Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
122/13.TELSB-L.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: SANTOS CABRAL
Descritores: HABEAS CORPUS
AUDIÇÃO DO ARGUIDO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
FORO ESPECIAL
IRREGULARIDADE
JUÍZ DE INSTRUÇÃO
MEDIDAS DE COAÇÃO
NULIDADE
PRIMEIRO-MINISTRO
PRISÃO PREVENTIVA
REEXAME DOS PRESSUPOSTOS DA PRISÃO PREVENTIVA
Data do Acordão: 03/16/2015
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDENTE
Área Temática:
DIREITO CONSTITUCIONAL
DIREITO PROCESSUAL PENAL
Doutrina:
- “Código de Processo penal” , Comentado pelos Magistrados do M.º P.º do Distrito Judicial do Porto, anotação ao artigo 33.º.
- Aragoneses Martinez, Derecho Procesal Penal, Centro de Estudios Ramón Areces, Madrid, 1996, pp.99-100.
- Cinara Bueno Santos Pricladnitzky, Do foro Privilegiado: Os Limites da Competência Especial Ratione Personae.
- Dá Mesquita, Processo Penal, Prova e Sistema Judiciário, p.215.
- Fabbrini Mirabete, Processo Penal, São Paulo: Atlas, 17.ª edição, 2005, p. 199.
- Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Edição Policopiada da edição de Textos da Faculdade de Direito de Coimbra, p.103; Direito Processual Penal, p. 156 e ss.
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa” Anotada, p. 517 e ss., volume II, p. 117 e ss., p. 799.
- Henriques Gaspar, em “Código de Processo Penal” Comentado, António Henriques Gaspar e outros, Edições Almedina, p. 58.
- João Conde Correia, Contributo para a Análise da Inexistência e das Nulidades Processuais, p. 129 e ss..
- Jorge Miranda, “Imunidades Constitucionais e Crimes de Responsabilidade”, Direito e Justiça, Revista FDUCP, vol. XV, 2001, Tomo 2, pp. 29, 47.
- Luis Maria Diez Picaso, La Criminalidad de los Gobernantes, p.31 e ss., 159.
- Maia Costa, em “Código de Processo Penal” Comentado, António Henriques Gaspar e outros, Edições Almedina, pp. 887, 888, 951.
- Moreno Catena, Derecho Procesal, 1.II, p. 104.
- Mouraz Lopes, Fundamentação da Sentença no Sistema Penal Português…, 2011, Almedina, Colecção Teses de Doutoramento.
- Nicolás Pérez Serrano, Tratado de Derecho Publico, Civitas, Madrid, Comentário ao artigo 102.º da Constituição espanhola.
- Parecer da Comissão Constitucional n.º 18/81, Comissão Constitucional, 16.ºvolume, p.154.
- Santos Cabral, em “Código de Processo Penal” Comentado, António Henriques Gaspar e outros, Edições Almedina, p. 587 e ss., 603.
- Susana Gomez Aspe, “La Responsabilidade de los Membros del Gobierno y la Exigência del Suplicatório”, Revista de Estudios Politicos, Jullho-Setembro, 1999.
- Tourinho Filho, Processo Penal, São Paulo: Saraiva, 27.ª Edição, 2005, vol.II, p. 130
-Rosário Garcia Mahamut, La Responsabilidade de los Membros del Gobierno em La Constitucion, p.146 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 11.º, 17.º, 32.º, 33.º, N.º2 E N.º3, 123.º, 141.º, 213.º, 262.º, 264.º, 266.º, 268.º, 269.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 32.º, 208.º.
LEI N.º 62/2013, DE 26-8 (LOSJ): - ARTIGOS 38.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 13.10.1992; DE 07.05.2003; DE 2.2.2005; DE 1.2.2007; DE 15.12.2011.
-DE 11.2.93, ACS DO STJ N.º 1, 196, DE 23.11.95, PROC. N.º 112/95, DE 21.5.97, PROC. N.º 635/97, DE 9.10.97, PROC. N.º 1263/97, DE 26.10.00, PROC. N.º 3310/00-5, DE 25.10.01, PROC. N.º 3551/01-5, DE 24.10.01, PROC. N.º 3543/01-3 E DE 23.5.02, PROC. N.º 2023/02-5.
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ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA N.º 2/2011.
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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-N.º 278/99;
-N.º 680/98;
-N.º 607/2003.
Sumário :
I - A petição de habeas corpus contra detenção ou prisão ilegal, inscrita no art. 31.º da CRP, tem tratamento processual nos arts. 220.º e 222.º do CPP, que concretizam a injunção e a garantia constitucional.
II - A providência de habeas corpus não decide sobre a regularidade de actos do processo, não constitui um recurso das decisões em que foi determinada a prisão do requerente, nem é um sucedâneo dos recursos admissíveis.
III - Nesta providência há apenas que determinar, quando o fundamento da petição se refira à situação processual do requerente, se os actos do processo produzem alguma consequência que se possa reconduzir aos fundamentos referidos no art. 222.º, n.º 2, do CPP.
IV - Como não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários, o habeas corpus não é o meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão, porquanto está reservado para os casos indiscutíveis de ilegalidade que impõem e permitem uma decisão tomada com a celeridade legalmente definida.
V - O requerente, antigo Primeiro-Ministro, entende que a sua prisão preventiva deve ser declarada ilegal por o Juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal ser incompetente para a aplicar, quando estão em causa crimes que se terão consumado por ocasião do exercício dessas funções.
VI - Deste modo, está em causa decidir, em relação a actos praticados enquanto Primeiro-Ministro e quando o exercício de tais funções já tenha terminado, se é aplicável a prerrogativa de foro prevista no art. 11.º do CPP, o que levaria a atribuir a competência para a prática dos actos jurisdicionais relativos ao inquérito a cada juiz das secções criminais do STJ.
VII - Como a questão da competência para a prática dos actos judiciais do inquérito não reveste carácter indubitável e acima de interpretação divergente, falece fundamento para a providência de habeas corpus, sem prejuízo da infracção às regras da competência, a existir, poder fundamentar uma impetração processual no sentido de ver decidida essa divergência.
VIII - Aliás, mesmo que se considerasse como competente o STJ, a medida de coacção de prisão preventiva aplicada não perderia a sua eficácia em face do disposto no art. 33.º, n.º 3, do CPP.
IX - A audição do arguido, para efeitos de reexame dos pressupostos da prisão preventiva, só ocorre quando necessária, ou seja, quando existam factos novos que incidam sobre os pressupostos da medida de coacção, já não quando não tenha ocorrido alteração das circunstâncias que determinaram o seu decretamento.
X - Como existia uma promoção do MP que densificava as razões já aduzidas como suporte de reexame da medida de coacção aplicada, deveria ter sido dado ao arguido o direito de se pronunciar, nos termos do disposto no n.º 3 do art. 213.º do CPP, antes de ser proferido o despacho que manteve a prisão preventiva.
XI - A falta de audição do arguido e a falta de despacho a fundamentar a sua desnecessidade constitui irregularidade do despacho judicial. Vício de simples irregularidade uma vez que não se trata de acto processual legalmente obrigatório e que não conduz à nulidade e, muito menos, à inexistência do despacho proferido.
XII - Todavia, o habeas corpus não é meio adequado para impugnar as decisões processuais ou arguir nulidades e irregularidades processuais, que terão de ser impugnadas através do meio próprio.
Decisão Texto Integral:

                                   Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

  

  O requerente AA, preso no Estabelecimento Prisional de ... por ordem do Juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal no Inquérito com o NUIPC 122/13.8TELSB, veio requerer a presente providência extraordinária de habeas corpus nos termos dos artigos 222º e 223º do Código de Processo Penal (CPP) e do artigo 20º, números 1, 4 e 5, do artigo 27º, números 1 e 4, do artigo 28º número 2, do artigo 31º e do artigo 32º, números 1, 2, 8 e 9, da Constituição da República Portuguesa (CRP). As razões que fundamentam o pedido formulado encontram-se expressas, em síntese, nas conclusões da respectiva motivação onde se refere que:

Pelas razões invocadas – incompetência do Senhor Juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal para a decidir; por ter sido decretada sem precedência da audição prevista no número 4 do artigo 194º do Código de Processo Penal e, por isso, por factos e elementos do processo que lhe não foram comunicados durante a audição que não se realizou; por ter sido mantida por motivo (para que o Requerente se pronuncie sobre os “factos novos” trazidos pelo Ministério Público na sua promoção de 24 de Fevereiro) pelo qual a lei a não permite – a prisão preventiva do Requerente deve se julgada e declarada ilegal.

Consequentemente formula os seguintes pedidos:

(a) a libertação imediata do requerente, por efeito da ilegalidade do decretamento e da manutenção da prisão preventiva;

(b) a ordem de apresentação do Requerente – em liberdade, por a ilegalidade do decretamento e da manutenção da prisão preventiva haver sido reconhecida – ao Juiz Conselheiro das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça a quem o processo seja distribuído.    

 Termina pedindo que a petição seja julgada procedente e, assim:

a)         Declarada ilegal a prisão preventiva que o Requerente vem sofrendo;

b)         O Requerente mandado libertar imediatamente;

c)         E, de todo o modo, mandado apresentar, em 24 horas, ao Juiz Conselheiro das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça a quem o processo seja distribuído. 

Pelo Sr. Juiz no Tribunal Central de Instrução Criminal foi deduzida a informação a que alude o artigo referindo-se, nomeadamente, que:

Atenta a providência de Habeas Corpus, interposta pelo cidadão AA, nos termos do disposto no art.º 222.º do CPP, cumpre-me informar, ao abrigo do disposto no art.º 223.º - 1 do CPP, o seguinte:

O M.º P.º, promoveu o seguinte:

«Pedido de Habeas Corpus apresentado pela Defesa do arguido AA

A Defesa do arguido AA apresentou pedido de habeas corpus, relativamente à detenção que vem sendo sofrida pelo mesmo arguido, nos termos do art. 222º-1 e 2 do CPP.

Nos termos do art. 223º-1 do CPP, importa produzir informação sobre as condições em que foi efectuada a detenção e aplicada e mantida a medida de prisão preventiva.

Sugerimos que se informe, de forma cronológica, sobre os factos já verificados nos autos, nos seguintes termos:

- A detenção fora de flagrante delito de AA foi judicialmente determinada, na data de 18 de Novembro, pela verificação de indícios da prática de crimes de fraude fiscal qualificada, corrupção e branqueamento de capitais, e ainda por se indiciarem os perigos de fuga e de perturbação da recolha e conservação da prova, nos termos do art. 257º-1 a) e b) do CPP;

- Na data de 19 de Novembro, AA ausentou-se de Portugal, com bilhete de regresso para o dia seguinte;

- No dia 20 de Novembro foram realizadas diligências de busca e detenção de outros arguidos;

- Entre 20 e 21 de Novembro, verificou-se a retirada de objectos, dispositivos informáticos, da casa de AA;

- No dia 21 de Novembro, por volta das 22h45, AA regressou de avião a Portugal;

- No dia 21 de Novembro, por volta das 23H00, AA foi detido no cumprimento dos mandados emitidos;

- No dia 22 de Novembro, pelas 14H30, AA foi presente detido no TCIC, para interrogatório judicial;

- No dia 23 de Novembro, foram recuperados e apreendidos os objectos que haviam sido retirados da casa do arguido, após informações fornecidas pelo mesmo em sede de interrogatório;

- No dia 24 de Novembro, foi concluído o interrogatório judicial de AA, vindo a lhe ser aplicada a medida de coacção de sujeição a prisão preventiva, pela verificação dos perigos de fuga e de perturbação da recolha e da conservação da prova;

- No âmbito da sua actividade por conta da ..., o arguido tinha prevista uma viagem para o Brasil, com início a 24 de Novembro.

O arguido permanece em prisão preventiva à ordem dos presentes autos, tendo sido provisoriamente reexaminados os pressupostos da prisão preventiva, que se entendeu manterem, nos termos do art. 213º do CPP, sem prejuízo de ter sido conferido direito à audição do arguido.

Em sede de matéria de facto, alega o requerente ter havido uma alteração dos factos imputados, mais propriamente quanto à sua localização temporal, entendendo os arguidos que, só agora, percepcionaram que os factos teriam ocorrido durante o período em que o arguido exerceu funções como Primeiro-Ministro.

Tal alteração da matéria de facto não corresponde à verdade, nos termos em que é apresentada pelo requerente, uma vez que na imputação dos factos feita para o interrogatório judicial do arguido, claramente se situou a formação de um acervo financeiro no estrangeiro no período entre o início dos anos de 2000 e a data em que os fundos foram declarados para efeitos da adesão ao RERT II, isto é, o final do ano de 2009.

Por esse motivo se narram, nessa imputação, os factos relativos à adesão ao RERT I, em 2005, e depois se narram os factos relativos à transferência dos fundos para Portugal, já em 2010, depois da adesão ao RERT II.

Os factos relativos à imputação são aliás, por natureza, susceptíveis de alteração, em função dos resultados da investigação, fixando-se apenas com a dedução de uma acusação, razão pela qual, em função do cumprimento de pedido de cooperação judiciária dirigido às autoridades da Suíça e cuja resposta formal foi recebida em Fevereiro de 2015, foi possível identificar a data em que os fundos entraram na esfera do arguido AA na Suíça, permitindo verificar e quantificar os fundos que entraram no período entre 2007 e 2009.

Não é assim legítimo e representa mesmo um absurdo, que, como pretende o requerente, exista um hiato temporal nos factos imputados, precisamente entre 2005 e 2011, interpretação que não pode ser sustentada a partir do texto da imputação realizada ao arguido, para efeito do seu primeiro interrogatório judicial.

Tal interpretação dos factos narrados, serve apenas para justificar, por parte da Defesa do arguido AA, a razão de ser de, só agora ter invocado uma pretensa preterição do direito a um foro especial por parte do arguido.

Com efeito, em sede do Direito é alegada no presente pedido de Habeas Corpus a incompetência do TCIC em face da matéria, por estarem em causa factos cometidos por um arguido que, na data dos mesmos, exercia as funções de Primeiro-Ministro.

Entendemos que a aceitação de um foro especial apenas tem cabimento, mesmo em sede da conformação Constitucional, por via do exercício de funções públicas por parte da pessoa visada, não podendo ser um estatuto que se perpetue para além do exercício das mesmas.

A razão de ser da atribuição de um estatuto especial é a dignidade que merece o exercício das funções e não a pessoa em causa, fundamento bem diverso do estatuto conferido aos Magistrados, que visa que os mesmos sejam julgados pelos seus pares, estando portanto em causa uma garantia de imparcialidade.

 Nem se verifica, no caso concreto, que as condições para a atribuição de tal estatuto existissem no momento em que se iniciaram os presentes autos e a investigação, donde se pudesse falar da perda de um estatuto adquirido, uma vez que o processo se iniciou muito depois do exercício das funções como Primeiro Ministro por parte do arguido AA – não corresponde à verdade que qualquer facto relativo à pessoa do arguido José Sócrates tenha sido investigado em qualquer outro anterior processo, sejam os processos da designada “Operação ...” sejam os processos da designada “Operação ...”.

Entendemos assim, que não se mostra violado o disposto no art. 11º-2 b) e 3 a) do CPP, porquanto se não confere pelos mesmos preceitos um foro especial em razão da pessoa, mas tão só em razão das funções exercidas no momento da intervenção judicial.

Em sede jurídica é ainda alegada a não audição do arguido por pretensos factos novos que lhe teriam sido imputados, pese embora tal audição tivesse sido requerida.

No entanto, apenas foram invocados, em sede do reexame sobre os pressupostos da prisão preventiva, novos indícios do perigo de perturbação da recolha da prova, traduzidos na forma como foram pagas determinadas despesas de viagens e de estadias em hotel e na forma como foram ocultadas determinadas obras de arte, adquiridas pelo arguido BB e colocadas na esfera do ora requerente.

A audição do arguido sobre esses novos indícios foi possibilitada pelo Sr. Juiz e foi disponibilizada a consulta das peças processuais de onde os mesmos resultam, na medida em que se não comprometessem diligências posteriores de investigação, conforme art. 194º-6 b), 7 e 8 do CPP.

Tal audição, por via da notificação da Defesa do arguido, garante o contraditório exigido pelos arts. 194º-4 e 213º-3 do CPP.

Por outro lado, não foi ainda desencadeado novo interrogatório do arguido AA, porquanto o mesmo, no seu primeiro interrogatório judicial, negou qualquer conhecimento sobre os movimentos financeiros ocorridos na Suíça, em contas formalmente na esfera do arguido BB, sendo apenas esses os factos novos trazidos ao conhecimento dos autos após o cumprimento da Carta Rogatória pelas autoridades Suíças e que carecem de diligências de investigação, em curso, antes de novo interrogatório do arguido.

Quanto às demais questões jurídicas suscitadas, designadamente quanto à alegada necessidade de audição pessoal do arguido após o interrogatório judicial e a promoção do Ministério Público sobre as medidas de coacção, já as mesmas foram objecto de recurso que se encontra pendente perante o Tribunal da Relação de Lisboa.

Promovemos se remeta tal informação ao Presidente do STJ, com a petição apresentada e com cópia da decisão de detenção, dos factos imputados ao arguido, dos seus autos de interrogatório e da decisão que aplicou a medida de prisão preventiva, bem como da decisão que procedeu ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva, folhas 11501 e seguintes dos autos, e dos requerimentos e despachos posteriores à mesma, para além das demais peças processuais que forem julgadas úteis – art. 223º do CPP.» (sic).

Corrobora-se a posição do detentor da acção penal supra transcrita, à qual nos arrimamos, não por falta de ponderação própria da questão, mas por simples economia processual.

Assim:

Por despacho proferido em 18 de Novembro de 2014, foi determinada a detenção fora de flagrante delito de AA, atenta a existência de indícios da prática de crimes de fraude fiscal qualificada, corrupção e branqueamento de capitais e por se verificarem os perigos de fuga e de perturbação da recolha e conservação da prova.

Em 19 de Novembro/2014, AA ausentou-se de Portugal, com bilhete de regresso para o dia seguinte.

Em 20 de Novembro/2014, foram realizadas diligências de busca e detenção de outros arguidos.

Entre os dias 20 e 21 de Novembro/2014, verificou-se a retirada de objectos, dispositivos informáticos, da casa de AA.

No dia 21 de Novembro/2014, por volta das 22:45 horas, AA, regressou de avião a Portugal.

Ainda no dia 21 de Novembro/2014, cerca das 23:00 horas, AA foi detido no cumprimento dos mandados de detenção emitidos.

No dia 22 de Novembro/2014, pelas 17:05 horas, AA foi presente detido perante o JIC signatário, neste TCIC, para interrogatório judicial.

No dia 23 de Novembro, foram recuperados e apreendidos os objectos que haviam sido retirados da casa do arguido, após informações fornecidas pelo mesmo em sede de interrogatório.

No dia 24 de Novembro, foi concluído o interrogatório judicial de AA, vindo a lhe ser aplicada a medida de coacção de sujeição a prisão preventiva, pela verificação dos perigos de fuga e de perturbação da recolha e da conservação da prova.

O arguido AA, no âmbito da sua actividade por conta da ..., tinha prevista uma viagem para o Brasil, com início em 24 de Novembro/2014.

O arguido AA, permanece em prisão preventiva à ordem dos presentes autos, tendo sido provisoriamente reexaminados os pressupostos da prisão preventiva, que se entendeu manterem-se, nos termos do art.º 213.º do CPP, sem prejuízo de ter sido conferido direito á audição do arguido que, conforme se alcança dos despachos já proferidos sobre esse incidente de reexame, o prazo de resposta terminou no passado dia 06/03/2015, tendo sido apresentado, hoje, pelas 10:55 horas, a que coube a entrada n.º 53727, deste TCIC, no qual, como V. Ex.ª clarividentemente atentará, se colocam no âmbito de um reexame da medida de coacção de prisão preventiva a que alude o art.º 213.º - 1 a) do CPP, questões tais como, nulidades, irregularidades, inconstitucionalidades, designadamente, entre outras, a questão do momento e que já foi objecto do habeas corpus entrado, hoje, às 09:45 horas e a que coube a entrada n.º 53715, deste TCIC.

Facilmente o signatário intui que, o arguido, a douto punho, entende além do mais que o TCIC não é o Tribunal materialmente competente para tramitar estes autos e fá-lo hoje, numa dúplice direcção, às 9:45 horas mediante a entrega pessoal feita pelos Ilustres Advogados signatários de uma petição de habeas corpus e uma hora depois, através de mail, com referência à notificação que lhe fora expedida em 24/02/2015.

De facto, urge que o Supremo Tribunal de Justiça, não se conhecendo, por hora, jurisprudência contraditória ou qualquer Acórdão de uniformização, se pronuncie sobre a vexata questio da competência deste TCIC para tramitar os presentes autos.

É por isso que o signatário tomou a ousadia de no âmbito desta informação fazer presente a V. Ex.ª todo o acervo de tramitação feito no âmbito da promoção de reexame das medidas de coacção ao arguido AA, subsequentes notificações, despachos, promoções, respostas, novamente despachos, promoções, até chegarmos à data presente em que o arguido a excelso punho vem agora arguir, entre outras, a questão da competência do Tribunal para tramitar os autos.

Sobre tal matéria, prevalece-se o signatário do ensejo de fazer presente a resposta que o M.º P.º/DCIAP, hoje produziu nos autos principais acerca das questões colocadas na decorrência do despacho e notificação de 24 de Fevereiro e, bem assim, do despacho que proferimos sobre a questão vertente, igualmente na presente data.

Por conseguinte, entende-se não assistir razão ao requerente, inexistindo qualquer vício ou violação legal ou constitucional que implique a ilegalidade da prisão preventiva decretada ao arguido AA e que seja susceptível de conduzir à sua revogação.

É quanto me cumpre informar, nos termos e ao abrigo do disposto no art.º 223.º, do CPP, entendendo que a prisão não é ilegal e deve manter-se.

Convocada esta 3ª Secção Criminal e notificados o M.º P.º e o Defensor, teve lugar a audiência, nos termos os art.º 223.º, n.º 3, e 435.º do CPP.

            Há agora que tornar pública a respectiva deliberação e, sumariamente, a discussão que a precedeu:

A

I

 Do âmbito da providência de habeas corpus

A petição de habeas corpus contra detenção ou prisão ilegal, inscrita como garantia fundamental no artigo 31º da Constituição, tem tratamento processual nos artigos 220º e 222º do CPP. Estabelecem tais preceitos os fundamentos da providência, concretizando a injunção e a garantia constitucional. 

Nos termos do artigo 222º do CPP, que se refere aos casos de prisão ilegal, a ilegalidade da prisão que pode fundamentar a providência deve resultar da circunstância de i) a mesma ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; ii) ter sido motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou iii) se mantiver para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial - alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 222º do CPP. A providência de habeas corpus não decide, assim, sobre a regularidade de actos do processo com dimensão e efeitos processuais específicos, não constituindo um recurso das decisões tomadas numa tramitação processual em que foi determinada a prisão do requerente ou um sucedâneo dos recursos admissíveis Conforme se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de 2 de Fevereiro de 2005, “no âmbito da decisão sobre uma petição de habeas corpus, não cabe, porém, julgar e decidir sobre a natureza dos actos processuais e sobre a discussão que possam suscitar no lugar e momento apropriado (isto é, no processo), mas tem de se aceitar o efeito que os diversos actos produzam num determinado momento, retirando daí as consequências processuais que tiverem para os sujeitos implicados”.

Nesta providência há apenas que determinar, quando o fundamento da petição se refira a uma determinada situação processual do requerente, se os actos de um determinado processo – valendo os efeitos que em cada momento ali se produzam e independentemente da discussão que aí possam suscitar, a decidir segundo o regime normal dos recursos – produzem alguma consequência que se possa reconduzir aos fundamentos da petição referidos no artigo 222º, nº 2 do CPP.

A providência em causa assume, assim, uma natureza excepcional, a ser utilizada quando falham as demais garantias defensivas do direito de liberdade, para estancar casos de detenção ou de prisão ilegais. Por isso, a mesma não pode ser utilizada para sobrestar outras irregularidades ou para conhecer da bondade de decisões judiciais que têm o recurso como sede própria para reapreciação.

Na verdade, a essência da providência em causa reside numa afronta clara, e indubitável, ao direito à liberdade. Deve ser demonstrado, sem qualquer margem para dúvida, que aquele que está preso não deve estar e que a sua prisão afronta o seu direito fundamental a estar livre. É exactamente nessa linha que se pronuncia Cláudia Santos, referindo, nesta senda que “confrontamo-nos, pois, com situações clamorosas de ilegalidade em que, até por estar em causa um bem jurídico tão precioso como a liberdade, ambulatória (...) a reposição da legalidade tem um carácter urgente”. Também Cavaleiro Ferreira avança que "o habeas corpus é a providência destinada a garantir a liberdade individual contra o abuso de autoridade"[1].

                                                                *

A providência excepcional em causa não se substitui, nem pode substituir-se, aos recursos ordinários, ou seja, não é, nem pode ser, meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão. O habeas corpus está, assim, reservado para os casos indiscutíveis de ilegalidade, que, exactamente por serem ilegais, impõem, e permitem, uma decisão tomada com a celeridade legalmente definida.

Como afirmou este mesmo Supremo Tribunal no seu Acórdão de 16 de Dezembro de 2003, trata-se aqui de «um processo que não é um recurso, mas uma providência excepcional destinada a pôr um fim expedito a situações de ilegalidade grosseira, aparente, ostensiva, indiscutível, fora de toda a dúvida, da prisão e, não, a toda e qualquer ilegalidade, essa sim, possível objecto de recurso ordinário e ou extraordinário. Processo excepcional de habeas corpus este, que, pelas impostas celeridade e simplicidade que o caracterizam, mais não pode almejar, pois, que a aplicação da lei a circunstâncias de facto já tornadas seguras e indiscutíveis (…)».

A natureza sumária da decisão de habeas corpus, por outro lado, não se deve conjugar com a definição de questões susceptíveis de um tratamento dicotómico e em paridade de defensibilidade. É que, em tal hipótese e como se acentua em decisão deste Tribunal de 1 de Fevereiro de 2007, o Supremo Tribunal de Justiça não se pode substituir, de ânimo leve, às instâncias, ou mesmo à sua própria eventual futura intervenção no caso, por via de recurso ordinário, e, sumariamente, ainda que de modo implícito, censurar aquelas por haverem levado a cabo alguma ilegalidade, que, como se viu, importa que seja grosseira.

Até porque, permanecendo discutível, e não consensual, a solução jurídica a dar à questão, dificilmente se pode imputar, com adequado fundamento – ainda para mais numa apreciação pouco menos que perfunctória –, à decisão impugnada, qualquer que ela seja – mas sempre emanada de uma instância judicial –, o labéu de ilegalidade, grosseira ou não.

                                                                       *

A questão suscitada nos presentes autos prende-se por alguma forma com a dualidade existente entre a presente providência e o apelo ao recurso ordinário como forma de impugnar a situação de prisão preventiva.

            No que concerne, a orientação deste Supremo Tribunal era, anteriormente à Lei 48/2007, uniforme no sentido da inadmissibilidade do uso simultâneo dos dois meios referidos, o que, aliás, resultaria da sua própria natureza (conf. Acórdão de 20/2/97). Tal orientação viria a sofrer uma afinação que se consubstanciava na manutenção do pressuposto de inadmissibilidade, acrescentando que nem todas as ilegalidades de que possa sofrer o decretamento da prisão podem ser objecto do procedimento de excepção de habeas corpus. Este seria, pois, mobilizável em face de falhas flagrantes e grosseiras, ficando reservado para as demais questões o recurso às vias ordinárias ou comuns de impugnação (conf Acórdão de 9/9/04).

            Hoje, o artigo 219, nº 2 do CPP consagra a possibilidade de uso simultâneo das duas formas de impugnação o que, de forma alguma, pode significar que o legislador estabeleceu uma coincidência, em abstracto, dos respectivos fundamentos.

Ao prescrever que o direito ao recurso existe sem prejuízo do direito a formular o pedido de habeas corpus, o legislador terá aceite a possibilidade de opção por parte do requerente: se o motivo alegado for uma ilegalidade clara, poderá formular uma petição de habeas corpus; nos outros casos, o recurso será a via de impugnação adequada. Mas, mais do que isso, terá admitido uma eventual coexistência de ambos em algumas situações.  

Pode-se, assim, afirmar que o habeas corpus e o recurso ordinário são duas diferentes vias de reacção a decisões consideradas injustas. Isto sendo certo que, em relação à providência ora interposta, os seus fundamentos têm de ser os expressamente admitidos na lei, ou seja, a resposta a situações de gravidade extrema ou excepcional, sendo evidente que o habeas corpus tem de possuir uma celeridade que o torna de todo incompatível com um prévio esgotamento dos recursos ordinários.

            Tal excepcionalidade é igualmente retratada pela taxatividade dos fundamentos da referida providência tal como desenhados no nº 2 do artigo 222º do Código Processo Penal: 

a) Ter sido [a prisão] efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei não permite;

c) Manter-se para além dos prazos fixados por lei ou por decisão judicial. 

 

Confrontamo-nos, pois, com situações clamorosas de ilegalidade a postergar um bem jurídico tão precioso como a liberdade. Pelo contrário, os recursos de agravo previstos no artigo 219º do CPP podem ter outros fundamentos, indexando-se usualmente, em matéria de medidas de coacção, a temáticas como i) a inexistência de uma necessidade cautelar que torne indispensável a aplicação da medida de coacção; ii) a não adequação da medida à necessidade cautelar ou iii) a desproporcionalidade da medida face ao perigo que se visa evitar.

A necessidade do excurso supra tem subjacente a necessidade de separar aquilo que é matéria de recurso oportunamente interposto pelo requerente e o fundamento que delimita o presente habeas corpus, saneando-se, desta forma, o que a cada um daqueles instrumentos processuais se refere.

No que respeita, constata-se que na petição ora apresentada o requerente estabeleceu correctamente os parâmetros dentro dos quais pretende ver equacionados os fundamentos da providência requerida. Situa-os, pois, o requerente em dois planos distintos na argumentação traçada para concluir que a sua prisão preventiva deve ser julgada e declarada ilegal:

1. Por o Senhor Juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal ser incompetente para a decidir;

2. Por ter sido decretada sem precedência da audição prevista no número 4 do artigo 194º do Código de Processo Penal e, por isso, por factos e elementos do processo que lhe não foram comunicados durante a audição que não se realizou, tendo, nesta senda, sido mantida por motivo (para que o requerente se pronuncie sobre os “factos novos” trazidos pelo Ministério Público na sua promoção de 24 de Fevereiro) pelo qual a lei a não permite.

            

Serão única, e exclusivamente, esses os fundamentos que serão objecto da nossa atenção. Isto sendo certo que, para a sua procedência, será necessário que se demonstre que a situação do requerente tem na sua génese uma situação de manifesta ilegalidade que aqui podia ser declarada fora de toda e qualquer dúvida ou controvérsia.

Vejamos se assim é… 

No que respeita adianta-se, desde já, que a solução da invocada questão da competência deste Supremo Tribunal de Justiça não apresenta aquela natureza unívoca que carece de ser fundamento da providência de habeas corpus. O que se procurará demonstrar de seguida!

 

II

Da alteração do objecto de inquérito

            Está em causa decidir se, em relação a actos praticados enquanto Primeiro-Ministro e mesmo quando o exercício de tais funções já tenha terminado, é aplicável a prerrogativa de foro previsto no artigo 11º do Código de Processo Penal.

            Efectivamente, de acordo com o mesmo normativo, compete a cada juiz das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça em matéria penal praticar os actos jurisdicionais relativos ao inquérito nos processos em que esteja em causa o Primeiro-Ministro pelos crimes praticados no exercício das suas funções.

Esta primeira questão suscitada pelo requerente tem a seu montante uma outra que se prende com a assacada alteração do objecto do inquérito no hiato temporal que medeia entre dois momentos distintos que foram o momento de aplicação da medida de coacção e o momento de proferir decisão de revisão da medida de coacção.

            Na verdade, consta-se que o acervo de factos ilícitos imputados ao requerente ganhou uma outra consistência em termos quantitativos, e qualitativos, entre os dois momentos referidos. O que traz, naturalmente, à colação a questão da relevância de tal alteração. Dito por outras palavras, e no que concerne a esta questão prévia, importa esclarecer a destrinça entre objecto do inquérito e objecto do processo.

            Analisando a relevância de tal matéria na apreciação dos presentes autos, diremos que, como refere Figueiredo Dias[2], é a acusação que define e fixa, perante o tribunal, o objecto do processo, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal e a extensão do caso julgado. É a este efeito que se chama a vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consunção do objecto do processo penal; os princípios, isto é, segundo os quais o objecto do processo deve manter-se o mesmo da acusação ao trânsito em julgado da sentença, deve ser conhecido e julgado na sua totalidade.

Por seu turno, o artigo 262º do Código de Processo Penal, pronunciando-se sobre a finalidade e âmbito do inquérito, dispõe que o mesmo compreende o conjunto de diligências, em ordem à decisão sobre a acusação, que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes, a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas. Como refere Maia Costa[3], a investigação deverá ser dirigida estritamente para a descoberta da verdade material, qualquer que ela seja, devendo assim ser orientada para a recolha de todas as provas pertinentes, quer à comprovação da notícia do crime e da responsabilidade do eventualmente denunciado, quer à demonstração da sua inocência.

O inquérito não é dirigido contra o arguido, embora este seja naturalmente e a partir do momento da sua constituição, alvo da investigação. Mas ele pode apresentar meios de prova no inquérito, que terão de ser investigados – a não ser que sejam manifestamente impertinente ou dilatórios –, podendo contribuir assim para o esclarecimento do caso. A investigação produzida no inquérito é, pois, orientada exclusivamente pelo princípio da verdade material, constituindo a autonomia do MP, titular do inquérito, garantia institucional da realização desse princípio.

            Como refere Dá Mesquita[4] estamos perante um actividade de natureza teleologicamente vinculada que, findo o inquérito, habilitará o Ministério Público a decidir-se, no final, pela acusação ou pelo arquivamento.

Mas, sendo assim, é evidente que a actividade do detentor da acção penal não assume uma valência espartilhada por quaisquer outros limites que não os derivados da notícia do crime e da necessidade de indagar dos seus fundamentos numa procura da verdade material que o habilitará ao proferimento de uma decisão final no término do inquérito.

Não existe, nestes termos, qualquer impedimento a que, dentro de tais limites, o resultado da actividade do titular da acção penal assuma uma configuração diversa que é imposta pela própria dinâmica do inquérito.

            Atento o exposto, e procurando responder à interpelação feita sobre a valorização e alteração de factos imputados ao arguido em diferentes momentos processuais, dir-se-á que, nada obstando à sua existência, não se pode escamotear a circunstância de a mesma trazer à colação a decantada questão da competência para os actos judiciais do presente inquérito.

Na verdade, uma coisa é a imputação de crimes cometidos depois do exercício de funções – que nada têm a ver com a prerrogativa de foro – e outra, totalmente distinta, é aquela que é suscitada pela imputação de crimes praticados aquando do exercício de funções mas sujeitas a investigação após o decurso das mesmas.

No que concerne, importa acentuar que existe um entendimento convergente do arguido, bem como do Sr. Juiz de Instrução e do Ministério Publico, de que, efectivamente, estão em causa crimes que se terão consumado por ocasião do exercício de funções de Primeiro-Ministro. A diferença está no momento em que o conhecimento de tais crimes emergiu no processo e se tornou relevante em termos de alteração dos factos imputados.

É certo que tal questão do tempo de conhecimento poderá ter uma relevância própria em sede de observância de princípios basilares do processo penal como é o caso do princípio da lealdade ou o princípio do contraditório. Mas já não terá tal valência em matéria de conhecimento e dedução da incompetência que está sujeita à regra do artigo 32º do Código de Processo Penal.

III

 Da competência

A equação da questão da competência no caso vertente parte duma aquisição com sede no artigo 32º da Constituição e que se indexa à afirmação do princípio do juiz natural. Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira[5], o mesmo consiste essencialmente na predeterminação do tribunal competente para o julgamento, proibindo a criação de tribunais ad hoc ou a atribuição da competência a um tribunal diferente do que era legalmente competente à data do crime. Adiantam aqueles Autores que a escolha do tribunal competente deve resultar de critérios objectivos predeterminados e não de critérios subjectivos, sendo que juiz legal é não apenas o juiz da sentença em primeira instância mas, identicamente, todos os juízes chamados a participar numa decisão (princípio dos juízes legais). A exigência constitucional, referem ainda, vale claramente para os juízes de instrução e para os tribunais colectivos.

O princípio do juiz legal implica, ainda, na visão dos mesmos Autores várias dimensões fundamentais: (a) exigência de determinabilidade, o que implica que o juiz (ou juízes) chamado(s) a proferir decisões num caso concreto estejam previamente individualizados através de leis gerais, de uma forma o mais possível inequívoca; (b) princípio da fixação de competência, o que obriga à observância das competências decisórias legalmente atribuídas ao juiz e à aplicação dos preceitos que de forma mediata ou imediata são decisivos para a determinação do juiz da causa; (c) observância das determinações de procedimento referentes à divisão funcional interna (distribuição de processos), o que aponta para a fixação de um plano de distribuição de processos (embora esta distribuição seja uma actividade materialmente administrativa, ela conexiona-se com o princípio da administração judicial).

Dentro das exigências necessárias para dar corpo ao referido princípio, assinala ainda Figueiredo Dias a necessidade de evidenciar que, no plano da font,e só a lei pode instituir o juiz e fixar-lhe a competência, acrescentando-se, no plano temporal, a afirmação de um princípio de irretroactividade: a fixação do juiz e da sua competência tem de ser feita por uma lei vigente ao tempo em que foi praticado o facto criminoso que será objecto do processo.

            O princípio do juiz natural é uma das faces que assume o princípio da legalidade no processo penal que, nas palavras de Figueiredo Dias, preserva um dos fundamentos essenciais do Estado de Direito ao colocar a justiça penal a coberto de suspeitas e de tentações de parcialidade e arbítrio. Se fosse possível aos órgãos públicos encarregados do procedimento penal apreciar da «conveniência» do seu exercício e omiti-lo por «inoportuno», avolumar-se-ia o perigo do aparecimento de influências externas, da ordem mais diversa, na administração da justiça penal e, mesmo quando tais influências não lograssem impor-se, o perigo de diminuir (ou desaparecer) a confiança da comunidade na incondicional objectividade daquela administração.

            Adquirido tal ponto de partida, importa agora que nos debrucemos sobre a forma como a competência pode ser definida ou, por outras palavras, qual o critério de competência subjacente ao citado normativo. No que respeita a tal questão, importa referir que a competência objectiva pode ser definida, seguindo Moreno Catena[6], como a distribuição que o legislador efectua entre os distintos órgão jurisdicionais integrados na ordem penal. Distribuição que pode ser alcançada ou concretizada com base em três critérios a) maior ou menor gravidade do facto criminoso, b) a natureza especial do seu objecto – rationae materiae e c) a qualidade do arguido – ratione personae. De acordo com Aragoneses Martinez[7], o primeiro critério define a distribuição de competência em função do tipo de crime e sentença; o segundo ignora a gravidade do delito, ou não atende só à mesma, mas, essencialmente, à natureza do crime; já o terceiro define a distribuição da competência em razão da função que desempenham algum tipo de agentes, provocando a alteração dos critérios comuns.

Situando-nos na concreta jurisdição penal, os critérios de atribuição de competência penal permitem saber qual o tribunal que detém a mesma. Existirão, nesta sequência, três critérios para determinar tal atribuição: o objectivo, o funcional e o territorial, sendo que a conjugação dos mesmos dá lugar a outros tantos tipos de competência.

Um dos critérios determinadores da competência estabelecidos no nosso Código de Processo Penal é, exactamente, o da prerrogativa de função contemplado no correspondente artigo 11º. É a chamada competência originária ratione personae, a qual se mostra estabelecida, não em razão da pessoa, mas em virtude do cargo, ou da função, que ela exerce e das garantias que o mesmo implica. É, aliás, por tal razão que a mesma competência ratione personae não fere qualquer princípio constitucional e, mormente, o da igualdade. Não se é julgado no tribunal superior em virtude da pessoa que é mas em virtude da função que se serve no Estado. 

Ainda pronunciando-nos sobre a competência, mas agora em sede de inquérito e da competência conexa do Juiz de Instrução, importa referir que, durante a fase de inquérito e nos termos do art. 264.º do CPP, só está definida a competência territorial do MP. Isto sendo, naturalmente, possível a transmissão dos autos para outro MP (com consequente alteração da competência territorial do MP) nos termos do art. 266.º do CPP. A competência do juiz, na fase de inquérito, para a prática de actos jurisdicionais apenas está definida em termos de reserva de jurisdição (art. 17.º, 268.º e 269.º do CPP).

Quem tem o domínio da acção penal, na fase de inquérito, é o MP, sendo que a competência territorial do Ministério Público se pode ir modificando consoante os resultados da investigação. A investigação é dinâmica e os factos vão apresentando contornos diversos, podendo estes implicar alteração do MP competente e, consequentemente, alteração do JIC competente para a prática de actos jurisdicionais.

Cabe ao MP apresentar o processo ao Juiz para a prática dos actos jurisdicionais e é nesse momento – isto é, quando é chamado a intervir para a prática de tal acto jurisdicional – que importa ao Juiz verificar se é competente para o efeito. Durante a fase de inquérito, entendemos, pois, que não se fixa a competência do Tribunal. Com o que não tem aqui aplicação o art. 38.º da LOSJ (Lei n.º 62/2013, de 26-08) em virtude de o objecto do processo ainda se encontrar em formação.

Quando o objecto do processo se fixa é que o Tribunal (Juiz) está em condições de aferir a sua competência e, a partir de então, a mesma fixa-se para futuro – art. 38.º da LOSJ.

Quando o Juiz é chamado a praticar actos jurisdicionais, na fase de inquérito (da qual não tem o dominium), o mesmo aprecia a sua competência para a prática daquele acto naquele momento (momento processualmente relevante). Trata-se, pois, de uma competência em aberto.

Assim sendo, o Juiz, durante a fase de inquérito e quando é chamado a intervir para a prática de actos jurisdicionais, avalia a sua competência em razão da matéria e verifica se tem competência para intervir naquele acto. Tal competência é aferida em relação àquele momento concreto e não em  relação a qualquer outro. Naturalmente que se verificar em tal ocasião que se trata de suspeito/arguido Primeiro-Ministro (em exercício de mandato) e por crimes praticados no exercício das suas funções, deverá declarar incompetente em função da primária e exclusiva competência do STJ (art. 11.º, n.º 7, por referência ao art. 11., n.º 3, al. a), ambos do CPP). Contudo, mesmo esta competência do STJ não se apresentará imutável para a restante marcha do processo, impondo-se apreciar novamente a competência material do tribunal aquando da fixação do objecto do processo. É, pois, neste último momento que a competência do tribunal se cristalizará.

IV

Da responsabilidade criminal dos governantes

A responsabilização penal dos governantes constitui um elemento essencial do Estado Democrático de Direito. Este principio é tanto mais relevante quanto é certo que o sistema democrático está fundamentado em equilíbrios delicados, que se podem resumir na equação da igualdade dos cidadãos perante a lei e da confiança dos cidadãos nos governantes. Consequentemente, do ponto de vista do contrato social, é legítimo sustentar que os governantes têm um especial dever de diligência uma vez que são responsáveis pela sanidade ética e pelo clima moral da sociedade que governam.

As dificuldades que enfrenta o Estado de Direito na exigência de responsabilidade penal aos governantes deriva da circunstância de a sua posição institucional ancorar numa legitimação democrática concedida pelo voto. Emerge, assim, uma tensão constitucional que tem na sua génese princípios que podem conflituar, por um lado, a igualdade dos cidadãos perante a lei e a sujeição dos governantes à legalidade e, por outro, o caracter representativo dos cargos públicos e a responsabilidade politica.

Para aqueles que enfatizam as exigências da legitimidade representativa dum regime democrático, uma prossecução rigorosa da acção penal pode comprometer a realização do interesse público. Parte-se do pressuposto de que "a salvação do estado é a lei suprema" (salus publica suprema lex) ou, então, recorre-se à metáfora de Sartre de que, na gestão dos interesses públicos, é necessário, por vezes, "sujar as mãos".

Em contrapartida, aqueles que valorizam as exigências do Estado de Direito entendem que os mecanismos do processo político democrático não são suficientes, por si, para evitar os excessos dos governantes. Argumento que é tanto mais evidente nos casos de criminalidade que afectam o funcionamento da própria democracia. Releva, ainda, a ideia de que as maiorias governamentais, típicas da democracia, não podem, nem devem, significar a imposição mecânica da vontade da maioria, mas devem ser também um meio de selecção dos melhores. A aplicação rigorosa da legalidade penal aos governantes convoca elevados padrões éticos na vida pública e, por essa forma, induz aqueles que detêm as melhores qualidades pessoais e intelectuais para se envolverem em actividades políticas.

  Como refere Diez Picazo[8], se é certo que a compatibilização da responsabilidade penal com a legitimação democrática dos governantes é equívoca, também é evidente que o ponto de partida de qualquer solução não pode resultar de posições extremas e não pode ser reduzido a uma mera questão de representatividade politica ou, inversamente, de aplicação da lei. A sobrevalorização da legitimidade democrática suscita uma reticência evidente pois que, partindo do pressuposto da razão de Estado, existe a tentação de utilizar meios ilegais no que se entende ser a defesa do interesse público. No outro extremo, não se podem subestimar os riscos contidos no reducionismo legalista: o exercício do poder não tem como premissa somente a aplicação de normas legais, mas também a definição e realização duma pluralidade de interesses e, por conseguinte, do funcionamento da democracia. O extremo oposto à razão de Estado é resumida na máxima "faça-se justiça mesmo que o mundo acabe" (fiat justitia, pereat mundus).

Qualquer uma das posições pode levar à deslegitimação do Estado Democrático de Direito: o reducionismo democrático, porque alimenta a ideia de que a decisão política é desvinculada da lei; o reducionismo legalista, porque sugere que os conflitos políticos, inegavelmente, são resolvidos fora da vontade dos cidadãos.

A grande questão colocada pelos crimes dos governantes é a de encontrar um equilíbrio satisfatório entre valores que nem sempre são compatíveis. De qualquer forma, é inquestionável que a forma como os governantes são chamados à responsabilidade pelos seus actos ilícitos é um espelho fiel da saúde moral e da ética duma sociedade e do funcionamento do sistema democrático.  

                                                              *

Para o constitucionalista Nicolás Pérez Serrano[9], existem três modelos principais para responsabilizar os membros do poder executivo: o sistema legislativo, o sistema de justiça puro e o sistema judicial especial. O primeiro tem a sua génese no impeachment, segundo o qual os Parlamentos são responsáveis pelo julgamento daquele tipo de criminalidade; o segundo é aquele em que perseguição criminal incumbe a um tribunal comum; já o terceiro caracteriza-se pelo facto de que o conhecimento deste tipo de responsabilidade ser atribuído a uma entidade que, sendo um tribunal, não está inserido no esquema dos tribunais comuns (tal como aconteceu com a Constituição de Weimar).        

Convergente com tal entendimento se situa Susana Aspe[10], a qual, em termos de Direito Constitucional comparado, refere que se podem distinguir três sistemas em função da responsabilização criminal dos membros do Governo. Temos, pois, os sistemas jurídicos em que tal função é atribuída ao Parlamento, repartindo-se as tarefas de instrução e julgamento quando existem duas Câmaras. A origem de tal modelo está no processo de "impeachment" com génese no direito anglo-saxónico. Uma segunda modalidade passa pela sujeição a um sistema judicial puro em que são os tribunais comuns que assumem tal tarefa de julgamento. Por último, assinala a Autora citada, pode-se propugnar a existência dum sistema judicial especial caracterizado pela atribuição a um Tribunal especial – e, como tal, não integrante da jurisdição comum – da competência para tornar efectiva a responsabilidade criminal dos membros do Governo. O mesmo pode assumir a natureza inerente a um Tribunal Constitucional ou outro integrado por elementos políticos e judiciais.

O tratamento da questão da responsabilidade dos políticos a nível da tradição europeia-continental está longe de ser monolítico. Distinguem-se, dentro dela, duas linhas ou tendências e que reflectem diferentes visões partindo do mesmo ADN. A classificação de Pérez Serrano apresenta aqui grande utilidade, nomeadamente no cotejo entre o "sistema judicial puro" e o "sistema judicial especial". A diferença fundamental entre as duas versões não radica no tipo de infracções, mas sim na circunstância de, uma vez apreciada a oportunidade ou conveniência política para responsabilizar o membro do Poder Executivo, o julgamento puder ocorrer de duas formas distintas: i) ou perante um verdadeiro órgão judicial e, portanto, com plenas garantias processuais; ii) ou diante de uma câmara parlamentar, de acordo com regras que dificilmente podem ser descritas como jurisdicionais


*

Ainda de acordo com Diez Picazo, o impeachment, nos Estados Unidos e como comprova a sua compatibilidade com a actuação da justiça ordinária, nunca foi entendido como uma excepção ao princípio da igualdade perante a lei. Pelo contrário, o mesmo foi construído, em vez disso, como uma excepção ao princípio da separação de poderes e por forma a salvaguardar a essência deste último. É, portanto, uma forma extraordinária de destituição dos membros, e funcionários, do executivo cujo acesso ao cargo e permanência no mesmo não dependem da confiança do poder legislativo. É nos limites duma rígida separação de poderes que se desenha tal instrumento vocacionado para o afastamento dos governantes indignos.

Do exposto resulta uma característica essencial do impeachment: este pode ser iniciado em relação a qualquer acto ilícito (high crimes and misdmeanors) e, acima de tudo, afecta apenas aqueles que detêm cargos públicos no momento. Uma vez que se deixa de exercer o cargo deixa, identicamente, de ser possível a instituição do impeachement.

Recorrendo ainda ao entendimento do mesmo autor, considera Diez Picazo que, no constitucionalismo europeu-continental, rege, pelo contrário, a ideia do tratamento diferenciado. Tratamento que não abrange todos os actos ilícitos mas apenas os delitos cometidos pelos ministros no exercício das suas funções.

A opção sobre os instrumentos adequados à responsabilização dos membros do Executivo consubstancia uma questão inultrapassável num Estado de Direito e convoca dois temas distintos. Por um lado, devem-se outorgar as garantias específicas, necessárias e suficientes para que os responsáveis governamentais não se vejam constantemente perturbados no exercício das suas funções por qualquer cidadão que, injustificadamente, decida responsabilizá-los criminalmente em função do exercício das suas funções. Por outro lado, o denominado sistema jurídico não pode ser contemporizador nos instrumentos de responsabilização criminal dos membro do Poder Executivo uma vez que, dada a sua capacidade de informação e decisão, estes se encontram numa posição única para instrumentalizar o aparelho do Estado e diluírem as responsabilidades em que possam incorrer

Podemos, assim, afirmar que a questão da efectivação da responsabilidade penal dos governantes se conexiona com o ADN dum sistema democrático e nele se entrecruzam concepções fundamentais da forma como se constrói o Estado, sucedendo que a responsabilidade política surge historicamente com génese naquela.

            V

Da natureza jurídica da competência ratione personae

No estudo das normas de competência e da atribuição dum foro de prerrogativa – como é o caso do artigo 11º do CPP – a primeira questão para a qual somos convocados foca-se na sua essência, ou seja, na sua natureza jurídica. Efectivamente, a definição da referida competência especial como privilégio, ou como prerrogativa, não é uma questão de mera semântica e reveste um significado próprio.

Estamos em crer que a competência ratione personae se situa num plano distinto do conceito de privilégio. Na verdade, a mesma não existe para favorecer quem quer que seja, mas sim para a tutela de cargos que se desempenham ou de funções que se exercem. Não está em causa um privilégio, mas uma garantia que é estatuída no intuito de assegurar a independência e a imparcialidade da justiça e, em ultima análise, tutelar o interesse publico. Tal protecção concretizada na competência ratione personae, passa pela noção de que, pelo facto de existirem, são atribuídas maiores garantias para os agentes políticos pela razão de a sua responsabilidade criminal ter lugar perante tribunais superiores e magistrados mais experientes.

Representando uma garantia atribuída em função do exercício de funções governativas, e não um mero e injustificado privilégio, tem-se entendido que a competência ratione personae não colide com o princípio constitucional da igualdade. Para o processualista brasileiro Tourinho Filho, o instituto protege, simultaneamente, o responsável e a Justiça, evitando a subversão hierárquica, resguardando o processo e seu julgamento de pressões que os eventuais responsáveis pudessem exercer sobre os órgãos jurisdicionais inferiores.[11] Igualmente Fabbrini Mirabete[12], pronunciando-se sobre o tema, refere que não podendo a lei estabelecer preferências, não há privilégio, mas a necessidade de levar em consideração a dignidade dos cargos e funções públicas. Consequentemente, em atenção a tais cargos e funções, as pessoas que os exercem devem ser processadas por órgãos superiores, fundamentando-se, portanto, o instituto do foro privilegiado na utilidade pública, no princípio da ordem e da subordinação e na maior independência dos tribunais superiores. 

Temos, pois, que a competência especial ratione personae consubstancia uma prerrogativa justificada em função do interesse público vinculado à ocupação dum cargo público ou ao exercício de função pública[13].

Sem embargo, não podemos deixar de frisar que a especialidade da regra da competência objectiva rationae personae se traduz na aplicação dum critério geral de atribuição de competência objectiva para identificar o órgão jurisdicional que deve conhecer em primeira instância do ilícito penal, atendendo de forma genérica ao tipo de infracção ou tipo de pena. Como sublinha Rosario Garcia Mahamut, pronunciando-se em sede de direito constitucional espanhol, não nos encontramos perante uma excepção jurisdicional, mas sim perante uma regra especial, de natureza processual, de atribuição de competência objectiva rationae personae que faz residir no Tribunal superior a instrução e julgamento dum presumível ilícito em que pode ter incorrido o Chefe do Governo.[14]

VI

Da interpretação do artigo 11º do Código de Processo Penal

             Na análise do artigo em causa encontramo-nos perante uma regra objectiva rationae personae e, portanto, uma norma de ordem processual de competência objectiva que limita os preceitos infraconstitucionais e estabelece uma regra geral para estes casos de responsabilidade politica. Trata-se dum reconhecimento que oferece um plus de protecção jurídica aos cidadãos abrangidos pela norma partindo do convencimento de que, quanto mais elevado seja o tribunal de instrução e julgamento, maior é a garantia proporcionada

Como se referiu, a determinação de tal foro especial, assumindo uma natureza garantistica em função do exercício de determinadas funções, convive com o princípio da igualdade não obstante consubstanciar um tratamento de descriminação positiva.


*

É, assim, liminar que o cerne da questão proposta pela presente previdência neste segmento concreto passa pela interpretação do artigo 11º do Código de Processo Penal à luz dos considerandos expostos.

E na consecução de tal tarefa, não podemos deixar de recordar as palavras de Manuel de Andrade quando afirmava que interpretar uma lei não é mais do que fixar o seu sentido e o alcance com que ela deve valer, ou seja, determinar o seu sentido e alcance decisivos. O escopo final a que converge todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei. Por sua vez, o elemento racional ou teleológico consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar tal preceito, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar.

            No desempenho desta hermenêutica, o primeiro ensaio que nos propomos é o da consideração da jurisprudência que tenha incidido sobre casos similares. Assim sendo, e indagando da interpretação concedida pela jurisprudência aos normativos que concedem foro especial nos termos dos artigos 11º e 12º do diploma legal citado, encontramos o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7-05-2003[15]. Refere tal decisão, a propósito da competência em matéria penal determinada pela qualidade de magistrado, que esta constitui uma garantia, não pessoal, mas funcional, justificada por exigências próprias do prestígio e resguardo da função.

Adianta a mesma decisão que, motivada por exigências desta ordem, não constitui garantia, ou privilégio, que proteja, ou adira a certa pessoa enquanto tal, mas apenas enquanto titular de dada categoria, na plenitude de exercício do complexo dos respectivos direitos e deveres.

            Consequentemente, entende-se que a garantia acompanha o magistrado enquanto detiver esta qualidade e estiver na titularidade dos seus direitos e deveres da função, e justifica-se, como é geralmente entendido, pela dignidade e melindre das funções que os magistrados desempenham e para defesa e prestígio dessas funções (cfr., v. g., os acórdãos deste Supremo Tribunal, de 24 e Maio de 1989, no "Boletim do Ministério da Justiça", nº 384-490, e de 12 de Outubro de 2000, na "Colectânea de Jurisprudência", ano VIII, tomo III, pág. 202).

Mas, se os fundamentos do regime sobre a competência material penal relativamente a magistrados se radicam na qualidade funcional, sendo essa competência estabelecida para defesa e prestígio da função, o critério da competência não deriva nem é determinado pela prática dos factos que esteja em causa, nomeadamente das circunstâncias de tempo, mas apenas da qualidade que o seu autor detenha no momento em que se iniciem ou prossigam actos processuais próprios determinados pela ocorrência de tais factos

O critério da determinação da competência não é, assim, como em geral, o da ocorrência dos factos, mas aquele que deriva da matriz de referência que é a condição funcional (a qualidade de magistrado) no momento processualmente relevante.

     

            Para muitos, na ausência de qualquer pronúncia jurisprudencial no que toca à competência processual relativamente a membros do executivo, há que transplantar as mesmas considerações expostas em relação a Magistrados. Salienta-se que o relevante é a qualidade funcional e que, perdida esta, cessa a prerrogativa do foro atribuído pela lei ao Primeiro-Ministro e aos restantes elencados no artigo citado.

Atente-se, porém, à menor valia de tal transposição pois que a mesma ignora a diferença existente entre a situação da responsabilidade dos magistrados – que é, única e exclusivamente, derivada do exercício de funções – e aquela que é prevista para o Primeiro-Ministro, exigindo-se, quanto a este e para além da função, a existência dum crime funcional (crime cometido no exercício de funções.)[16]

Acrescentam, ainda, alguns autores um argumento sistemático e um argumento de natureza literal na discussão de tal temática. Em sede do primeiro, é aduzida argumentação referindo que Presidente da Republica, Presidente da Assembleia da Republica e Primeiro-Ministro são cargos máximos num Estado Direito Democrático [17] [18]. Assim sendo, verifica-se que são de relevância máxima as funções e competência/poderes do Primeiro-Ministro de um País. Impõe-se que exista estabilidade no cargo e segurança no respectivo titular. É pois de grande responsabilidade e ponderação apreciar crimes imputados ao mesmo, no exercício das suas funções de Primeiro-Ministro e enquanto está à frente dos desígnios do País, porque são também de máxima relevância as consequências que daí advêm para o próprio País.

Conforme bem refere Jorge Miranda, “a doutrina e a jurisprudência também sempre afirmaram a função instrumental e institucional das imunidades enquanto destinadas a preservar a continuidade dos órgãos e, portanto, do próprio Estado, e com modulações várias, a separação e o equilíbrio dos poderes – quer em tempo de normalidade constitucional quer (como prescreve o art. 19.º, n.º 7 da CRP), em estado de necessidade. Pretende-se que cada órgão pratique livremente, de harmonia com o interesse público, os actos em que se traduz a sua competência, com estabilidade de cargos e segurança dos respectivos titulares (…).”[19]

Assim entendem que se impõe uma reserva de foro especial na condução do inquérito, na instrução e, a final, no julgamento, no mais alto Tribunal do País (STJ), enquanto essa pessoa está à frente dos desígnios do País pois que tal é imposto face às funções primordiais que estão adstritas ao Primeiro-Ministro, no exercício do mandato – condução e gestão da política geral do País – face à relação de confiança pública, nacional e internacional, que advém da respectiva função e face às consequências que uma eventual condenação implica para o próprio País (demissão do PM e consequente demissão do Governo)[20].

Na mobilização do elemento literal refere-se que se o legislador quisesse contemplar a competência do STJ para os casos em que o Primeiro-Ministro já não fosse Primeiro-Ministro, teria usado outra técnica legislativa[21]. A utilização inequívoca de conceitos abrangentes de diversas situações temporais, quando pretendida pelo legislador, exprime-se nos tipos legais v.g. o crime de Violência Doméstica, integrando no art. 152.º, n.º1, al. a) do CP as expressões «Cônjuge ou ex-cônjuge».

Também Henriques Gaspar se pronuncia sobre o tema em apreço no âmbito doutrinal, referindo que a competência prevista na alínea a), determinada pela qualidade (funcional) dos titulares de cargos políticos referidos, não constitui, em rigor, uma competência rationae personae; refere-se a crimes «praticados no exercício das suas funções». Esta formulação é mais restritiva do que a geralmente usada na definição de competências segundo critérios de relação funcional – «no exercício ou por causa do exercício das funções».

A restrição na formulação verbal não pode deixar de ter um significado efectivo, que aponta para a exclusiva ligação imediata do facto ao exercício funcional: os crimes «praticados no exercício de funções», que determinam e justificam a competência material específica do STJ, são crimes funcionais e não crimes de qualidade pessoal; será necessário que os factos sejam praticados no exercício funcional, na actuação de competências e de acordo com procedimentos próprios do exercício funcional, uma vez que toda a competência pressupõe um procedimento para o seu exercício[22]

                                                             *

Efectivamente, a fundamentação constitucional do foro especial está em íntima conexão com a posição ocupada pelo Primeiro-Ministro enquanto tal. Significa o exposto que a razão de especialidade de jurisdição desaparece logo por ocasião da cessação de funções como consequência lógica do desaparecimento do seu fundamento sob pena de se consagrar uma iurisdictionis perpetuatio.

No entanto, adquirido tal pressuposto por evidência, emergem várias questões e a menor das quais não é certamente a suscitada pelo caso vertente, ou seja, saber se é, ou não, aplicável o artigo 11º do CPP àqueles processos penais que se iniciem após o término de funções mas em relação ao qual o acto pelo qual se pretende exigir responsabilidade penal foi cometido no espaço temporal em que o agente gozava do estatuto de membro do governo. 

No que concerne, importa sublinhar uma vez mais que a fundamentação da norma em apreço reside numa protecção especial de carácter funcional, isto é, das funções do cargo que envolvem, per se, excepções ao processo penal comum tendentes a garantir e proteger o exercício de funções governativas. Acentue-se que a especialidade do direito processual prevista no referido artigo 11º do CPP não implica uma entorse dos princípios próprios dum Estado de Direito Democrático na medida em que assentam numa razão válida de protecção de garantia.

                                                *

Em termos de direito constitucional comparado, e no âmbito do direito constitucional brasileiro, a concessão de foro especial aos membros do executivo é motivo de divergência. Permitimo-nos, aliás, respigar algumas das considerações que, a propósito, são enunciadas no citado estudo de Santos Pricladnitzky sobre a matéria: 

Entende-se, nesse sentido, que o foro privilegiado prevalece após a cessação do mandato ou do exercício da função pública em razão do critério objectivo para definir o órgão competente, qual seja, o fato, que seria o mesmo, antes ou depois da ocupação do cargo público. Porém, esse argumento não procede, pois, conforme Romão Côrtes de Lacerda Côrtes (Comentário: Foro especial nos crimes funcionais. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 12, p. 65-99,abril/jun. 1948. p. 66), o foro especial subsiste somente quando a competência especial for ratione materiae.  Efectivamente, se a competência especial ratione personae, como o próprio nome evidencia, é estabelecida em virtude da pessoa, como então se determinar a competência, tomando-se como critério o fato? Em se tratando de foro privilegiado, como se explicitou no capítulo reservado ao conceito do instituto, o dado importante está relacionado à pessoa, mais especificamente ao cargo que essa ocupa. Assim, não mais havendo vinculação a exercício de função pública, deixa de existir causa para a especialidade do foro.

(…)

A real motivação do foro privilegiado está em garantir o bom e livre exercício da função, evitando subversões hierárquicas e influências que pudessem prejudicar, tanto o desempenho da administração pública, quanto a aplicação da justiça. Deixado o cargo, não mais se vislumbra tal conjuntura, inexistindo qualquer obstáculo à apreciação do caso pelo juízo de 1° grau (…) Em suma, deixado o cargo, torna a ser o ex-ocupante um cidadão comum como os demais, o que implica não mais dispor do foro privilegiado. O entendimento contrário culmina na ideia de que, aquele que uma vez tenha exercido função pública da qual advenha a competência especial ratione personae, incorpora tal privilégio, violando explicitamente o princípio isonômico, que visa a tratar os cidadãos igualmente, e o real significado do instituto do foro privilegiado, que se resume no objectivo de proteger o cargo ou função pública. Nesse sentido, merece destaque a posição de Hugo Nigro Mazzilli ( O foro por prerrogativa de função e a lei n. 10.628/02. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, Porto Alegre, n. 18, p. 33-37, fev./março, 2003. p. 34):

(…)

“Os privilégios de foro, como se procurou mostrar no corpo deste parecer, representam uma excepção ao princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei. Em consequência, tais prerrogativas devem ser entendidas à justa, sem a mais mínima ampliação do sentido literal da norma. Se o constituinte não se achar autorizado a conceder a alguém mais do que a consideração da utilidade pública lhe pareceu justificar, na hipótese, seria intolerável usurpação do intérprete pretender ampliar esse benefício excepcional” (…) Diante disso, portanto, tem-se que, ao se visar à protecção do cargo, e não de seu ocupante, o sentido do conceito de interesse público vinculado ao instituto do foro privilegiado seria o de garantir o bom desempenho da função pública, enquanto prestação de serviço eficiente à colectividade. Assim, esse interesse público, justificador do foro privilegiado, deve ser interpretado como uma garantia de que, para a preservação da dignidade do cargo público e da moralidade do exercício da função pública, todos os meios ágeis e efectivos serão disponibilizados para a punição dos responsáveis pela prática de ilícitos nessa esfera. Nesse sentido, portanto, deve ser interpretado o conceito de interesse público, ou seja, como uma delimitação do alcance do foro privilegiado até onde o bom exercício da função pública o exija[23]

                                                           +

Prosseguindo o itinerário em termos de direito comparado, constata-se que os princípios de separação e do equilíbrio entre os vários órgãos constitucionais levaram os legisladores de diversos países a estabelecer um estatuto penal dos membros do Governo apenas para aqueles ilícito penais em que tenham incorrido no exercício das suas funções, e a partir desta definição, estabeleceram medidas que visam a não inviabilização, e acautelam, o funcionamento do Executivo.

É nesta perspectiva que o direito francês, nas várias disposições do artigo 68º da respectiva Constituição, especifica que os membros do Governo são penalmente responsáveis pelos actos praticados no exercício das suas funções e pelos crimes ou delitos qualificados no momento em que foram cometidos, determinando que é a data em que se adquire a condição de membro do governo – não aquela em que se inicia o procedimento para exigir a responsabilidade – aquela que condiciona o procedimento perante a Cour de Justice.

Segundo a argumentação de Rosario Mahamute[24] a propósito do artigo 102º, nº1 da Constituição Espanhola – que concede o foro especial aos membros do executivo –, esta mesma norma parece avalizar a linha de interpretação que condiciona o foro processual dos membros de Governo ao período de tempo em que se ostenta tal qualidade. Assim, uma vez findo o exercício do cargo e iniciado um processo criminal por actos criminosos confinados ao período em que se integrava o Governo, não se aplica a essas situações a especialidade de jurisdição.

Dito isto, porém, afirma a mesma Autora que se apresenta interpretação possível que os membros do governo mantenham a especialidade do foro mesmo depois de saírem dos cargos. Isto caso seja iniciado um procedimento penal por um presumido ilícito que se encontre em estreita ligação com o exercício do próprio cargo do agente imputado[25]

Retomando a análise da finalidade prosseguida pela ideia de um tratamento diferenciado dos crimes ministeriais, afirma Diez Picazo que devemos aprofundar a formulação usual utilizada que adopta expressões como "crimes cometidos no exercício das suas funções" ou similar.

É partindo desse pressuposto da conexão ao exercício de funções como ponto crucial de análise que o mesmo Autor afirma que, ao não proteger o cargo como tal mas o exercício da função, o tratamento diferenciado de infracções dos governantes abrange aqueles que já deixaram de o ser. O decisivo é que o facto criminoso tenha sido cometido enquanto tal condição perdura pois que o que está subjacente na protecção específica do exercício de funções públicas é, em essência, a crença de que os delitos dos governantes não são uma mera questão de aplicação da lei mas um verdadeiro problema político[26] [27].

Tal perspectiva de Diez-Picazo emerge duma mesma ideia primária de responsabilidade por crime funcional consubstanciado num acto político que vai ao encontro à posição por nós tomada ao nos pronunciarmos sobre tal matéria no processo 7/10 YGLSB em acórdão proferido em 15/12/2011. Escreveu-se ali, com relevância para a matéria dos presentes autos, que:

A decisão do caso vertente assenta na interpretação do artigo 11 nº 2 do Código de Processo Penal quando atribui ao Supremo Tribunal de Justiça a competência para o julgamento do Primeiro-Ministro por crimes praticados no exercício das suas funções.

            A mesma decisão está, assim, dependente de uma leitura mais, ou menos, restritiva sobre a concepção normativa do conteúdo das funções que convergem no exercício daquele cargo.

A Constituição da República Portuguesa, no capítulo que se debruça sobre a competência do Governo, estabelece que este tem competências políticas (art. 197.º), legislativas (art.º 198.º) e administrativas (art.º 199.º), sem contudo definir qual o conteúdo concreto que assume cada uma delas, já que se limita a indicar alguns dos actos ou medidas em que as mesmas se podem traduzir, sem preocupação exaustiva, pelo que esta indicação não resolvendo a dificuldade de saber em que consiste cada uma dessas competências é, no entanto, útil para se poder erigir um conceito global de cada uma delas - designadamente da que ora nos importa que é a competência política.

E, porque assim, não olvidando as situações especificadas naquele art. 197.º e o facto de a atribuição ao Governo de funções políticas resultar não só directamente do texto constitucional mas também da lei ordinária (al.ª j) do seu n.º 1 importa recorrer á construção doutrinal que incide sobre o tema nomeadamente sobre os poderes que se consideram reunidos na função política.

            Para Marcelo Caetano “A Política caracteriza-se por ser um domínio de relativa indeterminação no qual cabem as opções fundamentais para orientação dos destinos da colectividade. Na administração também existem muitas oportunidades de optar, mas já num domínio determinado, condicionado pelas grandes decisões políticas traçadas nas leis ou por outros modos válidos. Quer dizer que, havendo opções possíveis, a separação do domínio da Política e da administração é mera questão de graus: as opções primárias ou fundamentais pertencem à primeira, as secundárias ou derivadas já podem respeitar à segunda.”   E, por isso, este Autor afirma que «a função política poderá ser definida como a actividade dos órgãos do Estado cujo objecto directo e imediato é a conservação da sociedade política e a definição e prossecução do interesse geral mediante a livre escolha dos rumos ou das soluções consideradas preferíveis” e que «a administração pública é, em sentido material, o conjunto de decisões e operações mediante as quais o Estado e outras entidades públicas procuram, dentro das orientações gerais traçadas pela Política e directamente ou mediante estímulo, consideração e orientação das actividades privadas assegurar a satisfação regular das necessidades colectivas de segurança e de bem-estar dos indivíduos, obtendo e empregando racionalmente para esse efeito os recursos adequados», e define uma função técnica como «a actividade cujo objecto directo e imediato consiste na produção de bens ou na prestação de serviços destinados à satisfação de necessidades colectivas de carácter material ou cultural, de harmonia com preceitos práticos tendentes a obter a máxima eficiência dos meios empregados». 

Do mesmo modo Sérvulo Correia considera que função política, consiste numa «numa actividade de ordem superior, que tem por conteúdo a direcção suprema e geral do Estado, tendo por objectivos a definição dos fins últimos da comunidade e a coordenação das outras funções à luz destes fins.” 

De igual forma Freitas do Amaral entende que «a política, enquanto actividade pública do Estado, tem um fim específico: definir o interesse geral da colectividade. A administração pública existe para prosseguir outro objectivo: realizar em termos concretos o interesse geral definido pela política». «O objecto da política são as grandes opções que o país enfrenta ao traçar os rumos do seu destino colectivo. O da administração pública é a satisfação regular e contínua das necessidades colectivas de segurança, cultura e bem-estar económico e social». «A política tem uma natureza criadora, cabendo-lhe em cada momento inovar em tudo quanto seja fundamental para a conservação e o desenvolvimento da comunidade nacional. A administração pública tem pelo contrário natureza executiva, consistindo sobretudo em pôr em prática as orientações tomadas a nível político».   Para Marcelo Rebelo de Sousa “ A função política corresponde à prática de actos que exprimem opções sobre a definição e prossecução dos interesses essenciais da colectividade, e que respeitam, de modo directo e imediato, às relações dentro do poder político e deste com outros poderes políticos. A essência do político reside na realização de escolhas em que se encontram em causa interesses essenciais do Estado – colectividade, que cabem na função política. São apenas opções que envolvem interesses essenciais do Estado – colectividade.

(…) Alguns deles são actos com relevância jurídica nacional e internacional, pois se reportam às relações com outros poderes políticos (como é o caso dos actos concernentes ao relacionamento do Estado com os demais sujeitos do Direito Internacional). É o caso, por exemplo do estabelecimento de relações diplomáticas ou da declaração de guerra.”  

                                                               *

Pode-se, assim, afirmar que o exercício da função política consiste na escolha das grandes opções destinadas à melhoria, preservação e desenvolvimento de um determinado modelo económico e social, por forma a que os seus cidadãos se possam sentir mais seguros e, livremente, possam alcançar os bens, materiais e espirituais, que o mesmo é susceptível de proporcionar e que o exercício da função administrativa se traduz na materialização dessas opções. Consequentemente, só os órgãos superiores do Estado podem exercer a função política pois só eles têm competência para definir, em termos gerais, os fins que a sociedade deve almejar, os meios que cabe utilizar para os alcançar e os caminhos que para o efeito será necessário percorrer.

II

Definido, assim, á luz do normativo constitucional, o complexo de actos susceptíveis de assumir o lastro apto a corporizar o exercício da função politica é evidente que uma construção que se ligue tão somente a tal perspectiva literal contem uma leitura que corrobora a decisão recorrida.

Porém, estamos em crer que o exercício da função politica, nomeadamente a relativa ao cargo de Primeiro-Ministro, implica não somente a decisão, e respectivo processo de formação, mas a capacidade de a transmitir ao cidadão comum em nome do qual o acto político é praticado. Na verdade, existe uma outra dimensão, que não podemos esquecer neste dealbar do século XXI, pois que o exercício de funções politicas irradia para áreas que manifestamente não estão compreendidas no conceito constitucional e antes nos convocam para realidades distintas, situadas na órbita da esfera publica onde tais actividades se exercem, e que tem a sua génese no próprio conceito de democracia representativa quando não deliberativa.

Dito por outras palavras, o exercício das funções de Primeiro-Ministro engloba todos os actos que têm na sua génese tal qualidade, e como tal assumidos perante a opinião pública, e que só em virtude dela têm existência (…)

                    (…) Assume-se, assim, que o exercício de funções, nomeadamente as políticas, tem um conteúdo abrangente que se estende a todos os actos que se situam na esfera pública e que apenas são praticados em função do cargo político exercido (…) O exercício da função política do cargo de Primeiro-Ministro é também a actuação no domínio da esfera pública em que, perante os cidadãos em nome dos quais se exerce tais funções, se justifica tal exercício.

            Terminou a mesma decisão considerando que a competência para os factos em apreço nos mesmos autos residia no Supremo Tribunal de Justiça. Subjacente a tal entendimento, e como se referiu, situou-se a ideia de que a definição da competência à luz do artigo sob análise convoca dois vectores distintos a indexarem-se ao exercício de função e dignidade outorgada a esta e, também, à existência dum crime funcional.

Todavia, importa salientar que a decisão de aplicabilidade constante daqueles autos não teve que equacionar como premissa fundamental da respectiva conclusão a questão central dos presentes autos a centrar-se que na aplicabilidade do artigo 11º, nº 3, alínea a) e mº 7 do Código de Processo Penal. Ou seja, não se abordou ali – e tal questão não foi, como tal, respondida – a temática da aferição se o foro especial se mantinha após o término de funções. Isto pois que a análise ali materializada incidiu essencialmente sobre o exercício da actuação politica e consequente conexão com a natureza de tal foro.

            É, assim, manifesto que esta questão do domínio temporal de aplicação do foro especial a que alude o citado artigo, e da resolução da qual nasce a argumentação do requerente para afirmar a competência deste Supremo Tribunal de Justiça, não é uma questão incontroversa suscitando uma conclusão irrefutável sobre a coerência duma solução. 

Pelo contrário, e no que concerne a este concreto segmento do pedido formulado, podemos extrair desde logo a conclusão de que a questão da competência para a prática dos actos judiciais do inquérito não reveste um caracter indubitável e acima de qualquer interpretação divergente. E tal sempre seria essencial como primeiro momento de corroboração da argumentação desenvolvida.

É que, renovando o previamente expendido, a providência de habeas corpus tem como pressuposto aquela evidente ilegalidade conducente à constatação da iniquidade da privação de liberdade. Com o que sem a demonstração da constatação duma clara violação da lei, falece fundamento à mesma providência.

Não significa o exposto que a questão suscitada seja ilógica e carente de fundamentação, mas, única e simplesmente que, como temática controversa e essencial na devida conformação dos autos, deverá ser equacionada pelos meios adequados e não em sede duma providência deste tipo. Dito por outras palavras, a existência duma infracção às regras da competência poderá, eventualmente e a existir, fundamentar uma impetração processual no sentido de ver decidida tal dúvida ou divergência. Mas da análise já materializada resulta seguro que a mesma não se apresenta minimamente líquida ou linear ao ponto de puder motivar a constatação da existência de uma ilegalidade grosseira indiscutivelmente conducente à conclusão da violação do direito à liberdade do requerente.

 

VII

Das consequências da declaração de incompetência

Mas, mesmo admitindo como hipótese a correcção da interpretação efectuada pelo requerente no sentido da competência pertencer a este Supremo Tribunal de Justiça, a mesma não tem por consequência a conclusão de que a prisão decretada é ilegal (o que constitui fundamento do habeas corpus) por efeito da declaração de incompetência do Tribunal Central de Instrução Criminal. Isto pois que, nos termos do artigo 33º, nº 2 do Código de Processo Penal, declarada a incompetência de um tribunal, o processo será remetido para o tribunal competente. E este anula os actos que se não teriam praticado se perante ele tivesse corrido o processo, ordenando, ademais, a repetição dos actos necessários para conhecer da causa. Sucede que tal artigo 33º do CPP contém ainda um número adicional por reporte às medidas de coacção ou de garantia patrimonial ordenadas pelo tribunal declarado incompetente, estabelecendo no correspondente n.º 3 que estas conservam eficácia mesmo após a declaração de incompetência e devem, no mais breve prazo, ser convalidadas ou infirmadas pelo tribunal competente.

Como se refere no Código de Processo Penal dos Magistrados do Ministério Publico do Distrito Judicial do Porto declarada a incompetência do tribunal, o processo deve ser remetido para o tribunal competente, o qual: (a) Anula os actos que não se teriam praticado se perante aquele tivesse corrido o processo; e (b) Ordena a repetição dos actos necessários para conhecer da causa (art. 33.°, nº 1).  Adiantam ainda os Autores daquele Comentário que o critério de justiça material consentâneo com os princípios da economia processual e do máximo aproveitamento dos actos processuais em processo penal leva a que só se anulem ou se repitam actos indispensáveis para adequar o processo à tramitação que ele teria face às razões específicas de competência do tribunal que vai conhecer de causa.

Temos, assim, que a declaração de incompetência não determina a nulidade do processo, mas tão-só dos actos que se não teriam sido praticados se o processo tivesse corrido perante o tribunal competente. É o tribunal competente que declara quais os actos que são nulos e que ordena a repetição dos actos necessários para conhecer da causa. Estamos perante uma situação de conservação dos actos imperfeitos que se consubstancia no reconhecimento da capacidade para provocar os efeitos correspondentes aos actos válidos, mediante a sua coligação com outros factos sucessivos, que vêm suprir ou tornar irrelevantes as deficiências cometidas.

Estabelece João Conde Correia, nesta vertente, que a conservação dos actos inválidos abarca todas aquelas situações em que o ordenamento jurídico tolera de tal forma que, apesar de persistir o vexame do pecado cometido, o acto torna-se inatacável e estável nas suas consequências prático-jurídicas.

Tais fenómenos, embora integrem aquele sentido amplo das causas de sanação e manifestem a tendência inata para a perpetuação dos efeitos produzidos pelos actos processuais penais inválidos, são distintos. A conservação dos actos inválidos pressupõe a mera consolidação das consequências do acto defeituoso. A sanação stricto sensu consiste na sobrevivência do acto, condicionada pela remoção sucessiva do vício que o afecta. Naquele caso, o acto resiste incólume apesar da sua imperfeição. Neste caso, convalesce, superando com sucesso, essa mesma imperfeição.

Integram o conceito de conservação todos os actos inválidos em que: pelo decurso do processo; pelo comportamento dos sujeitos processuais; ou pela realização da finalidade perseguida pela norma jurídica violada o ordenamento jurídico aceita a manutenção dos efeitos prático-juridicos produzidos[28].

          Assim sendo é manifesto que uma hipotética declaração de competência do Supremo Tribunal de Justiça não conduziria à libertação do requerente por prisão ilegal, mas tão somente à necessidade de reapreciação da medida de coacção pelo Tribunal competente e a uma convalidação dos actos praticados.

 Concluímos, assim, que, no que concerne à questão da incompetência do Tribunal Central de Instrução Criminal e da competência deste Supremo Tribunal de Justiça, a mesma não se apresenta com a linearidade, e caracter incontroverso, que é pressuposto da providência de habeas corpus requerida e da afirmação duma manifesta violação do direito à liberdade.

Por igual forma se dirá que, assumindo tal questão um papel nuclear que não deve ser menorizado, a mesma deverá ser equacionada em sede adequada. Isto sendo certo que, mesmo que, por hipótese, se considerasse como competente o Supremo tribunal de Justiça, a medida de coacção aplicada não perderia a sua eficácia em face do disposto no artigo 33º, nº 3 do Código de Processo Penal

B

I

Do reexame dos pressupostos de prisão preventiva

A segunda questão suscitada pelo recorrente, aparentando uma aparente simplicidade na sua solução, é, todavia, mais complexa na sua apreciação numa análise mais fina, convocando alguns dos princípios fundamentais do processo penal.

Fundamentalmente, a argumentação reside na circunstância de o requerente invocar que a sua situação de privação de liberdade não foi objecto do atempado reexame dos pressupostos a que alude o artigo 213 do Código de Processo Penal. Neste seguimento, alega o requerente que neste momento, desde 24 de Fevereiro de 2015, a prisão do Requerente é mantida pelo Senhor Juiz do TCIC apenas por um motivo: de acordo com o Despacho desse data, unicamente para o Requerente se pronunciar acerca da promoção do MP no sentido de a prisão preventiva ser mantida.

Importa consignar, no que respeita, que, de acordo com o disposto no artigo 213º do Código de Processo Penal, o juiz procede oficiosamente ao reexame dos pressupostos de prisão preventiva no prazo máximo de 3 meses a contar da data da sua aplicação ou do último reexame. Tal actividade terá como suporte a audição do MºPº e do arguido sempre que necessário.

Recorrendo ao comentário expendido a propósito por Maia Costa[29], a obrigação de reexame periódico oficioso dos pressupostos da prisão preventiva por parte do juiz constitui uma importante garantia de defesa dos direitos do arguido. O que sucede já que esse reexame oficioso nunca poderá levar à agravação da medida de coacção, justificando-se, essencialmente, pela precariedade das medidas de coacção que determina a necessidade de as adequar, ao longo da tramitação processual, à situação do processo. 

            A audição prévia do MP e do arguido só ocorre quando necessária. Contudo, e tal como refere o Autor citado, a audição deverá ser a regra, só não se justificando quando não haja conhecimento de quaisquer factos novos que incidam sobre os pressupostos da medida de coacção, ou seja, quando não tenha ocorrido alteração das circunstâncias que determinaram o correspondente decretamento. Em todo o caso, a não audição deverá ser sempre – ainda que sucintamente – fundamentada.

No entanto, acentua complementarmente Maia Costa que a falta de fundamentação constitui mera irregularidade.

Procurando contrapor a matéria dos autos ao alegado pelo requerente verifica-se que, em 24 de Fevereiro de 2015, foi proferido despacho no qual se considerava que:

O arguido apesar de o ter requerido, ainda não foi ouvido em sede de interrogatório complementar.

Temos presente o estatuído no art. 144.° do CPP.

Apesar de tais interrogatórios serem feitos pelo Mº Pº, como inculca o inciso, pela nossa parte sempre estaremos disponíveis a efectuá-los caso o Mº Pº nisso anua.

São invocados novos elementos de prova.

Entendo ser útil a pronúncia do arguido. Tal pronuncia não tem de ser em sede de interrogatório.

Consequentemente, antes de mais, determino a notificação do arguido Eng.o AA para se pronunciar sobre a promoção vertente - ex vi do nº 3 do artº213.° do CPP.

No ínterim, mantenho o estatuto processual vigente.

Em 9 de Março de 2015 de novo o Sr. Juiz de Instrução Criminal se pronunciou referindo que:

Compulsados os autos, verifica-se que, por despacho proferido a final do respectivo interrogatório, em 24/11/2014, ficou o arguido AA, sujeito à medida de coacção de prisão preventiva.

Decorridos que se mostram os três meses desde a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva ao arguido supra referido, sem embargo do já decidido em 24/02/2015, nos termos e ao abrigo do disposto no art.º 213º - 1 a), do CPP, cumpre proceder a novo reexame dos pressupostos de tal medida de coacção.

Compulsados os autos e, atenta a douta promoção do detentor da acção penal que antecede, com a qual se concorda na integra, verifica-se que se mantêm inalterados todos pressupostos de facto e de direito que estiveram subjacentes à aplicação ao arguido supra indicado, da respectiva medida de coacção vigente.

Verifica-se que o arguido AA, já foi confrontado, através da notificação que lhe foi feita ao amparo do artº213.° - 3 do CPP, por despacho de 24/02/2015, sobre os factos constantes da promoção que, de algum modo, constituem factos/indícios com que não tinha sido confrontado no 1.° interrogatório, nada tendo alegado que ilida os factos aí mencionados.

(…)

Assim, concordando com a douta promoção que antecede (supra transcrita) e que e dá por reproduzida, não por falta de avaliação e ponderação própria da questão, mas por simples economia processual (remissão admitida pelo próprio Tribunal Constitucional - vide Ac. TC de 30/07/2003, proferido no Pº 485/03, publicado no DR II Série de 04/02/2004 e pela própria Relação de Lisboa, vidé Ac. TRL de 13/10/2004, proferido no Pº 5558/04-3) e, por entender que se mantêm, em concreto, os perigos que estiveram na base da aplicação ao arguido AA, da medida de prisão preventiva que importa acautelar, não tendo, até à presente data, surgido qualquer facto novo susceptível de alterar as circunstâncias e pressupostos que fundamentaram tais medidas renovando o exame a que alude o artigo 213 nº1 alínea a do CPP decido mantê-la

             Da contraposição dos dois despachos proferidos permitimo-nos extrair a seguinte ilação:

- Ou o despacho proferido em 24 de Fevereiro constitui o reexame da medida de prisão preventiva e, nesse caso, não se procedeu a audição do arguido, colocando-se ainda a questão da sua fundamentação,

- Ou tal despacho não vale como tal e o reexame apenas se consumou em 9 de Março, hipótese em que não foi observado o prazo a que alude o citado artigo 213º do CPP.

Paralelamente, suscita-se, ainda a questão da omissão do direito de audição que o requerente entende ser essencial para o exercício do seu direito de defesa.

            A resposta à primeira questão está inscrita na própria letra dos despachos em causa, nomeadamente quando se afirma que a decisão de reexame consta do primeiro despacho proferido.  

            A indagação que então se suscita é a do cumprimento do direito de audição a que alude o nº 3 do normativo citado.

II

Do direito de audição e do direito de defesa

Na busca de uma resposta cabal à pergunta formulada, importa questionar o fundamento e sentido do princípio ou direito de audiência.

Aqui, na esteira de Figueiredo Dias[30], teremos que arrancar do princípio de que só apreenderemos verdadeiramente o fundamento e sentido que buscamos quando tomarmos por base a ideia de que, nem relativamente à sentença, nem relativamente a qualquer outra decisão que tenha de tomar no decurso do processo, encontra o juiz o sentido dela previamente inscrito e fixado na lei. Mais ainda: não se trata, na obtenção de qualquer daquelas decisões, de uma concretização lógica de normas jurídicas abstractas aplicáveis, mas, verdadeiramente, de um desenvolvimento normativo de tais normas e de uma comprovação autónoma da sua aplicabilidade ao caso concreto; nisto se traduz exactamente a declaração do direito do caso penal concreto e o processo criador através do qual se efectiva.

Como refere o mesmo Mestre, a finalidade do Estado-de-Direito social reside na criação e manutenção, pela comunidade, de uma situação jurídica permissiva da realização livre da personalidade ética de cada membro, Por isso mesmo, o esclarecimento da situação jurídica material em caso de conflito supõe não só a garantia formal da preservação do direito de cada um nos processos judiciais, mas, identicamente, a comprovação objectiva de todas as circunstâncias, de facto e de direito, do caso concreto. Compromovação esta inalcançável sem uma audiência esgotante de todos os participantes processuais.

            Assim, adianta Figueiredo Dias “que compreende-se por que não basta apelar para a função processual da máxima audiatur et altera pars (princípio do contraditório) para a exigência de descoberta da verdade material, ou mesmo para a indispensabilidade de um íntegro direito de defesa, para que do mesmo passo se alcance o fundamento e sentido do princípio da audiência. O que, mesmo no fundo deste, está em causa é nada menos que a relação entre a Pessoa e o Direito, mais particularmente, a relação entre a pessoa e o seu direito. O direito de audiência é a expressão necessária do direito do cidadão à concessão de justiça, das exigências comunitárias inscritas no Estado-de-Direito, da essência do Direito como tarefa do homem e, finalmente, do espírito do Processo como “comparticipação” de todos os interessados na criação da decisão”.

Do exposto  derivarão duas consequências que haveremos de ter em mente sempre que se trate de analisar as concretas manifestações do direito de audiência em todo o decurso do processo: Uma respeita á dupla natureza que o princípio da audiência encerra. Ele comporta as notas de um direito subjectivo para o seu titular: de um direito subjectivo público, contra o Estado, a ser ouvido perante um tribunal. Não só estas notas, todavia, mas também as constitutivas de uma norma objectiva, para a condução do processo perante o tribunal. Norma que há-de assegurar ao titular do direito uma eficaz e, efectiva possibilidade de expor as suas próprias razões e de, por este modo, influir na declaração do direito do seu caso.

Respeita a outra consequência ao âmbito dos titulares do direito de audiência. Legitimado ao seu exercício, na verdade, não deverá estar só o arguido, mas todo aquele participante no processo relativamente ao qual deva o juiz tomar qualquer decisão que o afecte. Só quando o direito de audiência couber a todos os participantes processuais que possam ser juridicamente afectados na esfera dos seus direitos – de qualquer um dos seus direitos, com compreensível e especial relevo para os direitos de personalidade – por uma decisão a tomar em juízo estará assegurada às pessoas a sua participação constitutiva na declaração do direito do caso e, através dela, na conformação da sua situação jurídica futura.

            No que concerne ao âmbito da incidência do princípio, o mesmo terá uma maior ou menor amplitude de acordo com a própria fase processual em que se insere. Em toda a sua latitude, compreenderá ele a possibilidade de o interessado na decisão a tomar de se pronunciar sobre a respectiva base fáctica da decisão, a apresentação de provas, o pedido de novas diligências, as provas recolhidas e, enfim, a questão de direito

 

            Subsumindo o desenho abstracto do esquema normativo, verifica-se a convergência de situações em que se acha, por um lado, em causa o direito de defesa e o exercício do contraditório e, por outro, um direito que com o mesmo está interligado a traduzir-se no direito à informação.

Na verdade, perante numa alteração factual em dois momentos processuais distintos e em qualquer interrogatório a que seja sujeita o arguido, será de renovar se o direito à informação tal como está previsto no artigo 141º do CPP.

Como referimos em Comentário constante da obra supra citada (pág. 587 e seg e 603), o arguido tem o direito de saber os elementos existentes no processo que indiciem a sua responsabilidade criminal. A informação ao arguido sobre os meios de prova, e os meios de obtenção de prova, suscita um delicado problema entre o exercício do direito de defesa e a eficiência da investigação criminal, quando não com a própria segurança e, eventualmente, a própria vida de terceiros intervenientes no processo. Na verdade, a consagração de um direito a tal informação, apenas restringido em situações limite, é susceptível de criar, nos casos de criminalidade mais grave, organizada e violenta, um perigo concreto para a pessoa das testemunhas de acusação ou para quem tenha colaborado na investigação.

Por outro lado, não podemos esquecer que nos encontramos dentro da fase de inquérito, estando, pois, em curso uma investigação conduzida pelo MP. Se, em defesa de imperativos constitucionais, há que informar o arguido dos elementos em questão, temos também que, do outro lado deste equilíbrio de interesses, se divisa a investigação e a funcionalidade da justiça penal que não pode, nem deve, ser posta em causa.

Analisando o teor do normativo – artigo 141º do CPP – é manifesto que o cumprimento do dever de informação – e a ponderação dos factores referidos na alínea e) do nº4 sobre os elementos que podem, ou não, ser revelados – compete ao JIC. Da decisão que for proferida podem recorrer o MP ou o arguido, embora em posições e fundamentos processuais diversos: o MP recorre considerando que a revelação dos elementos escolhidos pelo JIC coloca em causa a investigação; por seu turno, o arguido tem interesse em recorrer nos casos em que existam elementos que não lhe tenham sido revelados, mas tenham sido usados para fundamentar o despacho de aplicação de medida de coacção, ou garantia patrimonial. Isto pois que é nesse caso que se verifica o prejuízo decorrente da utilização de elementos não revelados.

Apreciando a questão da necessidade de comunicação, o Tribunal Constitucional, na decisão 607/2003, "concluiu que é inconstitucional, por violação do disposto artigos 28º, nº 1, e 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma extraída da conjugação dos artigos 141º, nº 4, e 194º, nº 3, ambos do Código de Processo Penal, segundo o qual, no decurso de interrogatório de arguido detido, a exposição dos factos que lhe são imputados e dos motivos da detenção se basta com a indicação genérica ao arguido das infracções penais de que é acusado (…) Todavia, é no acórdão 416/03 que se desenha a argumentação axial do Tribunal Constitucional para justificar a necessidade de comunicação dos elementos de prova. Refere a mesma decisão que "não se trata de afirmar o acesso irrestrito do arguido ao inquérito, mas apenas aos específicos elementos probatórios que foram determinantes para imputação dos factos, para a ordem de detenção e para a proposta de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva. Ora, relativamente a estes específicos elementos de prova é constitucionalmente intolerável, como se decidiu no Acórdão nº 121/97, que se considere sempre. em quaisquer circunstâncias interdito esse acesso, com alegação de potencial prejuízo para investigação, protegida pelo segredo de justiça, sem que se proceda, em concreto, a uma análise do conteúdo desses elementos de prova e à ponderação, também em concreto, entre, por um lado' o prejuízo que a sua revelação possa causar à investigação e, por outro lado, o prejuízo que a ocultação possa causar à defesa do arguido.

Por outras palavras, e implicitamente, pretende-se um equilíbrio entre o direito de defesa e outros interesses tutelados pelo processo penal.

Este direito de defesa consubstancia-se num catálogo de direitos que deve ser exercido dentro dos princípios que parametrizam o Código de Processo Penal e não outorga um salvo-conduto para que o arguido intervenha no processo quando entender e pela forma que entender. O direito de defesa conjuga-se com a realização doutros valores que conduzem à eficiência da justiça penal com respeito pelos direitos fundamentais.

            O direito de defesa do arguido integra um complexo de direitos parcelares que constituem, em última análise, o seu estatuto processual. Para Figueiredo Dias, a concessão daqueles autónomos direitos processuais, legalmente definidos, corresponde ao reconhecimento do arguido como sujeito e não apenas como objecto de processo. Os actos processuais do arguido deverão ser, assim, expressão da sua livre personalidade e da cidadania.

E como sujeito processual penal, assistem ao arguido relevantes prorrogativas, contando-se, entre elas, o direito de audiência, o direito de presença, o direito de assistência do defensor e direito à interposição de recursos. Aspecto importante da sua defesa material é, exactamente, o seu direito de, em qualquer momento e em qualquer fase do processo, apresentar requerimentos, exposições ou memoriais que tenham por finalidade a salvaguarda dos seus direitos fundamentais. Isto, obviamente, desde que os mesmos se contenham dentro dos limites do processo, e tenham por finalidade a salvaguarda dos seus direitos fundamentais.

Conforme tem vindo a ser uniformemente entendido pelo Tribunal Constitucional (confrontar Acórdão 278/99), a preservação das garantias de defesa do arguido passa, nos parâmetros do Estado de Direito democrático além do mais, pela observação do contraditório de modo a que possa sempre ser dado conhecimento ao arguido do teor da acusação que lhe é feita e se lhe dê oportunidade para dela se defender. A intangibilidade deste núcleo essencial compadece-se, no entanto, com a liberdade de conformação do legislador ordinário que, designadamente na estruturação das fases processuais anteriores ao julgamento, detém margem de liberdade suficiente para plasticizar o contraditório sem prejuízo de a ele subordinar estritamente a audiência: aqui tem o principio a sua máxima expressão (como decorre do n° 5 do artigo 32° citado) nessa fase podendo expor o seu ponto de vista quanto às acusações que lhe são feitas pela acusação, contraditar as provas contra si apresentadas, apresentar novas provas e pedir a realização de outras diligências e debater a questão de direito.

Porém, à excepção desse núcleo – que impede a prolação de decisão sem ter sido dada ao arguido a possibilidade de "discutir, contestar e valorar" (Parecer n° 18/81 da Comissão Constitucional 16° Volume pág. 154) – não existe um espartilho constitucional formal que não tolere uma certa maleabilização do exercício do contraditório.

            No caso concreto o Sr. Juiz de Instrução Criminal proferiu um despacho de reexame que assumiu uma natureza provisória e prévia em relação a um novo despacho que foi proferido em 9 de Março.

            A natureza prévia de tal despacho não lhe retira a exigência própria duma decisão de reexame e, consequentemente, a sua sujeição às exigências legais. Exigências várias e onde se inscreve a audição prévia do arguido. Nos termos da lei, a audição só ocorre quando necessária, devendo divisar-se tal necessidade quando existam factos novos que incidam sobre os pressupostos da medida de coacção. Já não será assim quando não tenha ocorrido alteração das circunstâncias que determinaram o decretamento da medida.

            No caso vertente e a partir do momento em que existia uma promoção que densificava as razões já aduzidas como suporte de reexame da medida de coacção aplicada, deveria ter sido dado ao arguido o direito de pronunciar previamente, mesmo atribuindo uma natureza intercalar ao despacho proferido em 24 de Fevereiro.

Saliente-se que a notificação que é feita nos autos ao abrigo do disposto do artigo 213º, nº3 do CPP é prévia ao despacho proferido em 9 de Março e não em relação ao primitivo despacho de 24 de Fevereiro.

            Não se tendo procedido a tal audição, e não se proferindo despacho a fundamentar a sua desnecessidade, provocou-se a existência duma irregularidade do despacho judicial. Vício de simples irregularidade uma vez que não se trata de acto processual legalmente obrigatório e que não conduz, como tal, à nulidade e, muito menos, à inexistência do despacho proferido. Na verdade, a qualificação como irregularidade obriga à integração do vício previsto no artigo 123º do Código de Processo Penal.

            Mantendo o mesmo despacho intacta a sua força vinculativa – pois que a mera irregularidade não afecta a sua essência – não se poderá afirmar que o mesmo não mantém aptidão para suportar o reexame da medida de coacção aplicada.   

III

Do princípio da lealdade

É evidente a necessidade de que ao arguido seja dado conhecimento de todos aqueles factos e actos que, por alguma forma, afectam a sua posição no processo sem embargo do respeito pelas regras do segredo de justiça que devem ser observadas.

Por tal forma se cumprirá um dos princípios mais importantes e mais esquecidos do processo. Na verdade, princípio envolvente, e estruturante do processo penal na sua globalidade – mandato superior do direito processual penal, como refere Roxin – é o princípio do processo justo. Esta máxima, formulada em termos de cláusula geral, é uma consequência das decisões valorativas fundamentais do Estado de Direito e do Estado Social.

Tal como referimos em decisão de fixação de jurisprudência n.º 2/2011, a ideia do procedimento justo expresso, processualmente, no princípio da lealdade, deve compreender-se como uma exigência concreta da optimização de valores constitucionais. Nesse plano assumem uma inegável relevância valores como a dignidade humana, que tem inscrita a protecção do princípio de confiança recíproca na actuação processual, que deve pautar a conduta de todos os intervenientes processuais (qualquer que seja o plano em que se movimentem), e o princípio de igualdade de armas (este em determinadas fases processuais).

Na verdade, nenhum argumento, ou princípio, poderá ser mobilizado para provocar a erosão do pressuposto fundamental que se consubstancia na exigência de que todos os actores do processo penal tenham a sua actuação procedimental pautada pela finalidade última que é a de realização da justiça, e de procura da verdade material. Este objectivo teleológico não se compadece com a realização processual que visa a utilização estratégica do processo como instrumento acrítico e neutro, procurando outras finalidades laterais e, até, em clara oposição com aquela realização e procura.

Do juiz até ao mais anódino interveniente todos são construtores de um processo justo, necessariamente orientado, de forma linear e objectiva, para a procura da verdade. Tal princípio, e pressuposto, não admite inscrever no seu perfil a admissibilidade de condutas processuais orientadas para a instrumentalização do processo penal, colocando-o ao serviço de finalidades que visam o seu entorpecimento, quando não a negação dos seus princípios orientadores

Refere o refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3/03/2004 que a lealdade não é uma noção jurídica autónoma, mas é sobretudo de natureza essencialmente moral e ética, e traduz uma forma de estar em conformidade com o respeito dos direitos do cidadão e a dignidade da Pessoas e da Justiça. A lealdade, a boa-fé, a confiança, o equilíbrio entre o rigor das decisões do processo e as expectativas que delas decorram, são elementos fundamentais a ter em conta quando seja necessário interpretar alguma sequência que, nas aparências, possa exteriormente apresentar-se com algum carácter de disfunção intraprocessual.

A procura do processo justo e leal, e a confiança como elemento do princípio do processo equitativo, derrubam qualquer obstáculo formal e não nos permitem tomar outra decisão que não seja garantir aquela finalidade.

Na verdade, ousamos afirmar que o cumprimento do princípio da lealdade processual revela até que ponto se reflecte no processo a credibilidade de um regime democrático. O mesmo princípio, particularmente em processo penal, é revelador da forma, e condições, sobre as quais se concebem as relações do Estado e o Cidadão. A natureza democrática, ou não, de um Estado depende, também do estatuto do cidadão face ao poder público, especificamente face á instância de controle reforçado, que é característica do processo penal, e da forma leal, ou desleal, como é tratado no seu catálogo de direitos e deveres.

O princípio da lealdade no comportamento processual representa uma imposição de princípios gerais inscritos na própria dignidade humana, e da ética, que deve presidir a todos os actos do cidadão. O mesmo liga-se, de forma inexorável, ao direito a um processo justo e ao princípio da igualdade de armas.

Em termos gerais, e em qualquer litígio, a existência de um princípio geral da lealdade é essencial para a afirmação da existência do Estado de Direito.

IV

Da fundamentação

            A manutenção do estatuto processual do arguido determinada por despacho de fls 421 determina tal manutenção, possibilitando que ao arguido assista o tempo necessário para se pronunciar sobre o reexame.

            Não existe, efectivamente, uma fundamentação objectiva sobre o tema do mesmo despacho, que é o de reapreciar os fundamentos da medida de coacção aplicada. Opera-se tão-somente o relegar para momento ulterior do renovar de tal apreciação.

            Importa precisar, no que concerne, que a fundamentação implica um exame crítico que se situa nos limites propostos, ente outros, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional 680/98. Definição que já tinha adquirido foros de autonomia também a nível do Supremo Tribunal de Justiça com a consagração de um dever de fundamentação no sentido de que a sentença ou a decisão proferida há-de conter também os elementos que, em razão da experiência ou de critérios lógicos, construíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse num sentido.

            Por essa forma, acabaram por obter consagração legal as opções daqueles que consideravam a fundamentação uma verdadeira válvula de escape do sistema ao permitir o reexame do processo lógico ou racional que subjaz à decisão. Também por aí se concretiza a legitimação do poder judicial, contribuindo para a congruência entre o exercício desse poder e a base sobre o qual repousa: o dever de dizer o direito no caso concreto. 

            Igualmente é certo que a exigência de motivação emerge directamente de um dever de fundamentação de natureza constitucional – artigo 208º da CRP –, achando-se este arvorado por Gomes Canotilho e Vital Moreira como parte integrante do próprio conceito de Estado de Direito democrático. Veste que lhe é atribuída, pelo menos, quanto às decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo como instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e da garantia do direito ao recurso[31]. Na verdade, é um dado adquirido o de que um sistema de processo penal inspirado nos valores democráticos não se compadece com razões que hão-se impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz.

            Motivar significa justificar. E justificar significa justificar-se, dar a razão do trabalho produzido. No que se admite, como linha de princípio, a legitimidade da formulação de críticas formuladas, ou seja, a legitimidade de um controle.

            A exigência de motivação responde, assim, a uma finalidade do controle do discurso do juiz com o objectivo de garantir até ao limite de possível a racionalidade – dentro dos limites legais – da sua decisão. Um controle que não só visa uma sindicância externa como também pode determinar o próprio juiz, implicando-o e comprometendo-o na decisão ao ponto de evitar uma aceitação acrítica como convicção de algumas das perigosas sugestões assentes unicamente numa certeza subjectiva

            A concretização de tal obrigação de fundamentação é formulada em termos lapidares pelo Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 13/10/1992 quando refere que: " "trata-se (…) de referir o íter formativo da convicção, isto é o aspecto valorativo cuja análise há-de permitir, comprovar se o raciocínio foi lógico ou se foi irracional ou absurdo".

            Como refere Paulo Saragoça da Mata, só por essa forma se garante uma tutela judicial efectiva. Com efeito, só assim o decisor justifica, perante si próprio, a decisão (o momento da exposição do raciocínio permite ao próprio apresentar e conferir o processo lógico e racional pelo qual atingiu o resultado), e garante a respectiva comunicabilidade aos sequenciais destinatários e terceiros (dando garantias acrescidas de que a prova juridicamente levante foi não só correctamente recolhida e produzida, mas também apreciada de acordo com cânones claramente entendíveis por quem quer).

A motivação existirá, e será suficiente, sempre que com ela se consiga conhecer as razões do decisor.

            Admitimos que a fundamentação possa ser sumária, sendo certo que esta é uma forma legalmente admissível de formatar a decisão judicial. Como refere Mouraz Lopes[32],  a fundamentação sumária traduz-se num modo de elaboração da fundamentação da decisão que consiste numa redução do âmbito da estrutura justificativa dos actos decisórios. Isto tendo em conta a especificidade estrutural que cada acto assume no procedimento.

Em nosso entendimento, no caso vertente e quanto ao despacho de 24 de Fevereiro, a fundamentação inexiste. Falha que conduz necessariamente à irregularidade da mesma decisão[33] [34].

Porém, e como já se referiu, a providência em causa constitui um mecanismo expedito que visa pôr termo imediato a situações de prisão manifestamente ilegais, sendo a ilegalidade directamente verificável a partir dos factos documentados.

O habeas corpus não é o meio adequado para impugnar as decisões processuais ou arguir nulidades e irregularidades processuais, as quais terão de ser impugnadas através do meio próprio[35] [36].

            Assim sendo é manifesto que a integração de tal irregularidade não pode constituir fundamento da presente providência.

v

Do princípio da actualidade

Refere o requerente a inobservância do direito de audição em relação a um momento processual anterior e, especificamente, no decretar da medida a que está sujeito.

            No que respeita, e independentemente da existência da patologia processual invocada, importa ter em conta que, para o acolhimento do pedido de habeas corpus, é necessário que a ilegalidade da prisão seja actual. E tal actualidade carece de ser reportada ao momento em que é apreciado aquele pedido. Tal tem sido a jurisprudência constante e pacífica deste Supremo Tribunal de Justiça (cfr. Acs de 11.2.93, Acs do STJ n.º 1, 196, de 23.11.95, proc. n.º 112/95, de 21.5.97, proc. n.º 635/97, de 9.10.97, proc. n.º 1263/97, de 26.10.00, proc. n.º 3310/00-5, de 25.10.01, proc. n.º 3551/01-5, de 24.10.01, proc. n.º 3543/01-3 e de 23.5.02, proc. n.º 2023/02-5).

É, pois, da legalidade da prisão actual (da que se mantém no momento da apreciação do pedido) que se ocupa o habeas corpus e não de qualquer outra medida limitativa da liberdade da mesma pessoa que tenha, eventual e anteriormente, tido lugar.

            No caso vertente a legalidade, ou ilegalidade, da medida de coacção aplicada deve ser aferida em função das decisões que a suportam, ou seja, os despachos proferidos em 24 de Fevereiro e 9 de Março – o que se fez – e não do primitivo despacho de aplicação da medida cuja observância da lei deve ser equacionada em sede de recurso.

 Assim, sem embargo da relevância das questões suscitadas e da sua importância processual, entende-se que as mesmas não podem fundamentar a providência requerida.

            Nestes termos julga-se improcedente o pedido de habeas corpus

formulado pelo requerente AA.

Custas pelo requerente

Taxa de Justiça 4 UC 

Santos Cabral

Oliveira Mendes, com Declaração de Voto *

Pereira Madeira

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* Declaração de Voto

A alínea a) do n.º 3 do artigo 11º do Código Processo Penal, sob a epígrafe de «Competência do Supremo Tribunal de Justiça», ao estatuir que compete ao pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, em matéria penal julgar o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República e o Primeiro-Ministro pelos crimes praticados no exercício das suas funções, estabelece duas condições ou pressupostos cumulativos:

A qualidade de Presidente da República, Presidente da Assembleia da República e de Primeiro-Ministro e a circunstância de os crimes terem sido praticados no exercício daquelas funções.

Deste modo, não possuindo o requerente AA a qualidade de Presidente da República, Presidente da Assembleia da República ou de Primeiro-Ministro, é a meu ver indiscutível ser inaplicável no caso vertente a norma da alínea a) do n.º 3 do artigo 11º do Código de Processo Penal e, consequentemente, a norma do n.º 7 do referido artigo.

Oliveira Mendes

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[1] Cfr., Cláudia Cruz Santos, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 10, fascículo 2.º, págs. 309
[2] Direito Processual Penal Edição Policopiada da Secção de textos da Faculdade de Direito de Coimbra pag 103
[3] Código de Processo Penal Comentado; António H.Gaspar; Santos Cabral; Maia Costa; Oliveira Mendes; Pereira Madeira; Henriques da Graça Edições Almedina pag 951
[4] Processo Penal, Prova e Sistema Judiciário pag 215
[5] Constituição Da republica Portuguesa anotada pag 517 e seg
[6] Moreno Catena: Derecho Procesal, 1. II  , p. 104.
[7] S. Aragoneses Martínez: Derecho Procesal Penal, Centro de Estudios Ramón Areces, Madrid, 1996, pp. 99-100
[8] Luis Maria Diez Picazo La Criminalidad de los Gobernantes pág. 31 e seg.
[9] Tratado de Derecho Publico Civitas Madrid Comentario ao artigo 102 da Constituição Espanhola
[10] Susana Gomez Aspe La responsabilidade de los membros del gobierno y la exigência del suplicatório Revista de Estudios Politicos Julio Setembre 1999
[11] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. v. 2. p. 130.
[12] MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo penal. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 199
[13]Do foro privilegiado: os limites da competência especial ratione personae Cinara Bueno Santos Pricladnitzkyhttp://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=10135
[14] Assim, o artigo 11º do CPP, ao mandatar explicitamente o Supremo Tribunal de Justiça, introduz uma regra especial de competência objectiva rationae personae consagrando como competente para instrução e julgamento um tribunal diferente daquele que resulta da aplicação das regras gerais.
[15] Relator Juiz Conselheiro Henriques Gaspar
[16] Conforme Gomes Canotilho e Vital Moreira Constituição da Republica Portuguesa Anotada II Volume pag 117 e seg  O conceito de crimes de responsabilidade (n° 3) não é definido pela Constituição, havendo por isso de recorrer-se ao seu significado tradicional no direito constitucional português. Assim chamados pela primeira vez na Constituição de 1911 (art. 55°), tendo a Constituição de 1933 conservado tal designação (art. 114° da versão originária), tal categoria vem desde muito atrás, com origem logo na Constituição de 1822 (arts. 159° e 160°), continuada na Carta Constitucional de 1826 (arts. 103° e 104°) e na Constituição de 1838 (art. 116°). Em todos os casos, trata-se de uma categoria de responsabilidade criminal reservada os membros do «poder executivo», ou seus agentes, sendo de sublinhar, portanto, o alargamento a que procedeu a CRP de 1976 ao estendê-la aos titulares dos cargos políticos em geral.
Tendo em conta a densificação histórica do conceito, é possível defini-lo com recurso às seguintes características: (a) trata-se de crimes praticados por titulares de cargos políticos (designadamente por membros do «poder executivo») no exercício de funções; (b) consistem na infracção de bens ou valores particularmente relevantes da ordem constitucional, cuja promoção e defesa constituem dever funcional dos titulares de cargos políticos; (c) por isso, existe uma conexão entre esta responsabilidade criminal e a responsabilidade política, transformando-se a censura criminal necessariamente numa censura política (com a consequente demissão ou destituição como pena ou efeito necessário da pena); (d) qualificação desta responsabilidade criminal, face à responsabilidade criminal comum, pelo facto de o agente dispor de uma certa liberdade de conformação e gozar de uma relação de confiança pública; (e) existência de especificidades quanto ao processo criminal, quanto ao tipo de penas e seus efeitos e também, eventualmente, quanto à competência judicial para o julgamento (embora naturalmente com respeito da proibição de tribunais criminais especiais). 
[17] Veja-se neste sentido, Jorge Miranda, no texto “Imunidades Constitucionais e Crimes de Responsabilidade”, Direito e Justiça, Revista da FDUCP, Vol. XV, 2001, Tomo 2, pág. 47: “Na Constituição de 1976 não há preceito explícito e a Lei.n.º 34/87, de 16 de Julho, cinge-se a declarar que a condenação definitiva implica a demissão com as consequências previstas na Constituição (artigos 30. e 31.°). A mais importante destas consequências é, estando em causa o Primeiro- Ministro, a própria demissão do Governo - pois a demissão do Primeiro-Ministro (se, antes, não se tiver já verificado) arrasta a do Governo (artigo 195.°, que, todavia, não contempla esta hipótese).”
[18] O Governo, representado pelo seu exponente máximo Primeiro-Ministro, é o órgão de condução da política geral do país e o órgão superior da administração pública (art. 182.º e 183.º da CRP). O Primeiro-Ministro exerce o cargo por eleição directa do povo e através do programa do governo, define e conduz a política geral do País. Inclusive a condenação definitiva do PM implica a demissão do mesmo [art. 30.º e 31.º da Lei n.º 34/87, de 16-07, que, por sua vez, arrasta a demissão do governo (art. 195.º, n.º 1, al. b), da CRP)]
[19] Obra supra citada, pág. 29
[20] Tal posição ganha algum respaldo na constatação de que, nos termos dos artigos 130º e 196º da Constituição da Republica Portuguesa, o mecanismo constitucional de responsabilização criminal dos membros do Executivo e do Presidente da Republica pressupõem uma deliberação da Assembleia da Republica que tem por objecto o responsável que se encontra no exercício de funções.
[21] Tal como quem exerça ou tenha exercido o cargo de Presidente da Republica, de Presidente da Assembleia da Republica e de Primeiro Ministro ou utilizando expressões como Presidente da Republica ou Ex-Presidente da República, Presidente da Assembleia da Republica ou ex-Presidente da Assembleia da Republica e Primeiro-Ministro ou Ex-Primeiro-Ministro
[22] Obra citada pág. 58
[23] Cinara Bueno Santos Pricladnitzky Do foro privilegiado: os limites da competência especial ratione personae
[24] La Responsabilidade Penal de los Membros del Gobierno en la Constitution pag 146 e seg
[25] Ibidem pag 153
[26] Luis Maria Diez Picazo La criminalidad de los Goberniantes Critica pag 159
[27] O tratamento diferenciado de delitos cometidos por governantes reflecte a convicção de que  este tipo de actos ilícitos é demasiado importante para ser deixada nas mãos dos juízes com a formação burocrática tipo dos países de tradição europeia continental. Uma atitude reactiva deste tipo não tem sentido na Inglaterra ou nos Estados Unidos, onde os juízes são seleccionados pelos poderes políticos entre profissionais experientes, tomando em consideração a sua capacidade técnica e de suas características pessoais. Nestes países os juízes não são considerados como um elemento estranho à evolução global da vida política.
Porém, nos países onde rege um modelo burocrático Judiciário, a ideia de um tratamento diferenciado de infracções daquele tipo tem subjacente uma ideia de alguma desconfiança. (com Diez Picazo ibidem)
[28] Contributo para a análise da inexistência e das nulidades processuais pag129 e seg.
[29] Código de Processo Penal Comentado pag 887
[30] (Direito Processual Penal pag156 e seg.
[31] Constituição Anotada pág. 799
[32] Fundamentação da Sentença no Sistema Penal Português Legitimar, Diferenciar, Simplificar; 2011 Almedina; Colecção: Teses de Doutoramento
[33] Tal circunst
[34] Confrontar Maia Costa obra citada pág. 888
[35] Confrontar por todos o acórdão do STJ de 1.2.2007 (CJSTJ, XV, I, p. 180, Pereira Madeira).
[36] Conforme se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de 2 de Fevereiro de 2005  “No âmbito da decisão sobre uma petição de habeas corpus, não cabe, porém, julgar e decidir sobre a natureza dos actos processuais e sobre a discussão que possam suscitar no lugar e momento apropriado (isto é, no processo), mas tem de se aceitar o efeito que os diversos actos produzam num determinado momento, retirando daí as consequências processuais que tiverem para os sujeitos implicados.
 A providência de habeas corpus não decide, assim, sobre a regularidade de actos do processo com dimensão e efeitos processuais específicos, não constituindo um recurso de actos de um processo em que foi determinada a prisão do requerente, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis.