Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A4210
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: OBRIGAÇÃO NATURAL
CULTO DOS MORTOS
Nº do Documento: SJ200612190042101
Data do Acordão: 12/19/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : 1) Ninguém pode ser privado da possibilidade de prestar o culto aos seus mortos, de conviver com a sua memória e com a sua saudade sendo que a exteriorização desse recolhimento varia com os usos da comunidade, as tradições familiares ou de grupo, os ritos religiosos ou, enfim, a personalidade de cada um.

2) A Constituição da República, o Código Civil e o direito mortuário - DL nºs 433/82, 422/98, 5/2000 e 138/2000 - não consagram expressamente o direito ao culto dos mortos.

3) São pressupostos das obrigações naturais o basear-se a obrigação num dever moral ou social e o seu cumprimento corresponder a um dever de justiça. É requisito negativo a sua não coercibilidade.

4) Privar os pais da proximidade possível do túmulo do filho é incumprir um dever social ou moral, não permitindo que, no recolhimento intranquilo, chorem a sua perda.

5) O dever de consciência assume a natureza de dever de justiça quando não é um mero dever social de cortesia ou uma liberalidade mas corresponde a uma situação tão socialmente relevante que merece certa tutela do direito, embora não se transforme em dever jurídico gerador de obrigação civil.

6) Cumpre aos tribunais decidir, após apreciação casuística, e com apelo ao sentir social e às razoáveis concepções dominantes, se um determinado dever moral ou social tem ínsito um principio jurídico de natureza geral e merece alguma tutela, por reconhecimento pelo direito natural.

7) Da obrigação natural, que não se limita a obrigações pecuniárias, mas a qualquer tipo, ainda que não remuneratório, estão arredadas as disposições das obrigações civis conectadas com a realização coactiva da prestação.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"AA" e BB intentaram acção com processo ordinário contra CC.

Pediram a condenação da Ré a facultar-lhes o acesso à urna do seu filho DD, abrindo a porta do gavetão quando o pretendam ou cedendo-lhe a chave do mesmo; devolver-lhes os objectos de culto que retirou e aceitar a sua reposição no interior do gavetão; indemnizá-los com 1.750.000$00 os danos morais e de saúde sofridos; indemnizá-los com 150.000$00 mensais até cumprimento do Acórdão da Relação que decidiu a providência cautelar.

A Ré contestou o pedido.

Na 4ª Vara Cível da Comarca de Lisboa a acção foi julgada improcedente.

Apelaram os Autores tendo a Relação de Lisboa dado provimento ao recurso e condenado a Ré no pedido, sendo que a indemnização arbitrada foi de 2.000,00 euros, pelos danos morais.

A Ré pede revista.

E assim conclui a sua alegação:

- A titularidade da propriedade do gavetão acha-se estabelecida definitivamente e com trânsito em julgado e, por isso, não pode ser agora posta em causa.

- Não pode falar-se, no caso em apreço, em abuso de direito por parte da ré porquanto se não provaram factos absolutamente essenciais à caracterização da atitude da ré, como abusiva, pois que, por um lado, não se provou que a sua motivação fosse a de retaliar sobre os AA e, por outro, também não ficou provado que, com a sua decisão e conduta, ela visasse compelir ou forçar os AA à outorga da escritura.

- A liberdade de culto ou o direito a exerce-lo em nada é cerceado pelo facto de os recorrentes não possuírem a chave do gavetão, onde se encontra a urna com os restos mortais do falecido DD e que é propriedade exclusiva da ré.

- Esse facto não constitui, nos termos do artigo 71º do CC, uma ofensa a pessoa já falecida, pois que nenhum direito de personalidade do morto se viola ou transgride;

- E, mesmo admitindo que algum direito saísse ofendido, ainda assim, dificilmente isso seria compaginável com as regras de legitimidade presentes no nº2 do mesmo artigo 71º;

- Nenhuns danos derivados da conduta da autora se provaram com suficiente segurança;

- E, em todo o caso, era obrigação do TRL, mesmo decidindo em sede de equidade, fazer a destrinça e imputação do que eram danos derivados ou causados pela conduta da ré dos que derivaram da idade dos AA e do próprio facto da morte de seu filho;

- A decisão recorrida violou ou interpretou incorrectamente as normas dos artigos 71º, 334º, 563º e 1305º do CC e deve ser revogada e substituída por outra que julgue a acção improcedente com o que se fará.

Contra alegaram os recorridos defendendo o Acórdão recorrido e concluindo, em síntese:

- A pessoa falecida goza de protecção jurídica após a morte, conforme o artigo 71º do CC.

- A memória da pessoa falecida é o local onde se encontra o cadáver.

- Este local é o centro de culto da nossa memória e da personalidade moral do falecido.

- E onde se procede às manifestações de culto pela memória do falecido.

- São estes valores imateriais que são protegidos nos termos do artigo 71º nº 2 do CC.

- O exercício do culto junto e em contemplação da urna do filho, pelos recorridos é uma pretensão legítima.

- Para defesa da personalidade moral do falecido, o nº2 do artigo 71º do CC confere legitimidade aos recorridos, como pais do falecido.

- A recorrente mudou a fechadura da porta do gavetão onde os restos mortais do falecido marido se encontravam.

- Tendo, ao mesmo tempo, retirado os objectos de culto que os recorridos aí haviam colocado.

- Não existe motivação provada nos autos, para o efeito, mas referencias processuais da recorrente de "não se encontrar disposta a entregar a chave" de "não ter de entregar a chave de um gavetão, cuja propriedade é sua e que por isso usa e frui como entende" - no ponto 8 das alegações.

- Donde não há justificação para tal procedimento ou então, não há justificação séria, ponderosa, legitima.

- Com a mudança de fechadura e a retirada dos objectos de culto, os recorridos ficaram impossibilitados de prestar o culto à memorio do filho, à vista da urna pois a porta era de mármore e os objectos foram retirados.

- O exercício do direito de propriedade tem de ser harmonizado com os outros direitos conflituantes, conforme o princípio da concordância prática plasmado no artigo 1305º do CC.

- O exercício do direito de propriedade pela recorrente, com a mudança de fechadura e retirada dos objectos aniquilam o conteúdo essencial da pretensão dos recorridos.

- O que significa o culto à memória do filho, a própria memória deste e o local de eterno descanso.

- Antes, os recorridos não tinham tal limitação, dispondo da chave e dos objectos.

- Ocorre ainda e de acordo com o artigo 334º do CC o exercício abusivo do seu direito pela recorrente.

- A atitude da recorrente teve em vista prejudicar os recorridos no exercício do culto à memória do filho e na contemplação da urna.

- O direito de propriedade na forma como a recorrente o pretende exercer, excede claramente os limites impostos pela boa fé, bons costumes, fim económico e social do direito, pelo que tal exercício é ilegítimo.

- Sendo ilegítimo ou ilícito, de acordo com o artigo 334º do CC, já mencionado, há lugar à obrigação de indemnizar nos termos, entre outros, do artigo 483º do CC.

- Os recorridos sofreram e sofrem de estado de angústia e irritabilidade, os quais são danos graves por se verem impedidos de prestar o culto à memória do filho e por isso indemnizáveis como danos morais.

- A compensação adequada, tendo em linha de conta o grau de culpabilidade da recorrente, os danos de angustia a irritabilidade, embora sem terem ficado apurados os aspectos da sua concretização e o facto de embora em resultado do trânsito da sentença no procedimento, terem na sua posse a chave e os objectos de culto, foi decidida em 2000 euros, de acordo com o artigo 496º do CC.

As instâncias deram por assentes os seguintes factos:

- Os AA contraíram casamento um com o outro em 30/10/61.

- Do casamento nasceu DD, em 07/05/62.

- O referido DD faleceu em 07/09/92, no estado de casado com a ré CC.

- O DD casou com a ré em 31/07/88.

- A ré iniciou processo de inventário facultativo contra os AA, o qual correu seus termos pela 3ª secção do 14º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, com o nº 738/95 e que terminou por transacção nos termos de fls. 22, cujo teor se dá aqui por reproduzido.

- A ré não entregou aos AA alguns dos bens constantes da relação de fls. 24 a 27.

- Os AA recusaram-se a outorgar a escritura de venda de uma sexta parte da casa onde a ré viveu com o falecido Paulo e que correspondia à parte que lhes coubera na herança, escritura que esteve marcada para o dia 10/7/96.

- A ré mudou a fechadura do gavetão do cemitério de Benfica, onde se encontra o corpo do DD e retirou do seu interior os bens constantes de termo de entrega de fls.50.

- Tais bens já foram entregues aos AA no decurso destes autos.

- A ré é dona do gavetão onde se encontra sepultado o filho dos AA.

- A porta do gavetão é de mármore e não possibilita qualquer visualização da urna do exterior.

- A ré não entregou aos AA pelo menos os seguintes bens: 4 pratos de porcelana do Circulo de Leitores (verba 2), Bolsa de artigos de higiene (verba nº 16), jogo de damas e xadrez (um dos componentes da verba 16), um carrinho de brincar "Monroe" azul (componente da verba 21), calças de ganga (verba 30), um pijama de Inverno (verba 34), um livro da colecção de banda desenhada "Black and Mortimer", "A Marca Amarela" (componente da verba 51).

- O comportamento da ré acima descrito causou aos AA desgosto.

- Devido ao referido comportamento os AA sofreram e sofrem de estado de angústia e irritabilidade.

- Como também por serem pessoas idosas.

- Os AA alertaram a Ré para a falta dos bens referidos, pedindo-lhe ainda uma fronha que não constava da lista, pedindo-lhe para trocar uma camisa, um pijama e uma gravata por outros que não os enviados e referiram ainda que alguns bens não estavam completos.

- A ré prontificou-se a enviar o que por lapso não tinha enviado antes ou não tinha encontrado, prontificou-se a proceder às trocas que fossem possíveis, prontificou-se a ceder o bem extra e informou quais os bens que era materialmente impossível entregar, por nunca terem existido ou já não existirem.

- Os AA adoptaram o comportamento acima referido.

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo,

1- Direito mortuário.
2- Obrigações naturais.
3- Conclusões.

1- Direito mortuário.

É "thema decidendum" saber se a recorrente está ou não obrigada a abrir a porta do gavetão aos recorridos ou facultar-lhes a respectiva chave, para que estes possam ter acesso à urna do filho, aí sepultado.
Indiscutível a propriedade do sepulcro que, independentemente do título causal, ficou assente ser pertença da recorrente.
Crê-se, contudo, que a questão não deve ser abordada em termos de exercício de um direito real mas sim noutra sede.
É "causa petendi" o direito de "culto à memória do filho" que os recorridos alegam ter.
O destino a dar ao corpo, após a morte, varia, ao longo dos tempos, de acordo com as concepções sociais e religiosas vigentes, tendo por base a preocupação de zelar pelo futuro "post mortem" ou tão somente, pelo culto, como manifestação de amor, de saudade, de privação, de respeito.
Se o mais frequente é a inumação, quer em cova aberta, depois aterrada, quer à superfície, com espessa cobertura de terra e pedras, quer em depósito numa cavidade, o certo é que muitas outras modalidades se perfilam (cremação, imersão, abandono, exposição sobre plataforma, mumificação, antropologia, etc. - cf. Dr. Victor M. Lopes Dias, "Cemitérios, Jazigos e Sepulturas", I, 14).
O culto público dos mortos, com expressão visível na arte tumular - muitas vezes monumentos emblemáticos de uma civilização, como as pirâmides ou o Taj Mahal - nos panteões nacionais - como o "Pantheon français", a "Dome des Invalides" ou o nosso Panteão Nacional - ou em certas zonas de grandes monumentos religiosos - "Westminster Abbey". Escorial, Alcobaça, Jerónimos - são formas de perpetuar a memória de cidadãos que se distinguiram nas artes, na ciência, na política, enfim.
Já a tumulária privada representa - quando não mera ostentação de uma linhagem - o culto da memória, da personalidade moral, da presença dolorosa de uma ausência definitiva de alguém estremecido e que queremos, e cremos, assim libertar da "lei da morte", do esquecimento de que falava Camões.
Se ninguém pode ser privado da possibilidade de prestar culto a seus mortos, de conviver com a sua memória e com a sua saudade, o certo é que as manifestações externas desse recolhimento variam com a personalidade de cada um, os ritos religiosos, os usos da comunidade, as tradições familiares ou de grupo.
As várias culturas têm, nessa perspectiva, calendarizados os "dias dos defuntos", como, e em expressão característica a cultura confucionista onde todas as Primaveras, pela altura da terceira lua do ano, se faz a cerimónia cultural dos antepassados, segundo a qual a primeira alma - a materializada na terra, por ligada ao cadáver (que não a etérea, que se desprende do corpo para ingressar no cosmos) mantém, por esse culto, a continuidade da família.
Na Constituição da República e no Código Civil não se encontra consagrado expressamente o direito ao culto dos mortos.
Ali consagra-se, apenas, genericamente, a liberdade de consciência, de religião e de culto - artigo 41º nº1 - numa clara perspectiva de livre opção, de prática religiosa.
Já o CC se limita à tutela geral dos direitos de personalidade, ainda que depois da morte do respectivo titular (artigo 71º).
Por sua vez, o chamado "direito mortuário", constituído por um conjunto de diplomas - DL nº 433/82, de 27 de Outubro, 411/98, de 30 de Dezembro, alterado pelos DL nº 5/2000, de 29 de Janeiro e 138/2000, de 13 de Julho - destina-se, nuclearmente, a estabelecer o regime jurídico da remoção, transporte, inumação, exumação, transladação e cremação de cadáveres e aos actos relativos às ossadas, cinzas, fetos mortos e peças anatómicas, bem como localização de cemitérios.

Confere - artigo 3º do DL nº 411/98 - legitimidade para requerer a prática daqueles actos, e por esta ordem, ao testamenteiro (em cumprimento de disposição testamentária), ao cônjuge sobrevivo, ao unido de facto, a qualquer herdeiro, a qualquer familiar, a qualquer pessoa ou entidade, ao representante diplomático ou consular do país da nacionalidade (se o falecido não tiver nacionalidade portuguesa).
Daí que toda a gestão do destino do cadáver, e as respectivas exéquias, cumpra, em primeira linha (e na ausência de disposição testamentária especifica) ao cônjuge sobrevivo.
Presume o legislador que o cônjuge após um comungar de vida com o falecido, e tendo partilhado bons e maus momentos na gestão da família, melhor conhece a sua personalidade, interpretando o que ele desejaria se ainda pudesse optar. Ademais, colocando-o a par dos descendentes, na primeira classe de sucessíveis - artigo 2133º nº1 a) do CC - privilegiando-o em matéria de alimentos - artigos 2015º a 2018º CC - conferindo-lhe a tutela - artigo 143º nº1 a) CC - e a curatela - artigo 156º CC - o legislador faz ressaltar o relevante papel de um cônjuge em relação ao outro.
Mas não será por esta via que se buscará o destino da lide.
É que,

2- Obrigações naturais.

Estamos no âmbito das obrigações naturais.
Dispõe o artigo 402º do CC "a obrigação diz-se natural, quando se funda num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça."
São pressupostos - ou requisitos positivos - o basear-se a obrigação num dever moral ou social e ao seu cumprimento corresponder um dever de justiça.
É requisito negativo a sua não coercibilidade.
Vejamos.

2.1- Como acima se acenou o culto dos mortos faz parte da tradição da nossa sociedade com forte enraizamento na cultura judaico-cristã.
Como se disse no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 11 de Dezembro de 2003 - 03B2523 - brilhantemente relatado pelo Cons. Pires da Rosa, "aí nesse espaço ou local concreto, onde estão os cadáveres ou as ossadas dos que nos são queridos, ou onde repousam as cinzas daqueles que amámos (ainda que esse local seja o mar ou uma roseira no jardim), aí fazemos o centro do culto dessa memória que é nossa e da personalidade moral de que a morte do corpo da pessoa amada nos fez, apesar de nós, depositários."

Deixar viver essa memória dos entes queridos, designadamente, como aqui, aos pais de um jovem falecido prematuramente aos 30 anos de idade (e haverá maior dor do que perder um filho; a revolta de perder parte de nós?...) é um indiscutível dever moral e social.
Privar uns doridos pais da proximidade possível do "sítio da memória", e por muito conflitual que seja a relação, é incumprir esse dever, é o olvidar ostensivo de permitir que ali, no recolhimento intranquilo, chorem a sua perda.
Mas não basta o dever moral, como dever de consciência.
O dever de consciência tem de ser também um dever de justiça, senão o seu cumprimento traduz-se numa mera liberalidade.
O dever de justiça não se confunde com o mero dever genérico de caridade, com o dever social de cortesia, com o mero dever de gratidão ou com o propósito de gratificar ou retribuir um serviço.
Só há obrigação natural "quando os tribunais entendem que uma consideração de moralidade merece ser satisfeita e o direito não a consagrou. A obrigação natural compreende tudo o que não é nem uma mera obrigação civil munida de acção, nem uma pura liberalidade." (Prof. Vaz Serra, apud "Obrigações Naturais", in BMJ, 53-13, citando Planial, Ripert e Radouant, "Obligations - 2º, VII, "Traité Pratique de Droit Civil Français" nº 983).
Ou como refere o Prof. Almeida Costa: "Claro que o ponto de partida da indagação reside na própria consciência da pessoa que realiza a prestação, no pensamento que a inspira."
Trata-se do "cumprimento ou reconhecimento voluntário - efectuado em obediência a um dever moral e de justiça, e não com o intuito de fazer uma liberalidade. Contudo, um escrúpulo de consciência meramente subjectivo não bastará para justificar uma obrigação natural. Seria ir demasiado longe. Importa que esse dever de consciência corresponda às concepções sociais, que se mostre objectivamente aprovado e tido como normal. Em resumo: compete à jurisprudência, de harmonia com as concepções predominantes e nas circunstâncias concretas de cada situação, averiguar primeiro, se existe um dever moral ou social e, seguidamente, se esse dever moral ou social é tão importante que o seu cumprimento envolve um dever de justiça." (in "Direito das Obrigações", 10ª ed., 176).
Há que apurar se esse dever também respeita à consciência jurídica.
Terão de ser deveres morais ou sociais juridicamente relevantes, mas que não devem ser transformados em figuras de direito.
É o "distinguo" entre os simples deveres morais ou sociais e as obrigações naturais "quo tale", sempre que tal não integre uma obrigação civil.

A mera existência de um dever de justiça, que não uma obrigação jurídica, torna-as obrigações imperfeitas ("lege humana non prohibuntur omnia vitia").
O Prof. Vaz Serra já reconhecia ser "extremamente difícil" aquela distinção sendo "delicada a investigação destinada a apurar se, nelas, um princípio jurídico geral mais ou menos preciso (suum cuique tribuere, neminem laedere, honeste vivere) as erige à altura de verdadeiras obrigações jurídicas." (ob. cit. 37).
Crê-se que a solução está em averiguar se o dever moral ou social, em concreto, deve ser reconhecido em termos de legitimar obrigações.
Isto é se devem merecer alguma tutela do direito, por corresponderem a um dever de justiça, embora com exclusão da coercibilidade.
E tal caracterização varia com a tempo e com as sociedades.
Terá de ser feita uma valoração casuística com apelo ao sentir social ou às concepções sociais dominantes, desde que razoáveis e não eivadas de qualquer tipo de fundamentalismo obscurantista.
Os tribunais são chamados a pronunciar-se "a priori" quanto a obrigações naturais, em regra sobre a irrepetibilidade, mas podendo antes e até em acção para tal intentada qualificar a obrigação como natural ou civil. (cf. Prof. Manuel de Andrade - "Noções Elementares de Processo Civil", 1979, 79 ss; o Acórdão do STJ de 10 de Maio de 1983 - 070707).
Ainda o Prof. Manuel de Andrade apontava para "as circunstâncias do caso" e para o "reconhecimento pelo direito natural, que só cura do justo" (in "Direito Civil - Teoria Geral das Obrigações", 1955, nº14).
"Para que haja obrigação natural é necessário que exista como fundamento da prestação, um dever moral ou social específico entre pessoas determinadas cujo cumprimento seja imposto por uma recta composição de interesses (ditames da justiça)" - cf. Prof. A. Varela, "Das obrigações em geral", 9ª ed., I, 748).
Quem decide sobre a existência (objectiva) do dever no caso em controvérsia é o julgador baseado na consciência colectiva. (Oppo in "Adempimento e liberditá", nº52).
Dir-se-á, ainda, que a obrigação natural não se restringe a prestações pecuniárias, ou avaliáveis em dinheiro, mas a qualquer tipo de prestação ainda que não remuneratória.

2.2- Aqui chegados, e concluindo-se da matéria de facto que os recorridos tiveram, até certa altura (mudança de fechadura do gavetão) contacto directo com o interior (aí colocando objectos) e assim prestando o seu culto à memória do filho; verificando-se que esse tipo de culto faz parte da tradição cultural, para, nas palavras de Virgílio Ferreira, procurar "justificar a vida em face da inverosimilhança da morte", o dever de não impedir esse contacto assume a natureza de um dever de justiça.
Estão presentes os pressupostos da obrigação natural.
Só que, e de acordo com o citado artigo 404º do Código Civil não há coercibilidade do vinculo obrigacional, por a obrigação ser imperfeita ou de juridicidade reduzida.
Este é o traço mais saliente das obrigações naturais, ou seja o seu cumprimento não é judicialmente exigível por ausência da coercibilidade jurídica sendo que tratando-se de prestações financeiras entregues ocorre a irrepetibilidade.
Há, em consequência, plena liberdade de incumprir por o direito do credor não ser accionável.
São, pois, arredadas todas as disposições das obrigações civis conectadas com a realização coerciva da prestação.
"E a necessidade de preservar a incoercibilidade da obrigação natural tem ainda como consequência, quanto às prestações periódicas, que a realização da prestação relativa a certo período não vincula o devedor ao cumprimento das prestações correspondentes aos períodos subsequentes." (Prof. A. Varela, ob. cit. I, 758).
A falta de possibilidade de impor coactivamente o cumprimento desse dever de justiça, que resulta do artigo 402º do CC, inviabiliza a procedência desta acção de condenação.
Mas sente-se, ainda que como mera observação lateral e parafraseando Alexandre O´Neill, que quando a morte nos dá todas as razões de amarmos sem reservar sentimentos, bem andaríamos se pudéssemos partilhar esses sentimentos autênticos com grande paz interior.

3- Conclusões.

Pode concluir-se que:

a) Ninguém pode ser privado da possibilidade de prestar o culto aos seus mortos, de conviver com a sua memória e com a sua saudade sendo que a exteriorização desse recolhimento varia com os usos da comunidade, as tradições familiares ou de grupo, os ritos religiosos ou, enfim, a personalidade de cada um.
b) A Constituição da República, o Código Civil e o direito mortuário - DL nºs 433/82, 422/98, 5/2000 e 138/2000 - não consagram expressamente o direito ao culto dos mortos.
c) São pressupostos das obrigações naturais o basear-se a obrigação num dever moral ou social e o seu cumprimento corresponder a um dever de justiça. É requisito negativo a sua não coercibilidade.
d) Privar os pais da proximidade possível do túmulo do filho é incumprir um dever social ou moral, não permitindo que, no recolhimento intranquilo, chorem a sua perda.
e) O dever de consciência assume a natureza de dever de justiça quando não é um mero dever social de cortesia ou uma liberalidade mas corresponde a uma situação tão socialmente relevante que merece certa tutela do direito, embora não se transforme em dever jurídico gerador de obrigação civil.
f) Cumpre aos tribunais decidir, após apreciação casuística, e com apelo ao sentir social e às razoáveis concepções dominantes, se um determinado dever moral ou social tem ínsito um principio jurídico de natureza geral e merece alguma tutela, por reconhecimento pelo direito natural.
g) Da obrigação natural, que não se limita a obrigações pecuniárias, mas a qualquer tipo, ainda que não remuneratório, estão arredadas as disposições das obrigações civis conectadas com a realização coactiva da prestação.

Nos termos expostos, acordam conceder a revista, absolvendo a Ré do pedido.

Custas pelos recorridos.

Lisboa, 19 de Dezembro de 2006
Sebastião Póvoas
Moreira Alves
Alves Velho