante o valor de € 3.375,00 correspondente aos sinais mensais de outubro e novembro; c) os seguintes sinais, em valores mensais, iguais e sucessivos de € 1.687,50, a iniciar a 29/11/2016 nos mesmos dias dos meses subsequentes; d) o remanescente do preço será pago no ato da escritura pública, deduzidos os valores pagos a título de sinal – Cláusula 4ª;

3.º - é da responsabilidade da 2ª Outorgante a designação do dia, hora e local da realização da escritura de compra e venda e do aviso à 1ª Outorgante dessa data e desse local – Cláusula 5ª;

4.º - a escritura será realizada, impreterivelmente, no prazo de um ano a contar da presente data, ou seja, até o dia 29/09/2017 inclusive – Cláusula 6ª;

5.º - o prédio prometido vender é entregue, nesta data (29/09/2016), à promitente compradora que, desde já, entra na posse do mesmo – Cláusula 7ª;

6.º - caso a 2ª Outorgante não cumpra com o prazo previsto para a realização da escritura, ou seja, até 29/09/2017 inclusive, considera-se o contrato-promessa não cumprido por causa imputável à 2ª Outorgante – Cláusula 8ª;

7.º - o contrato-promessa fica expressamente condicionado ao pagamento atempado e integral dos valores previstos a título de sinal, cuja falta determina e exime a 1ª Outorgante do cumprimento do contrato-promessa de compra e venda por facto imputável à promitente compradora – Cláusula 9ª;

8.º - a falta de pagamento de três sinais mensais determina a resolução do contrato-promessa por causa exclusivamente imputável à promitente compradora – Cláusula 10ª;

 9.º - a não concretização da prometida compra e venda por causa imputável à promitente compradora dá à 1ª Outorgante o direito de fazer suas todas as quantias entregues a título de sinal – Cláusula 11ª;

10.º - no caso de não ser concretizada a prometida compra e venda por causa imputável à promitente compradora, esta responde pelos danos sofridos pela promitente vendedora que se fixam em € 20.000,00 – Cláusula 12ª (C).

4 - A ora A. pagou à ora Ré, pelo menos, seis das prestações acima referidas em C) –2.º no valor total de € 10.125,00 (D).

5 - A sociedade ora Ré “Paraíso da Enseada – Investimentos Imobiliários, Lda.” tem o NIPC ..., tem por objeto “compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para os referidos fins” e a sociedade obriga-se: a) com a intervenção de três gerentes para os atos de alienação ou oneração de imóveis; b) com a intervenção de um dos gerentes para os atos de aquisição de imóveis; c) com a intervenção de dois gerentes para todos os atos não previstos nas alíneas anteriores – fls. 61/64 (E).

6 - A ora Ré emitiu a favor da ora A. o cheque de fls. 60, no valor de € 78.638,12, que esta recebeu (F).

7 - Pela “Delegação de Poderes” de fls. 91, datada de 05/06/2017 e autenticada na mesma data, FF e GG, na qualidade de gerentes da sociedade “Paraíso da Enseada – Investimentos Imobiliários, Lda.”, declaram que, nos termos do art. 261.º do CSC, delegam poderes no gerente AA para sozinho vincular a sociedade na escritura de compra e venda do prédio urbano composto de casa de três pisos destinado a habitação e logradouro sito na Rua ..., ..., da freguesia ..., inscrito na matriz urbana sob o n.º ...34 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...24...).

8 - A compra e venda realizada pela escritura de 29/09/2016 do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...24 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º ...34, freguesia ..., foi celebrado para garantir o empréstimo de € 78.633,13 feito pela Ré sociedade à A..

9 - A Ré sociedade entregou, efetivamente, à A. o montante de € 78.633,13.

10 - O contrato-promessa de fls. 56/59, celebrado a 29/09/2016, outra finalidade não teve que facultar à ora A. voltar a ser proprietária do imóvel vendido, na mesma data, por esta à Ré sociedade, pago o “preço” acordado pela forma estabelecida na 4.ª Cláusula.

11 – Foram, apenas, pagos pela ora A. à ora Ré sociedade: € 3.375,00 correspondentes aos meses de outubro e novembro de 2016 e mais 6 prestações de € 1.687,50, cada, da alínea b) da 4.ª Cláusula do contrato-promessa.

12 - A ora A. não pagou à Ré sociedade a quantia de € 89.750,00 da alínea a) da 4.ª Cláusula do contrato-promessa.

13 - A compra e venda (referida em 8 dos Factos Provados) foi determinada pela necessidade imediata que a A. tinha de liquidez para pagar aos seus fornecedores e trabalhadores.

14 – Esta situação era do conhecimento dos RR.

15 - A ora A. nunca marcou a escritura de compra e venda a que se obrigou na 6.ª Cláusula do contrato-promessa.

Foram consignados como não provados:

a) a Ré sociedade entregou, efetivamente, à A. o montante de € 200.000,00;(eliminada)

b) a ora A. apenas pagou à ora Ré seis das prestações acima referidas em C) –2.º no valor total de € 10.125,00;

c) os ora RR. celebraram os contratos para se aproveitarem da necessidade da A.; (eliminada)

d) a cláusula 6ª do contrato-promessa impunha a outorga da escritura de recompra do imóvel até 29/09/2019 sem que, na economia de ambos os contratos, pudesse ser ultrapassado tal prazo”.

b) Do Direito - Da admissibilidade do recurso.

Suscitada a inadmissibilidade do recurso pelos Recorridos, como questão prévia, importa, necessariamente, da mesma conhecer.

Com efeito, a Recorrente enquadra juridicamente a instância recursória nos artigos 672.º, n.º1, a), 682.º n.º3 e 674, n.º 1, b), invocando que o recurso deve ser conhecido, porquanto o Tribunal da Relação alterou a decisão sobre a matéria de facto, ex officio, fundando a mesma numa contradição verificada na matéria de facto provada na 1.ª instância, fazendo uma apreciação formal, sem a análise do factualismo apurado, não avaliando todos os elementos probatórios produzidos nos autos,  da qual resultou uma contradição com a fixada na sentença, numa violação do disposto no art.º 662, n.º2, c), levando a que o objeto dos autos não faça qualquer sentido, face ao direito material, importando ainda nas nulidades previstas no art.º 615, n.º1, d) e c) parte final.

Desse modo, entende que se mostra violada a disciplina processual ínsita no mencionado art.º 662, n.º2, c), quanto à reapreciação da matéria de facto, sindicáveis nos termos do aludido art.º 674, n.º1, b),  devendo ser admitido o presente recurso como a revista ordinária, ou então em termos excecionais, conforme o previsto no art.º 672, n.º1, mais reportando que as contradições resultantes da alteração da matéria de facto levada a cabo pela Relação deverão ser supridas pela remessa a este último Tribunal.

Os Recorridos, na discordância com o invocado pela Recorrente, referem não ser admissível a revista para este Tribunal, por não existir qualquer contradição na alteração da decisão da matéria de facto operada pelo Tribunal da Relação, que sempre a poderia realizar no âmbito dos poderes conferidos pelo art.º 662, n.º1 e n.º2, c), sindicando toda a prova produzida, entendendo não ser necessário a realização de novo julgamento, sendo certo que se configura uma situação de dupla conforme, patenteada no Acórdão recorrido.

Vejamos.

Como se sabe, o recurso de revista é o recurso ordinário que cabe dos acórdãos do Tribunal da Relação, tendo assim como fundamento, art.º 674, n.º1, a violação da lei substantiva – nas modalidades de erro de interpretação, de aplicação, ou da determinação da  norma aplicável -, ou a violação da lei processual, incluindo aquela de que possa resultar alguma nulidade de decisão prevista no art.º 615, ex vi art.º 666, n.º1.

A competência deste Tribunal, Supremo Tribunal de Justiça (STJ) está assim confinada à matéria de direito, enquanto tribunal de revista, não podendo debruçar-se sobre a matéria de facto, enquanto ocorrências da vida real, eventos materiais e concretos ou quaisquer mudanças operadas no mundo exterior, mas também o estado, qualidade e situação reais das pessoas e das coisas, percetíveis como tal que não tem de ser necessariamente simples[7], ficando desse modo vinculado aos factos fixados pelo Tribunal recorrido, a que aplica definitivamente o regime jurídico tido pelo o adequado, art.º 682, n.º1.

Por sua vez, quanto à violação da lei de processo, prendendo-se com a tramitação processual, nomeadamente no que concerne à verificação de pressupostos processuais ou outros fatores que determinam a validade da instância, bem como o cumprimento das regras adjetivas a observar pelo Tribunal da Relação no conhecimento do recurso de apelação[8], caso das reportadas aos termos como foram interpretadas e aplicadas as normas que regem o ónus de impugnação previsto no art.º 640, na mesma inclui-se também o conhecimento das nulidades do Acórdão da Relação que possam ter sido arguidas, cuja apreciação apenas pode ser realizada se o recurso de revista, normal ou excecional, for admitido.

Vem se entendendo que a razão de ser de tal regime, com exclusão do conhecimento da matéria de facto, tem a sua justificação na maior proximidade das instâncias relativamente à matéria de facto, estando reservada para o STJ a função de harmonização da interpretação e aplicação da lei[9], e assenta nas fontes de direito que contém as normas suscetíveis de ser apreciadas pelo STJ[10], (…) e na exclusão do controlo de critérios de decisão não normativos[11].

Com efeito, como decorre do art.º 662, n.º1, impende sobre a Relação o dever de alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa da proferida, estabelecendo-se no n.º 2 e n.º 3 do mesmo preceito legal, um conjunto de decisões e procedimentos que podem ser determinados e seguidos, consignando-se expressamente no n.º 4, também do art.º 662, que das decisões da Relação previstas nos aludidos n.ºs 1 e 2 não cabe recurso para o STJ, num compreensível afastamento da possibilidade de pronúncia sobre a matéria de facto, vedada que lhe está a competência, ficando desse modo impedido de censurar o uso dos poderes conferidos à Relação, por tais dispositivos legais[12].

Tal não significa, nem contraria o mencionado, que o STJ não possa sindicar a decisão da Relação sobre a matéria de facto no caso de erros de julgamento, no que concerne à identificação, interpretação e aplicação de uma norma do direito probatório material, como consta do disposto no art.º 674, n.º 3, bem como determinar a baixa dos autos à Relação, art.º 682, n.º 3, quando seja necessária a ampliação da matéria facto com vista a constituir a base suficiente para poder ser prolatada a decisão de direito pelo STJ.

Saliente-se ainda, quanto à revista excecional, que a mesma só pode ser interposta no caso de para além de verificados os requisitos gerais de admissibilidade, tempestividade, valor e sucumbência, a revista seria admissível nos termos do art.º 671, n.º1 e 674, n.º1, senão se verificasse uma situação de dupla conforme, art.º 671, n.º 3.

Revertendo estes considerandos para o caso sob análise, como a Recorrente vem salientar na resposta dada ao abrigo do art.º 655, fundou o presente recurso de revista na averiguação das regras inerentes ao exercício dos poderes-deveres previstos no art.º 662, quanto à reapreciação da matéria de facto, que entende ser sindicáveis por este Tribunal, face à coexistência dos pontos já dados como provados, e o que a Relação entendeu também estar apurado, gerando uma ambiguidade que inviabiliza a decisão jurídica sobre a pretensão formulada nos autos, impondo a baixa dos mesmos para a sanação de tal vício.

Percorrendo as alegações da Recorrente, verifica-se que se insurge contra o uso dos poderes em sede de julgamento da decisão sobre a matéria que assistem à Relação, que tendo apreciado a impugnação suscitada, foi mais além, conhecendo oficiosamente de matéria não apontada, questionando, assim, a oportunidade/legalidade da sua intervenção nos termos realizados, e o entendimento a que chegou, isto é, considerando provado o ponto n.º1, já antes dado como provado, e eliminando uma alínea dos factos não provados, face a uma aludida contradição, na análise dos elementos constantes dos autos.

Tal alteração surge na sequência da apreciação da matéria de facto pela Relação, realizada tendo por base os elementos probatórios constantes dos autos, com a formação da respetiva convicção, valorando-os em conformidade, e que a Recorrente pretende não dever ter ocorrido, por não resultar dessa prova, porquanto a valora de forma diversa, consubstanciando como vício processual a ser sindicado, enquanto violação do direito probatório objetivo, essa atuação oficiosa da Relação.

Ora, como resulta delineado o uso dos poderes da Relação, em termos da modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto, como se aludiu, presentes e indicados todos os elementos do processo para tanto, vedado está a este Tribunal sindicar o uso de tais poderes.

 Por outro lado, centrando-se a pretensão da Recorrente na desconsideração da alteração realizada, no que concerne ao recebimento ou não do preço no âmbito da compra e venda realizada por escritura pública, certo é que a modificação operada não obstaculizou, na subsunção jurídica levada a cabo pela Relação, que a mesma tenha conhecido das questões suscitadas em sede de apelação, isto é, a inexistência de usura, a validade da alienação fiduciária[13] e a resolução do contrato-promessa de compra e venda, confirmando o decidido na sentença, com a exclusão do pagamento de um montante a título de cláusula penal, da Recorrente à Recorrida.

A enunciada patente discordância da Recorrente não produz assim uma ilogicidade ou falta de base fáctica para que este Tribunal pudesse proferir uma decisão relativa a questões que cumprisse conhecer, numa exigência de matéria de facto diversa da resultante da modificação operada pela Relação, inexistindo assim fundamento para a baixa dos autos a esse Tribunal.

Resulta pelo exposto que não se mostram reunidos todos os pressuposto necessários para a admissibilidade do recurso de revista, tendo em conta o disposto nos artigos 671, n.º 1, e 674, o que importa o correspondente afastamento da revista excecional, conforme os artigos, 671, n.º e 3, e 672, devendo as nulidades arguidas ser oportunamente apreciadas pelo Tribunal da Relação.

*

III – DECISÃO

Nestes termos, decide-se não conhecer do objeto do recurso, julgando findo o mesmo nos termos do art.º 652, n.º 1, alínea h).

Custas pela Recorrente.

Lisboa,  12 de julho de 2022

Ana Resende (Relatora)

Ana Paula Boularot 

José Rainho

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Sumário, art.º 663, n.º 7, do CPC.

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[1] Venda em nome individual do sócio da A., negócio cuja anulabilidade foi arguida em ação própria.
[2] A anulação do contrato de compra e venda por simulação relativa, não podia proceder por falta de alegação dos respetivos requisitos, nem por falta de poderes do sócio-gerente a anulação do contrato-promessa de compra e venda.
[3] Estando cobertos pelo caso julgado, o afastamento da simulação, a inexistência de poderes do R. para vincular a R. sociedade, a compra e venda ser uma verdadeira alienação em garantia, existência de coligação dos contratos (união interna) de compra e venda e contrato-promessa de compra e venda, “(…) aceites pelas partes e à falta de recurso para que fossem sindicados pelas instâncias superiores”.
[4] Contaminando a alienação em garantia com a nulidade.
[5] Conforme o que consta nas conclusões apresentadas.
[6] Diploma a que se fará referência se nada mais for dito.
[7] Como, sem perder a atualidade, refere Alberto Reis, Código de Processo Civil Anotado, III vol, pag. 206 e seguintes, no estabelecimento da dicotomia, da matéria de facto apurada à margem direta da lei, averiguando factos cuja existência não dependa da interpretação de qualquer norma jurídica, matéria já de direito.
[8] Cf. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª edição, fls. 474 e segs.
[9] Lebre de Freitas, Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3.º, 3.ª edição, fls. 233, apud Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil.
[10] Por reporte à explicitação do conceito de “lei substantiva”, constante do n.º 2, do art.º 674.
[11] Lebre de Freitas, e outros, obra citada, fls. 234.
[12] Cf. Ac. STJ de 30.11.2011, processo n.º 581/1999.P1.S1, o uso ou não uso dos poderes da Relação, em termos de decisões negativas ou positivas, desde que fundadas em meios de prova livremente apreciáveis pelo julgado, reportam-se à valoração da matéria de facto, pronúncia sobre a matéria de facto que é vedada ao STJ, Ac. STJ de 4.07.2013, processo n.º 1727/07.1TBSTS-L.P1, não pode em sede de revista sindicar-se alegados erros na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais, Ac. STJ de 05.05.2016, processo n.º 690/13.4TVPRT.P1.S1,  cumprindo às instâncias apurar a matéria de facto, só a Relação pode emitir um juízo de valor sobre o apurado na 1.ª instância, Ac. STJ de 24.11.2020, processo n.º 2350/17.8T9PRT.P1.S1., o que Supremo pode conhecer em matéria de facto são os efetivos erros de direito cometidos pelo tribunal recorrido na fixação da prova, competindo mediante iniciativa da parte pronunciar-se sobre a legalidade do apuramento dos factos, Ac. STJ de 18.06.2019, processo n.º 745705.9TBFIG.C1.S2,  a livre apreciação da prova não é sindicável pelo STJ, todos in www.dgsi.pt.
[13] Apreciada a nulidade do contrato de compra e venda na violação de pacto comissório.