Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1420/18.0T8PVZ.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
VIOLAÇÃO DE LEI
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REJEIÇÃO DE RECURSO
MATÉRIA DE DIREITO
Data do Acordão: 12/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :
Havendo dupla conforme quanto à decisão de direito mas vindo suscitada no recurso a questão da violação da lei processual no que toca à decisão do Tribunal recorrido sobre a impugnação da decisão de facto, cumpre admitir a revista normal quanto a esta questão mas sem prejuízo da necessidade de revista excepcional quanto à questão de direito.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. RELATÓRIO


Recorrente: BALLAREA - Assessoria e Gestão Desportiva, Lda.

Recorrida: SOCCERPROMASTER Gestão de Carreiras Desportivas, Lda.


1. BALLAREA - Assessoria e Gestão Desportiva, Lda., propôs acção comum contra SOCCERPROMASTER Gestão de Carreiras Desportivas, Lda., pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 785.600,00, acrescida de juros, à taxa comercial, a contar da citação e até efetivo e integral pagamento.

Alega, para tanto, resumidamente, o acordado sobre a importância a ser-lhe paga pela ré no caso de ocorrer transferência do jogador AA pelo Clube Desportivo N........., SAD (correspondente à percentagem que aponta sobre o valor recebido pela ré por tal transferência) e ainda o acordado sobre a quantia a ser-lhe paga no caso de o referido jogador realizar 5 jogos oficiais como jogador daquele Clube por tempo superior a 45 minutos e o facto de a transferência ter ocorrido no dia 31.07.2015 daquele clube para o S........... F.C. pelo valor de €2.780.000,00 e apenas lhe ter sido paga a quantia global de €100.000,00.


2. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença com a seguinte parte dispositiva:

Pelo exposto, decide-se julgar totalmente improcedente a ação e, consequentemente, absolver a do pedido.

Condena-se a Autora a pagar as custas (art. 527.º do Código de Processo Civil)”.


3. A autora apresentou recurso de apelação para o Tribunal da Relação ......., que, em 24.05.2021, proferiu Acórdão em cuja parte dispositiva pode ler-se:

Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação ....... acordam em, na procedência da exceção perentória deduzida, julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida, que absolveu a Ré do pedido, na totalidade.


4. Ainda inconformada, vem agora a autora recorrer de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, “ao abrigo e nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 671.º n.ºs 1 e 3 “à contrário”, 674.º n.º 1 alíneas a) e b), 675.º n.º 1 e 676.º n.º 1 “à contrário”, todos do C.P.C.”.

A terminar as suas alegações, formula as (longas) conclusões que se reproduzem de seguida:

A)

Vem a presente revista interposta do douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação ....... no dia 24-05-2021, sob a ref.ª ...., que julgou a apelação improcedente e, em consequência, confirmou a decisão recorrida que absolveu a ré/recorrida do pedido, na totalidade.

B)

Não poderia a recorrida ter sido absolvida do pedido, devendo, outrossim, face ao enquadramento jurídico dos factos provados a apelação ter sido julgada procedente e por via dela ter a ré sido condenada parcialmente no pedido.

C)

Na apelação a recorrente apontou à sentença proferida pela primeira instância os seguintes vícios que, na sua ótica, a procederem importariam a procedência da apelação:

(a) erro na apreciação da prova, a impor a alteração da decisão da matéria de facto fixada pela primeira instância, bem como o aditamento de matéria aos factos assentes;

(b) erro na qualificação jurídica dos factos, a impor a aplicação do regime da condição previsto no art.º 276.º do Código Civil quanto à retroatividade da condição e cuja aplicabilidade a primeira instância nem sequer equacionou.

D)

O acórdão recorrido negou a apelação quanto à matéria de facto impugnada sufragando o seguinte:

(a) quanto à pretendida alteração da matéria de facto entendeu que não se verifica nenhum erro da primeira instância, estando em causa apenas a livre convicção do julgador;

(b) quanto ao pretendido aditamento ao elenco dos factos provados decidiu que “(...) na decisão da matéria de facto, para que determinados factos possam ser recolhidos, necessário é que tenham sido expressamente alegados, no confronto da outra parte, em cumprimento do ónus de alegação. Assim, não sendo alegado um facto pela parte, no respetivo articulado, não pode, sem mais, facto não alegado ser recolhido na decisão da matéria de facto, seja para os factos provados seja para os factos não provados. Ora, nada tendo sido alegado, concreta e especificadamente, quanto às referidas importâncias e acordo, sequer que foram efetivamente recebidas, nada caberia aditar aos factos provados do aludido 7-A), 8-A) e 8-B).”.

E)

A fundamentação constante no acórdão recorrido de que não sendo alegado um facto pela parte, no respetivo articulado, não pode, sem mais, facto não alegado ser recolhido na decisão da matéria de facto, seja para os factos provados seja para os factos não provados. viola a lei processual, nomeadamente o disposto no art.º 5.º n.ºs 1 e 2 e 607.º n.º 4 do C.P.C..

F)

Os factos cujo aditamento se pretendia, têm a seguinte redação:

8-A) Relativamente ao acordo intitulado “Transfer Agreement”, identificado em 8.  dos factos provados, quanto à transferência do jogador AA o Clube Desportivo N........., SAD recebeu do S......... Football Club Limited a quantia de 3.000.000,00 € (três milhões de euros).

8-B) Relativamente ao” Acordo”  celebrado no dia 17 de agosto de 2012, entre o Clube Desportivo N........., SAD e a ré  SOCCERPROMASTER – Gestão de Carreiras Desportivas, Lda., identificado em 4.  dos factos provados, o primeiro pagou à segunda, que efetivamente recebeu, a quantia de 738.000,00 € (setecentos e trinta e oito mil euros) [600.000,00€ + 138.000,00 € a t tulo de IVA   taxa de 23%].

G)

Os factos em causa resultam não só da própria instrução da causa como são a concretização dos factos que a recorrente alegou pela na petição inicial e no articulado superveniente onde requereu a ampliação do pedido, constituindo nem mais, nem menos, do que a concretização dos factos essenciais do pedido formulado pela recorrente., sendo que sem eles, ficaria irremediavelmente prejudicada a apreciação do próprio pedido, pois mostrar-se-ia impossível apurar qual a efetiva quantia que a recorrida recebeu do Clube Desportivo N......... SAD e com isso determinar o valor que caberia à recorrente receber na procedência da ação.

H)

O teor da alínea b) do n.º 2 do art. 5.º do C.P.C. revela-nos que o juiz pode, ainda, atender aos factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que lhes tenha sido dada a possibilidade de sobre eles se pronunciar.

I)

Os factos concretizadores mostram-se essenciais por pormenorizarem a questão fáctica exposta, isto é, especificarem os factos anteriormente alegados.

J)

Ao longo da instrução do processo resultou demonstrado e consequentemente provado que a recorrida recebeu do Clube Desportivo N......... SAD, pelo menos a quantia de 600.000,00 € (seiscentos mil euros) acrescida de IVA, o que não é mais, nem menos, do que a concretização afinal da alegação feita pela recorrente na petição inicial e no articulado superveniente de que a ré havia recebido do Clube Desportivo N......... SAD a quantia de 1.500.000,00 € (um milhão e quinhentos mil euros) [por referência ao articulado superveniente] ou de 1.390.000,00 € (um milhão, trezentos e noventa mil euros) [por referência à petição inicial].

K)

Os factos cujo aditamento foi proposto na apelação [8-A) e 8-B)] não são mais do que concretizadores, por pormenorizarem, a questão fáctica exposta e especificarem os factos anteriormente alegados pela recorrente.

L)

Os factos 8-A) e 8-B) encontram-se PLENAMENTE PROVADOS por documentos juntos aos autos que não foram objeto de qualquer impugnação pelas partes – cfr. art.º 368.º do Código Civil.

M)

O facto 8-A) encontra nos autos um vasto suporte documental, nomeadamente (1) no contrato remetido pela Federação Portuguesa de Futebol junto a fls. 167-170, com a respetiva tradução para a língua portuguesa a fls. 212-215, CUJA JUNÇÃO FOI REQUERIDA PELA PRÓPRIA RECORRIDA [cfr. ata da audiência prévia realizada no dia 16-09-2019] e (2) nos documentos juntos nos dias 15-07-2020 e 23-10-2020 pelo Clube Desportivo N......... SAD sob as ref.ªs ……..74 e ……25.

N)

O facto 8-B) encontra-se documentado nos autos através das faturas juntas aos autos pela própria recorrida no dia 17-10-2019 através do requerimento sob a ref.ª ……..34 e dos documentos juntos aos autos pelo Clube Desportivo N......... SAD nos dias 30-09-2019 e 15-07-2020 que não foram impugnados por nenhuma das partes.

O)

Apesar de a recorrente manter a convicção de a quantia real ter sido superior, o certo é que RESULTOU PROVADO – até de forma expressamente confessada pela própria recorrida -, que esta recebeu do Clube Desportivo N........., SAD PELO MENOS a quantia de 738.000,00 € (setecentos e trinta e oito mil euros), retratando um facto constitutivo concretizador do direito alegado pela autora deve constar do elenco dos factos provados.

P)

Os factos em causa mostram-se suportados em documentos juntos aos autos, são necessários à boa decisão da causa e fogem à livre apreciação do julgador nos termos previstos no art.º 607.º n.º 5 do C.P.C. na justa medida em que nos termos do disposto no art.º 368.º do Código Civil “as reproduções fotográficas ou cinematográficas, os registos fonográficos e, de um modo geral, quaisquer outras reproduções mecânicas de factos ou de coisas fazem prova plena dos factos e das coisas que representam, se a parte contra quem os documentos são apresentados não impugnar a sua exactidão., pelo que não tendo tais documentos sido objeto de qualquer impugnação nos termos previstos no art.º 444.º n.º 1 C.P.C. os factos neles contidos têm-se por provados.

Q)

A recusa do conhecimento da impugnação da matéria de facto por parte do acórdão recorrido com o fundamento de que “(...) na decisão da matéria de facto, para que determinados factos possam ser recolhidos, necessário é que tenham sido expressamente alegados, no confronto da outra parte, em cumprimento do ónus de alegação. Assim, não sendo alegado um facto pela parte, no respetivo articulado, não pode, sem mais, facto não alegado ser recolhido na decisão da matéria de facto, seja para os factos provados seja para os factos não provados. Ora, nada tendo sido alegado, concreta e especificadamente, quanto às referidas importâncias e acordo, sequer que foram efetivamente recebidas, nada caberia aditar aos factos provados do aludido 7-A), 8-A) e 8-B)”, para concluir pela manutenção da decisão da matéria de facto, integra uma violação de direito processual e do direito substantivo.

R)

É certo que os factos que a recorrente pretende ver aditados não foram alegados com a exata redação proposta, no entanto são concretizadores dos factos alegados e os documentos subjacentes juntos aos autos fazem disso prova plena.

S)

Não obstante a redação proposta para os factos a aditar resultar, como se demonstrou, da instrução da causa, isso sempre teria duas implicações importantes: por um lado, a acolher a tese vertida no acórdão recorrido, então os factos alegados pela recorrente quanto a essa matéria (na exata redação que lhe foi dada nos articulados) e dado tratarem-se de factos essenciais e constitutivos do direito alegado pela recorrente, teriam de constar do elenco dos factos provados ou não provados, o que não se verifica; por outro lado, a referida factualidade comporta igualmente matéria de exceção cujo ónus da prova recairia não sobre a recorrente mas sobre a recorrida, sendo que a recorrida, em momento algum alegou que tivesse recebido do Clube Desportivo N......... SAD qualquer quantia, para, com base nessa alegação, poder ser provada (ou não) tal factualidade e com isso se poder concluir pela improcedência ou procedência (total ou parcial) da referida matéria de exceção e com isso do pedido formulado pela recorrente. Como se constata dos autos, a recorrida limitou-se a remeter aos autos documentos de onde se pode extrair a conclusão de qual a quantia que efetivamente recebeu, mas sem que em algum momento tenha alegado a subjacente factualidade.

T)

Não obstante sabermos que ao Supremo Tribunal de Justiça, em regra, apenas está cometida a reapreciação de questões de direito (cfr. art. 682.º n.º 1 do C.P.C.), o art.º 682.º n.º 3 do C.P.C.  permite que o processo possa voltar ao tribunal recorrido quando o Supremo Tribunal de Justiça entenda que a decisão de facto possa e deva ser ampliada o que entendemos ser o caso.

U)

Tratando-se de factos plenamente provados por documentos não impugnados e concretizadores dos factos alegados pela recorrente, não poderia o Tribunal da Relação recusar o seu aditamento com o fundamento de que os mesmos não se mostram expressamente alegados pela recorrente, pois com isso violou simultaneamente a lei processual e a lei substantiva, pelo que, nesta parte deverá ser concedida revista e determinada a remessa dos autos ao Tribunal da Relação ....... para que proceda à reapreciação da matéria de facto impugnada na apelação e ao consequente aditamento dos factos alegados em 8-A) e 8-B).

V)

A decisão da primeira instância debruçou-se sobre a aplicação do regime previsto no disposto no art.º 236.º n.º 1 do Código Civil quanto ao sentido normal da declaração e concluiu que um declaratário normal entenderia mediante tal declaração as partes acordaram que, mediante a entrega de € 100.000,00 ilíquidos, a Autora nada mais teria a receber da Ré «seja a que título for», mas «no que respeita a uma eventual e futura transferência do atleta AA».

W)

O acórdão recorrido sufraga o seguinte: “dependendo o pedido de alteração do decidido na sentença proferida nos autos, no que à interpretação e aplicação do direito respeita, do prévio sucesso da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não tendo a apelante logrado impugnar, com sucesso, tal matéria, que assim se mantém inalterada, fica, necessariamente, prejudicado o conhecimento de mérito, o que aqui se declara, nos termos do nº 2, do art. 608º, aplicável ex vi parte final, do nº 2, do art. 663º e do nº 6, deste artigo.”, acrescenta ainda que “invocando a Ré, apelada, em sua defesa, acordo posterior e “Declaração de Quitação” da Autora, modificativos de obrigação, competindo-lhe efetuar a prova de tais factos modificativos que, excecionando, alega, verifica-se que a logrou fazer. E logrando a Ré fazer prova, como lhe competia - em conformidade com o nº 2, do art. 342º, do Código Civil - da matéria de exceção perentória inominada que invocou, a importar a absolvição total pedido, nos termos do nº 1 e 3, do art. 576º, do Código de Processo Civil, bem foi a ação julgada totalmente improcedente.”.

X)

As soluções jurídicas acolhidas pela primeira e segunda instância mostram-se diferentes.

Y)

Enquanto a primeira instância julgou a ação improcedente porque se focou na interpretação da declaração negocial subscrita pela recorrente e concluiu que, à luz da aplicação do disposto no art.º 236.º n.º 1 do Código Civil o sentido normal dessa declaração seria o de que as partes acordaram que, mediante a entrega de € 100.000,00 ilíquidos, a Autora nada mais teria a receber da Ré «seja a que título for», mas «no que respeita a uma eventual e futura transferência do atleta AA». Quer dizer, o acordo é circunscrito ao que fosse devido pela Ré à Autora quanto a uma eventual e futura transferência do atleta AA”, já a segunda instância, julgou a apelação improcedente porque sufragou um outro entendimento jurídico mediante o qual através do cumprimento das regras do ónus da prova e consequente aplicação do disposto no art.º 342.º n.º 2 do Código Civil, tendo a ré provado que pagou à autora a quantia de 100.000,00 € (cem mil euros), logrou provar a matéria de exceção perentória inominada que invocou e como tal é o bastante para importar a absolvição total do pedido nos termos do disposto no art.º 576.º n.ºs 1 e 3 do C.P.C. - o que é diferente do decidido pela 1.ª instância.

Z)

Com o devido e merecido respeito, e que obviamente é muito, pelas decisões proferidas em ambas as instâncias, parece-nos que nem uma, nem outra solução jurídica se mostram acertadas, pois a recorrente sempre sufragou nesta ação uma outra solução de direito a ser encontrada pela aplicação do disposto no art.º 270.º do Código Civil segundo o qual “As partes podem a um acontecimento futuro e incerto a produção dos efeitos do negócio jurídico ou a sua resolução: no primeiro caso, diz-se suspensiva a condição; no segundo, resolutiva

AA)

Como resulta dos autos, a recorrente, desde o primeiro momento, isto é, desde a petição inicial, sempre aceitou expressamente que a ré lhe tenha pago a quantia de 100.000,00 € (cem mil euros), quanto à factualidade em causa nesta ação. Portanto, em bom rigor, esse facto nem sequer é extintivo ou modificativo do direito invocado pela autora na justa medida em que tal quantia em momento algum foi peticionada à recorrida.

AB)

A solução jurídica preconizada pela segunda instância não só não se debruça sobre a questão jurídica efetivamente suscitada na apelação, como se escusou a fazê-lo por entender ter ficada prejudicada pela improcedência da apelação quanto à matéria de facto, o que não se pode aceitar.

AC)

Ainda que tivesse improcedido a apelação na parte atinente à apreciação da matéria de facto, a pertinência quanto à apreciação da questão jurídica suscitada manter-se-ia inalterada e deveria ter sido apreciada nos moldes alegados pela recorrente na apelação, pois independentemente da improcedência da apelação quanto à impugnação da matéria de facto, mesmo assim, a factualidade provada imporia uma solução de direito diferente da alcançada no acórdão recorrido.

AD)

Alega a recorrida que readquiriu o direito da recorrente mediante o pagamento da quantia de 100.000,00 € (cem mil euros) ilíquidos, no entanto essa reaquisição ou recompra não resulta provada, sendo que seria essa a matéria de exceção a ter de ser provada pela recorrida e já não o pagamento dos referidos 100.000,00 € (cem mil euros), o qual se mostra aqui meramente instrumental.

AE)

A declaração referida em factos provados – 7) consagra o seguinte: “[A autora] declara para os efeitos tidos por convenientes que após a boa cobrança de EUR 100.000,00 (cem mil euros) ilíquidos nada mais tem a receber, seja a que título for, da empresa Soccerpromaster – Gestão De Carreiras Lda (doravante Soccerpromaster), com sede na Rua Simão Bolívar, 123, Loja 57, 4470-214, Maia e NIF 510 130 496, no que respeita a uma eventual e futura transferência do atleta AA, atualmente com contrato de trabalho desportivo em vigor com a SAD do N........”.

AF)

Quer isto dizer que “após a boa cobrança de EUR 100.000,00 (cem mil euros) ilíquidos” [que viria a acontecer no dia 19-09-2016], a autora “nada mais tem a receber, seja a que título for, da” ré “no que respeita a uma eventual e futura transferência do atleta AA”.

AG)

Na referida declaração são estabelecidas DUAS CONDIÇÕES IMPORTANTES:

(c) após a boa cobrança de EUR 100.000,00 (cem mil euros) ilíquidos”;

(d) uma eventual e futura transferência do atleta AA.

AH)

Até ao dia 19-09-2016, data em que acabou de receber os 100.000,00 € (cem mil euros) ilíquidos, manteve-se em vigor a obrigação de a recorrida lhe entregar metade dos seus créditos referentes ao atleta AA, nomeadamente aquele aqui em causa esta ação, sendo que só a partir dessa data se extinguiu, (para o futuro) essa obrigação.

AI)

Não concordamos com o acórdão recorrido quando refere que “Com a aceitação e subscrição da referida declaração, a Autora trocou o incerto (i. e., metade do valor referente a 50% do valor recebido pelo N...... pelo empréstimo e/ou venda do jogador AA, numa eventual e futura transferência) pelo certo (i. e., 100.000,00 €), que até já recebeu. Resulta, assim, que a Ré cumpriu a obrigação que assumiu perante a Autora, modificativa da anterior, extinguindo-se tal obrigação.”.

AJ)

Nos termos do disposto no art.º 270.º do Código Civil “As partes podem subordinar a um acontecimento futuro e incerto a produção dos efeitos do negócio jurídico ou a sua resolução: no primeiro caso, diz-se suspensiva a condição; no segundo, resolutiva.”.

AK)

A condição é uma cláusula acessória típica, um elemento acidental do negócio jurídico, por virtude da qual a eficácia de um negócio (o conjunto dos efeitos que ele pretende desencadear) é posta na dependência dum acontecimento futuro e incerto, por maneira que só verificado tal acontecimento é que o negócio produzirá os seus efeitos (condição suspensiva) ou então só nessa eventualidade é que o negócio deixará de os produzir (condição resolutiva).

AL)

Nos termos do disposto no artigo 276.º do Código Civil “Os efeitos do preenchimento da condição retrotraem-se à data da conclusão do negócio, a não ser que, pela vontade das partes ou pela natureza do ato, hajam de ser reportados a outro momento.” – sublinhado e negrito nossos

AM)

Recorrente e recorrida acordaram na NÃO RETROATIVIDADE dos efeitos da condição [recebimento da quantia de 100.000,00 € (cem mil euros)] reportando os seus efeitos para um momento posterior [“após a boa cobrança de EUR 100.000,00 (cem mil euros) ilíquidos”] o que viria a acontecer no dia 19-09-2016.

AN)

Recorrente e recorrida NÃO FIXARAM QUALQUER PRAZO PARA O PAGAMENTO da quantia de 100.000,00 € (cem mil euros) e que por outro lado aquela declaração se refere apenas a uma eventual e FUTURA transferência do jogador AA.

AO)

Atendendo ao teor do documento n.º 2 junto com a contestação (com a data aposta de 11 de junho de 2015), logo se percebe que no dia 28-07-2015 o que estava em causa era uma transferência PRESENTE, ATUAL E COTEMPORÂNEA DAQUELA DECLARAÇÃO E NÃO FUTURA!

AP)

Tendo o preenchimento da condição “após a boa cobrança de EUR 100.000,00 (cem mil euros) ilíquidos” ”] ocorrido apenas no dia 19-09-2016 [factos provados – 13)] e estando em apenas uma transferência FUTURA E NÃO PRESENTE, ATUAL OU CONTEMPORÂNEA, do jogador AA, como efetivamente se verificou isso não impediu, então, que se tivesse constituído no dia 28-07-2015 o direito da autora de receber da ré 50% do valor que aquela acordou receber nesse dia do Clube Desportivo N........., SAD relativamente à transferência do jogador AA para o S......... Football Club Limited, quantia essa que efetivamente recebeu.

AQ)

A autora/recorrente tem, assim, direito a receber da ré/recorrida metade dos 600.000,00 € (seiscentos mil euros) (acrescido de IVA á taxa de 23%), que aquela efetivamente recebeu do Clube Desportivo N........., SAD.

AR)

Ao referido valor deverá ser deduzida a quantia de 100.000,00 € (cem mil euros), isto é 81.300,82 € + IVA (18.699,18 €) já recebida pela recorrente.

AS)

Pelo que deverá a recorrida ser condenada a pagar à recorrente a quantia ainda não paga de 218.699,18 € [300.000,00 € - 81.300,82 €], acrescida de IVA à taxa de 23% no montante de 50.300,82 €, num total de 269.000,00 € (duzentos e sessenta e nove mil euros), bem como os respetivos juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento.

AT)

Ao ter decidido como decidiu, o acórdão recorrido violou assim, entre outros, o disposto nos art.ºs 236.º n.º 1, 270.º, 276.º, 368.º, 405.º, 406.º, n.º 1 e 458.º do Código Civil, bem como o disposto nos art.ºs 5.º n.ºs 1 e 2 alíneas a) e b), 444.º n.º 1, 576.º n.ºs 1 e 3, 607.º n.º 4 e 608.º n.º 2 do C.P.C.. pelo que se impõe a procedência da presente revista com a consequente revogação e a substituição do acórdão recorrido por outro que julgando a ação parcialmente procedente, condene a recorrida a pagar à recorrente a quantia de 269.000,00 € (duzentos e sessenta e nove mil euros), bem como os respetivos juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento”.


5. Por sua vez, a recorrida apresentou a sua resposta com as conclusões, também elas injustificadamente longas, que se seguem:

I. Nos termos do disposto no art. 671.º, n.os 1 e 3 do CPC, o presente Recurso de Revista é legalmente inadmissível, porquanto não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância.

II. No presente caso, estamos perante uma efectiva e evidente situação de dupla conforme relativamente ao que foi decidido em ambas as instâncias que, assim, queira ou não queira a Recorrente, impede o recurso de revista pela via normal, sem deixar de garantir o acesso a este douto Supremo Tribunal de Justiça pela via excepcional do art. 672.º (a qual, in casu, se encontra igualmente vedada, seja porque não se verifica qualquer dos pressupostos de tal via recursória, seja porque não foi essa a via recursória escolhida pela Recorrente e a lei obsta à convolação da revista normal para a revista excepcional).

III. No caso sub judice, não se verifica o pressuposto da recorribilidade, i.e., a diversidade da fundamentação, que, malgrado a confirmação pela Relação da decisão da 1.ª instância, permita à Recorrente aceder a este douto Supremo Tribunal de Justiça, na medida em que nos confrontamos com duas decisões que comungam daquilo que era essencial para sustentar o resultado concordante que pelas mesmas foi estabelecido.

IV. Para além da identidade do resultado alcançado em ambas as instâncias, a fundamentação empregue pela Relação para julgar a apelação interposta pela Recorrente revela-se substancialmente idêntica à que foi utilizada pela 1.ª instância, residindo a diferença unicamente na fortaleza da motivação que foi empregue pela Relação em resposta ao Recurso de Apelação e de modo algum se compreenderia que a utilização de uma argumentação mais reforçada (e complementadora) da que foi utilizada pela 1.ª instância pudesse servir para ampliar os graus de recurso.

V. A alegação da Recorrente de que “quando seja apontado à Relação erro de aplicação ou interpretação da lei processual e seja invocado no recurso de revista a violação de normas adjectivas relacionadas com a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, não existe dupla conforme” é falaciosa e infiel ao entendimento de Abrantes Geraldes, o qual alerta para a necessidade da intervenção do elemento racional nos casos em que é invocada no recurso de revista a violação de normas de direito adjectivo relacionadas com a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto VI. É que, in casu, o Tribunal da Relação ....... não rejeitou pura e simplesmente a impugnação da decisão da matéria de facto efectuada pela Recorrente por motivos ligados à falta de identificação dos pontos de facto impugnados, à omissão de indicação dos meios de prova ou à falta de enunciação de resposta alternativa

VII. Pelo contrário, a Relação .... afirma mesmo que a Recorrente deu cumprimento aos ónus impostos pelo n.º 1 do art. 640.º do CPC e, indo mais além, faz uma efectiva reapreciação crítica dos concretos meios probatórios relativamente aos pontos de facto impugnado, realiza um novo julgamento da matéria de facto impugnada, vai à procura da sua própria convicção e, assegurando desse modo o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto, conclui (e bem) que não houve qualquer erro de julgamento por parte do Tribunal de 1.ª instância na apreciação da matéria de facto impugnada

VIII. Evidentemente, não se verifica aqui qualquer violação da aplicação da lei processual no que respeita à decisão da impugnação da matéria de facto, nem se verifica aqui qualquer necessidade de abrir as portas ao terceiro grau de jurisdição, como o referido entendimento racional de Abrantes Geraldes visa assegurar, porquanto não existe uma mera conformidade formal, mas, antes, uma verdadeira conformidade material entre as fundamentações jurídicas subjacentes às decisões de ambas as instâncias.

IX. O Tribunal da Relação ....... não detectou qualquer erro de julgamento, apenas convicção livre e adequadamente formada pelo julgador, decidindo (e bem) não alterar a decisão da matéria de facto nem lhe aditar o pretendido pela Recorrente, por nenhuma relevância ter para a decisão, sendo absolutamente inútil.

X. Ademais, jamais poderá invocar-se uma divergência relativamente ao julgamento feito pela Relação, agindo ao abrigo do princípio da livre apreciação de meios de prova que ao mesmo princípio estão sujeitos, já que, em relação a tal decisão, o n.º 4 do art. 662.º veda pura e simplesmente o recurso de revista (neste sentido, vide GERALDES, António Abrantes, ob. cit., p. 320).

XI. Para além de, no presente recurso de revista, a invocação da violação de normas adjectivas relacionadas com a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto não impedir a existência de dupla conforme, verifica-se que, no caso concreto, a fundamentação jurídica acolhida por ambas as instâncias é essencialmente a mesma.

XII. O eixo fundamental (e até secundário) de cada uma das decisões é o mesmo, girando em torno da modificação por mútuo consenso das partes da obrigação primitivamente assumida no acordo corporizado na “Declaração” datada de 27/09/2012, através da celebração de um novo (e posterior) acordo, este outro corporizado na “Declaração de Quitação” datada de 28/07/2015, e do cumprimento pela Recorrida do aludido acordo modificativo da obrigação primitivamente assumida.

XIII. O Acórdão recorrido simplesmente complementa e densifica o percurso jurídico percorrido pela 1.ª instância, explicando pedagogicamente o funcionamento das regras (da distribuição) do ónus da prova e aplicando-as ao caso concreto, utilizando, para o efeito, argumentos adicionais, complementares e explicativos que não equivalem a novas ou sequer diversas questões das que tinham sido apreciadas.

XIV. Não é o caso, porque o Tribunal da Relação ....... teve o cuidado e a pedagogia de o fazer, mas também não constituiria argumento que viabilizasse a admissibilidade da revista o facto de a Relação não ter apreciado determinadas questões suscitadas no âmbito da apelação, uma vez que considerou que tais questões estavam prejudicadas pela resposta que foi dada à questão essencial em torno da utilidade da discussão dessas questões no âmbito da acção.

XV. Sem prejuízo de, na verdade, não importar nos pronunciarmos sobre o objecto do presente recurso, uma vez que se verifica um impedimento formal à sua admissibilidade, ad cautelam e por dever de patrocínio, assim o faremos.

XVI. Com o presente Recurso de Revista, a Recorrente insurge-se contra o Acórdão a quo pela recusa do aditamento ao elenco da factualidade dada como provada dos factos por si propostos sob os números 8-A) e 8-B), por entender que a fundamentação avançada pelo Tribunal da Relação ....... para a referida recusa consubstancia uma violação do disposto nos artigos 5.º, n.º 1 e 2, e 607.º, n.º 4 do CPC.

XVII. No entanto, não se vislumbra, in casu, qualquer violação da lei processual.

XVIII. Em estrito cumprimento do art. 662.º, n.º 1 do CPC, o Tribunal da Relação ....... pronunciou-se sobre a matéria de facto impugnada pela Recorrente, realizou um novo julgamento sobre essa mesma matéria de facto e, nesse novo julgamento, formou a sua própria convicção de forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostravam acessíveis, e não apenas os indicados pelas partes.

XIX. Neste conspecto, quanto ao pretendido aditamento de factos ao elenco da factualidade dada como provada, o Tribunal da Relação ....... referiu, e bem, que, nada tendo sido alegado, concreta e especificadamente, quanto à importância recebida pelo Clube Desportivo N........., SAD do S......... Football Club Limited, a título da transferência do jogador AA, e, por outro lado, quanto à quantia paga pelo Clube Desportivo N........., SAD à Recorrida, nada caberia aditar aos factos provados conforme pretendido pela Recorrente.

XX. Ao contrário do que a Recorrente pretende fazer crer, a fundamentação da Relação não se queda por aqui e tem de ser lida de forma sistemática e conjunta, pois, para além do referido, o Acórdão recorrido doutamente expõe que a factualidade que a Recorrente pretendia ver aditada não tem qualquer relevância ou pertinência para a boa e justa decisão da causa, sendo absoluta e verdadeiramente inútil.

XXI. O que verdadeiramente importa in casu é a data da subscrição da “Declaração de Quitação” pela gerência da Recorrente e da prova produzida resulta inequivocamente que a mesma foi entregue devidamente assinada pela gerência da Recorrente pelo seu sócio gerente à data dos factos, BB, a CC, gerente da Recorrente, por volta das 19h00 do dia 28 de Julho de 2015, junto ao estádio do .....

XXII. Assim, a partir do momento da subscrição do acordo corporizado na “Declaração de Quitação”, o que o S......... Football Club Limited pagou ao Clube Desportivo N........., SAD (cujo aditamento a Recorrente pretende) e o que este, por sua vez, pagou à Recorrida (cujo aditamento é também pretendida pela Recorrente) não tem nenhum interesse para a Recorrente, sendo completamente irrelevante para a decisão da causa, pois que, como decorre da referida “Declaração de Quitação”, a obrigação da Recorrida para com a Recorrente, foi, sempre e tão somente, o pagamento do montante de 100.000,00 €, obrigação essa integralmente cumprida pela Recorrida, como a própria Recorrente alega logo na petição inicial.

XXIII. Destarte, sendo irrelevantes quaisquer acordos posteriores celebrados entre os referidos Clubes ou entre o Clube Desportivo N........., SAD e a Recorrida, os quais não têm nenhuma conexão com o acordo que esteve na base daquela “Declaração de Quitação”, não cabia à Relação .... aditar à decisão da matéria de facto o pretendido pela Recorrente, por nenhuma relevância ter para a decisão, sendo absolutamente inútil, razão pela qual se deve manter incólume e inalterado o douto Acórdão da Veneranda Relação.

XXIV. Como fundamento deste Recurso de Revista, a Recorrente invoca, ainda, uma alegada violação da lei substantiva e, uma vez mais, uma suposta diferença na fundamentação utilizada por ambas as instâncias.

XXV. Quanto à invocada diferença na fundamentação utilizada pela 1.ª instância e pela Relação, e sem prejuízo do exposto supra, é falso que, como alega a Recorrente, as soluções jurídicas acolhidas pela primeira e segunda instâncias sejam diferentes.

XXVI. Não só a fundamentação jurídica dada pela 1.ª instância não se fica pela interpretação da declaração negocial subscrita pela recorrente, como também a fundamentação avançada pela Relação .... se pronuncia quanto à interpretação daquela declaração negocial e segue o mesmo raciocínio lógico-jurídico adoptado pela 1.ª instância.

XXVII. O entendimento jurídico avançado por ambas as instâncias nas suas decisões é o mesmo, centrando-se na modificação por mútuo consenso das partes da obrigação primitivamente assumida no acordo corporizado na “Declaração” datada de 27/09/2012, através da celebração de um novo (e posterior) acordo, este outro corporizado na “Declaração de Quitação” datada de 28/07/2015, e no cumprimento pela Recorrida do aludido acordo modificativo da obrigação primitivamente assumida.

XXVIII. O Acórdão recorrido simplesmente complementa e densifica o percurso jurídico percorrido pela 1.ª instância, explicando pedagogicamente o funcionamento das regras (da distribuição) do ónus da prova e aplicando-as ao caso concreto, utilizando, para o efeito, argumentos adicionais, complementares e explicativos que não equivalem a novas ou sequer diversas questões das que tinham sido apreciadas.

XXIX. Não há, portanto, qualquer diferença quanto à solução jurídica acolhida pela 1.ª instância e pela Relação .....

XXX. Quanto à alegada violação da lei substantiva, e à semelhança da 1.ª instância, para além de ter efectuado um correcto e acertado julgamento da matéria de facto do presente litígio, o Tribunal da Relação ....... aplicou irrepreensivelmente as normas jurídicas à matéria de facto, tendo dado o devido enquadramento jurídico à questão sub judice e decidindo-a conforme a Lei e o Direito.

XXXI. A tese da Recorrente, segundo a qual se estabeleceram duas condições suspensivas no acordo celebrado entre as partes, corporizado na “Declaração de Quitação”, nomeadamente, “após a boa cobrança de EUR 100.000,00 (cem mil euros) ilíquidos” e “uma eventual e futura transferência do atleta AA” ,

A vontade das partes foi no sentido de se excluir a retroactividade dos efeitos do preenchimento daquela condição e que “até ao dia 19-09-2016, data em que acabou de receber os 100.000,00 € (cem mil euros) ilíquidos, manteve-se em vigor a obrigação de a ré entregar à autora metade dos seus créditos referentes ao atleta AA” é uma perfeita aberratio jurídica, constituindo um desvirtuamento puro do sinalagma contratual.

XXXII. De acordo com a tese da Recorrente, esta teria o melhor de dois mundos e nenhum risco negocial, pois teria direito ao pagamento da quantia de 100.000,00 € e, simultaneamente, até este pagamento estar integralmente cumprido pela Recorrente, direito ao pagamento de metade do valor líquido que a Recorrida viesse a obter, exclusivamente, dos direitos económicos que detinha sobre o jogador; ou seja, teria direito à prestação acordada e devida pelo devedor e, ainda, até ao seu integral cumprimento por este, direito à própria prestação a cujo cumprimento se vinculou, concretizadora do sinalagma na equação daquele contrato.

XXXIII. Ao contrário do que a Recorrente defende, mas em concordância com o defendido pelo douto Tribunal de 1.ª instância e o Venerando Tribunal da Relação ......., o acordo corporizado na Declaração de Quitação não pode ser interpretado no sentido de que o mesmo só valia para o período ulterior ao pagamento integral dos 100.000,00 €.

XXXIV. A Declaração de Quitação datada de 28/07/2015 e o acordo entre a Recorrente e a Recorrida que esteve na sua génese teve por objectivo definir um valor fixo, em vez de uma percentagem, por forma a que, com o pagamento desse valor fixo, nada mais a Recorrente tivesse a receber da Recorrida quanto à transferência do jogador.

XXXV. Ao abrigo da sua autonomia privada e da sua liberdade contratual, as partes compuseram autonomamente e de forma livre, espontânea e esclarecida os seus interesses e decidiram celebrar o negócio jurídico corporizado na Declaração de Quitação datada de 28 de Julho de 2015, nos termos do qual a Recorrente sempre teria direito a receber da Recorrida o montante de 100.000,00 €, independentemente do que a Recorrida viesse a receber com uma eventual transferência do jogador.

XXXVI. A Autora avaliou o risco, tomou uma opção e vinculou-se nos termos da Declaração de Quitação de 28/07/2015: mediante a entrega de 100.000,00 € ilíquidos por parte da Recorrida, a Recorrente nada mais teria a receber desta “seja a que título for”, “no que respeita a uma eventual e futura transferência do atleta AA”.

XXXVII. Não estamos perante qualquer condição, como defende a Recorrente, mas, antes e tão só, ante a fixação de um elemento essencial (e não acidental) do negócio jurídico: o preço.

XXXVIII. Sem prescindir, mesmo que assim não fosse e se entendesse hipoteticamente que estamos perante uma condição suspensiva, sempre se diga que não se retira da interpretação do contrato que as partes pretendessem excluir a retroactividade dos efeitos do preenchimento da condição, nem tal resulta da natureza do acto.

XXXIX. Concluindo, na sequência e no âmbito dos acordos celebrados entre as partes, a Recorrida cumpriu integralmente a obrigação assumida perante a Recorrente, modificativa da anterior, extinguindo-se tal obrigação através desse cumprimento, pelo que não dispõe a Recorrente do direito a exigir da Recorrente o pagamento de qualquer quantia, com base no contrato que densifica a causa de pedir da acção, que foi, posterior e validamente, objecto de alteração, nos termos dos artigos 405.º e 406.º, n.º 1 do Código Civil.

XL. Face ao exposto, e verificando-se que a Recorrente não tem o direito de que se arroga, modificado nos termos de acordo posteriormente celebrado com a Recorrida, este cumprido por esta, com a consequente extinção da obrigação assumida, deve o presente Recurso ser julgado improcedente, mantendo-se tal qual a decisão constante do douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação .......”.


6. No Tribunal da Relação ....... foi determinada a subida dos autos a este Supremo Tribunal de Justiça.


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Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, são as de saber se:

1.ª) o Tribunal recorrido devia ter alterado a decisão sobre a matéria de facto; e

2.ª) se o Tribunal recorrido devia ter condenado a ré na obrigação de pagamento da quantia invocada pela autora.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1) BALLAREA - Assessoria e Gestão Desportiva, Lda. (ora Autora) é uma sociedade comercial por quotas que que tem por objeto social as atividades de produtores e promotores de acontecimentos desportivos, com e sem instalações; promoção de eventos desportivos; atletas, árbitros, cronometristas e de outros desportistas independentes; estábulos, canis e garagens, relacionados com a atividade desportiva; apoio à pesca e caça recreativas e desportivas; e dos guias de montanha, inclui a gestão de zonas de caça e pesca, compreende as atividades ministradas em campos e escolas, visando a instrução organizada para fins desportivos e recreativos, inclui a instrução, nomeadamente de futebol, andebol, ginástica, natação, artes marciais, equitação, jogos de cartas, yoga, assim como as atividades dos instrutores professores e treinadores.

2) SOCCERPROMASTER – Gestão de Carreiras Desportivas, Lda. (ora Ré) é uma sociedade comercial por quotas que tem por objeto social a prestação de serviços de assessoria e consultoria na gestão de carreiras e atividades desportivas.

3) No dia 10 de julho de 2012, entre o Clube Desportivo N........., SAD e AA foi celebrado um acordo intitulado «CONTRATO DE TRABALHO PARA PROFISSIONAIS DE FUTEBOL», com o teor que consta do documento junto aos autos a fls. 117-119, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido.

4) No dia 17 de agosto de 2012, entre o Clube Desportivo N........., SAD e SOCCERPROMASTER – Gestão de Carreiras Desportivas, Lda. (ora Ré), foi celebrado um acordo intitulado «Acordo», no qual convencionaram o seguinte:

«AS PARTES RESOLVEM CELEBRAR O PRESENTE «CONTRATO DE PARTILHA DE DIREITOS ECONÓMICOS SOBRE FUTEBOLISTA PROFISSIONAL», O QUAL SE REGERÁ PELAS SEGUINTES CLÁUSULAS E CONDIÇÕES:

1. O N...... atribuirá à Soccerpromaster o valor referente a 50% numa eventual e futura transferência, do valor recebido pelo N...... pelo empréstimo e/ou venda do jogador AA, natural de ..., de nacionalidade portuguesa, nascido a 04/09/1993, portador do Cartão de Cidadão n.º ....;

2. Ao valor de qualquer transferência, definitiva ou por empréstimo, serão sempre deduzidos os valores pagos a título de comissões, indemnizações e todos os valores subjacentes à efetivação da transferência.

3. À Soccerpromaster será pago o valor de 50.000,00 € (cinquenta mil euros), acrescido da taxa de IVA em vigor, na data em que o jogador AA realizar 5 (cinco) jogos oficiais pelo Clube Desportivo N........., SAD, por tempo superior a 45 minutos».

5) No dia 27 de setembro de 2012, DD, em representação de SOCCERPROMASTER – Gestão de Carreiras Desportivas, Lda. (ora Ré), subscreveu um documento intitulado «Declaração», com o seguinte teor:

«DECLARAÇÃO

SOCCERPROMASTER, NIPC 510130496 aqui representada pelo seu sócio gerente DD, portador do Cartão de Cidadão n.º .... declara que:

1. Por «contrato de partilha de direitos económicos» celebrado em 17 de Agosto de 2012, com o Clube Desportivo N......... SAD, NIPC XXX XXX XXX, passou a deter parte dos direitos económicos referentes ao atleta AA, natural de ..., de nacionalidade portuguesa, nascido a …/09/1993, portador do cartão de identidade n.º .....

2. Entregará à BALLAREA, Assessoria e Gestão Desportiva, Lda., NIPC 50...40, metade (cinquenta por cento) do valor líquido que obtiver, exclusivamente, da parte dos direitos económicos que passou a deter em consequência da outorga do contrato identificado no ponto anterior.

3. A entrega do valor apurado efetuar-se-á após o efetivo recebimento do mesmo por parte da SOCCERPROMASTER.

Por ser verdade, vai a Declarante assinar a seguir à data. ..., 27 de setembro de 2012».

6) Na época de 2013/2014, o jogador AA realizou mais de cinco jogos oficiais pelo Clube Desportivo N........., SAD, por tempo superior a 45 minutos em cada um de tais jogos.

7) Em 28-07-2015, foi estabelecido entre a Autora e a Ré um acordo que consta do documento intitulado «Declaração de Quitação», com o seguinte teor:

«BALLAREA – ASSESORIA E GESTÃO DESPORTIVA LDA, NIPC 50... 140, com sede na Rua da ..., N.º 2105, 3.º CP, União das Freguesias de Cedofeita, Ildefonso, Sé, Miragaia, Nicolau, Vitória, concelho do Porto, neste acto representada pelo seus gerentes BB, NIF ....e EE, NIF ...., com poderes para o acto, declara para os efeitos tidos por convenientes que após a boa cobrança de EUR 100.000,00 (cem mil euros) ilíquidos nada mais terá a receber, seja a que título for, da empresa Soccerpromaster – Gestão de Carreiras Desportivas, Lda (doravante Soccerpromaster), com sede na Rua Simão Bolívar, 123, Loja 57, 4470-214, Maia e NIF 510 130 496, no que respeita a uma eventual e futura transferência do atleta AA, atualmente com contrato de trabalho desportivo em vigor com a SAD do N........

Mais declara que o presente instrumento substitui todo e qualquer acordo verbal e/ou escrito anteriormente assinado e/ou assumido entre esta empresa e a Soccerpromaster e que só poderá ser alterada: i) por via escrita e ii) com o acordo da Soccerpromaster.

..., 28 de Julho de 2015».

8) No dia 30 de julho de 2015, entre S......... Football Club Limited e Clube Desportivo N........., SAD foi celebrado um acordo intitulado «Transfer Agreement», relativo à transferência do jogador AA do Clube Desportivo N........., SAD para o S......... Football Club Limited, com o teor que consta do documento junto aos autos a fls. 167-170, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido, e cuja tradução para a língua portuguesa consta do documento junto aos autos a fls. 212-215, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido.

9) SOCCERPROMASTER – Gestão de Carreiras Desportivas, Lda. (ora Ré) entregou a BALLAREA - Assessoria e Gestão Desportiva, Lda. (ora Autora) a quantia de € 100.000,00;…

10) …Através do cheque n.º ...78, datado de 16-09-2015, sacado sobre conta bancária titulada pela Ré com o IBAN ......, do Banco Internacional do Funchal, no valor de € 33.000,00;…

11) …Através do cheque n.º ...95, datado de 10-02-2016, sacado sobre a conta bancária titulada pela Ré com o n.º ..., do Millennium BCP, no valor de € 6.170,73;…

12) …Através do cheque n.º ...92, datado de 19-02-2016, sacado sobre a conta bancária titulada pela Ré com o n.º ..., do Millennium BCP, no valor de € 26.829,27;…

13) …E através do cheque n.º ...84, datado de 19-09-2016, sacado sobre conta bancária titulada pela Ré com o IBAN ......, do Banco Internacional do Funchal, no valor de € 34.000,00.


E são seguintes os factos considerados não provados no Acórdão recorrido:

A) Sem prejuízo para o supra referido em 6), o jogador AA jogou pelo Clube Desportivo N........., SAD:

B) Em 01-12-2013, na 11.ª jornada da Liga Zon/Sagres 2013/2014, contra o V...., tendo jogado 69 minutos;

C) Em 21-12-2013, na 14.ª jornada da Liga Zon/Sagres 2013/2014, contra o Sp....., tendo jogado 55 minutos;

D) Em 30-12-2013, na 1.ª jornada da fase 3 da Taça da Liga 2013/2014, contra o SL....., tendo jogado 90 minutos;

E) Em 12-01-2014, na 15.ª jornada da Liga Zon/Sagres 2013/2014, contra o G....., tendo jogado 62 minutos;

F) Em 26-01-2014, na 3.ª jornada da fase 3 da Taça da Liga 2013/2014, contra o L......, tendo jogado 90 minutos.

G) O documento intitulado «DECLARAÇÃO DE QUITAÇÃO», com o teor que consta do documento junto a fls. 84, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, foi subscrito em data posterior a 28-07-2015.


O DIREITO


Da admissibilidade do presente recurso e da consequente limitação do objecto do recurso de revista normal

Tanto a recorrente como a recorrida se pronunciaram sobre a admissibilidade do recurso: aquela sustentando que o recurso é admissível, dado que “o acórdão recorrido recusou o conhecimento da impugnação da matéria de facto quanto aos factos que se pretendia ver aditados e se socorreu de fundamentação jurídica essencialmente diferente da acolhida pela sentença da primeira instância”; esta sustentando o oposto, com fundamento em que existe “uma efectiva e evidente situação de dupla conforme relativamente ao que foi decidido em ambas as instâncias que, assim, queira ou não queira a Recorrente, impede o recurso de revista pela via normal”.

Não há dúvidas de que o presente recurso é interposto de Acórdão que confirma, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a sentença. O fundamento essencial da decisão convergente das duas instâncias é o facto de se considerar que ocorreu uma modificação da obrigação originariamente assumida no acordo materializado na “Declaração” e que foi celebrado um novo acordo, por sua vez materializado na “Declaração de Quitação”, acordo este que a ré, aliás, cumpriu. Foi por isto que se decidiu que a ré nada devia à autora e, portanto, não pode reconhecer-se a esta o direito por ela alegado.

O Tribunal a quo não se inibe, aliás, de demonstrar que acompanha a fundamentação essencial do Tribunal de 1.ª instância, fazendo reiteradas referências ao percurso efetuado por este.

Atente-se nestas passagens do Acórdão recorrido:

“De qualquer modo, sempre se dirá que, bem decidiu o Tribunal a quo ao considerar não resultar o direito da Autora, dado, desde logo, o acordo, celebrado posteriormente à “Declaração” acima aludida, que esteve na base da “Declaração de Quitação”, que modificou o anterior, alegado na petição inicial. E pela Ré até foi cumprido o dito acordo modificativo da obrigação primeiramente assumida.

Na verdade, bem entendeu o Tribunal a quo, que, no âmbito do que entre Autora e Ré foi acordado, e como decorre da decisão da matéria de facto, a Autora nada mais pode exigir da Ré, sendo que provado resultou que a Autora subscreveu a mencionada «Declaração de Quitação» (item 7 dos factos provados) e que recebeu da Ré a quantia de € 100.000,00 ilíquidos (itens 9-13 dos factos provados).

Como refere o Tribunal a quo, nada permite interpretar a «Declaração de Quitação» no sentido de a mesma se destinar a valer para o período ulterior ao pagamento integral dos € 100.000,00, dela resultando que o que esteve na sua origem foi o “objetivo definir um valor fixo, em vez de uma percentagem, por forma a que, com o pagamento desse valor fixo, nada mais a Autora tivesse a receber da Ré quanto à transferência do jogador. Os meios de prova produzidos demonstraram que, em julho de 2015, previamente à transferência do jogador do N...... para o S..... houve negociações entre a Autora e Ré, visando a fixação de uma quantia certa a pagar pela Ré à Autora «no que respeita a uma eventual e futura transferência do atleta AA», o que foi corporizado na «DECLARAÇÃO DE QUITAÇÃO» datada de 28-07-2015, subscrita pelos gerentes da Autora. Em certo sentido, pode dizer-se que, com a subscrição da «DECLARAÇÃO DE QUITAÇÃO» a Autora trocou o incerto (i. e., metade do «valor referente a 50% numa eventual e futura transferência, do valor recebido pelo N...... pelo empréstimo e/ou venda do jogador AA») pelo certo (i. e., € 100.000,00)”[1].

Atente-se também na (enfática) parte final ou conclusiva, que antecede o dispositivo:

Porque nenhuma alteração na matéria de facto foi introduzida, é de manter, como referido, a fundamentação de direito e o decidido [2].

E repare-se, por fim, no próprio dispositivo:

Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação ....... acordam em, na procedência da exceção perentória deduzida, julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida, que absolveu a Ré do pedido, na totalidade [3].

Esclareça-se que eventuais argumentos adicionais que seja possível encontrar no Acórdão a quo são, quando muito, argumentos secundários e por isso não relevam para afastar a convergência das duas decisões para o efeito aqui em apreço (dupla conforme).

Dir-se-ia, assim, à primeira vista, que se configura o bloqueio recursório conhecido como “dupla conforme” , o que impede a admissibilidade da revista por via normal (cfr. artigo 671.º, n.º 3, do CPC).

Sucede, porém, que no presente recurso vem, justamente, suscitada a questão da recusa de modificação da decisão sobre a matéria de facto – rectius: a questão do acerto da decisão de recusa pelo Tribunal recorrido – e da violação da lei processual daí decorrente, designadamente dos artigos 5.º, n.º 1 e 2, e 607.º, n.º 4, do CPC [cfr. conclusões E) e AT)].

Ora, conforme explica Abrantes Geraldes, “nestas situações, e noutras similares em que seja apontado à Relação erro de aplicação ou de interpretação da lei processual, ainda que seja confirmada a sentença recorrida no segmento referente à apreciação do mérito da apelação, não se verifica, relativamente àqueles aspetos, uma efetiva situação de dupla conforme, já que as questões emergiram ex novo do acórdão da Relação proferido no âmbito do recurso de apelação, sem que tenham sido objeto de apreciação na 1.ª instância. Na substância, este acórdão revelará uma situação de dupla conforme quanto à matéria de direito, mas que pode estar inquinada de erro decisório relativamente à questão adjetiva que interferiu na apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto sem que, nesta parte, se verifique uma conformidade decisória obstativa do recurso de revista [4].

Quer dizer: o recurso de revista normal, tal como interposto pela recorrente, não pode deixar ser admitido.

Não se pense, todavia, que a admissão do recurso nos termos acabados de referir não tem o seu impacto na delimitação do respectivo objecto.

Como, de seguida, continua a explicar Abrantes Geraldes, “em tal eventualidade, a impugnação do acórdão recorrido, na parte respeitante à decisão sobre a matéria de facto, deve fazer-se através do recurso de revista nos termos normais, sem embargo da interposição de revista excepcional no que concerne à matéria de direito, acautelando uma eventual improcedência da primeira.

É, assim, possível configurar, em tais circunstâncias, uma cisão do acórdão da Relação em dois segmentos, um relacionado com a decisão da impugnação da matéria de facto e outro ligado à integração e qualificação jurídica.

Se acaso o Supremo Tribunal de Justiça, agindo no âmbito do recurso de revista normal interposto do Acórdão da Relação que se pronunciou (ou não pronunciou) sobre a impugnação da decisão da matéria de facto, revogar ou anular esse segmento do acórdão, determinará o reenvio do processo para a Relação, perdendo utilidade a revista excecional que foi interposta do segundo segmento. Já se, porventura, o Supremo julgar improcedente aquela revista, confirmando o acórdão da Relação na parte relacionada com a matéria de facto, apenas se debruçará sobre a matéria de direito se, prevenindo essa eventualidade, a parte tiver interposto também revista excepcional que venha a ser admitida pela Formação referida no n.º 3 do art. 672.º[5].

Quer dizer: o recurso de revista normal não pode deixar ser admitido mas ele limita-se à parte atinente à decisão sobre a matéria de facto, em relação à qual, por ser uma questão nova, não há dupla conforme; já quanto à parte restante, atinente à decisão de direito, ela só poderia ser apreciada se, antes de mais, a recorrente tivesse interposto para ela revista excepcional – o que a recorrente não fez e o que determina que ela seja excluída da presente apreciação.

Esclarecidos estes pontos, passe-se ao conhecimento daquela que resulta, a final, ser a única questão do presente recurso.


Da recusa de modificação da decisão sobre a matéria de facto

Insurge-se a recorrente contra a decisão de não aditar certos factos ao conjunto de factos provados.

Reconhecendo que os factos em causa não foram alegados, contrapõe ela que são concretizadores ou complementadores de outros factos alegados e estão provados por documentos juntos aos autos; assim sendo, o tribunal podia e devia tê-los aditado aos factos provados, em conformidade com o disposto no artigo 5.º, n.ºs 1 e 2, e no artigo 607.º, n.º 4, do CPC [cfr. conclusões E) a U)].

A fundamentação da decisão em causa apresentada pelo Tribunal recorrido é a seguinte:

Cumpre, desde logo referir que, na decisão da matéria de facto, para que determinados factos possam ser recolhidos, necessário é que tenham sido expressamente alegados, no confronto da outra parte, em cumprimento do ónus de alegação.

Assim, não sendo alegado um facto pela parte, no respetivo articulado, não pode, sem mais, facto não alegado ser recolhido na decisão da matéria de facto, seja para os factos provados seja para os factos não provados.

Ora, nada tendo sido alegado, concreta e especificadamente, quanto às referidas importâncias e acordo, sequer que foram efetivamente recebidas, nada caberia aditar aos factos provados do aludido 7-A), 8-A) e 8-B).

Refira-se, ainda, quanto ao mencionado em 7-A), que não há prova bastante nos autos que permita dar como provado que, no dia 28 de Julho de 2015, a Ré e o Clube Desportivo N........., SAD acordaram que este pagaria àquela a quantia de 600.000,00 €, acrescida de IVA, porque o que resulta é, tão só, que DD, sócio gerente da Ré, e FF, Presidente daquele Clube, começaram negociações por volta das 21,00h do dia 28 de Julho de 2015 e tais negociações se prolongaram, ao telefone, com ligar e desligar de chamadas, para ponderação, por diversas horas, seguramente mais do que as três que faltavam até ao início de um novo dia, como os referidos negociadores esclareceram, nenhum aditamento, do pretendido, aos factos provados podendo ser efetuado. E quanto ao 8-B), sendo o acordo entre A. e Ré que esteve na base da subscrição da “Declaração de Quitação” pela gerência da Autora e esta subscrição, anteriores ao supra referido acordo entre a Ré e o Clube Desportivo N........., SAD, nenhuma relevância pode ter, também, aditar tal matéria. Com efeito, bem sustenta a recorrida que resultando da prova produzida que a “Declaração de Quitação” foi entregue, devidamente assinada pela gerência da Autora, pelo seu sócio gerente à data dos factos, BB, a CC, gerente da Ré, por volta das 19h00 do dia 28 de Julho de 2015, o que o S......... Football Club Limited pagou ao Clube Desportivo N........., SAD (cujo aditamento a apelante pretende – v. 8-A) e o que este, por sua vez, pagou à Ré nenhum interesse tem para a Recorrente, sendo irrelevante para a decisão da causa, pois que, como decorre da referida “Declaração de Quitação”, o que negociado foi, para passar a ser obrigação da Ré pagar à Autora, foi, sempre e tão somente, o montante de 100.000,00 , cumprido, como a própria autora alega, logo na petição inicial.

Assim, irrelevantes são, por isso, quaisquer acordos posteriores celebrados entre os referidos Clubes ou entre o Clube Desportivo N........., SAD e a Ré, que nenhuma conexão têm com o acordo que esteve na base daquela “Declaração de Quitação”.

Destarte, não resultando os pretensos erros de julgamento, antes convicção livre e adequadamente formada pelo julgador, não cabe alterar a decisão da matéria de facto e também não cabe aditar-lhe o pretendido, por nenhuma relevância ter para a decisão, sendo absolutamente inútil”.

O que pode depreender-se daqui?

Em primeiro lugar, pode depreender-se que o Tribunal recorrido qualificou os factos em causa como factos não alegados – como factos que não foram “concreta e especificamente” alegados –, qualificação que, como se apontou, a recorrente não contesta [cfr. conclusão R)].

Em segundo lugar, pode depreender-se que o Tribunal recorrido tem consciência de que existem factos além dos articulados pelas partes que podem ser recolhidos para a decisão sobre a matéria de facto – o que não pode acontecer é que o sejam “sem mais”.

Em terceiro lugar, pode depreender-se que o Tribunal recorrido considerou que não se verificava nenhuma das hipóteses previstas no n.º 2 do artigo 5.º do CPC: que os factos não eram nem “factos instrumentais que result[ass]em da instrução da causa” nem “factos que [fossem] complemento ou concretização dos que as partes [houvessem] alegado e result[ass]em da instrução da causa, tendo tido a possibilidade de se pronunciar”, mas sim, distintamente, factos destituídos de interesse para a decisão da causa.

Não pode deixar de se acompanhar o Tribunal recorrido na sua decisão de recusar o aditamento dos factos em causa.

São estes factos os seguintes:

8-A) Relativamente ao acordo intitulado “Transfer Agreement”, identificado em 8.  dos factos provados, quanto à transferência do jogador AA o Clube Desportivo N........., SAD recebeu do S......... Football Club Limited a quantia de 3.000.000,00 € (três milhões de euros).

8-B) Relativamente ao ”Acordo” celebrado no dia 17 de agosto de 2012, entre o Clube Desportivo N........., SAD e a ré SOCCERPROMASTER – Gestão de Carreiras Desportivas, Lda., identificado em 4. dos factos provados, o primeiro pagou à segunda, que efetivamente recebeu, a quantia de 738.000,00 € (setecentos e trinta e oito mil euros) [600.000,00€ + 138.000,00 € a título de IVA taxa de 23%].

Mesmo sem entrar a fundo nos meandros da causa, logo se vê que, seja o facto respeitante ao eventual montante recebido pelo N......, ao abrigo de acordo celebrado entre o N...... e o S..... em 30.07.2015, seja o facto respeitante ao eventual montante pago pelo N...... à ré Soccerpromaster, ao abrigo de acordo celebrado entre elas em 17.08.2012, não chegam a adquirir relevo para a decisão da questão fundamental.

Como resulta manifestamente do Acórdão recorrido, a questão fundamental revolveu em torno do valor e da interpretação a dar ao acordado entre a autora / recorrente e a ré / recorrida, em 28.07.2015, no acordo denominado “Declaração de quitação”, onde a autora / recorrente declara “para os efeitos tidos por convenientes que após a boa cobrança de EUR 100.000,00 (cem mil euros) ilíquidos nada mais terá a receber, seja a que título for, da empresa Soccerpromaster – Gestão de Carreiras Desportivas, Lda (doravante Soccerpromaster), com sede na Rua Simão Bolívar, 123, Loja 57, 4470-214, Maia e NIF 510 130 496, no que respeita a uma eventual e futura transferência do atleta AA, atualmente com contrato de trabalho desportivo em vigor com a SAD do N.......” bem como “que o presente instrumento substitui todo e qualquer acordo verbal e/ou escrito anteriormente assinado e/ou assumido entre esta empresa e a Soccerpromaster e que só poderá ser alterada: i) por via escrita e ii) com o acordo da Soccerpromaster”.

Vendo bem, tendo em conta o pedido formulado pela autora / recorrente (i.e., que a autora / recorrente pretende que lhe seja reconhecido o direito a receber da ré / recorrente certa quantia alegadamente correspondente a uma percentagem do valor recebido por esta pela transferência do AA), nunca os factos em causa poderiam ser simplesmente factos “instrumentais” ou “complemento ou concretização dos que as partes [houvessem] alegado” no sentido do artigo 5.º, n.º 2, als. a) e b), do CPC. Tendo em conta o pedido formulado pela autora / recorrente, tanto o montante alegadamente recebido pelo N...... e entregue pelo S..... no âmbito do contrato denominado “Transfer Agreement”, como o montante alegadamente pago pelo N...... à Soccerpromaster no âmbito do contrato denominado “Acordo” e visando a partilha de direitos económicos sobre o futebolista AA seriam, a ser alguma coisa (i.e., se tivessem sido expressamente alegados), factos essenciais no sentido no n.º 1 do mesmo preceito. Em síntese e para o que interessa: não tendo sido alegados, não se convertem em instrumentais ou complementares.

Relativamente ao disposto no n.º 4 do artigo 607.º do CPC, diga-se que o dever de o juiz declarar quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados se circunscreve aos alegados pelas partes e àqueles que cumpram os requisitos do n.º 2 do artigo 5.º do CPC, o que, como se demonstrou, não é o que sucede com os factos em causa.

Chegados aqui, é possível concluir que o Tribunal recorrido actuou em conformidade com a lei processual aplicável, designadamente os artigos 5.º, n.ºs 1 e 2, e 607.º, n.º 4, do CPC, e de forma nenhuma a desrespeitou, devendo, consequentemente, improceder a questão suscitada no recurso.

Em jeito de esclarecimento ad latere, sempre se acrescenta que a circunstância de o Tribunal da Relação ter decidido não ter modificado a decisão sobre a matéria de facto tal como definida pelo Tribunal de 1.ª instância não constitui – não pode constituir – indício de que aquele não exerceu – ou exerceu mal – os poderes que a lei lhe confere neste âmbito. Veja-se que no n.º 1 do artigo 662.º do CPC se dispõe que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se – só se – os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem – sublinhe-se: impuserem – decisão diversa. Quer dizer: o Tribunal da Relação só está sujeito ao dever de alterar a decisão sobre a matéria de facto quando considere que isso é necessário e adequado.

Julga-se, em síntese, improcedente a presente revista na parte de que cabia conhecer.


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Julgando-se improcedente a revista nesta parte (respeitante à decisão de facto) e não tendo sido interposta revista excepcional quanto à parte restante (respeitante à decisão de direito), como se explicou acima, não se pode conhecer dela nesta revista, uma vez que a isso obsta a dupla conforme.



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III. DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

1.º) negar provimento à revista e confirmar o Acórdão recorrido na parte respeitante à decisão sobre a matéria de facto; e

2.º) julgar inadmissível o recurso na parte respeitante à decisão de direito.


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Custas da revista pela recorrente.


Atendendo à simplicidade do recurso e à conduta processual das partes, dispensa-se o pagamento de 75% do remanescente da taxa de justiça (artigo 6.º, n.º 7, do RCP).



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Lisboa, 9 de Dezembro de 2021



Catarina Serra (relatora)

Rijo Ferreira

Cura Mariano

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[1] Sublinhados nossos.
[2] Sublinhados nossos.
[3] Sublinhados nossos.
[4] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2020 (6.ª edição), p. 416 (sublinhados do autor).
[5] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, cit., pp. 416-418 (sublinhados do autor).