Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
15/11.3PEALM.L5.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: HOMICÍDIO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
ARMA
MEIO PARTICULARMENTE PERIGOSO
CRIME DE PERIGO COMUM
AGRAVAÇÃO
PENA DE PRISÃO
Data do Acordão: 06/29/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. Os crimes de perigo comum a que se refere a al. h) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal são os crimes previstos nos artigos 272.º a 286.º do mesmo Código, especialmente o incêndio, a explosão e outras condutas especialmente perigosas ou danos em instalações. O n.º 3 do artigo 86.º da Lei das Armas (Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, que revogou o artigo 275.º do Código Penal), aditado pela Lei n.º 17/2009, de 6 de maio, não contém norma incriminadora de crime de perigo comum.

II. O uso de uma arma de fogo, que é um meio perigoso ou muito perigoso, não constitui, nas circunstâncias do caso, um “meio particularmente perigoso” para efeitos da qualificação do homicídio pela al. h) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal. Como se tem decidido, um meio particularmente perigoso há de ser um meio (instrumento, método ou processo) que, para além de dificultar de modo exponencial a defesa da vítima, é suscetível de criar perigo para outros bens jurídicos importantes; tem que ser um meio que revele uma perigosidade muito superior ao normal, marcadamente diverso e excecional em relação aos meios mais comuns que, por terem aptidão para matar, são já de si perigosos ou muito perigosos, sendo que na natureza do meio utilizado se tem de revelar já a especial censurabilidade do agente, estando, assim, afastados da qualificação os meios, métodos ou instrumentos mais comuns de agressão que, embora perigosos ou mesmo muito perigosos (facas, pistolas, instrumentos contundentes) não cabem na estrutura valorativa, fortemente exigente, do exemplo-padrão.

III. Não ocorrendo “dupla valoração” do uso da arma de fogo, há que aplicar o artigo 86.º, n.º 3, da Lei das Armas quando se mostre preenchido o tipo de crime de homicídio qualificado (artigos 131.º e 132.º do Código Penal), o que, neste caso, resulta da verificação das circunstâncias das alíneas a) e e) do n.º 2 do artigo 132.º, reveladoras de especial censurabilidade ou perversidade.

IV. O uso de arma, comportando um fator de agravação da ilicitude em função da perigosidade para um bem jurídico ou para uma série de bens jurídicos criminalmente protegidos, não constitui elemento típico do crime de homicídio – sendo um crime de execução livre, ao tipo de homicídio é indiferente a forma como o resultado morte é provocado – e não leva ao preenchimento de circunstância qualificativa do tipo de crime do artigo 132.º do Código Penal.

V. As circunstâncias relativas aos graus de ilicitude e de violação dos deveres impostos na relação do arguido com a vítima, sua filha, ao modo de execução do crime e às suas consequências, que deixaram a vítima na condição de tetraplégica, as quais relevam por via da culpa e, consequentemente para a definição dos limites desta (artigo 40.º do CP), mostram a extrema gravidade do facto praticado, com um peso determinante na fixação da medida da pena.

VI. O modo de execução do facto não deixa de revelar, apesar do contexto social e familiar, consideráveis qualidades desvaliosas de personalidade e falta de preparação do arguido para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [n.º 2, al. f) do artigo 71.º do CP], que releva negativamente, de forma severa, quer por via da culpa quer em vista das exigências de prevenção especial de ressocialização.

VII. Assim, ponderando os comprovados fatores relevantes para a determinação da pena, nos termos do artigo 71.º do Código Penal, tidos em conta no acórdão recorrido, não se encontra fundamento que justifique um juízo de discordância relativamente à decisão sobre a medida da pena de 17 anos de prisão aplicada pela prática do crime de homicídio qualificado na forma tentada, a qual, na consideração desses fatores, não se mostra fixada em violação dos critérios de proporcionalidade legalmente impostos.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I.  Relatório

1. AA, arguido, com a identificação que consta dos autos, interpõe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão de 28.09.2022 do Tribunal da Relação de Lisboa, que, negando provimento ao recurso do acórdão de 01.04.2022 do tribunal coletivo do Juízo Central Criminal ... – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, confirmou a sua condenação pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p., pelos artigos 131.º, 132.º, n.º 2, alíneas a) e e), e 22.º, do Código Penal e artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º. 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 17 (dezassete) anos de prisão e no pagamento à demandante da quantia de € 104.251,80, a título de danos patrimoniais já liquidados e de danos morais sofridos.

2. Discordando da agravação resultante da aplicação do artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º. 5/2006 e da pena aplicada, pretendendo a redução desta para medida não superior a 8 anos de prisão, apresenta motivação, de que extrai as seguintes conclusões (transcrição):

“A) De acordo com o douto acórdão ora recorrido foi negado provimento ao recurso interposto pelo ora Recorrente, confirmando integralmente o acórdão recorrido.

B) No que respeita à aplicação do Art.º 86 n.º 3 da Lei n.º 5/2006 de 23/2, considerou o Tribunal da Relação de Lisboa que no caso de homicídio funciona a agravação do Art.º 86 n.º 3 do RJAM porque não está prevista a agravação com arma de fogo no cometimento do crime que implica fazer uso de arma para a execução do crime, enquanto arma de fogo.

C) Não existindo assim fundamento para afastar a agravação prevista no Art.º 86, n.º 3 da Lei 5/2006 de 23/2 quando o uso de arma de fogo, não sendo elemento do crime de homicídio não leva ao preenchimento do tipo qualificado do Art.º 132 do CP.

D) No que respeita à medida de pena, considerou o Tribunal da Relação de Lisboa que nada havia a apontar ao douto acórdão recorrido que procedeu à correcta selecção dos elementos factuais, identificação das normas legais aplicáveis, ponderação dos critérios atendíveis, tudo justificando de facto e de direito.

E) Não pode, no entanto, o ora Recorrente, salvo o devido respeito, concordar com tais entendimentos, pois

F) E no que respeita à medida da pena, em virtude do crime ter sido praticado na forma tentada tem a pena máxima e mínima aplicável a redução de 1/3 (um terço) ficando a moldura penal fixada em 2 (dois) anos, 4 (quatro) meses e 24 (vinte e quatro) dias a 16 (dezasseis) anos e 8 (oito) meses de prisão.

G) Entendeu o Tribunal “A quo” proceder à agravação desses limites em 1/3 (um terço) por aplicação do n.º 3 do art.º 86 da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, ficando com uma moldura penal de 3 (três) anos 2 (dois) meses e 12 (doze) dias de prisão a 22 (vinte e dois) anos, 2 (dois) meses e 20 (vinte) dias de prisão.

H) Ora, no caso vertente o crime em causa foi praticado com uma arma, na al. g) [atual al. h) do n.º 2] do art.º 132 do C. P. uma das circunstâncias que levam à punição por homicídio qualificado e o de praticar o facto utilizando meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum.

I) Sendo uma arma um meio particularmente perigoso e que se traduz na prática de um crime de perigo comum, entende-se já o Arguido estar a ser condenado pela utilização da arma ao abrigo do disposto no art.º 132 do C. P.

J) Não podendo a moldura penal obtida ser agravada em 1/3 (um terço) pela aplicação da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro.

K) Já que, na realidade, isso se traduz numa dupla agravação da pena que penaliza injustificadamente o Arguido, por muito que os Venerando Juízes Desembargadores do na da Relação de Lisboa afirmem o contrário, a verdade é que a sua fundamentação não explica a dupla agravação que ocorre na situação em apreço, que claramente viola o determinado na lei.

L) Devendo assim o Arguido, quanto muito, ser condenado dentro de uma moldura penal situada entre os 2 (dois) anos, 4 (quatro) meses e 24 (vinte e quatro) dias a 16 (dezasseis) anos e 8 (oito) meses de prisão, isto por aplicação do disposto no artº 132 do C. P.

M) E ainda que assim não se entenda sempre se dirá que a pena aplicada ao Arguido, face ao supra exposto é demasiado gravosa face aos meios de determinação da medida da pena elencadas no art.º 71 do C. P., pois

N) Desde logo não corresponde à verdade que o Arguido tenha agido de forma fria e calculista, não manifestando qualquer respeito pela vida, pois a verdade é que o Arguido estava muito alterado, em desespero, com o comportamento da filha.

O) O Arguido deixou a filha sozinha devido ao desnorte que sentiu, tendo chamado a sua outra filha ao local, para ele a filha estava morta e nada mais havia a fazer.

P) A Médica Psiquiatra no seu primeiro depoimento diz que ele se mostra nas consultas: “Com um profundo arrependimento antes tivesse sido eu” (gravado através de sistema de integração digital, disponível na aplicação informática em uso neste tribunal de 15:49:56 a 16:20:52 em 10:40 a 11.00), o que denota arrependimento e interiorização do desvalor da sua conduta.

Q) Tudo isto, devidamente ponderado, dá, claramente uma pena mais reduzida ao Arguido.

R) Bem analisada a situação, nenhum dos intervenientes, Arguido e Ofendida, será totalmente culpado ou totalmente isento de culpa, pelo que, aqui ao determinar a medida da pena a aplicar ao Arguido há que ponderar todos esses factores de modo a obter uma pena objetivamente justa e não uma pena emocionalmente justa que é o que acontece à pena aplicada.

S) Onde só foi ponderada a culpa do Arguido e não todos os factores que efetivamente o conduziram à prática do acto, o que acaba por violar o disposto no art.º 71 do C. P

T) Face ao exposto e em conclusão, entende-se que a o douto acórdão ora recorrido viola o disposto na al g) do nº 2 do art.º 132 e o disposto no art.º 71 todos do C. P

U) Entende-se assim que deve ser dado provimento ao presente recurso e consequentemente deve ser alterado o douto acórdão ora recorrido no sentido de reduzir a pena de prisão fixada ao arguido, de acordo com os atos por ele praticado e tendo em atenção todos os factos atenuantes da sua conduta, não devendo a mesma exceder os 8 anos de prisão.»

3. Respondeu o Ministério Público, convocando o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 18.01.2012, proferido no processo n.º 306/10.0JAPRT.P1.S1 (em www.dgsi.pt), e concluindo pela improcedência do recurso e pela confirmação do acórdão recorrido, nos seguintes termos (transcrição):

«1. No caso dos autos impõe-se a aplicação da agravação do art.º 86. °, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23/2.

2. Não existem fundamentos para se poder reduzir a medida concreta da pena de prisão aplicada ao Recorrente, entendendo-se que a pena de prisão aplicada ao Recorrente foi sábia e criteriosamente aplicada, mostrando-se adequada, justa e proporcional, não existindo nenhuma razão de ser para as críticas que o Recorrente dirige à determinação da medida concreta da pena em referência.

3. O Acórdão recorrido no procedimento tendente à determinação da pena atendeu às finalidades da punição consignadas no artigo 40.º do Código Penal e no que diz respeito à escolha e determinação da pena e da respectiva medida, observou os critérios estabelecidos nos artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal.

4. O Acórdão recorrido não violou qualquer preceito legal.

5. Nestes termos, deve negar-se provimento ao Recurso interposto e, consequentemente, manter-se, na íntegra, o Acórdão recorrido.»

4. Respondeu também a assistente, BB, concluindo dever negar-se provimento ao recurso, dizendo:

«I - No caso dos autos o uso da arma não levou à qualificação do crime, não havendo por isso fundamento para afastar a agravação prevista no artigo 86º, nº 3, da Lei 5/2006 de 23-02.

II – Não existem quaisquer fundamentos para reduzir a pena aplicada ao arguido atendendo ao grau de ilicitude, ao modo de execução do crime e à gravidade das suas consequências.

III – O acórdão recorrido não violou nenhum preceito legal.»

5. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitido parecer também no mesmo sentido, fazendo-o nos seguintes termos (transcrição parcial):

«(...)

2. (…) Diz o recorrente que o Tribunal Colectivo – no que foi sancionado pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa –, ao declarar a referida agravação do “homicídio qualificado”, sob a forma tentada, o puniu duplamente, por dupla valoração do uso da arma de fogo como instrumento do crime, em violação do princípio da consunção e do ne bis in idem.

3. E para assim o defender, o recorrente constrói, verdadeiramente, uma ficção, com todo o respeito.

Como seja:

Sendo a arma em causa um meio particularmente perigoso e que se traduz na prática de um crime de perigo comum, entende estar já a ser condenado pela utilização da arma ao abrigo do disposto no artº 132 do Código Penal. 3

Diz, todavia, o Ministério Público que o recorrente não tem razão.

Primeiramente, porque não está inscrito na natureza das coisas (e, assim, deva razoável para o Direito) que uma arma de fogo (nomeadamente a usada), para além da letalidade inerente à necessária idoneidade para matar, haja de ser um meio particularmente perigoso (não é referido se a pistola estava ou não legalizada), como o seria, claramente, uma granada de mão, um engenho explosivo, uma metralhadora pesada, etc.

Depois, porque ainda que se revestisse dessa particular perigosidade, o uso da arma, só por si – sendo um elemento de ponderação atinente não apenas ao ilícito, mas também à culpa – não qualificaria automaticamente o homicídio.

4. E assim o entenderam as Instâncias, pois que o arguido foi condenado por “homicídio qualificado”, agravado, na forma tentada, p. e p. nas disposições dos arts. 22.º, 131.º e 132.°/2-a) e e) do Código Penal e 86.°/3 da L-5/2006, de 23/02, que não pela alínea h) – e não g), como, por lapso, escreve o recorrente.

5. Ou seja:

Na hipótese de concurso de normas que o recorrente invoca, o fenómeno consumptivo apenas se revelaria, pelo afastamento da aplicação da norma menos severa pela que estabelece uma punição mais grave, se pudesse afirmar-se, de forma pertinente, que o desvalor da conduta que constituísse a previsão do primeiro preceito legal fosse abarcado já pelo concreto juízo de ilicitude em que se revelasse o segundo preceito jurídico-penal (lex consumens derogat lex consumpta).

6. Hipótese que se verificaria – decaindo do plano dos princípios ao da realidade empírico-prática – se o bem-jurídico que enforma o “concreto sentido de ilicitude e de culpa” que dá corpo à tipificação do crime de “homicídio qualificado” estivesse numa relação de identidade ou de equivalente (ou de superior) densificação do que preside à agravação induzida pela disposição do art.º 86/3 da L-5/2006, de 23/02, no caso de ser cometido com arma.

7. Não foi o caso.

Ao atentar contra a ofendida, ainda que usando a arma (de forma legal ou não), o arguido afrontou, mesmo que num estado prévio, o bem-jurídico-penal “vida humana”;

Ao deter e usar a arma como instrumento de execução do crime (qualificado ou não), o arguido atentou acrescidamente contra o sentimento de segurança da comunidade, que receia a proliferação das armas, especialmente como instrumentos da prática de crimes, a que razões de política criminal respondem com a agravação (pelo elevar do desvalor objectivo) de qualquer tipo-de-crime, de natureza pessoal ou patrimonial.

Não há, pois, aquela relação de identidade ou de parcial sobreposição.

8. Tal agravação apenas não ocorre – segundo a previsão (supérflua, em face dos muito antes reconhecidos princípios de proibição da dupla valoração ou do ne bis in idem, com expressão positivada no âmbito da previsão do concurso, aparente, de normas, seja pela via das relações de especialidade e subsidiariedade, seja pela da consunção, com expressão positivada na disposição do art.º 30.º/1 do Código Penal) da Lei das Armas – …se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma (cfr, a parte final do referido art.º)

9. Em síntese:

Não eram, na verdade, unificáveis da forma invocada os juízos (segmentários) de censura a dirigir ao arguido no contexto fáctico-normativo em causa, porquanto se evidenciava que, pela sua actuação, foi afrontada a eficácia de ambas as normas jurídico-penais em discussão (arts. 132.º/2-a) e e) do Código Penal e 86.º/3 da Lei das Armas), que, na sua génese ética e ontológica, se pretendem comunitariamente preservadas.

10. Veja-se, neste sentido, o Ac. STJ, 25.11.2020, P-1302/19.8JABRG.S1:

I.- A qualificação do crime de homicídio investida no artigo 132.º do Código Penal emerge de um incremento adensado da intencionalidade e das circunstâncias atinentes ao comportamento subjectivo e/ou objectivo do agente. São circunstâncias antepostas e circunstancias à acção que inculcam e induzem atitudes de ser e estar do agente perante a vítima, de modo de agir e realizar a acção, do seu planeamento, do estado de relacionamento social-familiar existente entre o agente e a vítima, de satisfação pessoal de instintos e emoções despojadas de sentir e agir humano, ou seja de uma atitude do agente perante o valor da vida e de factores circunstanciais que lhe conferem, pela proximidade e especial relacionamento do agente com a vítima um especial respeito e/ou um distanciamento e alheamento do valor da vida que reverberam um especial desvalor da atitude e uma incapacidade de acolher valores de respeito e asseguramento da vida humana. Instigam, como resulta da representação intelectual-cognitiva que inculcam, uma propensão do individuo perante o significado individual da vida a relevar na aferição da culpabilidade do acto.

II.– A agravação da punição cominada no preceito incriminador pela detenção da arma não se destina a sancionar a detenção da arma, mas a agravar o desvalor da acção pelo meio utilizado, a arma proibida. Não ocorre, no caso, uma dupla valoração – entre a incriminação pelo crime de detenção de arma proibida e a circunstância de o crime de homicídio sofrer uma agravação na sua moldura legal – dado que a agravação cominada na norma repercute uma censura do sistema penal pela utilização de um meio fatalmente letal e com uma aptidão lesiva de capacidade e inserção superior a qualquer outro meio apto a lesionar o corpo de um ser humano.

A exasperação da moldura penal do tipo de homicídio qualificado (agravamento em 1/3, pelo uso de uma arma) – em verificação de uma especial censurabilidade e perversidade – ocorre desde que se verifique qualquer das circunstâncias (descritas nos exemplos ou outras (atípicas, por não descritas e contempladas no exemplos expostas), que o julgador venha a considerar, por se poderem reconduzir aos conceitos inscritos no pórtico definidor da qualificação, desde que o crime tenha sido perpetrado e realizado com uma arma. A agravação pela utilização da arma na realização da acção criminosa é um factor exterior e exógeno ao circunstancialismo exemplificativo que integra os conceitos de especial censurabilidade e perversidade impostado no cometimento e realização do ilícito-típico. A utilização de uma arma, na perspectiva político-criminal que lhe conferimos, ocorre - independentemente do tipo de crime – e como elemento, que embora ligado ao modo de realização do crime, cumpre uma função de sentido e alcance geral-preventivo, isto é, não interfere na densificação da culpabilidade do agente e não bule com a formação e “mensuração” do factor culpa na densificação dos conceitos de especial censurabilidade e perversidade, no caso do tipo de homicídio (qualificado). (parágrafos nossos).

11. E também, agora em modo de lógica comparativa (relação de concurso real do crime de “homicídio”, agravado, com o crime de “detenção de arma proibida”), o Ac. do STJ de 30.10.2014, Processo 32/13.9JDLSB.E1.S1:

‘XIII — O arguido não foi punido pelo crime de homicídio simples, mas pelo crime de homicídio agravado pelo uso de arma, ao abrigo do art. 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006. E também aqui não se pode concluir pela inadmissibilidade do concurso de crimes. Trata-se da punição de condutas distintas — enquanto que a agravação prevista no art. 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, pune de forma mais grave uma conduta com uma maior ilicitude sempre que o agente usa na prática do crime uma arma, independentemente de a arma ser proibida ou não, ser legal ou não; no crime de detenção de arma proibida são punidos todos aqueles que detém arma fora das condições legais e independentemente de a arma ser ou não usada na prática do crime.’

Não foi posto em crise o princípio do ne bis in idem.

B) - Medida da pena.

(…)

2. Continua a discordar o recorrente, agora com a pena que lhe foi aplicada, que considera demasiado gravosa – porque acima dos 08 anos de prisão –, em virtude, no essencial, de:

N) - Desde logo não corresponde à verdade que o Arguido tenha agido de forma fria e calculista, não manifestando qualquer respeito pela vida, pois a verdade é que o Arguido estava muito alterado, em desespero, com o comportamento da filha.

R) - Bem analisada a situação, nenhum dos intervenientes, Arguido e Ofendida, será totalmente culpado ou totalmente isento de culpa, pelo que, aqui ao determinar a medida da pena a aplicar ao Arguido há que ponderar todos esses factores de modo a obter uma pena objetivamente justa e não uma pena emocionalmente justa que é o que acontece à pena plicada. (cfr, págs. 09-10 das alegações).

3. Contrapomos nós, todavia, que as concretas circunstâncias da prática do crime, com relevância ao nível da formulação dos juízos de ilicitude e de culpa (que constam dos factos-provados e são ponderadas na douta fundamentação) – valoradas, pois, à luz dos critérios tipológicos previstos na disposição do art.º 71.º do Código Penal para a determinação da pena –, permitem a conclusão de que a pena concretamente aplicada se mostra, adentro da sua moldura abstracta (03 anos, 02 meses e 12 dias a 22 anos, 02 meses e 20 dias de prisão), justa e criteriosa (com adequação e proporcionalidade), dando expressão acertada e suficiente às exigências da prevenção especial e geral – integrada esta pela ideia da culpa.

4. Primeiramente, impõe-se precisar:

Embora a actuação fria e calculista diga, efectivamente, respeito à Questão-de-Direito, com todo o respeito – trata-se de matéria conclusiva, com densa relevância jurídico-penal, a extrair dos factos, recebendo, até, por vezes, consagração legal (cfr, desde logo, o art. 132.º/2-j) do Código Penal) –, entendemos que, sendo um atributo do ser-que-age, se encontra manifestamente presente na execução do facto-crime cometido, conforme se extrai de toda a factualidade provada, que aqui não vamos reproduzir, sob pena do exercício do supérfluo.

5. Depois, diga-se que não é viável, nesta sede e no modelo de recurso interposto, pretender invocar e reavaliar, perante um Tribunal que apenas conhece de direito, prova documental, pericial ou testemunhal (ou outra), mormente o depoimento da Médica-Psiquiátrica.

6. Cremos, então, ser ainda de acentuar:

A clara falta de arrependimento, o que, aliás, o arguido renova nesta sede, ao falar de uma repartição da “culpa”, como se a vítima, sua filha, não tivesse ainda hoje o direito de (sem fazer um mea culpa) namorar com quem quer que seja sem correr o risco de estragar os sonhos de outros e levar um tiro;

A forma desprendida como o arguido, em acto seguido à execução do crime, abandonou o corpo da filha, que julgou sem vida;

A relativização da idade e a da ausência de antecedentes criminais do arguido, pois que sendo o factum a matriz lógica e ontológica (genética) essencial do Direito Penal, apenas de forma lateral e mitigada considerações que lhe sejam exteriores poderão ser erigidas em critérios da valoração atinente à fixação da pena concreta, sem nunca poderem conduzir à absoluta substituição do agir pelo ser como objecto da censura jurídico-criminal.

7. Por outro lado, parece inegável que a “imagem global do facto”, pela sua etiologia e pela sua concreta significação ético-social, ultrapassa, de forma sensível, o juízo de desvalor que o legislador-penal assacou típica e medianamente ao acto de quem voluntariamente tenta matar outrem, ainda que sua filha e por razões torpes (cfr, o art. 132º/1 do Código Penal).

Não violou a douta decisão recorrida o disposto no art.º 71.º do Código Penal.

Em síntese:

Não foi posto em crise o princípio do nen bis in idem pela pretensa dupla valoração do uso da arma no cometimento do crime;

A pena concreta mostra-se justa e criteriosa.

III - Em conclusão:

Motivo por que o Ministério Público dá Parecer que:

Deve o presente recurso ser julgado improcedente, manteando-se os termos da decisão recorrida.»

6. Notificado para responder, nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido nada disse.

7. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso foi julgado em conferência – artigo 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

II. Fundamentação

8. O tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:

«1 - A assistente combinou com o seu pai, o aqui arguido, que no dia 9 de Abril de 2011, sábado, estaria em casa, sita na Rua ..., ..., para almoçar na sua companhia.

2 - Nesse dia, cerca das 14H00, por a BB ainda não ter chegado, o arguido telefonou-lhe, ficando então a saber que ela ainda se encontrava em ... e que estava a almoçar em casa dos pais do namorado. A BB disse-lhe que se tinha atrasado mas que iria para casa logo depois do almoço.

3 - O arguido ficou zangado pelo facto da BB não ter ido almoçar com ele, tal como combinado e também pela circunstância de se encontrar a almoçar com a família do namorado, tendo entendido tal atitude como um sinal de abandono e de falta de respeito para com a sua pessoa, considerando que a filha o estava a trocar por aquelas pessoas.

4 - Já a caminho de casa, quando se encontrava na zona de ..., a BB telefonou ao pai a informá-lo que estava quase a chegar.

5 - O arguido opunha-se à relação de namoro da filha por entender que o CC não estava à sua altura por aquela ser médica e este ser empregado fabril, divorciado e pai de um filho. Não aceitara tal relacionamento e sentia-se desgostoso com o mesmo.

6 - No mesmo dia, cerca das 16H00, a BB chegou a casa e dirigiu-se de imediato à cozinha, onde o pai foi ter com ela. Envolveram-se ambos em discussão, no decurso da qual, o arguido acusou a filha de o estar a abandonar e de o trocar pelos pais do namorado, ao que ela lhe disse que tal não era verdade e que tinha que viver a vida dela.

7 - Nessa sequência, o arguido, dirigindo-se à BB, disse-lhe: "Mato-te já", após o que saiu da cozinha, regressando pouco depois com uma pistola pistola semi-automática de marca CZ, mod. Duo, calibre 6,35 mm, "Browning" (.25ACP ou .25AUTO), com o n.º de série ...22.

8 - De imediato apontou tal pistola na direcção do corpo de BB, a uma distância de cerca de 1 metro e efectuou 4 disparos, tendo 3 atingido a ofendida, um projéctil no lado esquerdo do pescoço e dois projécteis no ombro esquerdo.

9 - Após, o arguido proferiu as palavras: "pronto, matei-te" e abandonou a assistente, a esvair-se em sangue, saindo de seguida da residência e dirigindo-se no seu veículo automóvel na direcção da ..., vindo a ser detido.

10 - Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, BB, sofreu:

- fractura cominutiva envolvendo a base do crâneo à direita, ao nível da região temporo-pterional, que atingiu a cavidade glenoideia e do côndilo mandibular;

- pequenos focos gasosos de pneumocefalia;

- pequenos traços fracturários da parede lateral do seio maxilar direito alinhados; - sinais sugestivos de um misto de hemossinus e de sinusopatia inflamatória;

- etmoido-maxilar bilateral e frontal e esfenoidal à direita;

- a nível da ráquis cervical observam-se fracturas cominutivas envolvendo a vértebra C5, que atingiu a vertente superior da lâmina direita e do hemicorpo esquerdo, com múltiplas esquirolas ósseas intracanalares e focos gasosos epidurais intracanalares, bem como enfisema das partes moles posteriores à direita;

- fractura posterior do corpo vertebral de D11;

- hematoma cervical posterior direito, paravertebral

- enfisema subcutâneo cervical posterior direito e no ombro esquerdo;

- hemoperitoneu de pequeno volume, de forma mais expressiva nos quadrantes esquerdos do abdómen e da cavidade pélvica a que se associa pequena fractura na face externa do baço numa extensão aproximada de 15 mm;

- derrame pleural bilateral de pequeno volume e de natureza provavelmente hemática, mais evidente à esquerda, condicionando colapso pulmonar passivo adjacente;

- enfisema subcutâneo na parede lateral direita do tórax e do abdómen.

11 - As lesões causadas pelo arguido a BB são causa directa e necessária para a condição de tetraplégica em que esta se encontra.

12 - A conduta do arguido, as zonas atingidas do corpo de BB e as lesões verificadas são idóneas a produzir o resultado morte.

13 - O arguido, ao disparar a arma contra BB teve a intenção de atingir a cabeça, o pescoço e o tórax desta, sabendo tratar-se de zonas que alojam órgãos vitais para a vida humana, antevendo as consequências que resultariam dos disparos que efectuou.

14 - O arguido quis tirar a vida de BB e sabia que a sua conduta, quer pelo meio utilizado, quer pelas zonas atingidas, quer pela curta distância a que efectuou os disparos, era adequada a causar-lhe a morte, a qual não se concretizou por razões alheias à vontade do arguido.

15 - Como consequência do descrito em 3 e 5 dos factos provados o arguido revelou desprezo pela vida da sua própria filha e decidiu matá-la por se opor à relação de namoro da mesma e às suas escolhas de vida (facto resultante da prova produzida na sequência do novo julgamento restrito às questões fixadas no douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05/02/2013).

16 - O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente. Sabia que a sua conduta era prevista e punida por lei.

17 - Não tem antecedentes criminais.

18 - A BB viveu sozinha com o arguido desde os 13 anos de idade, existindo entre ambos fortes laços afectivos.

19 - A nível financeiro a vida do arguido e da assistente era muito regrada de forma a que pudessem fazer face a todas as despesas. O arguido fazia sacrifícios económicos para que nada faltasse à filha.

20 - Era o arguido que fazia toda a lide da casa de modo a permitir que a BB se dedicasse apenas aos estudos.

21 - O arguido tinha um grande orgulho na filha, sendo um pai dedicado que sentia grande afecto e carinho pela BB.

22 - Quando a BB foi viver para ..., o arguido sentiu-se muito sozinho.

23 - Passou a confeccionar a comida para a filha que a levava quando ia a casa ao fim de semana.

24 - Depois de viver em ..., a BB nem sempre atendia o telefone quando o pai lhe ligava e deixou de cumprir com tudo aquilo que combinavam.

25 - O arguido apercebeu-se que a filha andava a sair com o CC e confrontou-a com esse facto o que ela, inicialmente negou, acabando por o admitir algum tempo antes dos factos.

26 - A assistente já tinha tido um outro namorado com o conhecimento do arguido.

27 - O arguido zangava-se com a ofendida quando ela, a viver em ..., saía sem lhe dizer.

28 - O arguido teve treino de tiro e experiência com armas.

29 - Após os factos o arguido beneficiou de apoio psicológico e psiquiátrico que perdura até à presente data.

30 - À data encontrava-se desgostoso com o comportamento da filha e zangado com ela. Manifesta traços obsessivos de personalidade e um pensamento obsessivo em relação à filha.

31 - À data dos factos o arguido tinha queixas angodepressivas, incluindo: humor deprimido na maior parte do dia, quase todos os dias; interesse ou prazer diminuídos por quase todas as actividades na maior parte do dia, quase todos os dias; diminuição do apetite; insónia; capacidade diminuída de pensar ou concentrar-se, ou indecisão, quase todos os dias (facto resultante da prova produzida na sequência do novo julgamento restrito às questões fixadas no douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05/02/2013).

32 - Estes sintomas causavam-lhe sofrimento clinicamente significativo e prejuízo no funcionamento social/ocupacional (ex: não se sentia capaz de cuidar da neta) (facto resultante da prova produzida na sequência do novo julgamento restrito às questões fixadas no douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05/02/2013).

33 - Este quadro clínico é compatível com um diagnóstico de Episódio Depressivo Major, episódio simples, de grau leve a moderado, sem sintomas psicóticos, e sem prejuízo da sua capacidade de se autodeterminar e do seu juízo crítico em relação ao acto que praticou supra descrito (facto resultante da prova produzida na sequência do novo julgamento restrito às questões fixadas no douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05/02/2013).

Condições sociais e pessoais do arguido

34 - O arguido nasceu na zona de ..., no seio de uma família numerosa – 6 filhos – de baixa condição socioeconómica. A mãe era vendedora ... e o pai ....

35 - Concluiu o 4.º ano de escolaridade não lhe sendo possível prosseguir os estudos dada a fragilidade económica da família. Trabalhou com o pai até aos 14 anos, idade em que passou a exercer a actividade de ajudante numa farmácia. Ficou, desde então, fascinado pelas pessoas de "bata branca", "doutores", que admirava e considerava como pessoas superiores. Trabalhou também em várias oficinas e indústrias, tendo aprendido o ofício de soldador.

36 - O pai era pessoa muito rígida e controladora, sendo que o arguido cresceu em ambiente caracterizado pelo cumprimento dos valores tradicionais, católicos e conservadores.

37 - Aos 20 anos, o arguido ingressou na ... para cumprimento do serviço militar obrigatório, tendo posteriormente integrado os quadros da ..., onde trabalhou até à sua reforma. A sua patente é de ... e exerceu primordialmente funções de motorista, sendo o seu desempenho profissional avaliado como adequado, tanto a nível das funções exercidas como da relação com os seus superiores.

38 - Já na ... casou com a mãe da sua filha mais velha, tendo a separação do casal ocorrido cerca de 18 meses após o nascimento desta. A criança viveu primeiro com os avós paternos e, a partir dos 8 anos de idade, com a mãe, mantendo contactos com o arguido aos fins-de-semana. A filha descreve-o como um pai presente, atento e apoiante.

39 - Após o divórcio, o arguido iniciou relacionamento amoroso com a mãe da assistente, com quem veio a casar. O casamento foi descrito como disfuncional e conflituoso, atribuindo o arguido a responsabilidade de tal aos sogros que, segundo o próprio, não respeitavam a privacidade do casal. Quando a BB nasceu o casal estava separado e o arguido vivia nos ..., não tendo assumido de imediato as funções parentais. O casal reconciliou-se quando a BB tinha 2 anos e o divórcio veio a ocorrer quando a mesma contava 10 anos de idade, ficando entregue aos cuidados da mãe.

40 - Posteriormente, quando tinha 13 anos de idade, a BB tomou a decisão de viver com o pai.

41 - O arguido passou a dedicar-se inteiramente à sua filha, tendo optado pela reforma antecipada. Desde cedo projectou na filha o seu fascínio pela medicina, carreira que considerava como a mais nobre. Nesse sentido persuadiu a filha a investir totalmente nos estudos com o objectivo de entrar na faculdade de medicina. Era o arguido que se ocupava da totalidade das lides domésticas, de modo a permitir que a filha se dedicasse exclusivamente aos estudos.

42 - BB descreve o pai como extremamente dedicado e atencioso, reconhecendo a existência de elevada dependência emocional entre ambos. Descreve a figura paterna como cuidadora mas extremamente exigente e controladora. Desconfiado por natureza, controlava todos os passos da filha e das suas amizades, chegando a ser ofensivo com os seus amigos, de quem parecia ter ciúmes. Desencorajava qualquer relação da filha com o sexo masculino, transmitindo-lhe uma ideia negativa dos homens e das suas intenções. Segundo a BB, era frequente o recurso à chantagem emocional, promovendo na jovem sentimentos de culpa que a faziam sentir-se manipulada.

43 - O arguido afirma ter sentido uma felicidade indescritível quando a filha se formou em medicina. Refere porém que, nessa fase, ocorreram algumas atitudes da filha que o terão deixado magoado. A tentativa de autonomia normal para uma jovem da sua idade foi sentida como rejeição e ingratidão, ao que reagia com grande indignação e revolta. Vivenciou com ansiedade e angústia a ida de BB para ... para tirar a especialidade, tendo-se envolvido de forma intensa na escolha da casa e do meio em que a filha iria residir. A única razão pela qual não se mudou para tal cidade foi o ter assumido com a filha mais velha o compromisso de cuidar da sua neta (o que fez desde os 5 meses e até praticamente à data dos factos aqui em causa).

44 - A primeira relação de namoro de BB de que tomou conhecimento constituiu um momento de crise na relação entre o pai e a filha, negando o arguido que condenasse o facto da filha namorar, mas sim o facto de lhe ter escondido a informação, perspectiva essa não partilhada pela BB. O relacionamento da BB com um indivíduo de ..., divorciado e operário fabril, causou grande desilusão e desgosto ao arguido. As baixas qualificações do namorado da BB, o seu estado civil, a sua profissão e a convicção de que o mesmo se pretendia aproveitar da filha, colidiam totalmente com os seus valores morais rígidos e conservadores, desmontando o quadro idílico que criara para o futuro da BB, a quem via casada com um médico ou um juiz.

45 - Nos meses que antecederam os factos, o arguido foi vivenciando, de forma intensa, aquilo que entendia como um progressivo afastamento e rejeição da filha, o que fez aumentar a sua necessidade de controlo. Passou a desconfiar da filha e, segundo afirma, passava todo o dia obcecado com esta e com a relação que ela mantinha. A tensão entre ambos foi aumentando.

46 - Cerca de 2 semanas antes dos factos, o arguido sentia forte ansiedade que o impediam de manter uma vida normal, motivo que o levou a pedir à filha mais velha que integrasse a neta em infantário por entender que se encontrava incapaz de continuar a assegurar os seus cuidados. Uns dias antes dos factos, o arguido foi passar uns dias na companhia da irmã, a ....

47 - O comportamento da BB, na véspera e no dia dos factos foi encarado pelo arguido como actos de desconsideração e ingratidão para consigo.

48 - No que concerne às suas características pessoais, o arguido afigura-se um indivíduo rígido, disciplinado, obstinado, com boa capacidade de autocontrolo, sem características de impulsividade, perseverante, trabalhador, conservador, com boas competências de comunicação e um discurso sofisticado, tendo em conta as suas baixas habilitações literárias. A ansiedade é descrita como um factor permanente e presente na sua personalidade desde muito jovem, assim como um funcionamento tendencialmente obsessivo e perfeccionista. A frustração de não ter prosseguido os estudos parece ter sido canalizada, em forma de investimento na sua filha mais nova, projectando nela os seus desejos e valores e idealizando-a e ao seu futuro.

49 - Descrito como pessoa prestável é também alguém que exige reconhecimento e gratidão a níveis elevados, revelando elevada frustração, sentimentos de revolta e injustiça quando as suas expectativas a este nível não são correspondidas. É visto como pessoa sociável a um nível superficial, não mantendo relações íntimas de amizade.

No EP manteve um comportamento isento de reparos. Sujeito a acompanhamento psicológico e psiquiátrico desde a sua entrada no EP, encontrou-se medicado com ansiolíticos e antidepressivos.

Verbaliza sentimentos de arrependimento pelos seus actos. Apesar da aparente capacidade de censura e autocrítica surgem, no seu discurso, verbalizações de autocomiseração. Parece ter interiorizado racionalmente que os movimentos de autonomia da filha eram naturais e saudáveis para uma jovem adulta e que não significavam um decréscimo de amor pelo pai, porém, do ponto de vista emocional continua a considerar proporcional e normal a intensidade do seu desgosto como reacção ao que considerava actos de “desamor” e ingratidão por parte da BB, acreditando que se tratava de uma reacção normal de qualquer pai na sua situação.

50 - Manteve, após os factos, um juízo crítico em relação aos mesmos, admitindo culpa e considerando ter tido um comportamento moral e socialmente reprovável (facto resultante da prova produzida na sequência do novo julgamento restrito às questões fixadas no douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05/02/2013).

51 - No entanto, apresenta um prejuízo do insight manifesto por uma excessiva vitimização e dramatização, com aparente intuito de se desresponsabilizar pelo sucedido, referindo-se, várias vezes, ao comportamento da vítima como sendo provocador e desrespeitoso (facto resultante da prova produzida na sequência do novo julgamento restrito às questões fixadas no douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05/02/2013).

Pedido cível

52 - A demandante mantém duas balas, uma com topografia superficial subcutânea na linha axilar anterior esquerda e outra com topografia paravertebral dorsal inferior esquerda, alojada junto à cúpula diafragmática, posterior ao fundo gástrico e junto à vertente interna e superior do baço.

53 - No dia 9 de Abril de 2011, a demandante deu entrada no serviço de urgência do H..., onde esteve internada até ao dia 20 de Junho de 2011. Os danos sofridos pela BB implicaram que se submetesse a inúmeros exames e tratamentos diversos e especializados, situação essa que se mantém.

54 - Em 9 de Abril de 2011, apresentava orifícios circulares com lesão térmica, na face anterior do ombro esquerdo e pré-auricular direito e ainda tetraplegia flácida com nível C4, tendo por isso sido submetida a protocolo de corticoterapia e tratamento conservador.

55 - Por insuficiência respiratória foi entubada e posteriormente em 14 de Junho de 2011, traqueostomizada.

56 - Apresentava dismorfia da cavidade glenoide e do côndilo, na posição de boca fechada verifica-se aumento da distância inter-articular e na posição de boca aberta exagerada movimento de excursão anterior e medial do côndilo.

57 - Ao longo deste período de internamento, a demandante sofreu dores físicas intensas.

58 - No dia 21 de Junho de 2011, a demandante foi transferida para o CMR Sul ..., onde permaneceu internada e em tratamento até ao dia 6 de Outubro de 2011.

59 - Na data de admissão apresentava um quadro neuro-motor de tetraplegia AIS A, nível motor C5 bilateral, nível sensitivo C5 à esquerda e nível sensitivo C4 à direita, flacidez dos membros inferiores e distal dos membros superiores. Apresentava arreflexia dos membros inferiores e distal dos membros superiores com RCP em extensão à direita, indiferente à esquerda. Reflexo anal e clitorido-anal presente, sem controlo de esficteres, com regime de perdas urinárias e com treino intestinal em dias alternados com bisacodil.

60 - Os objectivos deste internamento foram treino de equilíbrio de tronco e treino funcional dos membros superiores para escrita no computador e condução de cadeira de rodas eléctrica e avaliação e treino de técnicas para alimentação com ajuda mínima.

61 - Sob supervisão de médico fisiatra, com acompanhamento por medicina interna, pelo serviço social e por dietista foi submetida a um programa de reabilitação intensivo interdisciplinar, realizando tratamento de 6 horas diárias, 6 dias por semana com fisioterapia, terapia ocupacional, psicologia, terapia de fala, enfermagem de reabilitação e enfermagem geral.

62 - Na data da alta, em 6 de Outubro de 2011, a demandante mantinha um quadro neuro-motor de tetraplegia AIS A, nível motor C5 bilateral, nível sensitivo C5 à esquerda, nível sensitivo C4 à direita.

63 - A demandante não tem qualquer suporte familiar que garanta a prestação de cuidados e continuidade de tratamentos pelo que, desde a data da alta que se encontra internada na Unidade de Média Duração e Reabilitação, Liga dos Amigos da Terceira Idade, Centro Comunitário ..., pertencente à rede nacional de cuidados continuados integrados.

64 - A demandante está na instituição em causa a pagar o valor diário de 19,58 € por cada dia de internamento. O período de internamento máximo, de 90 dias consecutivos, já se mostra ultrapassado.

65 - Atenta a sua condição de tetraplégica, a demandante vai ter que continuar a ter tratamentos e acompanhamento especializado. Ao longo da sua vida irá necessitar de assistência diária e permanente de terceira pessoa, encontrando-se em estado de dependência total em todas as actividades da vida diária.

66 - À data dos factos, a demandante tinha 26 anos, era pessoa saudável, alegre, jovial, dinâmica e com uma carreira promissora pela frente.

67 - Em consequência da tetraplegia que apresenta não pode tomar banho sozinha, não pode cuidar da sua higiene pessoal, não pode tomar a sua medicação sozinha, não consegue vestir-se, não se deita nem se levanta sozinha e só se desloca numa cadeira de rodas, necessitando, para todas estas tarefas, de ajuda de terceira pessoa.

68 - Durante o tempo em que está deitada necessita que a mudem de posição de 3 em 3 horas ou com um intervalo menor dependendo da tolerância que apresente do revestimento cutâneo.

69 - Necessita que lhe façam um esvaziamento de bexiga de 3 em 3 horas com uma sonda e tem que ser sujeita a treino intestinal pela introdução diária de medicamento. Tem que ser sujeita a hidratação adequada e vigilância biodiária da integridade cutânea. Tem que ser sujeita a vigilância de sinais e sintomas de disreflexia autónoma.

70 - Necessita e vai continuar a necessitar de usar faixa elástica abdominal para empurrar o diafragma e respirar melhor e meias de compressão até ao joelho para evitar complicações circulatórias sanguíneas nas pernas. Necessita e vai continuar a necessitar de tomar diariamente medicamentos e de aplicar cremes de protecção no corpo para evitar escaras.

71 - Vai necessitar de adquirir sondas de algaliação, intermitente descartáveis, gel lubrificante anestésico se as sondas não forem auto-lubrificantes, sacos de urina, toalhitas para limpeza, medicamentos vários, produtos de higiene e cremes.

72 - A aquisição dos produtos mencionados, as deslocações com vista à realização de exames, consultas, tratamentos, sessões de fisioterapia e o apoio de terceiros com vista ao seu acompanhamento diário vai importar um custo e duração de quantia ainda não apurada.

73 - A mãe da demandante encontra-se disponível para a acolher em casa, não dispondo porém de condições financeiras para adaptar a sua residência às necessidades da demandante, designadamente a colocação de uma rampa de acesso à porta de entrada, substituição de aduelas e portas por outras que permitam a passagem da cadeira de rodas, ampliação da casa de banho, substituição da banheira por um polibã, construção de uma rampa de acesso à base do chuveiro, substituição do lavatório.

74 - Os custos e as necessidades específicas da demandante não se mostram ainda totalmente apurados.

75 - A demandante vai necessitar de adquirir uma cama e um colchão apropriados e um elevador de transferência no valor, respectivamente, de 1.170,00 €, 465,00 € e 850,00 E.

76 - A demandante já pagou a quantia de 4,60 €, correspondente ao pagamento da taxa moderadora de episódio de consulta efectuado em 13 de Setembro de 2011, no H....

77 - A demandante, médica de profissão, concluiu em Julho de 2009, na ..., o curso com uma média de 17 valores.

Encontra-se inscrita na Ordem dos Médicos desde 7/9/09. Foi admitida na especialidade de ..., aquela que sempre quis, tendo obtido 88% no exame de admissão.

78 - À data dos factos, encontrava-se a cumprir o 1° ano de internato complementar de ... no Hospital ... em ..., o que fazia desde 3 de Janeiro de 2011, auferindo um vencimento ilíquido de 1.835,42 €. Encontra-se de baixa desde o dia 9 de Abril de 2011.

79 - A sua esperança média de vida é de cerca de 55 anos.

80 - O percurso académico e profissional da demandante foi fruto de grande esforço e dedicação, que actualmente vê frustrado.

81 - Apenas existe uma possibilidade remota de poder vir a exercer medicina, sempre noutra especialidade que não aquela por que optou, numa área mais teórica e sempre dependente da ajuda de terceiros.

82 - Tal deixa-a profundamente infeliz e frustrada, sentindo-se também muito apreensiva em relação ao seu futuro.

83 - A sua incapacidade permanente global definitiva ainda não foi fixada, tendo sido, provisoriamente estabelecida em 95%.

84 - A demandante viu-se confinada, para toda a sua vida, a uma cadeira de rodas. Perdeu a sua autonomia e ficou completamente dependente da ajuda e assistência diária e permanente de terceiros.

85 - Teve que suportar tratamentos de fisioterapia que vai ter de prosseguir.

86 - Teve e tem que recorrer a terapêutica analgésica e anti-depressiva.

87 - Sofreu enorme prejuízo estético.

88 - Desde a data dos factos que sofre dores, angústia, frustração, medo e desespero. Suporta a ansiedade de temer permanentemente o agravamento do seu estado.

89 - Viu interrompida a sua actividade profissional.

90 - O choque, o medo, o desespero e incredibilidade que sentiu quando viu o seu pai disparar contra si é algo que não consegue esquecer.

91 - O arguido era a pessoa em quem a demandante mais confiava. O seu comportamento causa-lhe profunda revolta. O pressentimento da sua morte eminente na sequência da conduta do arguido causou-lhe um enorme medo e grande desgosto.

92 - O facto do arguido ter deixado a demandante sozinha, baleada, caída no chão provocou a esta um sentimento de horror e perplexidade.

93 - A demandante perdeu a alegria de viver e sente frequentemente o desejo de morrer.

94 - Sofre por saber que a sua situação clínica causa desgosto à sua mãe.

95 - Devido ao seu estado de tetraplegia entendeu terminar a relação que mantinha com o CC, o que lhe causou grande desgosto.

96 - Todos os factos mencionados causam à demandante profunda infelicidade e desgosto.»

Do âmbito do recurso

9. O recurso tem, pois, por objeto um acórdão da relação, proferido em recurso de um acórdão do tribunal coletivo, que confirmou uma pena de 17 anos de prisão.

O âmbito do recurso, que se circunscreve ao reexame de matéria de direito (artigo 434.º do CPP), delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, se necessário à boa decisão de direito, de vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro).

Mostram-se satisfeitos os requisitos impostos pelos artigos 374.º e 375.º do CPP, nomeadamente quanto à fundamentação, bem como quanto à escolha e determinação da medida da pena, não se revelando qualquer dos vícios de decisão a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP, e não ocorrem nulidades não sanadas que devam ser conhecidas.

10. As questões colocadas pelo recorrente à apreciação e decisão deste tribunal dizem respeito:

(a) À consideração da agravação dos limites mínimo e máximo da pena aplicável, nos termos do artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro (Regime Jurídico das Armas e Munições – “Lei das Armas”) e

(b) À determinação da medida concreta da pena.

Quanto à agravação dos limites mínimo e máximo da pena aplicável, nos termos do artigo 86.º, n.º 3, da “Lei das Armas”

11. No recurso do acórdão condenatório para o Tribunal da Relação o arguido suscitou esta questão, que, nas conclusões, sintetizou nos seguintes termos:

«ZZZ) Entendeu o Tribunal “A quo” proceder à agravação desses limites em 1/3 (um terço) por aplicação do nº 3 do art.º 86 da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, ficando com uma moldura penal de 3 (três) anos 2 (dois) meses e 12 (doze) dias de prisão a 22 (vinte e dois) anos, 2 (dois) meses e 20 (vinte) dias de prisão.

AAAA) Ora, no caso vertente o crime em causa foi praticado com uma arma, na al. g) do art.º 132 do C. P. uma das circunstâncias que levam à punição por homicídio qualificado e o de praticar o facto utilizando meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum.

BBBB) Sendo uma arma um perigo particularmente perigoso e que se traduz na prática de um crime de perigo comum, entende-se já o Arguido estar a ser condenado pela utilização da arma ao abrigo do disposto no art.º 132 do C. P.

CCCC) Não podendo a moldura penal obtida ser agravada em 1/3 (um terço) pela aplicação da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, já que isso se traduz numa dupla agravação da pena que penaliza injustificadamente o Arguido.»

12. Apreciando esta questão, diz o Tribunal da Relação, no acórdão recorrido:

«Sobre a agravação preceitua o art.º 86.º, do RJAM:

“(…)

3 - As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma.

4 - Para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do n.º 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente”.

Sobre este tema, o acórdão recorrido expende: (transcrição)

(…)

Impõe-se pois condenar o arguido pela prática, em autoria material, de homicídio qualificado, na forma tentada, nos termos previstos pelos arts. 131.°, 132.°, n.º 2, als. a) e e), 23.° e 73.°, do Cód. Penal, por referência ao art. 86.°, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23/2.

Ainda no entendimento da Defesa do arguido (cfr. requerimento de 03/02/2022), a agravação do n.º 3, do artigo 86º, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro não pode ser aplicada ao tipo de crime de homicídio qualificado, do artigo 132º do Código Penal, sob pena de se incorrer em injustificada dupla agravação, porquanto deveria o arguido, perante a imputação jurídica que lhe foi feita, ser também acusado pela al. h) do nº. 2 do artigo 132º do Código Penal.

Não foi este o entendimento do Tribunal Colectivo que realizou o primeiro julgamento nem, tão pouco, é este o entendimento deste Tribunal Colectivo.

Senão, vejamos.

A al. h) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal refere-se à circunstância de o agente utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum.

Utilizar meio particularmente perigoso é “servir-se para matar de um instrumento, de um método ou de um processo que dificultem significativamente a defesa da vítima e que (…) criem ou sejam susceptíveis de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos importantes (…). Exigindo a lei que eles (os meios) sejam particularmente perigosos, há que concluir duas coisas: desde logo necessário que o meio revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar (não cabem seguramente no exemplo padrão e na sua estrutura valorativa revólveres, pistolas, facas ou vulgares instrumentos contundentes), em segundo lugar, ser indispensável determinar, com particular exigência ou severidade, se da natureza do meio utilizado (…) resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente” (cfr. Prof. Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, T. 1, pág. 37).

Ora, a proibição da dupla agravação não pode ser estabelecida em termos genéricos, mas apenas quando as agravações correspondam a uma mesma dimensão da ilicitude, ou da culpa, em violação do princípio non bis in idem.

Efetivamente, é hoje ponto assente na doutrina e jurisprudência, a proibição da dupla valoração, quer no caso da concorrência de qualificativas de elementos constitutivos de mais de um exemplo padrão, qualquer um deles determinante de uma moldura penal agravada, quer na ponderação da circunstância qualificativa ao nível da medida concreta da pena, em termos globais. Casos em que, precisamente para evitar a dupla valoração, se impõe “a eleição de uma das circunstâncias como decisiva para a determinação da moldura penal aplicável, enquanto a outra será tomada em consideração, como agravante, na fixação da medida concreta da pena” (cfr. Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, § 42, pág. 45, citando Teresa Serra, Homicídio Qualificado. Tipo de Culpa e Medida da Pena, 1990, 50).

Diferente desta, é aquela colocada no caso em apreço (em que a circunstância qualificativa prevista na citada al. h) não é elemento do tipo de crime nem foi considerada como agravação do mesmo), em que a concorrência se dá entre qualificativas de natureza absolutamente diversa, como o são as circunstâncias qualificativas dos nº.s 1 e 2, als. a) e e), do artigo 132.º, do Código Penal e a qualificativa, de carácter geral, cominada no artigo 86.º, n.º 3, da Lei das Armas.

É que, enquanto aquelas primeiras qualificativas assentam numa culpa acrescida na prática do homicídio (tentado), que radica na especial perversidade ou crueldade com que ele foi em concreto cometido, já a segunda advém, exclusivamente, de razões de prevenção geral, que se fundam na necessidade de limitar o recurso às armas na prática de qualquer tipo de crime, pela sua aptidão para causar danos relevantes, em bens jurídicos penalmente tutelados.

Daqui decorre que na agravação determinada pelo artigo 132.º, do Código Penal, não é valorada nem considerada a razão de ser da agravação cominada do nº. 3, do artigo 86º, da Lei das Armas, agravação esta que, aliás, e como resulta do texto do preceito legal citado, a lei apenas exclui naqueles casos em que o uso ou porte de arma seja elemento do respectivo tipo de crime ou dê lugar, por outra via, a uma agravação mais elevada. E, no caso dos autos, o uso de arma, para além de não ser elemento do crime de homicídio tentado, também não levou, como supra explanado, ao preenchimento do tipo qualificado do artigo 132º do Código Penal.

Conforme bem refere o S.T.J. no Acórdão de 18/01/2012, proferido no proc. nº 306/10.0JAPRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, “O repúdio da consideração em termos de pena da qualificativa constante do referido normativo da Lei das Armas ignora as razões de prevenção que lhe estão subjacentes sem qualquer razão legal atendível. Aliás, o próprio artigo 86 é expresso quando liminarmente refere que a qualificativa se refere a penas aplicáveis a crimes cometidos com arma, ou seja, num primeiro momento há que aferir dos factores relevantes em termos de medida da pena em relação a um tipo legal que é qualificado e, como é evidente, em função das circunstâncias do mesmo crime e, em seguida, modela-se a mesma pena de acordo com o normativo em causa. Este, como se referiu reflecte uma ilicitude que não tem vasos comunicantes com o tipo de homicídio e cuja existência está apenas dependente da ilicitude revelada pela existência da arma na prática do crime.”

Do exposto decorre que cada uma das agravantes surge de forma perfeitamente autónoma e independente, não havendo por isso qualquer razão legal, ou imperativo constitucional, que fundamente o afastamento do funcionamento de qualquer delas.

Impõe-se assim concluir pela condenação do arguido pela prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada com a agravação prevista no art. 86.º, n.º. 3, da Lei n° 5/2006, de 23/2.

(…)

A questão está devidamente equacionada e fundamentada de acordo com a lei, pelo que acrescentar algo mais ao referido será indubitavelmente dispensável.

Não obstante, sem prejuízo, só para finalizar, importa apenas trazer à colação o sumário do acórdão proferido pelo TRP, proc.º número 2368/12.7JAPRT.P1, in www.dgsi.pt:

I - A proibição da dupla agravação existe apenas quando as agravações correspondem a uma mesma dimensão da ilicitude ou da culpa, em violação do princípio ne bis in idem.

II – O que não ocorre quando a concorrência se dá entre a circunstância qualificativa do nºs 1 e 2 al. e) do art.º 132.º CP e a circunstância qualificativa de carácter geral do art.º 86.º 3 da Lei 5/2006 de 23/2 (Lei das armas), pois a 1ª assenta numa culpa acrescida na prática do homicídio revelando uma especial perversidade ou crueldade com que o crime foi em concreto cometido, e a 2ª advém exclusivamente de razões de prevenção geral, e está apenas dependente da ilicitude revelada pela existência da arma na prática do crime.

Não está em causa a agravação do tipo legal, que funciona da mesma forma para o homicídio simples, como para o homicídio qualificado. Dito de outro modo, a agravação do art. 86.º, nºs. 3 e 4, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, funciona independentemente do tipo de crime em questão, em consequência do uso de arma de fogo.

Torna-se necessário que o agente faça uso da arma enquanto arma de fogo e disparando sobre a vítima, com o intuito de a atingir e de lhe causar, ou tentar causar, a morte, como tem correspondência com o caso dos autos, atentas as vezes que disparou sobre a vítima.

Por isso, no caso do homicídio, funciona a agravação do art.º 86.º, n.º 3, do RJAM, porque não está prevista a agravação com arma de fogo no cometimento do crime, e cometimento implica fazer uso da arma para a execução do crime, enquanto arma de fogo.

Não existe, pois, fundamento para afastar a agravação prevista no art.º 86.º, n.º 3, da Lei 5/2006, de 23/2, quando o uso de arma de fogo não sendo elemento do crime de homicídio e não leva ao preenchimento do tipo qualificado do art.º 132.º, do CP, cfr. Ac. do STJ de 30/10/2013, www.pgdlisboa.pt.

Termos em que o recurso improcede nesta parte.»

13. Nas conclusões g) a j) do recurso que agora apresenta perante o Supremo Tribunal de Justiça, o arguido repete, ipsis verbis, as conclusões ZZZ) a CCCC) do recurso para o Tribunal da Relação, reeditando idêntica argumentação.

Em síntese, diz o recorrente que, tendo o crime sido praticado com uma arma e “sendo a arma um meio particularmente perigoso e que se traduz na prática de um crime comum”, que constitui uma circunstância de qualificação do crime de homicídio que conduz à agravação da moldura da pena [artigo 132.º, al. g), do Código Penal], não pode proceder-se a uma agravação da pena aplicável ao crime de homicídio qualificado (artigo 132.º), nos termos do artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, ”já que isso se traduz numa dupla agravação da pena que penaliza injustificadamente o Arguido”.

14. Antecipando a conclusão, dir-se-á que o acórdão recorrido não merece censura, pois que, como nele se decidiu, em rigorosa interpretação e aplicação da lei, não assiste razão ao recorrente.

É pacífica e unânime a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça neste sentido.

15. Dispõe o artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006 (“Lei das Armas”) que “[a]s penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma”. Esclarecendo o n.º 4 que, “[p]ara os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do n.º 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente.”

O n.º 3 artigo 86.º foi introduzido pela Lei n.º 17/2009, de 6 de maio, que teve origem na Proposta da Lei n.º 222/X, cuja Exposição de Motivos justificou a alteração legislativa nos seguintes termos: “[n]o Estado de Direito democrático, a utilização de armas compete, em regra, às forças de segurança para protecção dos direitos, liberdades e garantias do cidadão, manutenção da paz pública e reforço da autoridade do Estado. Assim, a detenção de armas ilegais ou a utilização de armas na comissão de crimes deve ser especialmente reprimida, de forma a responder de modo adequado e proporcional à criminalidade violenta e grave. Por esta razão, a presente lei prevê o agravamento das penas do crime de detenção de arma proibida e dos crimes cometidos com recurso a arma. (…) Todos os crimes praticados com armas passam a ser objecto de uma agravação especial de um terço, nos seus limites mínimo e máximo. Esta regra funciona de acordo com um princípio de subsidiariedade e com respeito pelos princípios penais e processuais penais, pelo que a agravação só se aplica se outra, mais grave, não estiver estabelecida e se o uso de arma não constituir já um elemento do tipo de crime.”

16. Da occasio legis e da ratio da alteração legislativa extrai-se, assim, uma componente essencial à compreensão das relações entre o artigo 86.º, n.º 3 da “Lei das Armas” e o artigo 132.º, n.º 2, al. h), do Código Penal, na parte em que prevê que a qualificação do crime de homicídio pode resultar da circunstância de o agente “utilizar meio que se traduza na prática de crime de perigo comum”.

Com efeito, dois elementos se afiguram relevantes. O primeiro resulta da circunstância de o artigo 86.º, n.ºs 1 e 2, da Lei das Armas ter revogado e substituído o artigo 275.º do Código Penal, que previa o crime de detenção de arma proibida no capítulo dos “crimes de perigo comum” do Código Penal, o qual como crime comum continuou a ser considerado na Lei das Armas, no capítulo “Responsabilidade criminal e crimes de perigo comum”. O segundo evidencia-se pelo facto de o legislador, com a introdução do n.º 3, pretender introduzir, como introduziu, uma regra de agravação especial de um terço, nos seus limites mínimo e máximo “das penas do crime de detenção de arma proibida” – o crime p. e p. pelo artigo 86.º, n.ºs 1 e 2 – e “dos crimes cometidos com recurso a arma”, de “todos os crimes praticados com armas”, independentemente da sua classificação.

Não sendo o artigo 86.º, n.º 3, uma norma incriminadora de um “crime de perigo comum”, excluída se mostra a possibilidade de a razão da agravação da pena se incluir, por esta via, na previsão da parte final da al. h) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal. Como se tem entendido na jurisprudência maioritária deste Supremo Tribunal de Justiça, o meio que constitua um crime de perigo comum está manifestamente relacionado com a definição dos crimes típicos de perigo comum como tal enunciados, previstos e classificados na sistemática do Código Penal: os crimes previstos nos artigos 272º a 286º, e especialmente, o incêndio, a explosão, e outras condutas especialmente perigosas, ou danos em instalações [assim, por todos, o acórdão de 14-02-2003 (Henriques Gaspar), Proc. 03P2024, em www.dgsi.pt; neste sentido: Maia Gonçalves, Código Penal Anotado e Comentado, Almedina, 18.ª ed., 2007, p. 516, e Simas Santos/Leal Henriques, Código Penal Anotado, Rei dos Livros, Vol. III, 4.ª ed., 2016, p. 74].

17. Igualmente se deve excluir o uso da arma de fogo da previsão da mesma al. h) do n.º 2 artigo 132.º do Código Penal na parte em que prevê que a qualificação do crime de homicídio pode resultar da circunstância de o agente “utilizar meio particularmente perigoso”.

Como se disse no acórdão de 25.03.2020, Proc. 1636/18.9JAPRT.P1.S1: “Considerou-se a este propósito no acórdão de 15.10.2003 (Henriques Gaspar), Proc. 03P20244, citando o acórdão do STJ, na CJ (STJ), ano VIII (2000), pág. 241, que «a decisão sobre a integração do crime qualificado exige que se proceda à definição da imagem global do facto, de modo a logo aí detectar a particular forma de culpa que justifica a qualificação do homicídio, sem esquecer, na dimensão da integração diferencial, a circunstância de que o tipo geral de homicídio constitui já, por si mesmo, um crime de acentuada gravidade que protege o bem vida como valor essencial inerente à pessoa humana», pelo que «um meio particularmente perigoso há-de ser um meio (instrumento, método ou processo) que, para além de dificultar de modo exponencial a defesa da vítima, é susceptível de criar perigo para outros bens jurídicos importantes; tem que ser um meio que revele uma perigosidade muito superior ao normal, marcadamente diverso e excepcional em relação aos meios mais comuns que, por terem aptidão para matar, são já de si perigosos ou muito perigosos, sendo que na natureza do meio utilizado se tem de revelar já a especial censurabilidade do agente», estando, assim, «afastados da qualificação os meios, métodos ou instrumentos mais comuns de agressão que, embora perigosos ou mesmo muito perigosos (facas, pistolas, instrumentos contundentes) não cabem na estrutura valorativa, fortemente exigente, do exemplo-padrão». No mesmo sentido se decidiu no acórdão de 06.03.2003 (Leal-Henriques), Proc. 02P4406, onde se refere que «o meio particularmente perigoso - porque o legislador fala em "particularmente" - tem que ser em todas as situações um meio que ultrapasse os normal e habitualmente utilizados para matar, sob pena de, como aponta o recorrente, alargarmos o conceito e transformarmos em tipos qualificados o que a lei apenas concebeu como tipos simples» e no acórdão de 10.03.2005 (Santos Carvalho), Proc. 05P224 (citando o Comentário Conimbricense, I, p. 37).

A propósito desta circunstância, na mesma linha de orientação, inspirando a jurisprudência citada, salientam Figueiredo Dias/Nuno Brandão (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª ed., 2012, p. 67-68), «utilizar meio particularmente perigoso é servir-se para matar de um instrumento, de um método ou de um processo que dificultem significativamente a defesa da vítima e que (não se traduzindo na prática de perigo comum) criem ou sejam susceptíveis de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos importantes. (…) deve sobretudo ponderar-se que a generalidade dos meios usados para matar são perigosos e mesmo muito perigosos. Exigindo a lei que sejam particularmente perigosos, há que concluir duas coisas: ser desde logo necessário que o meio revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar (não cabem seguramente no exemplo-padrão e na sua estrutura valorativa revólveres, pistolas, facas ou vulgares instrumentos contundentes – em sentido concordante, pela jurisprudência dominante, cf. os Ac. do STJ de 06-03-2003 e de 10.03.2005 (…); em segundo lugar, se da natureza do meio utilizado – e não de quaisquer outras circunstâncias acompanhantes – resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. Sob pena, de outra forma, de se poder subverter o inteiro método de qualificação legal e de se incorrer no erro político-criminal grosseiro de arvorar o homicídio qualificado em forma-regra de homicídio doloso».

No mesmo sentido o acórdão de 14.02.2003 (Henriques Gaspar), Proc. 03P2024 (em www.dgsi.pt): “O meio utilizado (arma de fogo) é perigoso pela potencialidade específica que tem para causar dano à integridade física ou à vida. A lei refere-se, porém, não apenas a meio perigoso, mas a meio particularmente perigoso. Este há-de ser um meio (instrumento, método ou processo) que, para além de dificultar de modo exponencial a defesa da vítima, é susceptível de criar perigo para outros bens jurídicos importantes; tem que ser um meio que revele uma perigosidade muito superior ao normal, marcadamente diverso e excepcional em relação aos meios mais comuns que, por terem aptidão para matar, são já de si perigosos ou muito perigosos, sendo que na natureza do meio utilizado se tem de revelar já a especial censurabilidade do agente (cfr., v. g., o acórdão do STJ, na CJ (STJ), ano VIII (2000), pág. 241)”.

Esta posição jurisprudencial e doutrinária, que se subscreve, conduz a que se deva concluir que a utilização da arma de fogo na execução do crime, nas circunstâncias dos autos, não constitua «meio particularmente perigoso», de modo a preencher a previsão da al. h) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.

18. Assim sendo, não ocorrendo a pretendida “dupla valoração” do uso da arma de fogo [cfr. ainda, a este propósito, o acórdão de 07.05.2015 (Francisco Caetano), Proc. 2368/12.7JAPRT.P1.S2, em www.dgsi.pt], há que aplicar o artigo 86.º, n.º 3, da Lei das Armas quando se mostre preenchido o tipo de crime de homicídio qualificado da previsão do artigo 132.º, o que, neste caso, resulta da verificação das circunstâncias das alíneas a) e e) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, reveladoras de especial censurabilidade ou perversidade. O que não vem contestado.

19. O n.º 3 do artigo 86.º só afasta a agravação nele prevista nos casos em que o uso ou porte de arma seja elemento do respetivo tipo de crime ou dê lugar a uma agravação mais elevada; a agravação não é arredada ante a mera possibilidade de haver outra agravação, mas apenas se for de acionar efetivamente essa outra agravação [assim, os acórdãos de 13.4.2016 (Pires da Graça), Proc. 294/14.4PAMTJ.L1.S1, e de 6.4.2017 (Helena Moniz), Proc. 1183/15.0JAPRT.P1.S1, e de 15.11.2019, Proc. 4123/16.6JAPRT.G1.S1, em www.dgsi.pt].

O uso de arma, comportando um fator de agravação da ilicitude em função da perigosidade para um bem jurídico ou para uma série de bens jurídicos criminalmente protegidos, não constitui elemento típico do crime de homicídio; sendo um crime de execução livre, ao tipo de homicídio é indiferente a forma como o resultado morte é provocado [acórdão de 9.3.2022, Proc. 874/20.9JAPRT.S1; cfr. também o citado acórdão de 07.05.2015, e, entre outros, o acórdão de 11.03.2021 (Margarida Blasco), Proc. 75/20.6JAFAR.S1, em www.dgsi.pt).

Disse-se no acórdão de 25.10.2017 (Oliveira Mendes), Proc. 1504/15.PBCSC.L1.S2 (em www.dgsi.pt): “A agravação prevista no n.º 3 do art. 86.º do RJAM (…) opera pelo simples cometimento do crime com arma, excetuando-se apenas os casos em que o porte ou uso da arma é elemento do respetivo crime ou a lei já preveja agravação mais elevada para o crime em função do uso da arma, o que não é o caso. (…) E sempre nos permitimos enfatizar ainda, a propósito da questão da sobredita agravação, (…) que, como o STJ vem também dizendo, aliás uniformemente, nada obsta a que, mesmo no quadro do homicídio qualificado, possa ser convocada essa agravante geral. Nesse sentido, e entre outros, decidiram já os Acórdãos de 31-03-2011, proferido no Processo n.º 361/10.3GBLLE, da 5.ª Secção, de 18-01-2012, proferido no âmbito do Processo n.º 306/10.0JAPRT.P1, da 3.ª Secção, de 26-04-2012, proferido no âmbito do Processo n.º 293/10.5JALRA.C1.S1, da 5.ª Secção, de 12-03-2015, proferido no Processo n.º 185/13.6GCALQ.L1.S1, da 3.ª Secção, de 25-03-2015, proferido no Processo n.º 1504/12.8PMLRS.L1.S1, também da 3.ª Secção, e de 7-05-2015, proferido no Processo n.º 2368/12.7JAPRT.P1.S2, da 5.ª Secção.

20. Em síntese, não sendo o uso de arma elemento do tipo de crime de homicídio, e não levando, no caso, ao preenchimento de circunstância qualificativa do tipo de crime do artigo 132.º, não há fundamento para afastar a agravação prevista no artigo 86.º, n.º 3, da Lei das Armas.

Em consequência do que improcede o recurso nesta parte.

Quanto à pena

21. Sendo o crime de homicídio qualificado punível com pena de 12 a 25 anos de prisão, a moldura abstrata da pena aplicável ao crime consumado, tendo em atenção a agravação do artigo 86.º, n.º 3, da Lei das Armas e o limite máximo de 25 anos (artigo 41.º, n.ºs 2 e 3, do Código Penal), é de 16 a 25 anos de prisão”

Tendo em conta o disposto no artigo 73.º do Código Penal, a moldura penal da tentativa é de 3 anos, 2 meses e 12 dias de prisão a 22 anos, 2 meses e 20 dias de prisão.

22. De acordo com o disposto nos artigos 71.º, n.º 3, do Código Penal e 375.º, n.º 1, do CPP, que concretizam o dever de fundamentação das decisões judiciais estabelecido no artigo 205.º da Constituição, na sentença são expressamente referidos e especificados os fundamentos da medida da pena.

A medida da pena vem fundamentadas nos seguintes termos:

«É pacífico que em matéria de medida da pena o recurso a apreciar pelo Tribunal da Relação mantém, também, o arquétipo de remédio jurídico.

Neste quadro, o Tribunal da Relação somente altera o quantum da pena fixada pela 1ª Instância se, e apenas, detectar incorrecções ou distorções no respectivo processo aplicativo, ou na interpretação e emprego das normas legais e constitucionais que regem em matéria de pena. Ou seja, não pode proceder como se o fizesse ex novo; como se inexistisse uma decisão de 1ª instância.

A sindicabilidade da medida concreta da pena em via de recurso, abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada”16.

In casu resta, pois, olhar a decisão à luz do entendimento referido.

Assim, a fundamentação da pena no acórdão recorrido tem o seguinte teor: (transcrição) (…)

A moldura penal aplicável ao crime de homicídio qualificado, na forma tentada, nos termos previstos pelos arts. 131°, 132°, n° 2, als. a) e e), 23° e 73°, do Cód. Penal, é prisão de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses de prisão.

Por força do disposto no art. 86°, n° 3, da Lei n° 5/2006, de 23/2, a pena deverá ser agravada de 1/3 nos seus limites mínimo e máximo – já que se trata de um crime cometido com arma e tal circunstância não é elemento do tipo de crime nem foi considerada como agravação do mesmo.

Temos pois que, face a tal preceito a moldura penal é de prisão de 3 anos, 2 meses e 12 dias de prisão a 22 anos, 2 meses e 20 dias de prisão.

O art. 71°, n° 1, estabelece que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. Dispõe o n.° 2 do mesmo artigo que, na determinação concreta da pena, o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência;

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

Analisemos as circunstâncias relevantes para a determinação da pena concreta a aplicar ao arguido.

Dentro do âmbito de aplicação do tipo do homicídio na forma tentada, cabem, desde hipóteses em que, não obstante a intenção de matar e a prática de actos de execução do crime, a vítima nada sofre, até àqueles em que, para além daquela intenção e daqueles actos, a vítima, embora sobreviva, acaba por sofrer uma ofensa à integridade física muito grave. No caso dos autos temos que as consequências foram extremamente graves, aliás, a única forma de terem sido mais graves era ter efectivamente ocorrido a morte.

Com efeito a ofendida ficou tetraplégica, confinada a uma cadeira de rodas para o resto da sua vida e, para sempre, dependente de apoio de terceiros para todas as actividades do dia-a-dia. Trata-se de pessoa muito jovem que terá de viver da forma descrita para o resto da sua vida, que ainda se espera longa. A angústia, desespero e infelicidade que sentiu, sente e sentirá para sempre são evidentes e indescritíveis.

O arguido agiu com dolo directo e muito intenso, actuando de forma fria, não manifestando qualquer respeito pela vida ou estado da vítima que abandonou sozinha, no local, após os factos. Acresce que a sua atitude foi inesperada, nada a fazendo prever o que tornou de todo impossível que a assistente, de algum modo, se defendesse.

Pese embora se afirme (tivesse afirmado no primeiro julgamento realizado) arrependido é manifesto que o arguido continua a atribuir à ofendida condutas que demonstraram ingratidão e desrespeito para consigo e que, como tal, de algum modo, o levaram a adoptar a conduta descrita.

Salienta-se, por último, as fortes necessidades de prevenção geral que se verificam, sobretudo pelo alarme social e pela forte reprovação social, causados pelos factos em questão, exigindo-se assim a aplicação de uma pena severa de modo a reafirmar a vigência das normas violadas.

No que respeita à circunstância da vítima ser filha do arguido e aos motivos que o determinaram, não podem tais factos ser considerados já que foram os mesmos usados em sede de qualificação do crime em causa. O mesmo se dirá da utilização de arma de fogo, já que tal circunstância foi igualmente considerada para efeitos de agravação da moldura penal abstracta, nos termos da legislação em vigor.

Importará ainda considerar, isto em benefício do arguido, a circunstância do arguido, embora de forma pouco razoável e equilibrada, salienta-se, manter uma forte relação de dependência emocional relativamente à assistente. Em termos reais, e tal como o próprio afirma, dedicou-lhe a sua vida, habituando-se a viver em função dela e até, através dela, projectando nela os seus próprios sonhos e desejos. E, ao sentir o seu afastamento não conseguiu encarar tal circunstância com a naturalidade própria de um qualquer pai que, inevitavelmente, se vê confrontado com tal situação o que, de forma manifesta o deixa magoado, zangado e a vivenciar uma sensação de ingratidão.

Não se pretende com isto dizer que gostava mais da filha que os demais progenitores ou que lhe assistia esse direito ou essa razão ou que tal, de algum modo, justifica o seu comportamento. A esse propósito, foi o Tribunal bastante claro aquando da fundamentação jurídica.

O que se pretende salientar é a realidade do arguido e a forma como ele, enquanto pessoa, a encarou. E, de forma justa ou injusta para com a assistente, não se pode ignorar que o arguido apresentava alguma obsessão relativamente à filha e que, também por esse motivo, não conseguiu lidar com o seu afastamento natural da mesma forma como o faz qualquer pai que mantém um relacionamento próximo mas sensato e equilibrado com o filho.

Tal circunstância não poderá pois deixar de ser atendida nesta sede.

Por último, salienta-se que o arguido não tem antecedentes criminais, o que não sendo mais do que o dever de qualquer cidadão, atenta a sua idade, não deixa de revelar um percurso de vida conforme com o direito. Tal é, aliás confirmado pelas circunstâncias de ser encarado como pessoa honesta, séria e cumpridora, por aqueles que o conhecem.

Tudo visto e ponderado, julga este Tribunal Colectivo adequada aplicar ao arguido a pena de 17 anos de prisão.

(…)

Não podemos deixar de consignar o total acerto do processo aplicativo da pena desenvolvido no acórdão recorrido.

Na verdade, este traduz uma correcta compreensão do quadro constitucional e legal punitivo e uma exacta concretização, na aplicação e graduação da pena fixada.

Procedeu-se à correcta selecção dos elementos factuais elegíveis, identificação das normas legais aplicáveis, ponderação dos critérios legalmente atendíveis, justificando-se por tudo, de facto e de direito, a pena fixada.

Na moldura abstracta acima transcrita, as exigências de prevenção geral e especial nunca consentiriam a fixação de uma pena abaixo do ponto fixado no acórdão recorrido.

Dito isto, decide-se manter o acórdão recorrido, no que concerne à pena fixada, que pela sua correcção nenhuma censura nos merece.

O recurso não merece, pois, provimento.»

22. Relembrando as conclusões do recurso, o recorrente diz em síntese que, para além de dever ser excluída a agravação do n.º 3 do artigo 86.º da Lei das Armas, a pena deve ser reduzida para medida não superior a 8 anos, pois que (a) “não corresponde à verdade que o Arguido tenha agido de forma fria e calculista, não manifestando qualquer respeito pela vida, pois a verdade é que o Arguido estava muito alterado, em desespero, com o comportamento da filha”; (b) “deixou a filha sozinha devido ao desnorte que sentiu, tendo chamado a sua outra filha ao local, para ele a filha estava morta e nada mais havia a fazer”; (c) “a Médica Psiquiatra no seu primeiro depoimento diz que ele se mostra nas consultas: “Com um profundo arrependimento antes tivesse sido eu” (gravado através de sistema de integração digital, disponível na aplicação informática em uso neste tribunal de 15:49:56 a 16:20:52 em 10:40 a 11.00), o que denota arrependimento e interiorização do desvalor da sua conduta”; (d) “bem analisada a situação, nenhum dos intervenientes, Arguido e Ofendida, será totalmente culpado ou totalmente isento de culpa, pelo que, aqui ao determinar a medida da pena a aplicar ao Arguido há que ponderar todos esses factores de modo a obter uma pena objetivamente justa e não uma pena emocionalmente justa que é o que acontece à pena aplicada”; (e) “só foi ponderada a culpa do Arguido e não todos os factores que efetivamente o conduziram à prática do acto, o que acaba por violar o disposto no artº 71 do C. P”.

23. Vendo a matéria de facto que as instâncias dão como provadas – e são esses e só esses os que agora relevam –, nomeadamente o que consta dos pontos 15 a 33, o que vem alegado não encontra total correspondência nos factos provados, nomeadamente no que respeita ao anteriormente referido em (a) (quanto ao não respeito pela vida da vítima), (b) (quanto ao ter deixado a vítima sozinha), (c) (quanto ao arrependimento, no que importa considerar o mencionado no ponto 49), (d) (quanto à imputação de pretensa culpa à vítima) e (e) (quanto à ponderação dos fatores de culpa).

24. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

Estabelece o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente (manifestada no facto), relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, as indicadas no n.º 2 do mesmo preceito.

Como se tem afirmado, encontra este regime os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». A privação do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição), submete-se, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade, adequação e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva (cfr. Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, notas aos artigos 18.º e 27.º).

25. Retomando o que repetidamente se tem afirmado em acórdãos anteriores, (entre outros, nos acórdãos de 6.2.2019, Proc. 98/12.9GCSCD.L1.S1, de 9.10.2019, Proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1, e de 3.11.2021, Proc. 3613/19.3JAPRT.P1.S1, em www.dgsi.pt, e convocando, da doutrina, Anabela M. Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os Critérios da Culpa e da Prevenção, Coimbra Editora, 2014, pp. 611-678, e Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 3.ª reimp., Coimbra Editora, 2011, pp. 232-357):

A projeção destes princípios na determinação da pena justifica-se pela necessidade de protecção do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora violada, em conformidade com um critério de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto praticado, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigos 40.º e 71.º do Código Penal). A aplicação da pena exige que o agente do crime tenha agido com culpa, devendo ser censurado pela violação do dever de actuar de acordo com o direito e “pelas qualidades desvaliosas da personalidade que se exprimem no facto”, o que se requer como pressuposto e cujo grau se impõe como limite da pena (artigo 40.º, n.º 2).

Para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o artigo 71.º, considerar os factores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente, nos termos do n.º 2, os factores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objectivo e subjetivo – fatores indicados na alínea a) (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) – e os factores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os factores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – factores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto).

Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na protecção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança comunitária na norma violada – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Incluem-se aqui as consequências não culposas do facto [alínea a), v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves], o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e), com destaque para os antecedentes criminais] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente [circunstâncias das alíneas e) e f)] adquire particular relevo para determinação da medida concreta da pena em vista da satisfação das exigências de prevenção especial, em função das necessidades individuais e concretas de socialização do agente, devendo evitar-se a dessocialização.

26. Como se tem sublinhado, é na determinação e na consideração destes factores que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora – neste caso a vida humana –, materializada na ação levada a efeito pelo arguido pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar-se se a pena aplicada respeita os mencionados critérios de adequação e proporcionalidade que devem pautar a sua aplicação. Devendo, por conseguinte, a operação de determinação da pena alhear-se de considerações de natureza geral pressupostas pelo legislador na identificação dos bens jurídicos protegidos, na construção dos tipos legais de crime e no estabelecimento das molduras das penas legalmente fixadas, assim se assegurando o respeito pelo princípio da proibição da dupla valoração de factores relevantes para a determinação da medida da pena (como se observou, nos acórdãos citados).

27. As circunstâncias relativas ao grau de ilicitude, ao grau de violação dos deveres impostos na relação com a vítima, ao modo de execução do crime e às suas consequências, que relevam por via da culpa e, consequentemente para a definição dos seus limites (artigo 40.º do CP), mostram a extrema gravidade do facto praticado. Os factos especificados nos pontos 52 a 96 da matéria de facto provada, relativos ao pedido cível, onde se descrevem em pormenor as consequências do crime, são eloquentes a este propósito. E, como tal, como as instâncias ponderaram, não podem deixar de ter um peso determinante na fixação da medida da pena.

As angústias, ansiedade e sentimentos manifestados pelo arguido no tempo que antecedeu a prática do crime, com respeito às suas relações com a vítima, nomeadamente por causa do namoro desta (factos 25 a 33 e 45 a 51), revelando e sendo consequência de uma injustificada atitude de não aceitação do comportamento desta, de intolerância e de interferência na sua autonomia, não podem ser positivamente valorados na determinação da pena. Não estando demonstrado que estivesse afetado na sua capacidade, que mantinha, de se autodeterminar e de manter o seu juízo crítico (facto 33), impunha-se ao arguido comportamento diverso, que, por todos os meios ao seu alcance, sendo um indivíduo disciplinado e com boa capacidade de autocontrolo (facto 48) e tendo treino de tiro e experiência com armas (facto 28), o afastassem de praticar o ato que cometeu, determinado a tirar a vida à sua filha (facto 14), efetuando 4 disparos com a arma, a uma distância de cerca de um metro, dirigidos à cabeça, ao pescoço e ao tórax (ponto 13), que lhe provocaram os graves ferimentos descritos no ponto 10 e 11, deixando a vítima, uma jovem médica, de 26 anos, na condição de tetraplégica, com todas as limitações e dependências de tratamentos e acompanhamento para o resto da vida.

O modo de execução do facto não deixa de revelar, apesar do seu contexto social e familiar, consideráveis qualidades desvaliosas de personalidade e falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [n.º 2, al. f) do artigo 71.º do CP], que releva negativamente, de forma severa, quer por via da culpa quer em vista das exigências de prevenção especial de ressocialização.

A favor do arguido, como reconhecem as instâncias, milita o comportamento anterior ao crime, o facto de não ter antecedentes criminais, a dedicação da sua vida à sua filha e os sentimentos que, no seu lado positivo, a ela o uniam, como descrito nos pontos 18 a 24 e 40 a 43 da matéria de facto.

28. Assim, ponderando os comprovados fatores relevantes para a determinação da pena, nos termos do artigo 71.º do Código Penal, tidos em conta no acórdão recorrido, não se encontra fundamento que justifique um juízo de discordância relativamente à decisão sobre a medida da pena, a qual, na consideração desses fatores, não se mostra fixada em violação dos critérios de proporcionalidade legalmente impostos, em vista da realização das suas finalidades de protecção do bem jurídico protegido e de reintegração (artigo 40.º do Código Penal).

Pelo que improcede também o recurso nesta parte.

Quanto a custas

29. De acordo com o disposto no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. A taxa de justiça é fixada entre 5 e 10 UC, tendo em conta a complexidade do recurso, de acordo com a tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

III. Decisão

30. Pelo exposto, acorda-se na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso do arguido AA, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.


Supremo Tribunal de Justiça, 29 de junho de 2023.


José Luís Lopes da Mota (relator)

Maria Teresa Féria de Almeida

Sénio Manuel dos Reis Alves