Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03P504
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SIMAS SANTOS
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
CRIME CONTINUADO
MEDIDA DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
PRESSUPOSTOS DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
SUBSTITUIÇÃO DA PENA
Nº do Documento: SJ200303200005045
Data do Acordão: 03/20/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Sumário : 1 - Quando o Código Penal prescreve que não pode ser suspensa a execução de uma pena de prisão aplicada em medida superior a 3 anos está-se a referir à pena efectivamente aplicada e não a residual resultante de perdão.
2 - Desde logo, aponta nesse sentido o teor literal do preceito que fala em pena aplicada em medida não superior a 3 anos e a pena residual, a cumprir, não é a pena aplicada.
3 - Depois, o legislador estabeleceu esse requisito enquanto índice de gravidade do ilícito merecedor dessa pena de substituição. Ou seja, sabendo-se que a pena concreta traduz sempre o grau de ilicitude e culpa da conduta em apreciação, escolheu-se uma medida limite que traduzisse os limites de gravidade das condutas abrangidas.
4 - No mesmo sentido aponta a aposição de condição resolutiva aos perdões. Revogada a suspensão, e operada a condição, o arguido havia estado com a pena suspensa em relação a uma pena superior a 3 anos, reduzida (condicional e transitoriamente) a menos de 3 anos.
5 - Tem-se entendido que, relativamente a condenação em pena suspensa, o perdão só será aplicado se houver revogação da suspensão, pelo que a decisão da suspensão antecede a da aplicação do perdão, pelo que não se pode ter, por via do perdão, uma pena residual inferior a 3 anos suspensa.
6 - Os recursos penais foram concebidos como remédios e não meios de refinamento da jurisprudência, pelo que não tem o STJ de analisar a medida concreta da pena se o recorrente se limitou a pedir a substituição da pena prisão pela mesma pena suspensão na sua execução, sem impugnar a sua duração concreta.
7 - Constitui núcleo essencial da função de julgar, o enquadramento jurídico dos factos apurados, a determinação do direito, pelo que não está limitada por errado enquadramento que haja sido feito pelos interessados ou pelas partes (cfr. acórdãos uniformizadores de jurisprudência nº. 4/95, de 7.6.95, DR IS-A de 6-7-95 e BMJ n.º 448 pág. 107, n.º 2/93 reformulado pelo n.º 3/2000, 15-12-1999, DR IS-A de 11-2-2000.)
8 - Ainda que o recorrente não ponha concretamente em causa a incriminação definida pelo Colectivo ou a ponha num sentido diverso, não pode nem deve o STJ - enquanto tribunal de revista e órgão, por excelência e natureza, mentor de direito - dispensar-se de reexaminar a correcção das subsunções.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
1.1.
1. MEHG, nascida a 02/01/1984 e MMHG, nascida a 09/10/1986, são filhas do arguido AROG e da assistente IMHRG.
2. Na sequência da separação entre os progenitores, que ocorreu em Fevereiro de 1995, as menores permaneceram com o pai em São Teotónio, Odemira, a MMHG até 10/04/1998 e a MEHG até 14/06/1998.
3. Em Abril de 1995 o arguido AROG passou a viver com uma nova companheira de nome LCGA, filha do arguido AJA, com quem ainda hoje vive, tendo o casal assim formado tido um filho de nome RM, nascido em Fevereiro de 1996.
4. A partir da altura em que o arguido AROG se passou a relacionar com a sua nova companheira, as menores passaram a dormir num quarto sozinhas.
5. No período que mediou entre Fevereiro de 1995 até Abril desse mesmo ano, o arguido AROG e as filhas passaram a dormir juntos na cama de casal da residência.
6. Em dia indeterminado do mês de Fevereiro de 1995, alguns dias após a saída da assistente da casa de morada de família, quando o arguido AROG e as suas filhas já estavam deitados na cama, aquele retirou a parte de baixo do pijama da filha MEHG, que já dormia, e despiu-se ele próprio.
7. Acto contínuo pegou na mão desta sua filha e colocou-a sobre o seu pénis tendo com este seu acto acordado a menor que manifestou uma reacção de espanto simbolizada na expressão «Ai!».
8. Em face da reacção da MEHG, o arguido, não prosseguindo nos seus intentos, disse "agora somos nós os três, a tua mãe foi-se embora".
9. Quando se deslocava com a filha MEHG na sua carrinha, em datas que não foi possível determinar, era usual acariciar-lhe as pernas com as mãos ao mesmo tempo que proferia expressões do género "a minha MEHG já se comia".
10. Num dia indeterminado do mês de Abril de 1996, já de noite, quando a MMHG, na altura com 9 anos de idade, se deslocava para casa, na carrinha conduzida pelo seu pai, o arguido AROG, este em pleno percurso parou a viatura e disse-lhe para sair.
11. Uma vez fora da viatura, despiu-lhe as calças e introduziu-lhe os dedos da sua mão na vagina daquela, acariciando-a.
12. O arguido AG, amigo do arguido AROG, em datas não determinadas, mas seguramente situadas entre os anos de 1995 e 1996, quando se deslocava a casa deste e aí encontrava a menor MEHG, acariciava-lhe as pernas, situação que ocorreu por mais do que uma vez.
13. Este mesmo arguido AG, em dia indeterminado do mês de Agosto de 1996, cerca das 18h30, quando a MMHG se encontrava em casa do pai apenas na companhia do irmão bebé, agarrou-a por trás, puxou-lhe a saia para cima e acariciou-lhe os seios e a vagina.
14. De seguida, deitou-a no sofá e despiu-lhe um top que esta tinha vestido e as cuecas e começou ele próprio a despir-se mas, porque ouviu o barulho de um carro a chegar, vestiu-se à pressa e saiu da casa.
15. O arguido AAJA, em data indeterminada do ano de 1996, na cozinha da residência do arguido AROG, apalpou de forma prolongada os seios da MEHG.
16. Em dia indeterminado do mês de Setembro de 1996, na residência do arguido AJA, sita em Fornalhas Velhas, Cercal do Alentejo, onde o arguido AROG e as filhas iam com alguma regularidade, aquele chamou a MMHG para trás de um carro velho e disse-lhe para fechar os olhos, ao que a menor acedeu.
17. Quando a MMHG abriu os olhos, o arguido AJA encontrava-se nu, o que fez com que a menor esboçasse fugir, tendo, de imediato, o arguido AJA agarrado a mesma, levando-a para trás de uma pilha de cortiça.
18. Aí, o arguido AJA despiu-lhe os calções e a blusa que envergava e meteu-lhe os dedos da sua mão na vagina, acariciando-a.
19. Os arguidos em todas as suas descritas actuações agiram livre, voluntária e conscientemente sabendo que, quer a MEHG, quer a MMHG tinham uma idade inferior a 14 anos e que, ao actuarem como o referido, ofendiam a liberdade de determinação sexual das mesmas.
20. O arguido AROG tinha a perfeita consciência de que as referidas menores eram suas filhas.
21. Todos os arguidos sabiam que tais condutas eram proibidas e puníveis por lei.
22. Todos os arguidos negaram a prática dos factos que a cada um eram imputados.
23. O arguido AROG vive em Sines com a sua companheira LCGA e o filho menor de ambos.
24. Trabalha como servente de pedreiro, auferindo mensalmente a quantia de 623,50 €.
25. A companheira não exerce qualquer actividade profissional.
26. Tem como instrução a 4ª classe.
27. Não tem antecedentes criminais.
28. O arguido AG vive na companhia da mulher e de um filho de 40 anos de idade que é toxicodependente.
29. Actualmente vive de pequenos biscates de serralharia que não lhe proporcionam qualquer rendimento certo e regular, a sua mulher não trabalha.
30. Apenas sabe ler e escrever.
31. Não tem antecedentes criminais.
32. O arguido AJA vive só.
33. Encontra-se a receber o subsídio de desemprego.
34. Tem como instrução a 2ª classe.
35. Não tem antecedentes criminais.
Não resultaram provados os seguintes factos:
1. Que a separação do casal formado pelo arguido AROG e pela assistente IMHRG tenha ocorrido em Fevereiro de 1996.
2. Que, cerca de quatro dias após a saída de casa da mãe das menores, o arguido AROG tenha despejado o interior de uma cápsula de vidro no caldo verde que se destinava à MEHG.
3. Que a MEHG tenha ingerido qualquer substância ministrada na sopa que a tenha feito dormir profundamente durante essa noite.
4. Que, quer nessa noite, quer em qualquer outra ocasião o arguido AROG tenha introduzido o seu pénis na vagina de qualquer uma das suas filhas.
5. Que a expressão usada pelo arguido AROG "a minha MEHG já se comia" fosse dita, por este, perante terceiros.
6. Que, na ocasião em que o arguido AROG despiu as calças da sua filha MMHG e lhe introduziu os dedos da sua mão na vagina desta, acariciando-a, tenha, de seguida, aberto a camisa que esta envergava e lhe tenha beijado os seios, a boca e a vagina.
7. Que o arguido AG, no dia em que deitou a menor MMHG no sofá e lhe despiu a roupa, lhe tenha, também, tapado a boca com um pano.
8. Que, nessa ocasião, o arguido AG tenha introduzido o seu pénis erecto na vagina da MMHG .
9. Que o arguido AJA, em dia não determinado do mês de Julho de 1996, cerca das 23h00, tenha subido ao quarto de dormir da MEHG e da MMHG e, aí, tenha beijado esta última na boca, pescoço e orelhas.

1.2.
Com base nessa factualidade, o Tribunal Colectivo de Odemira (processo comum n.º 743/99.0GBABF), por acórdão de 10/07/2002, decidiu:
Condenar o arguido AROG, como autor material de um crime continuado de abuso sexual de crianças previsto e punível pelos art. 30º, n.º 1 e 2; 172º, n.º 1 e 177º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal, em que é ofendida a sua filha MEHG, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, como autor material de um crime de abuso sexual de crianças previsto e punível pelos art. 172º, n.º 1 e 177º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, em que é ofendida a sua filha MMHG, na pena de 3 (três) anos de prisão; e, ao abrigo do art. 77º, n.º 1, do Código Penal, na pena unitária de 4 (quatro) anos de prisão.
declarar perdoado 1 (um) ano de prisão sobre esta pena unitária, art. 1º, n.º 1, da Lei n.º 29/99, de 12/05, ficando essa pena reduzida a 3 anos de prisão.
condenar o arguido AVG, como autor material de um crime continuado de abuso sexual de crianças previsto e punível pelos art. 30º, n.º 1 e 2; 172º, n.º 1, ambos do Código Penal, em que é ofendida a MEHG, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, como autor material de um crime de abuso sexual de crianças previsto e punível pelos art. 172º, n.º 1, do Código Penal, em que é ofendida MMHG, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão; e, ao abrigo do art. 77º, n.º 1, do Código Penal, condená-lo na pena unitária de 3 (três) anos de prisão.
Condenar o arguido AJA, como autor material de um crime de abuso sexual de crianças previsto e punível pelo art. 172º, n.º 1, do Código Penal, em que é ofendida a MEHG, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, como autor material de um crime de abuso sexual de crianças previsto e punível pelos art. 172º, n.º1, do Código Penal, em que é ofendida a MMHG, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão; e, ao abrigo do art. 77º, n.º 1, do Código Penal, condená-lo na pena unitária de 3 (três) anos de prisão.
Condenar o arguido AROG a pagar a favor de cada uma das suas filhas a quantia de 4 987,98 €.
Condenar o arguido AVG a pagar a favor da ofendida MEHG a quantia de 1 496,39 € e a favor da ofendida MMHG a quantia de 2 992,79 €.
Condenar o arguido AJA a pagar a favor da ofendida MEHG a quantia de 1 496,39 € e a favor da ofendida MMHG a quantia de 2 992,79 €.
Suspender a execução das penas de prisão impostas aos arguidos AVG e AJA, pelo período de 5 anos, ficando tais suspensões sujeitas ao dever de cada um dos arguidos pagar, a favor das ofendidas e, no prazo de três anos, as indemnizações em que foram condenados, consignando-se que, em caso de eventual revogação da suspensão das penas impostas aos arguido AVG e AJA, deverá ser tido em consideração o perdão decorrente do n.º 1, do art. 1º da Lei n.º 29/99, de 12/05 (art. 6º da citada Lei).
II
2.1.
Inconformado, recorreu o arguido AROG para este Tribunal, concluindo na sua motivação:
1 - Deve a pena privativa da liberdade, ser suspensa na sua execução, uma vez que se verificam os pressupostos do artigo 50º do Código Penal.
Os deveres e as regras de conduta que condicionam a suspensão da execução da pena podem ser aplicadas isolada ou conjuntamente, conforme prescreve o artigo 50º, n.º 3 do Código Penal.
2 - Assim, e com o devido respeito, os Meritíssimos juízes "a quo", não aplicaram, ou aplicaram de forma desadequada às finalidades da punição no caso "sub judice", os artigos 50º.

2.2.
Respondeu o Ministério Público à motivação, concluindo:
1º - Tendo o Recorrente sido condenado pela prática de crimes de abuso sexual cometidos na pessoa das suas próprias filhas, de 9 e 11 anos de idade, apenas perante motivos excepcionais e ponderosos se poderia admitir a suspensão da pena que lhe viesse a ser aplicada.
2º - A indiferença manifestada pelo arguido face aos actos que também terceiros praticaram contra as suas filhas, face ao sofrimento das próprias menores e face à gravidade da sua conduta, não revela uma personalidade susceptível de se conformar com os padrões da saudável sexualidade, caso venha a sofrer uma simples ameaça de prisão.
3º - O tempo decorrido desde a prática dos factos foi necessário para que as menores ultrapassassem as naturais inibições e conseguissem falar dos actos praticados pelo pai.
4º - A pena concreta aplicada ao arguido ora Recorrente foi a de 4 (quatro) anos de prisão, tendo apenas beneficiado do perdão de um ano, benesse que lhe deve aproveitar em sede de execução da pena, mas não para efeitos de admissibilidade da sua suspensão.
5º - Não se mostram assim reunidos quaisquer dos pressupostos de suspensão da execução da pena previstos no art. 50º-1 do Cód. Penal.
Face ao exposto, entendemos que o acórdão recorrido não merece reparo. Porém, Vossas Exas., com melhor prudência, decidirão, fazendo JUSTIÇA.

2.3.
Respondeu ainda a assistente, que concluiu na sua resposta:
1.ª O arguido AROG foi condenado na pena unitária de 4 (quatro) anos de prisão, pelos crimes de abuso sexual de crianças perpetrados na pessoa das suas filhas: MEHG e MMHG.
2.ª O arguido beneficiou do regime de carácter excepcional de Lei n.º 29/99, de 12 de Maio tendo a sua pena reduzido para três anos de prisão efectiva.
3.ª Não se encontrando reunidos os pressupostos de aplicação do artigo 50º/1 do Código Penal, porque foi condenado em pena superior, não deve ser aplicada a suspensão da execução da pena de prisão.
NESTES TERMOS e nos demais de Direito, deverá o presente recurso ser declarado improcedente e, em consequência, ser a sentença ora recorrida mantida.
III
Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Ministério Público teve vista dos autos.
Colhidos os vistos legais, teve lugar audiência.
Em alegações orais, o Ministério Público sustentou que as circunstâncias do caso, que enumerou, não permitiam a suspensão da execução da pena, à luz do disposto no n.º 1 do art. 50º do C. Penal, mesmo que a pena única fosse reduzida a 3 anos de prisão. E entendeu que no caso deveria ter lugar essa redução, apesar de não ter sido pedida pelo recorrente, uma vez que pretendendo este a suspensão da pena, o mais, pretendia também seguramente, a redução dessa pena, ou seja o menos.
A defesa acompanhou a posição do Ministério Público quanto à redução da pena e manteve a posição assumida na motivação quanto à suspensão da execução da pena.
Já depois de realizada a audiência foi junto aos autos um requerimento das assistentes, enviado por telecópia às 19 horas e 13 minutos, em que é arguida a irregularidade do n.º 1 do art. 123º do CPP, a reparar nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, e que consiste na omissão da sua notificação para apresentarem alegações escritas que haviam requerido a fls. 486.
Efectivamente, as assistentes requereram tal, invocando o disposto no n.º 4 do art. 411º do CPP, mas o preceito aí contido não lhes oferece essa possibilidade, pois prescreve que o recorrente pode requerer que, havendo lugar a alegações, estas sejam produzidas por escrito, faculdade não conferida ao recorrido, como é o caso das requerentes. No esquema gizado pela nossa lei processual, ao recorrido só está atribuída a faculdade de obstar à produção das alegações escritas requeridas pelo recorrente, opondo-se a elas (n.º 5 do art. 417º do CPP).
Não procede, assim, a aludida arguição.
Isto posto, cumpre conhecer e decidir.

IV
E conhecendo.
4.1.
O recorrente, quer no texto da motivação, quer nas respectivas conclusões, só questiona a não suspensão da execução da pena.
Com efeito, sustenta que a pena privativa da liberdade deve ser suspensa na sua execução, uma vez que se verificam os respectivos pressupostos, eventualmente com condicionamento de deveres e regras de conduta (conclusão 1.ª). E afirma o Tribunal a quo não aplicou, ou aplicou de forma desadequada às finalidades da punição no caso "sub judice", o artigo 50º (conclusão 2.ª).
Vejamos, pois.

4.2.
Dispõe o art. 52º do C. Penal:
«1. O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da pena realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2. O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
3. Os deveres, as regras de conduta e o regime de prova, podem ser impostos cumulativamente.
4. A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.
5. O período de suspensão será fixado entre 1 e 5 anos a contar do trânsito em julgado da decisão.»
Deve, assim, o tribunal suspender, verificando-se as restantes condições prescritas naquele artigo, a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos.
Daí que se deva começar por este último requisito: pena aplicada não superior a 3 anos.
Relembra-se que o recorrente foi condenado em duas penas parcelares de 2 anos e 6 meses de prisão e de 3 anos de prisão; e na pena unitária de 4 anos de prisão.
Foi declarado perdoado 1 ano de prisão desta pena unitária que ficou reduzida a 3 anos de prisão.
Mas, diferentemente do parece supor o recorrente, não é evidente que a circunstância de a pena infligida ter ficado reduzida a 3 anos signifique que se deva ter por verificado aquele primeiro requisito.
Esta questão já foi abordada neste Supremo Tribunal de Justiça, por diversas vezes, com resposta negativa.
No acórdão de 23-06-1994, proc. n.º 46742, entendeu-se que a pena a tomar em conta para decidir sobre a sua suspensão é a pena efectivamente aplicada e não a residual resultante do perdão, nomeadamente da Lei n.º 23/91.
E entendeu-se que o artigo 48 do Código Penal na versão originária só pode ser interpretado no sentido de que a suspensão da execução da pena só pode ser decretada em relação a penas que, na sua aplicação originária, não sejam superiores a 3 anos de prisão (Ac. de 11-07-94, proc. n.º 342/93) «O que importa para a suspensão da execução de pena é a que foi aplicada em concreto, e esta não pode ultrapassar os 3 anos de prisão.» (Ac. do STJ de 07-11-1996, proc. n.º 251/96)
«O legislador, ao fixar como pressuposto formal da aplicação da suspensão da execução da pena de prisão que a medida desta não seja superior a 3 anos, tem em vista apenas os agentes punidos com penas originárias não superiores a essa medida, sendo indiferente, para esse efeito, que a pena a cumprir fique aquém desse limite por força de qualquer perdão concedido por leis de clemência.» (Ac. do STJ de 17-05-2000, 150/2000, Acs STJ VIII, 2, 197)
No mesmo sentido se podem ver ainda, e no mesmo sentido, ao Acs de 21-6-93, proc. n.º 43455, de 1-7-94, BMJ 448-157, de 28-06-1995, proc. n.º 47470, de 2-11-1995, proc. n.º 48300, de 29-10-1997, proc. n.º 321/97, de 4-3-1998, proc. n.º 3/98, de 21-06-2001, proc. n.º 249/01-5 e de 27-01-1998, proc. n.º 1352/97, de 1-07-1998, proc. n.º 461/98
Só destoa desta corrente o acórdão proferido em 16-03-1995, no processo n.º 45900, em que se entendeu que desde que se verifiquem os respectivos pressupostos, é possível suspender a pena superior a 3 anos de prisão, desde que, ao fazê-lo, o tribunal já saiba que ela fica reduzida a esse limite, por aplicação de lei de amnistia e perdão.
Mas temos por adequada, aos textos e canônes interpretativos, aquela outra corrente.
Desde logo, aponta nesse sentido o teor literal do preceito que fala em pena aplicada em medida não superior a 3 anos. Ora, pena a cumprir, como é o caso da pena residual, não é a pena aplicada.
Por outro lado, quando o legislador estabeleceu esse requisito: pena aplicada não superior a 3 anos, fê-lo enquanto índice de gravidade do ilícito merecedor dessa pena de substituição. Ou seja, sabendo-se que a pena concreta traduz sempre o grau de ilicitude e culpa da conduta em apreciação, escolheu-se uma medida limite que traduzisse os limites de gravidade das condutas abrangidas. Entender-se, diferentemente, que esse limite era balizado pela pena residual, era perturbar esse índice e o princípio da igualdade, pois que situações idênticas passariam a ser abrangidas ou não pela possibilidade de suspensão da execução, não em função da sua gravidade, mas da ocorrência de um acto de graça, já de si fazedor de desigualdade.
E, como se refere nos acórdãos de 17-05-2000, e de 27-01-1998, já citados, as medida de perdão parecem reforçar essa argumentação. O último destes arestos pondera que a verificação do pressuposto formal da suspensão da pena de prisão contido no art.º 50º, n.º 1, do CP, consistente em aquela ter sido aplicada "em medida não superior a 3 anos", só deve ter lugar após o doseamento concreto da pena de prisão, sendo que o perdão concedido pelo art. 8º, n.º 1, al. d) da Lei 15/94, só é de aplicar à pena de prisão efectivamente imposta ao arguido, não podendo o tribunal conceder tal benefício, para de seguida declarar suspensa a pena restante.
Já o primeiro, lembra que a Lei 29/99, para além da condição resolutiva do perdão, a que alude o art. 4º, dispõe no art. 6º que relativamente a condenação em pena suspensa, o perdão só será aplicado se houver revogação da suspensão.
Revogada a suspensão, e operada a condição, o arguido havia estado com a pena suspensa em relação a uma pena superior a 3 anos, reduzida (condicional e transitoriamente) a menos de 3 anos.
Se o perdão só é aplicado se houver revogação da suspensão, a decisão da suspensão antecede a da aplicação do perdão, então como se pode ter, por via do perdão, uma pena residual inferior a 3 anos suspensa, invertendo aquela ordem?
Temos, pois, que no caso sujeito, sendo a pena aplicada superior a 3 anos de prisão, não pode a mesma ser suspensa, nos termos do n.º 1 do art. 50º do C. Penal, mesmo se a pena residual, depois de operado o perdão é igual a 3 anos.
Pelo que tem de improceder a (única) pretensão deduzida neste recurso.

4.3.
Mas poderá este Supremo Tribunal de Justiça conhecer da questão colocada, em audiência de julgamento, pelo Ministério Público: mera redução da pena no quadro da qualificação jurídica efectuada e não impugnada?
A resposta a esta questão não pode deixar de ser negativa.
Dispõe o art. 402º do CPP - âmbito do recurso:
«1 - Sem prejuízo do disposto no artigo seguinte, o recurso interposto de uma sentença abrange toda a decisão. (...)»
E o art. 403º - limitação do recurso:
«1 - É admissível a limitação do recurso a uma parte da decisão quando a parte recorrida puder ser separada da parte não recorrida, por forma a tornar possível uma apreciação e uma decisão autónomas.
2 - Para efeito do disposto no número anterior, é nomeadamente autónoma a parte da decisão que se referir:
a) A matéria penal, relativamente àquela que se referir a matéria civil;
b) Em caso de concurso de crimes, a cada um dos crimes;
c) Em caso de unidade criminosa, à questão da culpabilidade, relativamente àquela que se referir à questão da determinação da sanção;
d) Em caso de comparticipação criminosa, a cada um dos arguidos, sem prejuízo do disposto no artigo 402º, n.º 2, alíneas a) e c);
e) Dentro da questão da determinação da sanção, a cada uma das penas ou medidas de segurança.
3 - A limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida.»
Ora, o recorrente limitou o recurso, no texto e nas conclusões da motivação do recurso, à questão da substituição da pena que lhe fora aplicada, pela pena não detentiva de suspensão da execução. E só invocou a incorrecta aplicação do art. 50º do C. Penal.
Ora, como tem sido o entendimento deste Supremo Tribunal de Justiça, os recursos foram concebidos como um remédio jurídico, destinado a corrigir ilegalidades e não uma busca de refinamento da jurisprudência (cfr. o Ac. de 27-02-2003, proc n.º 255/03-5, do mesmo relator).
Como se escreveu no sumário do Ac. de 9-11-2000 (proc. n.º 2749/00-5, do mesmo relator), a maior exigência em matéria de conclusões da motivação de recursos penais, reforçada, aliás, por virtude da Revisão de 1998, tem a ver com um clima de lealdade processual que passa pela clara definição e assunção dos fundamentos do recurso, recurso entendido como remédio jurídico que exige a clara indicação do erro de direito (e de facto quando é o caso) cometido. Não tem o Tribunal Superior de substituir-se ao recorrente e empreender uma expedição à motivação com vista a surpreender os fundamentos que devem estar claramente enunciados nas conclusões. Os princípios de economia e celeridade processuais que também se visam com a maior exigência na formulação das conclusões dirigem-se ao processamento no Tribunal Superior e não às partes que devem enunciar claramente os erros de julgamento ou de procedimento operacionalizando e agilizando a indagação do Tribunal Superior.»

4.4.
Mas postula-se uma outra questão com relevância na determinação do regime punitivo da conduta havida em relação à ofendida MEHG, e eventualmente na medida da pena, que pode ser conhecida por este Supremo Tribunal de Justiça.
Com efeito, como se decidiu no Ac. de 17-01-2002 (Acs STJ X, 1, 183):
«2 - O acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 4/95, de 7.6.95 (DR IS-A de 6-7-95 e BMJ n.º 448 pág. 107) que decidiu: "o Tribunal Superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido, mesmo para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus", e assento n.º 2/93 do STJ, em cuja senda aquele se situa, reformulado, na seguinte forma (Assento n.º 3/2000, 15-12-1999, DR IS-A de 11-2-2000.): "Na vigência do regime dos Códigos de Processo Penal de 1987 e de 1995, o tribunal, ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando esta existisse, podia proceder a uma alteração do correspondente enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente desse conhecimento e, se requerido, prazo, ao arguido, da possibilidade de tal ocorrência, para que o mesmo possa organizar a respectiva defesa "fundam-se na ideia de que constitui núcleo essencial da função de julgar, o enquadramento jurídico dos factos apurados, a determinação do direito, pelo que não está limitada por errado enquadramento que haja sido feito pelos interessados ou pelas partes.
3 - Ideia reafirmada no mencionado acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/95 com redobrado valor, tratando-se já não de pronúncia, mas de sentença penal condenatória que potencia o exame e crítica em via de recurso e que ganha ainda maior sentido tratando-se, como se trata, de um recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça, cuja natureza e funções tornariam incompreensível que, detectado um erro de direito em relação a uma condenação submetida a recurso, se abstivesse de o corrigir, mesmo tratando-se de fazer respeitar a sua jurisprudência obrigatória, defesa cuja importância justifica, só por si, a existência de um recurso extraordinário próprio - o do art. 446º do CPP.
4 - Ainda que o recorrente não ponha concretamente em causa a incriminação definida pelo Colectivo ou a ponha num sentido diverso, não pode nem deve o STJ - enquanto tribunal de revista e órgão, por excelência e natureza, mentor de direito - dispensar-se de reexaminar a correcção das subsunções.
5 - Sendo o Supremo Tribunal um tribunal de revista, só conhece de direito e estando em causa a qualificação jurídica por entender o recorrente que o crime é simples e não qualificado como fora decidido, pode indagar se deve ser adoptada uma outra e diversa qualificação jurídica.»
Sucede que consta dos factos provados que a conduta do arguido recorrente em relação à filha MEHG tiveram lugar em Fevereiro e Abril de 1995 e em datas que não foi possível determinar. O Código Penal na versão aplicada na decisão recorrida entrou em vigor só no dia 1 de Outubro de 1995, por força do disposto no art. 13º da Lei n.º 48/95, de 13 de Março, pelo que, não estando assente que o crime continuado se manteve depois da sua entrada em vigor, só poderia ser aplicado se se mostrasse mais favorável, o que não é o caso.
Com efeito, de acordo com a lei em vigor à data comprovada dos factos, a versão originária do C. Penal, a moldura penal abstracta era para o atentado ao pudor agravado de 4 meses a 4 anos de prisão [arts. 205º, n.º 2 e 208º, n.º 1, al. a)], enquanto que o C. Penal de 1995 previa uma moldura de 1,33 a 10.66 anos de prisão.
Sendo assim, a conduta do recorrente em relação a sua filha MEHG deve ser subsumida àqueles preceitos e, em consequência, atendendo aos elementos referenciados na decisão recorrida, a pena por tal crime deve ser fixada em 18 meses de prisão e, procedendo ao cúmulo com a pena de 3 anos aplicada pelo crime em que é ofendida a sua filha MMHG, é a pena única fixada em 3 anos e 6 meses de prisão.

V
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso, mas alterar a decisão recorrida nos termos referidos, no mais a confirmando.
Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça de 5 Ucs.

Lisboa, 20 de Março de 2003
Simas Santos
Abranches Martins
Oliveira Guimarães
Carmona da Mota