Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P2273
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS CABRAL
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
VIOLAÇÃO
VIOLÊNCIA
MENOR
AGRAVANTE
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
CRIME CONTINUADO
BENS EMINENTEMENTE PESSOAIS
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Nº do Documento: SJ20070905022733
Data do Acordão: 09/05/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :
I - Perante o seguinte quadro factual:
- a partir de dia não concretamente apurado do mês de Abril de 2005, a menor CS [nascida a 22-04-1998] passou a residir na casa de sua irmã [GM] e do arguido, onde viviam ainda duas sobrinhas da menor, filhas de GM e do arguido, ficando a menor sob a guarda e responsabilidade de GM e do arguido, sendo que era o arguido o único que auferia os rendimentos que sustentavam o agregado;
- durante o período em que a menor aí permaneceu, de Abril a Novembro de 2005, e em número de vezes não concretamente apurado, mas mais de uma vez por semana, o arguido desferiu golpes com um cinto no corpo da CS, batendo-lhe também com as mãos, dando-lhe chapadas na cara e no corpo;
- em dia e hora que não foi possível apurar em concreto, entre Abril e Novembro de 2005, no interior do quarto da menor CS, o arguido bateu-lhe de modo que não foi possível apurar concretamente e, depois, desceu as calças e retirou para fora o seu pénis erecto, deitou-se em cima da menor, despida, e abriu-lhe as pernas;
- apesar de a menor chorar, o arguido decidiu introduzir o seu pénis na vagina da CS, causando-lhe fortes dores e sangramento;
- em virtude do sangramento as cuecas da menor ficaram sujas;
- em dia e hora que não foi possível apurar em concreto, entre Abril e Novembro de 2005, o arguido mandou a sua companheira, GM, fazer uma compra a fim de ficar a sós com a CS;
- depois, numa divisão de cama da casa referida, que em concreto não foi possível apurar se foi o quarto da menor ou o quarto do arguido e de sua companheira, o arguido deitou a menor em cima da cama, despiu-lhe as calças e cuecas, pegou no seu pénis e introduziu-o no interior da vagina da CS;
- apesar de a CS lhe pedir para parar, o arguido manteve o seu propósito;
- também desta vez ocorreu sangramento da vagina da menor, que experimentou fortes dores;
- para além do referido [nos três últimos pontos], nas circunstâncias de tempo e lugar aí mencionadas, o arguido colocou o seu pénis na boca da CS e ordenou-lhe que o chupasse, o que ela fez;
- num outro dia e hora que não foi possível apurar em concreto, entre Abril e Novembro de 2005, o arguido, numa das casas de banho da casa (sem que tenha sido possível apurar se o arguido para aí levou a menor ou já aí a encontrou), voltou a introduzir o seu pénis erecto na vagina da menor, o que conseguiu apesar de a menor ter sofrido fortes dores e ter sangrado da vagina;
- o arguido disse à CS, em momento ou momentos que não foi possível apurar do referido período de Abril a Novembro de 2005, que se contasse alguma coisa a alguém lhe bateria;
- da conduta do arguido resultou para a menor uma lesão himenial de natureza traumática para cuja cicatrização foi necessário um período de dez dias;
- ao agir da forma descrita sabia o arguido que estava a desferir golpes no corpo da menor, sujeitando-a a tal mais de uma vez por semana, ciente de que com isso prejudicava a sua saúde física e psicológica, o que foi sua livre, directa, voluntária e consciente intenção conseguida, sabendo proibida a sua conduta;
- o arguido sabia que, pelo menos três vezes manteve relações sexuais como descrito com a CS, ciente da sua idade, não hesitando em introduzir-lhe o pénis na vagina e também na boca para que o chupasse, sabendo que agia contra a vontade da menor, batendo-lhe e usando a sua força para conseguir penetrar a vagina da menor com o seu pénis e introduzir-lhe o pénis na boca, o que foi sua livre, directa, voluntária e consciente intenção conseguida, sabendo proibida a sua conduta;
mostra-se correcta a tipificação constante da decisão recorrida – já não a afirmação da existência de um crime continuado –, que, alterando a qualificação jurídica dos factos constante da acusação [ao arguido era imputada a prática de um crime de maus tratos p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. a), e de três crimes de abuso sexual de crianças agravados, p. e p. pelos arts. 172.º, n.º 2, e 177.º, n.º 4, ambos do CP; em audiência de julgamento, foi comunicado ao arguido, nos termos do art. 358.º, n.º 3, do CPP, que a matéria de facto constante da acusação poderia ser qualificada, para além do referido crime de maus tratos, como integrando a prática de três crimes de violação de menor com idade inferior a 14 anos p. e p. nos termos dos arts. 164.º, n.º 1, e 177.º, n.º 4, do CP], condenou o arguido pela prática de um crime de maus tratos p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. a), e de um crime continuado de violação p. e p. pelos arts. 164.º, n.º 1, 177.º, n.º 4, e 30.º, todos do CP.
II - A Reforma de 1995 do CP dividiu o capítulo [IV] destinado aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, em três secções distintas: uma primeira, a que se deu a epígrafe de crimes contra liberdade sexual, onde se inscreve o crime de violação; uma segunda, que denominou crimes contra a autodeterminação sexual, onde se insere o crime de abuso sexual de crianças; e uma terceira que contém as disposições comuns às duas secções.
III - Nas duas primeiras secções estão em causa bens jurídicos que primariamente se prendem com a própria esfera sexual das pessoas. A razão de ser da distinção, conforme refere Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, pág. 442), prende-se com o facto de a secção I proteger, sem fazer acepção de idade, a liberdade (e/ou a autodeterminação) sexual de todas as pessoas, a autoconformação da vida e da prática sexuais da pessoa.
IV -Este é o conceito superior a que todos os outros se submetem e de que participam essencialmente. Cada pessoa adulta tem o direito de se determinar como quiser em matéria sexual, seja quanto às práticas a que se dedica, seja quanto ao momento ou ao lugar em que a elas se entrega ou ao(s) parceiro(s), também adulto(s), com quem as partilha – pressuposto que aquelas sejam levadas a cabo em privado e este(s) nelas consinta(m). Se, e quando, esta liberdade for lesada de forma importante, a intervenção penal encontra-se legitimada e, mais do que isso, torna-se necessária.
V - Por seu turno, a secção II do mesmo capítulo estende essa protecção a casos que, ou não seriam crime se praticados entre adultos, ou sê-lo-iam dentro de limites menos amplos, ou ainda, em qualquer caso, assumiriam uma menor gravidade; e estende-a porque a vítima é uma criança ou um menor de certa idade.
VI - É lícita, assim, a conclusão de que, na secção II, o bem jurídico protegido é também, como na Secção I, a liberdade e autodeterminação sexual, mas ligado a um outro bem jurídico que é do livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual.
VII - A lei presume que a prática de actos sexuais em menor, com menor ou por menor de certa idade, prejudica o seu desenvolvimento global, e considera este interesse tão importante que coloca as condutas que o lesem ou ponham em perigo sob a tutela da pena criminal. Protege-se, pois, uma vontade individual ainda insuficientemente desenvolvida, e apenas parcialmente autónoma, dos abusos que sobre ela executa um agente, aproveitando-se da imaturidade do jovem para a realização de acções sexuais bilaterais.
VIII - É nessa perspectiva que o art. 172.º do CP pune a prática de acto sexual de relevo ou cópula com menor de 14 anos independentemente do meio usado sobre o mesmo menor, sendo irrelevante para o afastamento da ilicitude o seu consentimento. O que está em causa não é somente a autodeterminação sexual mas, essencialmente, o direito do menor a um desenvolvimento físico e psíquico harmonioso, presumindo-se que este estará sempre em perigo quando a idade se situe dentro dos limites definidos pela lei.
IX - Diversamente, o art. 164.º do CP – violação – dirige-se à protecção da autoconformação da vida e da prática sexual, tutelando-se o direito de cada um a determinar a forma como conduz a sua vida nesta área específica. Assim, é lógico que o constrangimento da vítima, no sentido de a levar à prática de um acto não querido, constitua elemento do tipo e o ponto de referência de afirmação da negação da autodeterminação.
X - No caso dos autos, como referido, mostra-se correcta a subsunção dos factos à previsão dos arts. 164.º, n.º 1, e 177.º, n.º 4, do CP, pois a protecção concedida por aquele artigo e pela agravação, contemplada neste, já contém a inerente à violação de menor de 14 anos, quando praticada por qualquer das formas de violência e de ameaça previstas naquele art. 164.º, n.º 1, do CP, sendo mais elevada a respectiva penalidade.
XI - Pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é de acordo com o direito.
XII - Contudo, a integração no referido conceito de crime continuado será sempre inaceitável relativamente a disposições que visem proteger bens jurídicos eminentemente pessoais. Aí, e qualquer que seja a concepção de que se parta, não pode deixar de reconhecer-se que corresponde um valor autónomo a cada pessoa a quem a lei quer estender a sua protecção. Radicando-se tais bens na própria personalidade eles não podem nunca ser tomados abstractamente (cf. Eduardo Correia, A teoria do Concurso, págs. 255 e ss.).
XIII - Também Jescheck defende que, estando em causa bens jurídicos eminentemente pessoais, o crime continuado estará naturalmente excluído quando as acções se dirigem contra titulares distintos.
XIV - A decisão recorrida fundamenta a verificação do crime de violação continuado na vivência quase comum entre o arguido e a menor, na proximidade dos actos no tempo e no contexto em que os actos foram praticados. Porém, a questão deve ser colocada em plano distinto: o facto de o arguido dar o seu consentimento a que no âmbito do seu lar fosse acolhida uma menor de 7 anos, como era a vítima, deveria constituir um incentivo para o reforço de uma responsabilidade pelo bem-estar daquela e não para um comportamento situado nos antípodas de tal intenso dever de cuidado. Por forma alguma se pode considerar que a presença constante da menor no ambiente familiar do arguido pudesse constituir qualquer lastro de afirmação de uma menor inibição de comportamentos com reflexo ao nível da culpa.
XV - Por isso se conclui que o arguido cometeu, em concurso real, três crimes de violação agravados p. e p. pelos arts. 164.º, n.º 1, e 177.º, n.º 4, do CP, sendo adequado fixar as penas parcelares, por cada um destes crimes, em 6 anos de prisão, e, após cúmulo jurídico entre si e com a pena de 3 anos de prisão em que foi condenado pela prática de um crime de maus tratos p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. a), do CP, a pena única em 9 anos de prisão.
Decisão Texto Integral: