Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
262/13.3PAPTM.E1.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: MANUEL BRAZ
Descritores: MOTIVAÇÃO DO RECURSO
FALTA
HOMICÍDIO QUALIFICADO
TENTATIVA
DESISTÊNCIA
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
SEQUESTRO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MATÉRIA DE FACTO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
COACÇÃO
COAÇÃO
AMEAÇA
CÚMULO JURÍDICO
PENA ÚNICA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Data do Acordão: 06/16/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Área Temática:
DIREITO PENAL - FACTO / FORMAS DO CRIME - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / CONCURSO DE CRIMES - CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A INTEGRIDADE FÍSICA.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - RECURSOS.
Doutrina:
- Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, 2ª edição, 708, 751, 753 e 754; Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Reimpressão, 2005, 291 e 292.
- Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Almedina, 2.ª Reimpressão, 66 a 70, 79 a 82.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 420.º, N.º 1, AL. B), 424.º, N.º 3, 432.º, N.º 1, ALÍNEA C).
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 22.º, N.º 2, 24.º, N.º 1, 40.º, N.ºS 1 E 2, 50.º, N.º 1,71.º, 77.º, 132.º, N.º 2, AL. B), 143.º, N.º 1, 145.º, N.ºS 1, AL. A) E 2.
Sumário :
I - A falta de motivação sobre a questão da determinação da medida da pena do crime de violência doméstica, sendo causa de rejeição do recurso quando se refira à totalidade do seu objecto, nos termos do art. 420.º, n.º 1, al. b), do CPP, determina, quando respeite a alguma ou algumas das questões suscitadas, o não conhecimento dessa parte.
II - O âmbito de apreciação do STJ está, pois, limitado à parte da decisão recorrida relativa à tentativa de homicídio, com conhecimento da questão da medida da pena respectiva e/ou de outra ou outras que eventualmente a precedam, podendo nomeadamente prejudicá-la, e sejam de conhecimento oficioso, e à determinação da pena única, se for caso disso. Apesar de não vir questionada no recurso a qualificação jurídica dos factos, ela é de conhecimento oficioso, como resulta do n.º 3 do art. 424.º do CPP, que prevê uma alteração da qualificação jurídica dos factos não conhecida do arguido.
III - Embora a decisão recorrida, na fundamentação de direito, seja pouco clara na identificação dos factos que considerou preencherem a tentativa de homicídio, percebe-se que teve o ilícito consubstanciado na tomada da resolução de matar a ofendida, por enforcamento, na preparação do mecanismo para o efeito – fixação de suportes na parede do quarto e aquisição dos cabos de aço e dos laços -, nas manobras de atracção da vítima ao local e no acto de lhe mostrar aqueles instrumentos dizendo-lhe que um dos conjuntos era para ela e o outro para ele.
IV - Não foi, pois, no acto de apertar o pescoço à ofendida até ela perder a consciência que se viu a tentativa de homicídio. Nem podia ver, na medida em que, por um lado, nenhum facto afirma que aí houve intenção de matar e, por outro, se tivesse existido essa intenção, haveria desistência voluntária, tornando a tentativa não punível, à luz do art. 24.º, n.º 1, do CP.
V - Nenhum dos actos referidos em III. integra seguramente o acto de matar, elemento típico do crime de homicídio. Nem, desconsiderando o acto de apertar com as mãos o pescoço da ofendida, alheio ao projecto homicida, como se disse, é, por si, idóneo a causar a morte, resultado típico do mesmo crime. No contexto, acto idóneo a produzir a morte da vítima seria o de apertar-lhe o pescoço com o laço, etapa que esteve longe de ser atingida. Não há, pois, no descrito proceder do arguido actos de execução na acepção das als. a) e b) do n.º 2 do art. 22.º do CP, restando a previsão da al. c).
VI - No caso, o arguido não praticou sobre a ofendida qualquer acto que pudesse ser visto como antecedendo imediatamente um acto integrador do crime de homicídio ou idóneo a causar a morte dela. Nomeadamente, não fez menção de a arrastar até ao local onde fixara os suportes ou de fazer uso do cabo de aço ou do laço que preparara, não tendo chegado a haver perturbação da esfera de protecção da vida da ofendida. Assim, também não houve actos de execução do crime de homicídio na acepção da al. c) do n.º 2 do art. 22.º do CP.
VII – E se assim não fosse, deveria concluir-se que houve desistência voluntária, não sendo por isso a tentativa punível, de acordo com o n.º 1 do art. 24.º do CP, pois o arguido não prosseguiu com o projecto homicida, sendo que só dependia da sua vontade prosseguir. Com efeito, mesmo que se considerasse que o arguido tinha abandonado o projecto homicida condicionado pela falsa promessa da ofendida, nem assim a desistência seria involuntária, pois não lhe seria imposta e antes seria escolha sua. Pelo que, ao contrário do que considerou a 1.ª instância, o arguido tem de ser absolvido da tentativa de homicídio qualificada.
VIII – O acto de o arguido apertar com as mãos o pescoço da ofendida, sua ex-companheira consubstancia a prática pelo mesmo de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143.º, n.º 1 e 145.º, n.º 1, al. a) e 2, com referência à al. b) do n.º 2 do art. 132.º, todos do CP. O arguido, agredindo a ex-companheira de várias maneiras e com grande violência, desferindo-lhe murros, sobretudo na face, puxando-lhe o cabelo e apertando-lhe o pescoço de modo a fazê-la perder a consciência, urinar e defecar na cama, revelou uma vontade muito forte de ofender o seu corpo e a sua saúde, o que traduz dolo muito intenso. O grau de ilicitude é grande e em sede de prevenção especial releva negativamente a não interiorização por parte do arguido da gravidade e do carácter censurável da sua conduta. Tudo ponderado, tem-se como permitida pela culpa, necessária e suficiente para satisfazer as finalidades da punição a pena de 3 anos de prisão.
IX - A afirmação de que o arguido manteve a ofendida no interior da sua habitação contra a vontade dela não é uma afirmação de facto, mas de direito, e por isso controlável pelo STJ. Equivale à afirmação de que esteve privada da liberdade, e não é fundada. Com efeito, a ofendida entrou na habitação do arguido e que já fora de ambos de livre vontade, e não se provou que em algum momento pretendeu daí sair e foi disso impedida pelo arguido, por palavras ou actos, nem que, sem ela manifestar esse propósito, ele lhe disse ou deu a entender de forma inequívoca que a não deixava sair. Não se tendo assim provado que a ofendida foi, contra a sua vontade, retida pelo arguido na habitação deste, não se preenche o crime de sequestro.
X - A factualidade descrita em III. também não integra uma tentativa de coacção, desde logo porque os factos não afirmam, pelo menos de forma inequívoca, que o arguido visou com essa conduta constranger a ofendida a fazer ou a não fazer fosse o que fosse, designadamente voltar a viver com ele. Quanto ao crime de ameaça, se é certo que os factos indicados devem ser interpretados como contendo o anúncio de um mal futuro, traduzido na morte da ofendida por enforcamento, que podia acontecer a qualquer momento, quando o arguido quisesse, anúncio esse feito de forma adequada a provocar-lhe medo, também o é que não ficaram provados factos integradores do dolo, pelo que também não se preenche o crime de ameaça.
XI - Para efeitos de cúmulo jurídico da pena referida em VIII com a pena de 2 anos de prisão, pelo crime de violência doméstica, tendo em conta que tanto as exigências de prevenção geral como as exigências de prevenção especial são significativas, considera-se como permitida pela culpa, suficiente e necessária para satisfazer as finalidades da punição a pena única de 3 anos e 6 meses de prisão.
XII – O circunstancialismo que rodeou a prática dos factos revelou predisposição do arguido para a prática deste tipo de crimes, não tendo o arguido interiorizado a gravidade dos mesmos, circunstâncias que obstam a que se faça um prognóstico favorável sobre o seu comportamento futuro, pelo que não se pode assim suspender a execução da pena.
Decisão Texto Integral:

                       Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

          Sob a acusação da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artº 152º, nºs 1, alínea d), e 2; um crime de sequestro, p. e p. pelo artº 158º, nº 1; um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artºs 143º, 145º, nºs 1, alínea a), e 2, e 132º, nº 2, alínea b); e um crime de homicídio qualificado tentado, p. e p. pelos artºs 131º, 132º, nºs 1 e 2, alíneas b) e j), 22º, 23º e 73º, nº 1, alíneas a) e b), todos do Código Penal, foi submetido a julgamento em processo comum com intervenção do tribunal colectivo o arguido AA.

            No final, o tribunal de 1ª instância decidiu:

a) condenar o arguido na pena de 2 anos de prisão, pelo crime de violência doméstica;

b) absolvê-lo da acusação relativamente aos crimes de sequestro e de ofensa à integridade física qualificada;

c) considerar a tentativa de homicídio qualificada apenas pela alínea b) do nº 2 do artº 132º, condenando o arguido por esse ilícito na pena de 5 anos de prisão;

d) aplicar-lhe, em cúmulo jurídico, a pena única de 6 anos de prisão.

Dessa decisão o arguido interpôs recurso para a Relação de Évora, concluindo a sua motivação nos termos que se transcrevem:

«a) Os Meritíssimos Juízes “a quo” não fizeram uma correcta aplicação do Direito aos factos, nomeadamente quanto à medida da pena aplicada ao recorrente.

b) A pena de prisão aplicada ao recorrente mostra-se bastante elevada, tendo em consideração a matéria dada como provada nos autos e a moldura penal dos crimes.

c) Tendo em conta tudo o que resultou provado, o arguido deveria ter sido condenado em pena de prisão que, na sua soma aritmética, não ultrapassasse os 5 anos de prisão.

d) O arguido praticou este crime sob o efeito de bebidas alcoólicas, encontrando-se à data psicologicamente abalado com o fim do seu relacionamento com a ofendida, estando o seu raciocínio toldado.

e) Mostrou-se arrependido, não justificando o seu comportamento com quaisquer desculpas.

f) Analisando os crimes pelos quais o ora arguido foi condenado e a situação familiar e social envolvente não se poderá afirmar que o ora recorrente possua uma personalidade para a prática de ilícitos criminais.

g) Mais se entende que, não podendo esta pena ser superior a 5 (cinco) anos de prisão, também a mesma deveria ser suspensa na sua execução, sujeitando-se o ora arguido a quaisquer condições e/ou injunções impostas.

h) Ao não entender assim, o douto Acórdão Recorrido violou o disposto nos artigos 22º, 23º, 73º, 131º e 132º do Código Penal.

Termos em que deve ser concedido provimento ao presente Recurso, reduzindo a pena determinada em cúmulo de 6 anos de prisão efectiva para o máximo de 5 anos de prisão, mais se requerendo que a mesma seja suspensa, sujeitando-se o arguido a quaisquer condições por V. Ex.ªs impostas, assim se fazendo JUSTIÇA».

Respondendo, o MP junto do tribunal recorrido defendeu a improcedência do recurso.

A Relação de Évora julgou-se incompetente para o julgamento do recurso, considerando competente o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artº 432º, nº 1, alínea c), do CPP.

Remetido o processo a este Supremo Tribunal, o senhor Procurador-Geral-Adjunto foi de parecer que o recurso, visando unicamente a medida da pena única, não merece provimento.

Foi cumprido o artº 417º, nº 2, do CPP.

Não foi requerida a realização de audiência.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação:

Foram considerados provados os factos seguintes (transcrição):

1. O ora arguido, em data não concretamente determinada mas que se situa por volta do mês de Maio de 1994, iniciou um relacionamento amoroso com a ofendida BB, tendo estes passado a viver em plena comunhão de cama, mesa e habitação, como se de um normal casal se tratasse, fixando a sua residência no ..., numa habitação propriedade dos pais do arguido.

2. Na constância desse relacionamento o arguido e a ofendida tiveram três filhos, a CC, nascida em ..., o DD, nascido em ..., e a EE, nascida em ....

3. Esse relacionamento durou cerca de 19 anos, pelo menos até ao dia ..., data em que a ofendida decidiu separar-se do arguido, tendo saído da casa do casal, e levado os seus três filhos consigo para ..., onde fixou residência em casa arrendada pelo seu irmão.

4. Na base dessa saída estiveram factos relacionados com uma alegada situação de violência doméstica que se viveria no seio do casal, factos esses denunciados e apreciados no âmbito do processo que, sob o nº 1760/12.1 PBSNT, corre termos pelo Tribunal de ....

5. Porém, o ora arguido nunca aceitou bem tal separação, pelo que continuou a insistir junto da ofendida BB pelo seu regresso a casa, bem como o dos seus filhos.

6. Na verdade, era comum o ora arguido dirigir-se à sua companheira nos seguintes termos: “Se não ficas comigo não ficas com mais ninguém”, “Fui eu que te acabei de criar, tu pertences-me”, “Se me deixares eu vou atrás de ti e onde te apanhar é aí que tu ficas”.

7. Em face dessa constante pressão, a ofendida BB acabou por permitir que os seus três filhos regressassem com o ora arguido à casa deste, no dia ....

8. A partir desta data os três filhos da ofendida passaram a residir novamente no ..., mas agora aos cuidados dos avós paternos, que residem numa habitação contígua à do arguido.

9. Porém, e não obstante os cuidados redobrados que os referidos avós paternos passaram a exercer sobre os seus três netos, o que é certo é que estes continuavam muito perto do ora arguido, sendo frequentes os contactos entre eles.

10. Mercê destes contactos, o ora arguido sempre foi aproveitando para manter uma relação próxima com os seus filhos, mas com a intenção de os controlar, de os usar para trabalhar em pequenas lides domésticas e, sobretudo, para os utilizar como meio de chantagem para forçar a ofendida Mónica a regressar a casa.

11. No prosseguimento dessa sua conduta o arguido passou, sobretudo, a ameaçar constantemente a sua filha menor CC, a quem culpava da saída de casa da sua mãe, a ofendida BB.

12. Assim, e aproveitando-se do ascendente da figura de progenitor que exercia sobre a sua filha, o ora arguido, em data não apurada mas que se sabe ter sido no mês de Novembro de 2012, dirigindo-se à ofendida CC, proferiu as seguintes expressões: “Dou-te um pontapé, e escavaco-te os queixos todos”.

13. O que fez esta, mais uma vez, recear pela sua integridade física, senão mesmo pela sua própria vida, tanto mais que eram constantes as ameaças que lhe eram dirigidas pelo ora arguido.

14. Em dia que igualmente não foi possível determinar, mas que se sabe ter sido no mês de Janeiro de 2013, os três filhos do ora arguido identificados supra em 2 perderam o autocarro que os transportava da escola em ... para casa.

15. Quando chegaram, seriam cerca de 17 horas, o ora arguido abordou-os antes de irem para casa dos avós, e levou-os para o interior da sua habitação.

16. Uma vez no seu interior o arguido muniu-se de um cinto dobrado a meio, e com o mesmo atingiu a ofendida CC em várias partes do seu corpo, sobretudo na zona das nádegas.

17. De seguida o arguido ainda tentou agredir, com o mesmo cinto, a sua filha EE, mas a CC colocou-se na frente desta, tendo sido atingida uma vez mais, agora na zona da mão direita.

18. A ofendida CC não foi submetida, em tempo útil, à realização de qualquer exame médico, pelo que não nos é possível indicar quais as lesões efectivamente sofridas, bem como as eventuais consequências das mesmas, mas o que é certo é que a mesma apresentava no seu corpo, nos dias imediatos, vários hematomas de cor arroxeada.

19. Ainda nesse mesmo dia, seriam cerca de 19 horas, o ora arguido dirigiu-se à casa de seus pais, alegando pretender falar com a sua filha CC.

20. Chegado junto desta exigiu-lhe que lhe entregasse o telemóvel, ao que esta acedeu.

21. Depois de inspeccionar o referido telemóvel, e talvez por não ter encontrado o que procurava, o arguido arremessou-o na direcção da cabeça da ofendida CC, tendo-a atingido na zona da orelha esquerda.

22. Com tal comportamento o arguido, e depois de um interregno em que a ofendida CC esteve ausente em ..., voltou a exercer sobre esta toda uma série de actos violentos, repressivos, atentatórios não só da sua integridade física, como também do seu equilíbrio psicológico e emocional.

23. De facto, a menor CC passou a apresentar um quadro de humor disfórico, de choro fácil, de angústia fóbica e de ansiedade, principalmente quando sentia que não tinha a segurança dos avós, o que a fez entrar numa situação depressiva e ansiogénica reactiva ao comportamento violento do seu progenitor.

24. Com esse sofrimento a menor CC foi afectada, de forma negativa, nos seus relacionamentos interpessoais, enquanto adolescente, bem como no seu rendimento escolar, que passou a ser pautado pelo desinteresse, pelo absentismo, pela falta de concentração.

25. Entretanto, a ofendida BB sempre foi tentando manter um relacionamento o mais próximo possível do arguido, por forma a poder visitar e estar com os seus três filhos.

26. Não obstante ter receio deste, do seu comportamento agressivo, da perseguição e coacção constante que este sempre foi exercendo sobre si, sempre com a intenção de a fazer regressar à sua residência.

27. Em 16 de Dezembro de 2012 a ofendida BB, como forma de estar mais próxima dos seus filhos, decide regressar ao Algarve, tendo-se fixado em ....

28. Embora estivesse mais próxima, não tinha ainda condições para cuidar e tratar dos seus filhos, pelo que estes continuaram entregues e confiados aos cuidados dos avós paternos.

29. Entretanto a ofendida chega a um acordo com o arguido, pensando tê-lo convencido do carácter definitivo da sua separação, declarando este que não colocava quaisquer objecções a que esta visitasse com regularidade os seus filhos.

30. Para melhor convencer a ofendida o arguido cedeu-lhe o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ...-IU, marca “Honda”, de sua propriedade, e para que esta se fizesse transportar com facilidade entre ....

31. E como forma de manter e cimentar esse acordo, a ofendida chegou mesmo a aceder manter relações de trato sexual com o arguido, de forma ocasional, sempre como forma de manter a porta aberta para o contacto com os seus filhos.

32. No entanto, o arguido continuou a insistir com a ofendida pelo seu regresso a casa.

33. Bem como, sem esta se aperceber, começou a persegui-la, a controlar a sua vida, tentando saber se esta mantinha um relacionamento amoroso com terceiros.

34. Face à relutância da ofendida em reatar a vida em comum, o arguido começou a gizar na sua mente um plano que passaria por atrair a ofendida ao interior da sua habitação, e por cometer homicídio na pessoa desta por enforcamento, seguido do seu próprio suicídio pelo mesmo método.

35. Na prossecução desse plano o arguido, em dia e hora que não foi possível determinar, mas que se sabe ter sido em meados do mês de Fevereiro de 2013, pregou na parede do quarto da sua habitação dois fortes e resistentes camarões, a uma distância muito próxima do tecto dessa dependência, conforme resulta da fota constante de fls. 191.

36. Adquiriu ainda dois cabos de aço idênticos, revestidos a plástico, com o comprimento de 1,04 metros, nos quais colocou, nas suas extremidades, um serra cabos, por forma a criar nas quatro extremidades quatro laços, com diâmetros entre os 5 e 6,5 cms.

37. Esses dois camarões, bem como os dois cabos de aço, apresentavam uma robustez suficiente para suportar o peso ou a pressão necessária para provocar a asfixia de uma pessoa adulta.

38. No prosseguimento desse plano o arguido manuscreveu ainda um bilhete, aparentemente de despedida dos seus pais, com o seguinte teor: “14.02.2013 estou farto da merda da vida que levo, tu ganhaste, um pai que só tenta meter o filho na merda mas agora tens três, vão ser melhores que eu, vou acabar com esta merda, mato a BB e a mim, ficas logo feliz. Não quero ninguém de preto. A BB fica em ... também. Obrigado. ACABOU”.

39. Tendo tudo assim preparado, o arguido começou a procurar o momento e a forma de atrair a ofendida à sua residência.

40. Na noite do dia 23 de Fevereiro de 2013, o arguido deslocou-se até ..., com a intenção de contactar a ofendida BB, a quem pretendia exigir a devolução do seu carro.

41. Depois de alguma hesitação, lá acabou por bater à porta da residência desta, seriam cerca de 5 horas da madrugada, momento em que terá ouvido a voz de uma pessoa do sexo masculino.

42. Tendo como confirmadas as suas suspeitas, de tal modo ficou irritado o arguido que logo dirigiu à ofendida várias mensagens por telemóvel, a exigir que esta se deslocasse a sua casa, em ..., para entregar o carro.

43. Acabaram por se encontrar pelas 9 horas e 40 minutos da manhã do dia 24 de Fevereiro de 2013 no bar denominado “...”, situado a cerca de 2 Km da residência do arguido.

44. Para onde logo se dirigiram cerca de 5 minutos depois, após terem tomado um rápido café.

45. Ali chegados entraram ambos para o interior da habitação que tinha sido a residência do casal, tendo o arguido fechado a porta pelo interior, retirado a chave da fechadura e guardado a mesma dentro de uma jarra, que estava por cima do móvel da televisão.

46. Depois de uma breve conversa, o arguido retirou-se um pouco com a desculpa de ir à casa de banho, tendo-se dirigido nesse momento à cozinha, onde acabou por colocar em cima da mesa o bilhete que consta de fls. 193, por si anteriormente manuscrito.

47. Dirigiram-se depois ambos para o interior do quarto onde, por proposta do arguido, e com a anuência da ofendida, como forma de o tentar acalmar, acabaram por manter relações de trato sexual.

48. Estavam ainda na cama quando o arguido lhe disse para fugirem dali.

49. Como a ofendida disse que não, o arguido logo desferiu violentos murros que a foram atingir sobretudo na zona da face.

50. Puxou-lhe igualmente de forma violenta os cabelos.

51. E, de forma completamente descontrolada, com as suas duas mãos apertou o pescoço da ofendida.

52. O que fez de tal forma violenta que provocou, com a pressão física exercida, a perda de consciência pela ofendida.

53. Esta, apercebendo-se do final da sua vida, acabou por, de forma descontrolada, urinar e por fazer as fezes no leito da cama.

54. Talvez por este facto, ou pelo estado inconsciente da ofendida, o arguido acabou por afrouxar a pressão por si exercida no pescoço da ofendida, tendo esta recuperado os sentidos.

55. A ofendida abraçou-se ao arguido, a chorar convulsivamente, e pedindo com toda a força que não lhe fizesse mal, estando disposta a tudo fazer por ele.

56. O arguido agarrou a ofendida, levou-a para a casa de banho, e deu-lhe banho.

57. De seguida levou-a novamente para o quarto onde, apontando para a parede onde estavam colocados os camarões, acabou por lhe dizer: “Aquilo que está ali é um para ti e outro para mim”.

58. Mostrou-lhe igualmente os dois cabos de aço com a argola na ponta, tendo-lhe igualmente referido que um era para ele e o outro era para ela.

59. De tal modo ficou a ofendida receosa pela sua vida que logo aceitou voltar para o ofendido, tendo-lhe tudo prometido para o tentar acalmar.

60. Só precisava de ir a ... para ir buscar os seus pertences pessoais o que, depois de uma insistente conversa, lá acabou por convencer o arguido, tendo saído da habitação deste seriam cerca de 10 horas e 40 minutos.

61. Tendo por essa forma, logrado escapar à acção do arguido.

62. O qual pretendia, com a sua conduta, tirar a vida à ofendida, e suicidar-se de seguida, intenção essa que já vinha sustentando há alguns dias atrás.

63. O que só não prosseguiu, ou alcançou, devido ao rumo dos acontecimentos entretanto ocorridos.

64. No entanto, todos esses factos foram, ou eram, alheios à vontade do arguido, que era a de, efectivamente, retirar a vida à ofendida.

65. Com a conduta descrita supra em 48 e 49 o arguido causou à ofendida as lesões que se encontram melhor examinadas e descritas a fls. 141.

66. As quais lhe vieram a determinar, de forma directa e necessária, um período de 10 (dez) dias de doença, todos eles sem qualquer afectação da sua capacidade para o trabalho.

67. Quis o arguido, por essa forma, atingir a ofendida BB na sua integridade física, como efectivamente atingiu.

68. Por outro lado, manteve o arguido a ofendida no interior da sua habitação contra a vontade desta, quer por lhe ter retirado a chave da porta, quer pelo carácter intimidatório da postura e conduta que manteve para com ela.

69. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente.

70. Bem sabendo que tal conduta não lhe era permitida, e que a mesma era punida por lei.

71. AA mantém-se sozinho, na casa onde viveu com a mulher e filhos, até à separação, ocorrida em .... Trata-se no entanto de um edifício contíguo à casa dos seus pais, integrando uma propriedade agrícola da família, permitindo-se uma interacção próxima e intercolaboração a vários níveis. Os recursos económicos provêm da actividade familiar agrícola, a par dos proventos individuais do arguido, que há vários anos se dedica à prestação de trabalhos de pintura de construção civil, que, embora sem um carácter regular, permitem a satisfação das necessidades básicas.

À data dos factos constantes na acusação, ano 2012 - 2013, vigoravam conflitos extremos no casal, que se encontrava em fase de separação.

O arguido manteve vida em comum com a vítima identificada no processo, BB, durante cerca de 19 anos, contexto em que nasceram os três únicos filhos de ambos, actualmente com ...., ... e ... anos de idade. Foi uma relação iniciada ainda na fase da adolescência, tinha ela ... anos e ele ... anos. BB era proveniente da região da ..., veio viver com um familiar em ..., que faleceu, pelo que quando iniciou vida em comum com AA já não dispunha aqui de referências familiares, mas permitiram-se relações positivas de entreajuda com a família do companheiro.

Os maiores factores de stress ter-se-ão vindo a acentuar já depois do nascimento dos filhos, convergindo comportamentos levianos de BB e desregulação psico-emocional e agravamento de consumos de álcool do arguido.

Neste contexto, observaram-se várias iniciativas de saída de casa da companheira, regra geral seguidas de retorno e reconciliação, com muita insistência do arguido, que não aceitava a separação.

AA mostra-se ainda muito ressentido pelo insucesso e termo desta relação, para os quais dificilmente reconhece o seu contributo. Empola aspectos da alegada má conduta da ex-companheira, como o descurar as tarefas em casa e com os filhos e ter outras relações amorosas.

Encara-os como tendo estado na base dos conflitos e sendo atenuantes dos actos de violência exercidos, desresponsabilizando-se no efeito do álcool e estado de descompensação psico-emocional. Não tem autocrítica face à pressão extrema por ele exercida para o reatamento da relação.

A evolução de BB depois da separação, vindo a desenvolver actividade em bares de diversão nocturna, envolver-se em problemas de tráfico e consumo de estupefacientes, bem como o cumprimento de pena de prisão efectiva terão sido determinantes para que se observe já um maior distanciamento do arguido da relação com a vítima identificada.

A gravidade dos conflitos do casal, a observada instabilidade de BB e a referência positiva dos avós, conduziram a que a guarda e cuidados dos descendentes seja até ao pressente assegurada pelos pais do arguido.

Efectivamente, é junto dos avós que aqueles jovens encontram a protecção mais efectiva, ainda que a evolução da relação com o pai tenha melhorado, ultrapassando-se os acessos de violência verbal e por vezes física, do passado.

BB cumpre ainda pena de prisão, agora reclusa no EP de Tires e uma vez em meio livre os seus projectos são de viver próxima à sua família de origem, perto de Lisboa.

AA mostra-se um indivíduo introvertido, com um universo relacional muito limitado, pouco dado a hábitos de convivência e muito difícil de expressar sentimentos e opiniões.

Da sua história de vida, houve menção a um acidente de viação aos 15 anos, com internamento longo e sequelas na saúde física (afectação de um dos membros inferiores) e justificativos de algumas desordens de personalidade nunca resolvidas, como a depressividade, a intolerância a críticas e contrariedades, com elevada desregulação emocional, designadamente passagens ao acto agressivo, algumas vezes auto dirigidas. Nunca parece ter havido lugar a um acompanhamento especializado de continuidade.

Ainda assim, fora das ocorrências associadas à anterior vivência conjugal, não é conhecido no meio residencial como pessoa conflituosa ou problemática, de acordo com OPC’s locais.        

72. O arguido não tem antecedentes criminais.

Apreciando:

1. Sendo a decisão recorrida um acórdão final de tribunal colectivo que aplicou pena de prisão superior a 5 anos e visando o recurso exclusivamente matéria de direito, a competência para o julgamento pertence, como decidiu a Relação, ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artº 432º, nº 1, alínea c), do CPP.

2. Na sua motivação, o recorrente, depois de identificar os dois crimes pelos quais foi condenado, alega que “os meritíssimos juízes a quo não fizeram uma correcta aplicação do direito aos factos, nomeadamente quanto à medida da pena aplicada por aqueles crimes”. Essa afirmação visa cada uma das duas penas parcelares. Porém, de seguida, não é feita qualquer alusão à pena aplicada pelo crime de violência doméstica, limitando o recorrente a sua alegação à medida da pena da tentativa de homicídio, indicando as razões pelas quais entende que “ainda se encontra elevada”, e da pena única, bem como à pretensão de que esta, fixando-se em medida não superior a 5 anos de prisão, seja suspensa na sua execução.

Não há, assim, motivação sobre a questão da determinação da medida da pena do crime de violência doméstica. A falta de motivação, sendo causa de rejeição do recurso quando se refira à totalidade do seu objecto, nos termos do artº 420º, nº 1, alínea b), do CPP, determina, quando respeite a alguma ou algumas das questões suscitadas, o não conhecimento dessa parte.

O âmbito de apreciação do Supremo está, pois, limitado à parte da decisão recorrida relativa à tentativa de homicídio, com conhecimento da questão da medida da pena respectiva e/ou de outra ou outras que eventualmente a precedam, podendo nomeadamente prejudica-la, e sejam de conhecimento oficioso, e à determinação da pena única, se for caso disso.

3. Apesar de não vir questionada no recurso a qualificação jurídica dos factos, ela é de conhecimento oficioso, como actualmente resulta do nº 3 do artº 424º do CPP, que prevê uma alteração da qualificação jurídica dos factos não conhecida do arguido.

Embora a decisão recorrida, na fundamentação de direito, seja pouco clara na identificação dos factos que considerou preencherem a tentativa de homicídio, percebe-se que teve o ilícito como consubstanciado na tomada da resolução de matar a ofendida, por enforcamento, na preparação do mecanismo para o efeito – fixação de suportes na parede do quarto e aquisição dos cabos de aço e dos laços –, nas manobras de atracção da vítima ao local e no acto de lhe mostrar aqueles instrumentos dizendo-lhe que um dos conjuntos era para ela e o outro para ele (factos 34 a 46, 57 e 58).

Não foi, pois, no acto de apertar o pescoço à ofendida até ela perder a consciência que se viu a tentativa de homicídio. Nem podia ver, na medida em que, por um lado, nenhum facto afirma que aí houve intenção de matar e, por outro, se tivesse existido essa intenção, haveria desistência voluntária, tornando a tentativa não punível, à luz do artº 24º, nº 1, do CP.

4. Vejamos então se aquele comportamento do arguido preenche a tentativa de homicídio.

Estabelece o artº 22º do CP:

1 – Há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se.

2 – São actos de execução:

a) Os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime;

b) Os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou

c) Os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.

O arguido, tendo decidido matar a ex-companheira, por meio de enforcamento, e suicidar-se de seguida, pelo mesmo método, adquiriu os instrumentos que idealizou para o efeito, fixou na parede do seu quarto, na sua habitação, aqueles que serviriam de suporte aos corpos e manteve acessíveis os demais. Atraiu a ofendida a essa habitação, fechando a porta à chave, depois de ela entrar. Aí, sem ela se aperceber, colocou de modo a ser visto o bilhete que escrevera dando conta dos actos que tinha em mente levar a cabo e das suas razões. De seguida, com consentimento da ofendida, mantiveram relações sexuais naquele quarto. Enquanto estavam na cama, o arguido propôs-lhe “fugirem dali”. Ela recusou e por essa razão ele bateu-lhe e apertou-lhe o pescoço com as mãos, fazendo-a perder a consciência, urinar e defecar na cama. O arguido afrouxou a pressão e a ofendida recuperou os sentidos, abraçando-se a ele a chorar convulsivamente e pedindo-lhe que não lhe fizesse mal, que estava disposta a voltar para ele. O arguido levou-a então para a casa de banho onde lhe deu banho. Após isso, levou-a novamente para o quarto onde lhe mostrou os suportes que fixara na parede, bem como os cabos de aço e os laços e disse-lhe que um dos conjuntos era para ela e o outro era para ele. A ofendida ficou com medo, disse-lhe que voltava para ele, só precisando de ir buscar os seus pertences, e, sem oposição do arguido, abandonou a casa.

Nenhum destes actos integra seguramente o acto de matar, elemento típico do crime de homicídio. Nem, desconsiderando o acto de apertar com as mãos o pescoço da ofendida, alheio ao projecto homicida, como se disse, é, por si, idóneo a causar a morte, resultado típico do mesmo crime. No contexto, acto idóneo a produzir a morte da vítima seria o de apertar-lhe o pescoço com o laço, etapa que esteve longe de ser atingida. Não há, pois, no descrito proceder do arguido actos de execução na acepção das alíneas a) e b) do nº 2 do artº 22º.

Resta a previsão da alínea c).

O arguido preparou a situação que lhe permitia concretizar o propósito de matar a ofendida: adquiriu instrumentos adequados, posicionou-os por forma a poderem ser prontamente utilizados e fez com que a vítima se deslocasse ao local onde pretendia realizar o crime. O ter feito com que a ofendida se deslocasse a esse local foi o último acto que levou a cabo com vista à realização do crime projectado.

É certo que posteriormente lhe mostrou os dois conjuntos de instrumentos que adquirira e tinha consigo adequados a provocar a morte por enforcamento dizendo-lhe que um era para ela e o outro para ele, mas, à luz dos factos provados, não se vê que a esse acto ainda tenha presidido o propósito de tirar a vida à ofendida, pois o arguido não fez então qualquer gesto ou anúncio indicativo de que iria usar tais instrumentos naquele momento. Os factos nem sequer afirmam ou permitem inferir que nessa altura ainda se mantinha o projecto homicida, apontando até no sentido de que tinha sido abandonado ou estava suspenso. Em primeiro lugar, coaduna-se mal com a manutenção desse projecto a proposta de fuga feita pelo arguido à ofendida. Em segundo lugar, se o arguido ainda pretendia matar a ofendida depois de ter mantido com ela relações sexuais, não se percebe por que razão, quando lhe apertava o pescoço até a fazer perder a consciência, urinar e defecar na cama, em vez de prosseguir, estrangulando-a, como seria fácil, afrouxou a pressão, permitindo que ela recuperasse a consciência, e depois lhe foi dar banho. Os factos provados não permitem concluir que o arguido com o acto de mostrar à ofendida os dois conjuntos de instrumentos dizendo que um era para ela e o outro para ele visou mais do que atemorizá-la.

Poder-se-á dizer de algum dos actos levados a cabo pelo arguido até atrair a ofendida a sua casa, designadamente deste último, que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, era de natureza a fazer esperar que se lhe seguiriam actos integradores de elemento constitutivo do crime de homicídio ou idóneos a causar a morte da ofendida?

Não era. Tanto não era que, depois de a ofendida entrar na habitação do arguido, sem que nada de anormal ou imprevisível se passasse, os acontecimentos seguiram outro rumo, dirigindo-se ambos para o quarto do arguido, onde mantiveram relações sexuais consentidas, após o que ele, vendo recusada pela ofendida a sua proposta de fuga, decidiu agredi-la fisicamente, mas à margem do propósito homicida.

Partindo da “doutrina do último acto parcelar”, exposta, segundo informa, por Roxin, Figueiredo Dias considera que só se estará perante acto de execução na acepção da alínea c) se cumulativamente se verificar uma conexão de perigo, que “existe sempre que entre o último acto parcial questionado e a realização típica se verifica, segundo o lapso temporal mas também de acordo com o sentido, uma relação de iminente implicação”, e uma conexão típica, que “existe quando o acto penetra já no âmbito de protecção do tipo de crime”, o que acontecerá “sempre que o acto se intrometa na esfera da vítima” (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, 2ª edição).

No caso, o arguido não praticou sobre a ofendida qualquer acto que pudesse ser visto como antecedendo imediatamente um acto integrador do crime de homicídio ou idóneo a causar a morte dela. Nomeadamente, não fez menção de a arrastar até ao local onde fixara os suportes ou de fazer uso do cabo de aço ou do laço que preparara.

Sobre o ponto pode lançar luz o seguinte exemplo de que Figueiredo Dias, na esteira de Roxin, se serve na sua exposição sobre o tema: Um homem, E, quis penetrar na casa de uma mulher, F, por meio do arrombamento de um postigo do telhado, com o propósito de violá-la sexualmente – como já havia feito anteriormente – e de seguida subtrair-lhe dinheiro. Não conseguiu contudo arrombar o postigo porque este havia sido reforçado com varas metálicas. Segundo informa, tanto o Tribunal Federal alemão como Roxin concluem que no caso existiu tentativa de furto qualificado, mas não de violação. Colocando reticências à existência da tentativa de furto qualificado, Figueiredo Dias concorda que não houve tentativa de violação, uma vez que a esfera de protecção corporal e sexual de F não chegou a ser perturbada (ob. cit., página 708). Do mesmo modo, no caso aqui em apreciação se deve dizer que não chegou a haver perturbação da esfera de protecção da vida da ofendida.

Assim, também não houve actos de execução do crime de homicídio na acepção da alínea c) do nº 2 do artº 22º.

5. E se assim não fosse, deveria concluir-se que houve desistência voluntária, não sendo por isso a tentativa punível, de acordo com o nº 1 do artº 24º do CP, pois o arguido não prosseguiu com o projecto homicida, sendo que só dependia da sua vontade prosseguir. Nem se diga que o não prosseguimento foi condicionado pela falsa promessa da ofendida de que voltaria a viver com o arguido, só precisando de ir buscar os seus pertences pessoais, porque isso não resulta dos factos provados. Os factos 59 e 60 afirmam que a ofendida, quando o arguido lhe mostrou os dois conjuntos de instrumentos adequados a concretizar o enforcamento e lhe disse que um era para ela e o outro para ele, ficou “receosa pela sua vida” e por isso prometeu voltar para ele, só para o acalmar, acrescentando que só precisava de ir buscar os seus pertences pessoais, sendo que, “depois de uma insistente conversa, lá acabou por convencer o arguido”. Mas acabou por convencer o arguido a fazer ou a não fazer o quê? Os factos provados em julgamento não o dizem como já o não dizia a acusação. E não se vê que aquilo a que a ofendida convenceu o arguido foi a não a matar, pois não ficou provado que ele tenha esboçado qualquer movimento ou feito qualquer anúncio indicando que iria ali matá-la, não podendo, designadamente, atribuir-se esse alcance ao acto de lhe mostrar os dois conjuntos de instrumentos dizendo-lhe que um era para ela e o outro para ele, como já se disse.

Mesmo que o arguido tivesse abandonado o projecto homicida condicionado por aquela falsa promessa da ofendida, nem assim a desistência seria involuntária, pois não lhe seria imposta e antes seria escolha sua. Figueiredo Dias, depois de referir que, independentemente “do grau de pressão psicológica das circunstâncias externas no sentido da desistência”, se é “o agente que mantém o domínio da decisão e por conseguinte o senhorio do facto como um todo”, “a desistência é obra sua”, aceita a voluntariedade da desistência num caso equiparável à presente hipótese: o caso do terrorista que não despoleta a bomba com que se propõe matar os frequentadores de um restaurante porque no último instante cede à ameaça da sua mulher de que se suicidará, se ele praticar o acto terrorista (ob. cit., páginas 751, 753 e 754).

6. Assim, porque não há tentativa de homicídio e mesmo que houvesse não seria punível, o arguido tem de ser absolvido da acusação nessa parte.

7. A acusação considerou que

-agressão do arguido à ofendida descrita nos factos 49 a 54, 65, 66, 67, 69 e 70 integrava um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artºs 143º, 145º, nºs 1, alínea a), e 2, e 132º, nº 2, alínea b), do CP; e

-a factualidade descrita em 68, 69 e 70 integrava o crime de sequestro p. e p. pelo artº 158º, nº 1.

O tribunal recorrido decidiu absolver o arguido da acusação relativamente a esses dois ilícitos, na consideração de que se encontravam em concurso aparente com a tentativa de homicídio.

Concluindo-se aqui pela não verificação da tentativa de homicídio, desaparece o obstáculo invocado na decisão recorrida para não condenar o arguido por estes crimes.

Há, pois, que decidir se eles estão preenchidos pelos factos provados.

8. O arguido, com intenção de a molestar fisicamente, “desferiu violentos murros” na ofendida, atingindo-a sobretudo na face, puxou-lhe “de forma violenta os cabelos” e apertou-lhe o pescoço até a fazer perder a consciência, causando-lhe desse modo doença pelo período de 10 dias. Tendo, assim, ofendido dolosamente no corpo e na saúde a ex-companheira, o arguido preencheu a previsão do artº 143º, nº 1.

A acusação considerou que operava ainda a qualificação prevista no artº 145º, nºs 1, alínea a), e 2, com referência ao artº 132º, nº 2, alínea b): ser o facto praticado contra pessoa com quem o agente tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges.

E, como se provou, o arguido mantivera com a ofendida esse tipo de relação durante cerca de 19 anos, até 06/08/2012.

A verificação de uma das circunstâncias previstas no nº 2 do artº 132º não implica automaticamente a existência de especial censurabilidade ou perversidade do agente, mas é disso um indício, pelo que a qualificação em tais casos só não deve ter-se como verificada se ocorrerem circunstâncias que contraprovem esse efeito de indício, como defende Teresa Serra, para quem essas circunstâncias “têm de atribuir ao facto uma imagem global insusceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade do agente” (Homicídio Qualificado, Almedina, 2ª Reimpressão, páginas 66 a 70).

E, no caso, não se provaram quaisquer circunstâncias susceptíveis de anular o efeito de indício. Pelo contrário, é patente a especial censurabilidade do comportamento do arguido, que, não se conformando com o facto de a ofendida se ter separado dele, a perseguiu constantemente pretendendo coagi-la a voltar a viver consigo (facto 26). E, perante a recusa dela, ameaçava-a regularmente de morte (facto 6). Não obstante isso, a ofendida, para poder estar com os filhos de ambos, entregues aos cuidados dos avós paternos e do arguido, procurou sempre manter com ele um bom relacionamento, tendo ocasionalmente relações sexuais com ele (factos 25 e 31). E o arguido acabou por praticar a agressão numa altura em que a ofendida estava completamente desprotegida, fechada com ele em casa dele, local onde a atraíra com o propósito de a matar, ainda que esse propósito, em face da proposta de fuga, parecesse ter sido abandonado ou suspenso. Isto por um lado. Por outro, o arguido acabava de ter relações sexuais consentidas com a ofendida, pelo que seria de esperar que nesse momento mostrasse compreensão e respeito por ela, ao invés de a agredir com extrema violência, vencendo sem dificuldade os contra-motivos éticos, sociais e jurídicos decorrentes de a ofendida ter sido até há pouco tempo e durante o longo período de 19 anos sua companheira, além de ser mãe dos seus filhos.

Praticou, assim, o arguido o crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artºs 143º, nº 1, e 145º, nºs 1, alínea a), e 2, com referência à alínea b) do nº 2 do artº 132º, todos do CP.

9. Afirma-se no nº 68 dos factos tidos como provados que o arguido manteve a ofendida no interior da sua habitação contra a vontade dela. Mas essa afirmação é, como logo se acrescenta, uma conclusão ou inferência retirada do facto de o arguido “lhe ter retirado a chave da porta” e do “carácter intimidatório da postura e conduta que manteve” em relação a ela. A dita afirmação de que o arguido manteve a ofendida no interior da sua habitação contra a vontade dela não é, pois, uma afirmação de facto, mas de direito, e por isso controlável pelo Supremo Tribunal de Justiça. Equivale à afirmação de que esteve privada da liberdade. E não é fundada.

É certo que, de acordo com o facto 45, depois de ambos entrarem na habitação do arguido e que fora do casal, ele fechou a porta à chave e retirou a chave da fechadura, colocando-a dentro de uma jarra que se encontrava em cima de um móvel. Do acto de fechar a porta à chave, nada pode concluir-se neste contexto, visto que, havendo meios de abrir facilmente pelo exterior uma porta não fechada à chave, pode ter sido motivado por mera preocupação de segurança. O acto de retirar a chave da fechadura pode ter tido em vista, por exemplo, não impedir que outra pessoa, como um dos filhos, pudesse abrir a porta pelo exterior e entrar na casa. E a colocação da chave dentro da jarra que estava sobre o móvel da televisão pode não ter sido mais do que aquilo que sempre se fazia quando se fechava a porta à chave e se tirava esta da fechadura; podia ser aquele o lugar onde se guardava a chave, conhecido de todos os que tinham e tinham tido acesso à casa, como a ofendida. Note-se que não há registo de qualquer reacção negativa da ofendida a esses actos do arguido, sendo que não foi dado como provado que deles não teve conhecimento. Destes actos, não tendo sido dado como provado que foram levados a cabo com o fim de impedir a saída da ofendida, não pode concluir-se que ela foi mantida dentro da habitação do arguido contra a vontade.

Essa conclusão a que chegou a decisão recorrida assentou ainda no “carácter intimidatório da postura e conduta” que o arguido manteve em relação à ofendida. A tudo isto falta a necessária determinação factual, mas sempre se dirá o seguinte: Dentro de casa, o arguido teve momentos de harmonia e desarmonia com a ofendida. Começou por lhe propor manterem relações sexuais, com o que ela concordou. No fim destas, propôs-lhe fugirem os dois dali, o que ela recusou. Devido a essa recusa, o arguido agrediu a ofendida fisicamente com violência, mas essa violência esgotou-se nisso. Se em alguma medida essa violência privou a ofendida da liberdade de locomoção foi apenas pelo tempo que a agressão durou, não tendo tal privação da liberdade relevância fora do âmbito do crime de ofensa à integridade física. Para além desse episódio, como acto “intimidatório” do arguido em relação à ofendida resta o de lhe mostrar os dois conjuntos de instrumentos adequados ao enforcamento dizendo-lhe que um era para ela e o outro para ele, mas não se vê de que modo esse acto significa que ela foi mantida na casa contra a sua vontade. A ofendida entrou na habitação do arguido e que já fora de ambos de livre vontade, e não se provou que em algum momento pretendeu daí sair e foi disso impedida pelo arguido, por palavras ou actos, nem que, sem ela manifestar esse propósito, ele lhe disse ou deu a entender de forma inequívoca que a não deixava sair.

Não se tendo assim provado que a ofendida foi, contra a sua vontade, retida pelo arguido na habitação deste, não se preenche o crime de sequestro.

 

10. É altura de determinar a pena do crime de ofensa à integridade física qualificada.

A pena aplicável é de 1 mês a 4 anos de prisão.

A determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita, de acordo com o disposto no artº 71º do CP, em função da culpa e das exigências de prevenção, devendo atender-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, circunstâncias essas de que ali se faz uma enumeração exemplificativa e podem relevar pela via da culpa ou da prevenção.

À questão de saber de que modo e em que termos actuam a culpa e a prevenção responde o artº 40º, ao estabelecer, no nº 1, que «a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» e, no nº 2, que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa».

Assim, a finalidade primária da pena é a de tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, de reinserção do agente na comunidade. À culpa cabe a função de estabelecer um limite que não pode ser ultrapassado.

Na lição de Figueiredo Dias, a aplicação de uma pena visa acima de tudo o “restabelecimento da paz jurídica abalada pelo crime”. Uma tal finalidade identifica-se com a ideia da “prevenção geral positiva ou de integração” e dá “conteúdo ao princípio da necessidade da pena que o art. 18º, nº 2, da CRP consagra de forma paradigmática”.

Há uma “medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar”, mas que não fornece ao juiz um quantum exacto de pena, pois “abaixo desse ponto óptimo ideal outros existirão em que aquela tutela é ainda efectiva e consistente e onde portanto a pena concreta aplicada se pode ainda situar sem perda da sua função primordial”.

Dentro desta moldura de prevenção geral, ou seja, “entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos (ou de defesa do ordenamento jurídico)” actuam considerações de prevenção especial, que, em última instância, determinam a medida da pena. A medida da “necessidade de socialização do agente é, em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial”, mas, se o agente não se «revelar carente de socialização», tudo se resumirá, em termos de prevenção especial, em «conferir à pena uma função de suficiente advertência» (ob. cit., páginas 79 a 82).

O arguido, agredindo a ex-companheira de várias maneiras e com grande violência, desferindo-lhe murros, sobretudo na face, puxando-lhe o cabelo e apertando-lhe o pescoço de modo a fazê-la perder a consciência, urinar e defecar na cama, revelou uma vontade muito forte de ofender o seu corpo e a sua saúde, o que traduz dolo muito intenso.

O grau de ilicitude do facto é grande, atenta a intensidade da violação da integridade física da ofendida, que justificadamente se convenceu de que ia morrer.

Por outro lado, é merecedor de elevada censura o motivo com que o arguido agiu, pois agrediu a ofendida nos moldes descritos apenas porque ela, no uso de um direito que lhe assistia, manteve a recusa de voltar a viver com ele.

Da conjugação destes factores resulta culpa em medida elevada, permitindo que a pena se fixe acima do ponto intermédio da moldura penal.

As exigências de prevenção geral são elevadas, tendo em conta a intensidade da violação do bem jurídico protegido e a crescente intolerância da comunidade para as agressões perpetradas em contexto familiar ou análogo, pelo que o mínimo de pena imprescindível à manutenção da confiança colectiva na ordem jurídica se situa muito além do mínimo da moldura penal, mesmo acima do seu ponto intermédio.

Em sede de prevenção especial releva negativamente a não interiorização por parte do arguido da gravidade e do carácter altamente censurável da sua conduta, o seu inconformismo com o fim da relação análoga à dos cônjuges que tinha com a ofendida, susceptível de impeli-lo a novos actos de violência contra a ex-companheira, como se conclui da ameaça referida no facto 6, aliada ao consumo de álcool em excesso e à detectada “desregulação psico-emocional”. Em favor do arguido pesa moderadamente a ausência de antecedentes criminais. As exigências de ressocialização que decorrem daqueles factores impõem que a pena se fixe bem acima do mínimo pedido pela prevenção geral.

Tudo ponderado, tem-se como permitida pela culpa, necessária e suficiente para satisfazer as finalidades da punição a pena de 3 anos de prisão.

11. Aos factos 57, 58 e 59 foi na acusação dada relevância jurídica no âmbito da tentativa de homicídio. Decidindo-se pela não verificação desse ilícito, pode questionar-se se esses factos, em conjugação com os descritos nos nºs 69 e 70, integrarão a tentativa de coacção ou um crime de ameaça.

A tentativa de coacção não se pode considerar integrada, desde logo porque os factos não afirmam, pelo menos de forma inequívoca, que o arguido visou com essa conduta constranger a ofendida a fazer ou a não fazer fosse o que fosse, designadamente voltar a viver com ele.

Quanto ao crime de ameaça, se é certo que os factos 57 a 59 devem ser interpretados como contendo o anúncio de um mal futuro, traduzido na morte da ofendida por enforcamento, que podia acontecer a qualquer momento, quando o arguido quisesse, anúncio esse feito de forma adequada a provocar-lhe medo, também o é que não ficaram provados factos integradores do dolo, ou seja, factos que afirmem, ao menos, ter o arguido agido com a consciência de que o seu acto era susceptível de provocar medo ou inquietação na visada. Assim, também não se preenche o crime de ameaça.

12. Havendo concurso entre aquele crime de ofensa à integridade física qualificada e o crime de violência doméstica pelo qual o arguido foi condenado em 1ª instância, há agora que operar o cúmulo jurídico das respectivas penas.

De acordo com o nº 2 do artº 77º, a moldura do concurso tem como limite mínimo 3 anos de prisão, a medida da mais elevada das penas singulares, e como limite máximo 5 anos de prisão, a soma dessas penas.

Na fixação da medida concreta da pena, como ensina Figueiredo Dias, devem ser tidos em conta os critérios gerais da medida da pena contidos no artº 71º – exigências gerais de culpa e prevenção – e o critério especial dado pelo nº 1 do artº 77º: «Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».

Sobre o modo de levar à prática estes critérios, diz este autor: “Tudo deve passar-se (…) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”.

Considera ainda que à questão de saber se “factores de medida das penas parcelares podem ou não, perante o princípio da proibição da dupla valoração, ser de novo considerados na medida da pena conjunta” se impõe, “em princípio”, uma resposta negativa. Mas faz notar que “aquilo que à primeira vista poderá parecer o mesmo factor concreto, verdadeiramente não o será consoante seja referido a um dos factos singulares ou ao conjunto deles: nesta medida não haverá fundamento para invocar a proibição da dupla valoração” (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Reimpressão, 2005, páginas 291 e 292).

A gravidade global dos factos, aferida em função da medida das várias penas parcelares, do seu número e da relação de grandeza em que se encontram entre si e cada uma delas com o máximo aplicável, com desconsideração da gravidade individual de cada um dos ilícitos, em si mesma, já valorada na determinação da respectiva pena singular, é, no contexto da moldura do concurso, mediana, visto que estão em causa duas penas de baixa/média dimensão – 3 anos e 2 anos de prisão –, não muito distantes uma da outra.

 Sendo esse o seu suporte, a medida da culpa pelo conjunto dos factos, ou o grau de censura a dirigir ao arguido por esse conjunto, situa-se, naquele mesmo contexto, àquele mesmo nível, permitindo que a pena se distancie do limite mínimo da moldura aplicável, mas sem ultrapassar o seu ponto intermédio.

As exigências de prevenção geral são significativas, tendo em conta, por um lado, a gravidade global dos factos e, por outro, a circunstância de estarem em causa dois crimes de ofensa à integridade física em contexto familiar ou análogo, problemática que vem sendo olhada pelas pessoas em geral com crescente preocupação e intransigência, pelo que o mínimo de pena conjunta indispensável ao apaziguamento das expectativas comunitárias se situa bem acima do mínimo aplicável.

Em sede de prevenção especial, deve considerar-se que, não obstante serem apenas dois os crimes, são de natureza idêntica e foram levados a cabo em circunstâncias – falta de motivo, particular violência e insistência na consumação – que revelam alguma predisposição para este tipo de criminalidade, acrescendo a isso o consumo excessivo de álcool e a detectada “desregulação psico-emocional”. As exigências de ressocialização que daí decorrem determinam que a pena se fixe além do mínimo pedido pela prevenção geral. Só de uma pena situada a esse nível é de esperar que influencie positivamente o comportamento futuro do arguido.

Considerando estes elementos, tem-se como permitida pela culpa, suficiente e necessária para satisfazer as finalidades da punição a pena única de 3 anos e 6 meses de prisão.

13. Sendo a pena de medida não superior a 5 anos de prisão, tem de se decidir se a sua execução é suspensa.

Sobre a matéria rege o artº 50º, nº 1, do CP: «O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».

As «finalidades da punição» são, de acordo com o artº 40º, nº 1, «a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade».

São, pois, considerações exclusivamente preventivas, de prevenção geral e especial, que hão-de presidir à decisão de suspender ou não a execução da pena de prisão. Essa pena de substituição será aplicada se for de concluir que, por um lado, a suspensão bastará para afastar o agente do cometimento de novos crimes e, por outro, não põe em causa a confiança colectiva na ordem jurídica.

O circunstancialismo que rodeou a prática dos factos revelou predisposição do arguido para a prática deste tipo de crimes, vencendo facilmente as contra-motivações éticas, sociais e jurídicas ligadas à relação parental ou análoga que tinha ou tivera com as ofendidas. Por outro lado, o arguido não interiorizou a gravidade e o carácter altamente censurável das suas condutas. Essas circunstâncias obstam a que se faça um prognóstico favorável sobre o seu comportamento futuro.

Por outro lado, tendo em conta as significativas necessidades de prevenção geral, já caracterizadas, a suspensão da pena frustraria as expectativas comunitárias.

Não pode, assim, suspender-se a execução da pena.

Decisão:

Em face do exposto, os juízes do Supremo Tribunal de Justiça, por razões diversas das alegadas pelo recorrente, concedem parcialmente provimento ao recurso, alterando a decisão recorrida nos termos seguintes:

-absolvem o arguido AA da acusação relativamente à tentativa de homicídio qualificado;

-os factos provados integram, além do crime de violência doméstica na pessoa de CC, um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artºs 143º, nº 1, 145º, nºs 1, alínea a), e 2, com referência ao artº 132º, nº 2, alínea b), do CP, na pessoa de DD;

-como autor deste crime, condenam o arguido na pena de 3 (três) anos de prisão;

-operando o cúmulo jurídico dessa pena com a aplicada em 1ª instância pelo crime de violência doméstica, condenam o arguido na pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Havendo provimento parcial do recurso, não há lugar ao pagamento de taxa de justiça.

                                   Lisboa, 16/06/2016