Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
109/14.3TBRSD.C1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: BALDIOS
ADMINISTRAÇÃO
AUTARQUIA
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
PRESTAÇÃO DE CONTAS
Data do Acordão: 03/18/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
Finda a administração pela autarquia de terrenos baldios, o valor a restituir aos Compartes, relativo às quantias recebidas pela autarquia, em razão do contrato de arrendamento por si celebrado, tendo por objeto os ditos baldios, deve ser apurado em ação de prestação de contas, a instaurar posteriormente.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I - Relatório

1. Em 17.6.2014, o Conselho Diretivo dos Moradores - Compartes de Feirão instaurou a presente ação declarativa comum contra União das Freguesias de Felgueiras e Feirão (doravante 1ª Ré), com sede em Felgueiras, Felgueiras-Resende, e Empreendimentos Eólicos do Douro, S. A. (doravante 2ª Ré), pedindo que estas sejam condenadas a:

- Reconhecer que os prédios identificados no art.º 4º da petição inicial são baldios e propriedade comunal dos moradores compartes da Freguesia de Feirão;

- Reconhecer esse direito e a abster-se de qualquer ato que o ponha em causa;

- Ver declarado que os prédios foram devolvidos ao Conselho Diretivo dos Compartes pela Junta de Freguesia de Feirão:

- A União das Freguesias de Felgueiras e Feirão a ver declarada a ineficácia e a nulidade da escritura de justificação notarial e ordenado o cancelamento de qualquer registo efetuado a seu favor com base na mesma escritura, bem como a reconhecer que não adquiriu os prédios por usucapião e, ainda, a restituir ao A. o montante da renda vencida em 31.01.2014 que recebeu da 2ª Ré, no montante de € 81.000,00 e demais acréscimos ;

- A pagar ao autor uma indemnização pelos prejuízos sofridos com a sua conduta ilícita, nomeadamente com os honorários e demais despesas a suportar com a constituição de advogado a determinar em ulterior decisão;

Para tanto, alegou, em síntese, que:

O A. foi eleito em reunião da Assembleia dos Moradores Compartes da Freguesia de Feirão de 20.01.2013.;

Estão inscritos na matriz predial rústica da freguesia da União das Freguesias de Felgueiras e Feirão, tendo como titular a Assembleia dos Moradores Compartes, um conjunto de 10 prédios rústicos, sitos na área da antiga freguesia de Feirão, cujos artigos matriciais estão atualizados em resultado da agregação das Freguesias e que são baldios.

Desde tempos imemoriais que os referidos prédios têm vindo a ser possuídos e fruídos pelos moradores das comunidades locais da Freguesia de Feirão, que neles apascentam gado, recolhem matos e lenhas e exploram águas, há mais de 20, 50, 100 ou 200 anos, à vista de todos, sem oposição de ninguém, ininterruptamente, na convicção de os utilizarem por direito próprio e exclusivo dos moradores da Freguesia de Feirão, ignorando lesar direitos de outrem.

A Junta de Freguesia Freguesia de Feirão outorgou no Cartório Notarial de Baião, em 18.9.2002, uma escritura de justificação notarial, da qual se fez constar que aquela adquiriu os ditos prédios rústicos, por compra verbal no ano de 1975, a pessoas ali identificadas, alegando a posse e fruição sobre eles há mais de 20 anos conducente à sua aquisição, também, por usucapião.

Mais alegou que a ali justificante sabia que as declarações não correspondem à verdade, pois tais prédios nunca estiveram na sua posse como proprietária, nunca lá praticou quaisquer atos com a convicção de ser proprietária e jamais estiveram na posse ou foram propriedade das pessoas identificadas na mesma escritura como transmitentes, sendo que tais prédios nunca lhes foram transmitidos por qualquer forma.

O A., no uso dos poderes conferidos pela Assembleia dos Moradores Compartes numa Ata, pediu, por escrito, a devolução dos terrenos baldios à Junta de Freguesia de Feirão, tendo esta deliberado, por unanimidade, devolver os terrenos à Comissão dos Moradores Compartes da Freguesia de Feirão e o Plenário da Freguesia de Feirão ratificou a devolução aprovada pela Junta, em reunião realizada em 19.5.2013.

Sucede que a Junta de Freguesia Feirão, em 2.2.2002, deu de arrendamento à sociedade Hidráulica do Tua, Lda.,, para exploração de um parque eólico, terrenos inscritos na matriz predial rústica sob os artigos (antigos) …64, …..01, …18 e …45, sendo certo que à 2ª Ré foi-lhe cedida a posição contratual de arrendatária e, por alterações do contrato inicial, o parque eólico encontra-se atualmente instalado nos prédios dos artigos atuais n.ºs ….89, …51 e …..27

Ora, com a devolução dos baldios ao A. pela 1ª Ré, o mesmo ocupou a posição de cedente no contrato de arrendamento.

No entanto, ao A., apesar de o ter solicitado, nunca foram entregues os valores das rendas em causa, o que, por via da presente ação, vem peticionar.

2. A ação foi contestada.

A 1ª Ré contestou, alegando, em resumo, que o A. é uma inexistência jurídica, dado que não cumpriu qualquer dos formalismos e procedimentos previstos na Lei dos Baldios, verificando-se, assim, a exceção dilatória da falta de personalidade e capacidade judiciária do mesmo.

Por outro lado, os prédios identificados no art.º 4° da p. i. estão na sua posse há mais de vinte anos e  encontram-se registados na Conservatória Predial, a seu favor.

Em nenhum momento a comunidade de Feirão usou e fruiu ou teve qualquer espécie de posse sobre tais terrenos como baldios.

A 2ª Ré veio também contestar, tendo alegado que a sociedade Empreendimentos Eólicos do Tua, S.A.  lhe cedeu a posição contratual no contrato de arrendamento celebrado com a Junta de Freguesia de Feirão, a quem sempre pagou a renda nos termos mencionados no contrato.

3. O A. respondeu à matéria de exceção, concluindo pela sua improcedência. Veio ainda ampliar o pedido para € 162.000,00 (considerada a renda vencida em 31.1.2015), requerendo também a condenação da 1ª Ré a restituir-lhe as demais rendas que se vencerem até  ao trânsito da sentença, devidas atualizações e respetivos juros moratórios.

4. Foi proferido despacho saneador que relegou para final o conhecimento da matéria de exceção, firmou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.

5. No decurso do julgamento, a 1ª Ré requereu que se requisitasse  às “Águas de Trás-os-Montes e Alto Douro, S. A.” o acordo amigável de expropriação, e a forma de pagamento do valor acordado, o que foi indeferido.

6. Deste despacho a referida Ré interpôs recurso de apelação, o qual foi admitido a subir com o recurso que viesse a ser interposto da sentença.

7. Seguidamente, foi proferida sentença que, julgando a ação parcialmente procedente:

- Condenou a 1ª Ré a reconhecer que os prédios identificados no artigo 33 dos factos provados – sendo a 2ª Ré apenas relativamente às alíneas D), E) e G) de tal artigo - são baldios e propriedade comunal dos moradores compartes da antiga Freguesia de Feirão e consequentemente a abster-se de qualquer ato que o ponha em causa.

- Declarou que os prédios em causa foram devolvidos aos Compartes de Feirão pela Junta de Freguesia de Feirão.

- Declarou a ineficácia da escritura de justificação notarial identificada nos artigos 4 e 5 da factualidade provada, no que tange aos Compartes e consequentemente ordenou o cancelamento de qualquer registo (registral ou matricial), efetuado a seu favor com base na mesma escritura.

- Declarou que a 1ª Ré -  antes Freguesia de Feirão - não adquiriu tais prédios por usucapião.

- Condenou a 1ª Ré a restituir ao Autor o montante da renda vencida em 31.01.2014 que recebeu da 2ª Ré, no montante de € 81.000,00, e demais acréscimos e ainda aquelas que se venceram e foram pagas no mês de janeiro dos anos subsequentes - 2015, 2016, 12017, 2018 e 2019 - à razão anual de valor não inferior a € 81.000,00 e ainda alguma vincenda até decisão final nestes autos.

-  Absolveu as Rés do pedido de indemnização formulado pelo A..

8. Inconformada, a 1ª Ré interpôs recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação proferido acórdão em que:

- Julgou improcedente o recurso da decisão intercalar;

- Julgou parcialmente procedente a apelação interposta da sentença e, consequentemente, revogou a sentença,  na parte em que condenou a 1ª Ré “a restituir ao A. o montante da renda vencida em 31.01.2014 que recebeu da Ré, no montante de 81.000,00 e demais acréscimos e ainda aquelas que se venceram e foram pagas no mês de Janeiro dos anos subsequentes - 2015, 2016, 2017, 2018 e 2019 - à razão anual de valor não inferior a 81.000,00 e ainda alguma vincenda até decisão final nestes autos”, cujo valor, a entregar pela 1ª Ré ao A.,  deverá ser apurado como se indica em II. 11. e 12., supra”.

- Quanto ao mais, confirmou a sentença.

9. Irresignado com o assim decidido, o autor veio interpor a presente revista, formulando as seguintes conclusões:

1.ª Vem o presente recurso interposto do douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 22.10.2019, na parte em que, julgando parcialmente procedente a apelação, decidiu «revogar parcialmente a sentença recorrida, na parte em que condenou a 1.ª Ré “a restituir ao A. o montante da renda vencida em 31.01.2014 que recebeu da 2.ª Ré, no montante de € 81 000 e demais acréscimos e ainda aquelas que se venceram e foram pagas no mês de Janeiro dos anos subsequentes – 2015, 2016, 2017, 2018 e 2019 – à razão anual de valor não inferior a € 81 000 e ainda alguma vincenda até decisão final nestes autos”, cujo valor, a entregar pela 1.ª Ré ao A., deverá ser apurado como se indica em II. 11. e 12., supra».

2.ª A remissão, no dispositivo do acórdão, para os pontos II. 11. e 12., e particularmente para o ponto12, significa que o valor a pagar pela 1.ª Ré ao Autor há-de ser apurado através da «prestação de contas por parte da 1.ª Ré, nos termos gerais (art.ºs 941º e seguintes do CPC), com vista a apurar o saldo que deverá entregar ao A., atentos os critérios fixados na lei e as particularidades do caso vertente, inclusive, a forma como, nas respetivas comunidades locais, foram aplicadas as receitas geradas pelo contrato (…), o que se desconhece» (negritos nossos).

3.ª Para assim decidir, o tribunal a quo invocou e aplicou ao caso o disposto nos artigos 34.º, 35.º e 36.º da Lei n.º 68/93, de 4 de setembro, na sua redação original, considerando que o Autor passou a figurar do lado ativo no contrato outorgado com a 2.ª Ré, numa cedência da posição contratual ope legis.

4.ª A cedência que foi invocada na petição inicial foi realmente a que resulta do disposto no artigo 36.º da Lei dos Baldios (Lei n.º 68/93), cedência essa que opera ope legis, pelo que, em rigor, não carece de ser provada – e foi isso que entendeu o acórdão recorrido.

5.ª Porém, a melhor decisão de direito, salvo o devido respeito (e revendo o Autor a posição assumida na petição inicial) não passa pela aplicação deste preceito nem pela condenação da 1.ª Ré a pagar o que em prestação de contas for apurado, seguindo os critérios legais.

6.ª Em bom rigor, como resulta da matéria de facto dada como provada, a administração dos baldios em causa não foi objeto de nenhuma transferência para a Junta de Freguesia, o que é pressuposto da aplicação do regime estabelecido no artigo 36.º, designadamente da prestação de contas.

7.ª O que aconteceu foi que a autarquia, pura e simplesmente, arrogou-se proprietária dos baldios e passou a administrá-los, ainda que tal atitude não tenha significado uma espécie de «assalto» à administração e gestão dos baldios, como refere o acórdão recorrido, e o Recorrente aceita.

8.ª Mas o facto de não ter havido um «assalto» não invalida que não tenha havido qualquer transferência para a Junta de Freguesia, no sentido de uma entrega da administração dos baldios pela comunidade à autarquia – transferência que, manifestamente, não foi alegada nem resultou demonstrada.

9.ª Assim, a situação dos autos aproxima-se mais à da não devolução de facto dos baldios às comunidades, após a aprovação da Lei n.º 36/76, de19 de janeiro, que vinha regida nos artigos 34.º e 35.º da Lei n.º 68/93 – cujo texto foi acima transcrito.

10.ª A remissão para os n.ºs 2 e 3 do artigo 36.º, nos termos do n.º 3 do artigo 35.º - que determina a prestação de contas – só opera, como resulta da letra da lei, no caso previsto na parte final do n.º 2 do artigo 35.º, ou seja, quando ocorra caducidade do contrato - caducidade que no caso dos autos nem sequer é configurável.

11.ª Pese embora a péssima técnica do legislador, é inequívoca a sua vontade de preservar a vigência e a validade dos contratos que tenham sido celebrados pelas entidades que deviam ter procedido à devolução de facto dos baldios às comunidades locais.

12.ª O que não significa que em todos os casos tenha de haver prestação de contas, e divisão do saldo: a lei só prevê a prestação de contas para os casos em que tenha havido transferência de facto da administração dos baldios para qualquer entidade, designadamente para a Junta de Freguesia, o que faz todo o sentido.

13.ª Havendo uma transferência dessa administração, a posição da Junta de Freguesia tem que ser acautelada, uma vez que exerceu de forma legítima e autorizada a sua administração, recebendo receitas e aplicando-as da forma que melhor entendeu; se não tiver havido transferência da administração, a posição da Junta de Freguesia não tem a mesma consistência, e esta não merece a mesma proteção jurídica, como é bom de ver, e foi certamente por isso que o legislador não previu a necessidade de prestação de contas em todos os casos.

14.ª Até porque a prevista prestação de contas é acompanhada, nos termos da lei, por uma distribuição de receitas, nos termos eventualmente previstos no acordo de transferência (não existindo tal acordo nem tal previsão, no caso) ou, na falta de acordo, em partes iguais pela entidade gestora e pela comunidade de compartes.

15.ª Essa distribuição de receitas resulta num prémio injusto, inaceitável e abusivo para as entidades que não tenham recebido por transferência das comunidades a administração dos baldios, pelo que o artigo 36.º citado não deve ser interpretado no sentido de premiar as entidades que mantiveram a fruição dos baldios, recusando ilegitimamente a sua restituição.

16.ª O intérprete deve procurar uma interpretação da lei que não implique resultados iníquos, presumindo-se que o legislador soube consagrar as soluções mais acertadas (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil) e que nunca quererá premiar os infratores – seja o caso das autarquias que não devolveram os baldios às comunidades.

17.ª Sendo que a letra da lei e o seu espírito apontam para a obrigação de prestação de contas apenas  nos casos em que houve uma transferência de facto da administração dos baldios pela comunidade local para a autarquia, e não também quando a autarquia recusou, de forma contumaz, a devolução dessa administração à comunidade, perpetuando a sua ilegítima administração.

18.ª Recusa contumaz de devolução que foi o que ocorreu no caso, pela 1.ª Ré, a motivar a necessidade da propositura desta ação, e daquela que a antecedeu (processo n.º 37/03….. - Cfr. ponto 2. dos factos provados), numa guerra judicial que se arrasta desde há 16 anos!!

19.ª Assim, quando, como no caso sub judice, não tenha havido uma transferência da administração dos baldios das comunidades locais para a Junta de Freguesia, deve entender-se que as receitas obtidas por esta devem ser devolvidas, na íntegra, a partir do momento em que a devolução dos próprios baldios também tenha sido legitimamente pedida, pela comunidade local, através do seu órgão representativo.

20.ª Sabendo-se, porque está provado, que a devolução dos baldios foi pedida pelo ora Recorrente à Junta de Freguesia de Feirão em 2013 e mais, que tal devolução foi objeto de deliberação favorável pela mesma Junta de Freguesia, a 19.05.2013 (Cfr. pontos 28. e 29 dos factos provados).

21.ª Declarando o dispositivo da sentença, na parte não revogada, que «os prédios em causa foram devolvidos aos Compartes de Feirão pela Junta de Freguesia de Feirão ».

22.ª Tendo sido devolvidos os baldios aos compartes de Feirão, em 2013, que legitimidade pode ter a 1.ª Ré para pretender fazer suas as rendas recebidas depois desse ano, que são precisamente as que foram peticionadas na ação? Salvo o devido respeito, carece de qualquer legitimidade: se devolveu os baldios, deve devolver também as rendas, que aliás nunca devia sequer ter recebido e feito suas.

23.ª Justificando-se que seja condenada a devolver tais rendas, sem que tenham de ser prestadas contas, pelos motivos expostos.

24.ª E pese embora o próprio artigo 35.º da velha Lei dos Baldios não tenha aplicação direta ao caso dos autos, porque o contrato de arrendamento não tinha sido celebrado com a 2.ª Ré antes da entrada em vigor da Lei n.º 68/93, pode retirar-se dessa norma uma regra no sentido do aproveitamento desse tipo de contratos, que pode aplicar-se por interpretação extensiva ou por analogia ao caso dos autos.

25.ª O tribunal a quo fez uma aplicação direta dessa norma, mas de uma forma ou de outra sempre será possível sustentar a manutenção do contrato de arrendamento passando a figurar do lado ativo o ora Autor, recorrente, numa cedência da posição contratual ope legis, a partir da constituição dos órgãos representativos da comunidade local.

26.ª O que não pode nem deve concluir-se é que, relativamente às rendas vencidas e vincendas desde janeiro de 2014, a 1.ª Ré só estará obrigada a devolver o saldo que se apurar mediante prestação de contas, antes devendo proceder à sua devolução na íntegra, de acordo com os princípios gerais.

27.ª Por outro lado, cumpre realçar que o Autor podia, nesta ação, ter alegado a ineficácia, relativamente a si, do contrato de arrendamento, por não ser a locadora proprietária dos terrenos, mas não foi isso que fez, e não foi por engano ou por lapso: o Autor nunca quis atacar a validade do contrato de arrendamento, o que quer é esse contrato para si, já que não o pôde celebrar em 2002, por nessa altura estarem os baldios a ser geridos pela Junta de Freguesia de Feirão.

28.ª Como claramente deflui da petição inicial, o objetivo do Autor não é nem nunca foi, nem antes de intentada a ação (com o pedido de devolução feito à Junta de Freguesia, aliás aprovado), nem por via desta, atacar a validade ou a eficácia do contrato de arrendamento outorgado com a 2.ª Ré, mas antes manter esse contrato e colocar-se a si próprio na posição ativa, como proprietário dos baldios e, como se viu, a sua pretensão tem fundamento jurídico.

29.ª Note-se que a primeira instância não foi por este caminho e acabou por tomar a melhor decisão jurídica do caso: sendo livre de qualificar juridicamente os factos, entendeu o tribunal de primeira instância, numa decisão irrepreensível do ponto de vista substancial e da justiça material que, declarada a ineficácia da escritura de justificação notarial, a 1.ª Ré não tinha legitimidade substantiva para receber as rendas, nem as passadas, nem as futuras.

30.ª Não invocou o tribunal de primeira instância, nem podia, o instituto do enriquecimento sem causa, que não é de conhecimento oficioso, mas também não precisava desse instituto para condenar a 1.ª Ré na restituição das rendas.

31.ª A situação jurídica revela manifesta similitude com os casos em que o pedido  é formulado no  pressuposto da validade de um  contrato  e o tribunal acaba por declarar tal contrato nulo, não obstante condenando na restituição do que foi prestado, não em cumprimento do contrato, como foi pedido, mas com base na sua invalidade.

32.ª Assim decidiu o Supremo Tribunal de Justiça no Assento n.º 4/95 (Diário da República n.º 114/1995, Série I-A de 17.05.1995), hoje com valor de acórdão de uniformização de jurisprudência:

«Quando o Tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na ação tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil».

33.ª A procedência do pedido com diferente fundamentação jurídica, com desconsideração da qualificação jurídica dada pelo Autor na petição inicial, não padece de qualquer vício.

34.ª Assim sendo, seja por interpretação extensiva ou por aplicação analógica do disposto no artigo 35.º da Lei n.º 68/93, considerando ter havido cessão da posição contratual, ope legis, no contrato celebrado com a 2.ª Ré, mas sem aplicar, por não ser aplicável, a regra da prestação de contas prevista no artigo 36.º da mesma lei; seja por se considerar a ineficácia da escritura de justificação notarial, e a consequente falta de legitimação substantiva da 1.ª Ré para receber as rendas, passadas e futuras, deve a 1.ª Ré ser condenada a restituir, na íntegra, as rendas por si recebidas desde Janeiro de 2014, vencidas e vincendas.

35.ª Ao decidir de forma diversa, o acórdão recorrido violou as normas dos artigos 34.º, 35.º e 36.º da Lei n.º 68/93, e 9.º, n.º 3, do Código Civil.

36.ª Devendo o acórdão recorrido ser revogado na parte em que não confirmou, na íntegra, a decisão da primeira instância.

37.ª Subsidiariamente, para o caso de assim não se entender, vem arguir-se a nulidade do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, nos termos que passam a expor-se.

38.ª O acórdão recorrido, no seu ponto II. 12, para que remete o dispositivo, refere textualmente, «que se impõe a prestação de contas por parte da 1.ª Ré, nos termos gerais (art.ºs 941º e seguintes do CPC), com vista a apurar o saldo que deverá entregar ao A., atentos os critérios fixados na lei e as particularidades do caso vertente, inclusive, a forma como, nas respetivas comunidades locais, foram aplicadas as receitas geradas pelo contrato (…), o que se desconhece» (negritos nossos).

39.ª A referência a «comunidades locais», no plural, é ambígua e obscura, tornando a decisão ininteligível, pois com esta referência fica sem se perceber a que comunidades locais em concreto quer o acórdão referir-se: à comunidade de Feirão? Ou às comunidades de Feirão e também de Felgueiras?

40.ª Sabendo o tribunal a quo, por ter procedido à audição dos depoimentos gravados, da disputa, antiga, entre os habitantes de Feirão e os de Felgueiras, e estando subjacente à manutenção da guerra judicial entre as partes a agregação de freguesias antagónicas, precisamente de Feirão e de Felgueiras, cumpria ter ficado clarificado na decisão recorrida, sem margem para quaisquer dúvidas, que a aplicação das receitas a considerar na prestação de contas deve ser apenas a que foi efetuada em benefício da comunidade local de Feirão, onde os baldios se situam, e não também na comunidade de Felgueiras, de maior dimensão, com mais gastos, e onde está sediada a 1.ª Ré.

41.ª O acórdão recorrido não responde de forma clara, pelo contrário, à importantíssima questão de saber se a prestação de contas deve ser feira considerando as despesas feitas em Feirão ou também em Felgueiras.

42.ª Além de obscuro, o acórdão, salvo o devido respeito, contraria a letra da lei, pois o que diz o n.º 3 do artigo 36.º, na velha redação, que é a base da decisão de direito do acórdão, é que «as receitas líquidas apuradas serão distribuídas nos termos eventualmente previstos no ato de transferência [que não há] ou em partes iguais pela entidade gestora e  pela comunidade de compartes», (negrito e sublinhado nossos), no singular – sendo que comunidade de compartes não é o mesmo que comunidades locais (no plural), e exclui a comunidade de Felgueiras.

43.ª Jaime Gralheiro (ob. cit., pág. 199) anota o artigo referindo-se a comunidade local, no singular.

44.ª Assim, o acórdão é obscuro, na medida em que não esclarece a que comunidades quer referir-se, se só a de Feirão, como devia, se também a de Felgueiras.

45.ª Se esta obscuridade não for aclarada, o problema da determinação das receitas elegíveis vai ser seguramente o pomo da discórdia num futuro processo judicial de prestação de contas, com o arrastamento da contenda, previsivelmente por longos anos, sem qualquer necessidade, posto que nestes autos o tribunal está em condições de definir a que comunidade local quer referir-se, sendo este o momento e o local próprio para tal tomada de decisão.

46.ª Esta nulidade, uma vez que o acórdão é recorrível, tem de ser arguida em recurso - Cfr. artigo 615.º, n.º 1, al, c) e n.º 4, aplicável ex vi do artigo 666.º do Código de Processo Civil.

47.ª Devendo os Senhores Desembargadores apreciar tal nulidade, nos termos do artigo 617.º, n.º 1, do mesmo código, declarando que a comunidade local a que se querem referir é apenas a de Feirão e não também a de Felgueiras, o que se requer.

48.ª Ou, caso tal não ocorra, deve o tribunal ad quem suprir tal nulidade, no mesmo sentido de clarificar que as receitas a ponderar na prestação de contas serão apenas as realizadas em benefício da comunidade de Feirão.

49.ª Em conclusão, deve ser revogado o acórdão recorrido, na parte em que revoga parcialmente a decisão de primeira instância, devendo declarar-se que esta decisão de primeira instância se mantém, na íntegra.

50.º Subsidiariamente, para o caso de assim não se entender, deve considerar-se verificada a nulidade, por obscuridade e ambiguidade, do acórdão recorrido, e declarar-se que as receitas a ponderar na prestação de contas serão apenas as realizadas em benefício da comunidade de Feirão.

10. Por sua vez, a 1ª Ré veio interpor recurso de revista excecional, o qual, porém, não foi admitido. Do acórdão da Conferência que decidiu não admitir a revista interposta pela 2ª Ré, foi, entretanto, interposto recurso para o Tribunal Constitucional. Não obstante, entende-se ser de conhecer da revista «normal» interposta pelo Autor, por não haver sobreposição de questões a decidir em ambos os recursos.  

11. Nas contra alegações, pugnou-se pela improcedência do recurso apresentado pelo Autor.

12. Como se sabe, o âmbito objetivo do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (arts. 608.º, nº 2, 635.º, nº 4 e 639º, do CPC),  importando, assim, decidir se:

-  Deve ser apurado em ação de prestação de contas, o montante concreto que a 1ª Ré deve restituir ao Autor.

- A título subsidiário, se o acórdão recorrido enferma de nulidade, por obscuridade e/ou ambiguidade.

 

II – Fundamentação de facto

13. As instâncias deram como provado que:

1. A Ré União de Freguesias foi criada por agregação integrando o património (…) “e assumindo todos os direitos e deveres, bem como as responsabilidades legais, judiciais e contratuais das freguesias agregadas” (de Felgueiras e Feirão), sendo que os artigos matriciais infra estão atualizados em resultado da agregação das freguesias.

2. Correu termos no Tribunal de Resende uma ação ordinária-Proc. 37/03.8TBRSD-A – em que era Autor a comunidade local de Feirão, representado por anterior Conselho Diretivo de Compartes e Ré a Junta de Freguesia e Outros, na qual o Autor Conselho Diretivo pedia, além do mais, que se declarasse que esses terrenos eram baldios, como tal, propriedade comunitária do povo de Feirão e que a Junta reconhecesse e respeitasse esse direito..

3. Nesses autos também o Autor Conselho Diretivo peticionava que fosse declarada nula e de nenhum efeito a escritura de justificação outorgada em 29.11.2002, no Cartório Notarial de de Baião, tendo por objeto os terrenos da presente ação.

4. A Junta de Freguesia de Feirão outorgou no Cartório Notarial de Baião em 18.9.2002 a escritura de justificação notarial lavrada a fls. 79 a 80 do Livro de Notas para escrituras diversas – 38 – D e publicada no Jornal de Resende, editado em 16.01.2003.

5. Nessa escritura, a Ré Junta de Freguesia declarou através dos seus representantes: “Que a sua representada não é detentora de qualquer título formal que legitime o domínio dos referidos prédios os quais adquiriu, por compra verbal em data imprecisa no ano de 1975, feita a AA e mulher BB, quanto à verba n.º um; BB no estado de viúva, quanto às verbas dois e três; CC quanto à verba número quatro e DD, quanto às verbas cinco e seis, todos no estado de viúvos, residentes EE, viúva, quanto à verba número dez, residentes que foram no mencionado lugar de …. e FF, viúvo, residente que foi em …., ….., quanto às verbas sete, oito e nove, não tendo sido outorgadas as respetivas escrituras de compra e venda, nem as podendo outorgar agora por terem falecido os vendedores.

Que não obstante isso, sempre se tem mantido na posse e fruição dos indicados prédios há mais de 20 anos, cultivando-os, fazendo benfeitorias, pagando os respetivos impostos, administrando-os com ânimo de quem exercita direito próprio, de boa-fé por ignorarem lesar direito alheio, pacificamente porque sem violência, pública e continuamente, com o conhecimento de toda a gente e sem qualquer interrupção ou oposição de quem quer que seja.

Que dadas as enumeradas características de tal posse e domínio adquiriram os mencionados prédios por usucapião, que invocam, em nome da sua representada, justificando o seu direito de propriedade para efeitos da primeira inscrição no Registo Predial, dado que esta forma de aquisição não pode ser comprovada por qualquer outro título formal extrajudicial”.

6. Essa escritura foi outorgada por GG - então Presidente da Junta …., hoje Presidente do Autor - HH - ali Secretário da Junta - e II, como Tesoureiro Autárquico - e como testemunhas JJ, LL e MM.

7. A Junta de Freguesia de Feirão, em 2.2.2002, deu de arrendamento à sociedade Hidráulica do Tua, Lda., para exploração de um parque eólico (aerogeradores), os terrenos inscritos na matriz predial rústica sob os artigos (antigos) ….64, …01, …18 e …..45

8. À Ré Empreendimentos Eólicos do Douro S.A. foi cedida a posição contratual de arrendatária e, por alterações do contrato inicial, o parque eólico encontra-se atualmente instalado nos prédios dos artigos atuais números ….89, …51 e …...27

9. O arrendamento foi pelo prazo de 20 anos, mediante uma contrapartida de renda referente a cada ano a pagar adiantadamente no mês de janeiro, na morada da Junta ou por transferência, sendo sujeitas a juros de mora em caso de incumprimento.

10. As rendas são atualizadas, em conformidade com a atualização do valor do tarifário aplicado na venda da energia produzida à rede pública que, à data do contrato, era em função da evolução dos índices do preço ao consumidor.

11. A Junta de Freguesia anterior à agregação - Junta de Freguesia de Feirão - jamais efetuou o recenseamento dos compartes.

12. A certa altura, em data não concretamente apurada, foi constituída uma Comissão Ad-Hoc de 12 moradores compartes de Feirão, reconhecidos como tal pela comunidade, a qual procedeu à elaboração do recenseamento com base no Caderno de Recenseamento Eleitoral da Freguesia de Feirão que apresentava aí recenseados um número de 125 cidadãos eleitores.

13. A Assembleia dos “Moradores” Compartes foi convocada pela dita Comissão por aviso assinado pelos seus membros (mencionando o dia, a hora, o local da reunião e Ordem de Trabalhos) afixado por editais nos locais do estilo - o placard da Junta de Freguesia e o placard da Igreja - com pelo menos oito dias de antecedência.

14. Tal aviso convocatória estava datado de 11.01.2013 e referia uma reunião da Assembleia de Compartes da freguesia de Feirão, a realizar no dia 20.01.2013, pelas 10.30 horas, no salão da Junta de Freguesia, com a seguinte ordem de trabalhos: 1° Informação e esclarecimento sobre a legislação dos Baldios. 2° Eleição da Mesa da Assembleia de Compartes e dos órgãos representativos dos compartes da Freguesia para Administração dos respetivos bens comuns. 3° Atualização do recenseamento dos compartes dos Baldios da Freguesia de Feirão 4° Outros assuntos de interesse para a administração dos bens comuns da Freguesia.

15. Ainda a aludida convocatória informava que a assembleia de compartes reuniria validamente se, à hora marcada estivessem presentes metade mais um dos moradores, maiores, da Freguesia, ou, uma hora depois desde que estivessem pelo menos um quinto dos moradores.

16. Esta Assembleia foi também anunciada nos termos costumados pelo Pároco da Freguesia na missa dominical anterior e na missa dominical do próprio dia de efetivação da Assembleia.

17. Na dita Assembleia o Caderno Provisório de Recenseamento dos Moradores Compartes considerou 88 moradores como possuindo a qualidade de compartes.

18. A Assembleia de Compartes reuniu no dia e hora marcados no aviso convocatório, verificando-se a existência e presença de 49 moradores compartes, os quais aprovaram o Caderno Provisório.

19. E nela procedeu-se à eleição da Mesa da Assembleia de Compartes para dirigir os trabalhos.

20. O Caderno de Recenseamento dos Compartes foi também aprovado na Assembleia de Compartes e devidamente rubricado e assinado pela Mesa da Assembleia, ficando inscritos no Caderno 88 moradores compartes entre o número 1 e 88.

21. A Assembleia dos Moradores Compartes procedeu à eleição dos Órgãos representativos e, de entre eles, o seu Conselho Diretivo, por ou conforme Deliberação aprovada por 45 votos a favor e 4 abstenções.

22. O Conselho Diretivo (e demais Órgãos) tomaram imediatamente posse.

23. Nessa Assembleia foram aprovados todos os pontos da Ordem de trabalhos, nos termos das deliberações tomadas pela Assembleia de Compartes, uns por unanimidade, outros por larga maioria, mas ,em caso algum, com votos contra, sendo que nenhuma das deliberações acima referidas foi objeto de impugnação em prazo útil por quem dispusesse de legitimidade para tal.

24. Entre os assuntos deliberados foi aprovado por unanimidade pela Assembleia dos Moradores-Compartes de Feirão dar plenos poderes ao Conselho Diretivo para pedir à Junta de Freguesia a devolução dos terrenos baldios, reclamar junto da Empresa Empreendimentos Eólicos do Douro S.A., o pagamento das rendas dos terrenos baldios, podendo inclusivamente recorrer às vias judicias e constituir mandatário para defesa dos interesses legítimos da comunidade relativamente a estes baldios.

25. Na sequência, o Conselho Diretivo foi registado como Entidade equiparada a Pessoa Coletiva do Registo de Pessoas Coletivas com o NIPC 902000330.

26. A ata de eleição dos órgãos dos compartes, de 20.01.2013, foi lida e aprovada no dia 3 de fevereiro seguinte, em nova reunião extraordinária da Assembleia dos Moradores Compartes, como Ponto 1 da Convocatória, após a Presidente da Mesa ter procedido à Leitura da dita ata.

27. Esta, após verificação do quórum para deliberar, foi posta à votação, tendo sido aprovada por unanimidade e assinada pela Mesa da Assembleia de Compartes e pelos presentes.

28. O Conselho Diretivo dos Moradores Compartes, no uso dos poderes conferidos pela Assembleia dos Moradores Compartes na Ata n.º 1 junta, veio pedir, por escrito, a devolução dos “terrenos baldios” à Junta de Freguesia de Feirão, com os fundamentos de facto e de direito constante da Ata n.º 5/2013, da reunião extraordinária da Junta de 28.4.2013.

29. A Junta de Freguesia deliberou, por unanimidade devolver os terrenos à Comissão dos Moradores Compartes da Freguesia de Feirão e o Plenário da Freguesia de Feirão e ratificou a devolução aprovada pela Junta, em reunião realizada em 19.5.2013.

30. Por carta registada com aviso de receção de 14.01.2014, o Conselho Diretivo veio pedir à sociedade Ré Empreendimentos Eólicos do Douro, S. A., o pagamento da renda a vencer no mês de janeiro de 2014 com os eventuais acréscimos e atualizações, tendo a sociedade Ré respondido que iria efetuar o pagamento da renda devida à Junta de Freguesia da União das Freguesias.

31. Por carta registada com aviso de receção de 10.4.2014, o Autor veio solicitar à Ré União de Freguesias a restituição dos valores recebidos das rendas, das atualizações e acertos, mas a Ré não respondeu e tem vindo a receber as rendas, desde data de propositura da ação.

32. A Junta de Freguesia anterior à agregação jamais efetuou o recenseamento dos compartes.

33. Os prédios a seguir identificados: a) rústico composto de mato e terra incultivável, sito à ….., a confrontar do norte com NN, sul com OO e Herdeiros, nascente com PP e poente com QQ, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de União das Freguesias  de Felgueiras e Feirão sob o artigo …..59; b) rústico composto de mato, sito ao …., a confrontar do norte com RR e outros, sul com QQ, nascente com SS e poente com RR e TT, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de União das Freguesias de Felgueiras e Feirão sob o artigo …27; c) rústico sito à …., a confrontar do norte com RR, sul com UU e VV, nascente com caminho e poente com campo de futebol, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de União das Freguesias Felgueiras e Feirão sob o artigo ….97; d) rústico composto de mato e terra incultivável, sito ao ….., a confrontar do norte com XX e herdeiros, ZZ e Outros, sul com caminho de ligação ….. a …., nascente com NN, AAA, BBB e herdeiros e poente com CCC, DDD, ZZ e outros, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de União das Freguesias de Felgueiras e Feirão sob o artigo …..27; e) rústico composto de mato, pastagem e terra incultivável, sito ao ….., ……, a confrontar do norte com EEE e caminho, sul e poente com caminho e limite da freguesia da …., nascente com limite do Concelho …., inscrito na matriz predial rústica da freguesia de União das Freguesias Felgueiras e Feirão sob o artigo ….89; f) rústico composto de mato, pastagem e terra incultivável, sito ao …., … e …., a confrontar do norte e nascente com Estrada Municipal, sul com limite da freguesia de …. (….) e poente com limite da freguesia de Felgueiras, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de União das Freguesias de Felgueiras e Feirão sob o artigo ….63; g) rústico composto de sequeiro, mato, pastagem e terra incultivável, sito ao …., …., …., ….., ….., a confrontar do norte com FFF e herdeiros, sul com GGG, HHH e limite de …., nascente com MM, TT e outros e poente com caminho e limite de ......, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de União das Freguesias de Felgueiras e Feirão sob o artigo ….51; h) rústico composto de pastagem, sito à …., a confrontar do norte, sul e poente com caminho público e nascente com GGG e III, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de União das Freguesias Felgueiras e Feirão sob o artigo …..51; i) rústico composto de mato, sito ao …., a confrontar do norte com JJJ, sul com III, nascente com LLL e poente com Estrada Municipal, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de União das Freguesias Felgueiras e Feirão sob o artigo ….41; j) rústico composto de mato e terra incultivável, sito ao ….. ou …., a confrontar do norte e nascente com limite da freguesia de …., sul e poente com MMM e Herdeiros, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de União das Freguesias de Felgueiras e Feirão sob o artigo …..41, os quais se encontram inscritos na dita matriz tendo como titular a Assembleia dos Moradores Compartes, desde tempos imemoriais que têm vindo a ser possuídos e fruídos pelos moradores das comunidades locais da freguesia de Feirão, que neles apascentam gados, recolhem matos e lenhas e exploram águas.

34. Tais factos acontecem há mais de 20, 50, 100 ou 200 anos, à vista de todos, sem oposição de ninguém, ininterruptamente, na convicção de os utilizarem por direito próprio e exclusivo dos moradores da Freguesia de Feirão, ignorando lesar direitos de outrem, antes exercendo um direito de proprietários desses baldios, que todos têm considerado propriedade comunal dos moradores da freguesia.

35. Tais prédios vêm sendo administrados, primeiramente pela Junta de Freguesia de Feirão e desde finais de 2013 pela Ré União de Freguesias, desde data não apurada em concreto, na ausência, em tempos, da constituição da Assembleia de Compartes, sem embargo do facto fixado em 28 e 29.

36. Nesse exercício de administração, aquela primeiramente e a Ré, após finais de 2013, fizeram limpezas e abriram caminhos, além de terem dado de arrendamento a terceiros, com o consequente reporte a si, das correlativas rendas.

37. A renda em causa, em janeiro de 2015, era de € 81.000,00.

14. E deu-se como não provado que:

1. Relativamente aos prédios identificados no artigo 29 dos factos provados, a Ré União de Freguesias anda na posse deles como sua verdadeira proprietária, em nome próprio, dando continuidade à conduta dos anteriores proprietários, na convicção de exercer direito próprio e sem violar direito alheio, agindo de boa-fé, desde pelo menos o ano de 1975 e ininterruptamente.

2. E fazendo tal uso à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.

3. Nos prédios em causa a Ré - e sua antecessora - fizeram plantações.


***


III – Fundamentação de Direito

15. Da restituição das rendas

Nesta ação, o Autor veio, além do mais, que agora não releva, pedir a restituição do valor correspondente às quantias recebidas pela 2ª Ré, em razão do contrato de arrendamento celebrado pela Junta de Freguesia de Feirão, o qual tinha por objeto terrenos baldios.

Na ª instância, julgando procedente o respetivo pedido, a sentença condenou a 1ª Ré “a restituir ao Autor o montante da renda vencida em 31.01.2014 que recebeu da locatária, a ora 2ª Ré, Empreendimentos Eólicos do Douro S.A., no montante de € 81.000,00 e demais acréscimos, e ainda aquelas que se venceram e foram pagas no mês de janeiro dos anos subsequentes, 2015, 2016, 2017, 2018 e 2019, à razão anual de valor não inferior a € 81.000,00 e ainda alguma vincenda até decisão final nestes autos.”

Interposto recurso de apelação, o Tribunal da Relação veio a considerar que, não obstante assistir ao Autor o direito a receber as rendas que a locatária pagou à 1ª Ré, na vigência do contrato de arrendamento, o valor concreto a restituir deve ser apurado em ação de prestação de contas.

Nessa conformidade, revogando parcialmente a sentença, condenou a 1ª Ré “a restituir ao A. o montante da renda vencida em 31.01.2014 que recebeu da 2ª Ré, no montante de € 81 000 e demais acréscimos e ainda aquelas que se venceram e foram pagas no mês de Janeiro dos anos subsequentes - 2015, 2016, 2017, 2018 e 2019 - à razão anual de valor não inferior a € 81 000 e ainda alguma vincenda até decisão final nestes autos”, valor esse a apurar em ação prestação de contas, a instaurar posteriormente nos termos gerais, atentos os critérios fixados na lei e as particularidades do caso vertente, inclusive, a forma como, nas respetivas comunidades locais, foram aplicadas as receitas geradas pelo contrato.

É contra esta decisão que se insurge o Autor, ora recorrente, defendendo que lhe assiste o direito à devolução da totalidade das rendas.

Nesta revista está, assim, em causa a questão de saber se o Autor tem, ou não, o direito a receber, na íntegra, o montante das rendas que foram pagas à 1ª Ré, como entendeu a 1ª instância, ou se o valor a restituir deve ser apurado em ação de prestação de contas, a instaurar para o efeito, conforme decidiu a Relação, em função designadamente, da forma como foram aplicadas as receitas geradas pelo contrato de arrendamento dos prédios baldios.

Vejamos, pois.

Na atualidade, praticamente todo o solo se encontra apropriado: seja sob a forma privada, seja sob o domínio público.

Não foi, contudo, sempre assim.

Terras que não eram objeto de clara apropriação, disponíveis para quem delas quisesse fazer uso pouco intensivo (apascentar gado e apanhar lenha) foram sendo atribuídas pelos monarcas ou senhores das terras, ou simplesmente ocupadas por quem delas necessitasse.

Terá sido essa a origem dos baldios.[1]

Como refere Menezes Cordeiro[2], tendo um significado cultural profundo, os baldios desde sempre constituíram um desafio complicado ao Estado e ao Direito, sucedendo-se, ao longo dos anos, leis a regulamentar a sua utilização.

No século XIX, o Código Civil de 1867 (Código de Seabra) acolhendo a tradição anterior, veio dispor que os baldios eram tidos como «coisas comuns», “não individualmente apropriadas”, de uso dos indivíduos de certa circunscrição administrativa, distinguindo-se das coisas do domínio privado e do domínio público (arts. 379º e 381º), não havendo, porém, consenso na doutrina sobre quem era titular da sua propriedade, se as autarquias locais ou as comunidades.[3]

Já no séc. XX, o Estado tentou, por diversas vias, controlar os baldios, entregando-os em propriedade privada ou à gestão das autarquias.[4]

O Código Administrativo de 1940 veio, finalmente, aprovar um regime mais completo, definindo, no seu art. 388º, os baldios como terrenos não individualmente apropriados, dos quais só é permitido tirar proveito, guardados os regulamentos administrativos, aos individuas residentes em certa circunscrição ou parte dela. Considerava também os baldios prescritíveis, a favor dos particulares.

Aquele Código procedia ainda à distinção entre baldios paroquiais e municipais (v. art. 389º), atribuindo a administração às autarquias: os paroquiais às Juntas de Freguesia (artº 253º nºs 3, 4 e 5 ex vi do art. 394°) e os municipais às Câmaras Municipais (artºs 44° n° 1, 45° nºs 1, 2 e 3, 51° nºs 4 e 6, “ex vi” do art. 394°).

No atual Código Civil foi suprimida a categoria legal de coisas comuns, pelo que se passou a entender que tais bens eram suscetíveis de apropriação e de usucapião, não obstante a existência de algumas vozes discordantes.[5]

Por sua vez, em 1975, foi publicado o DL nº 203-C/75, de 15 de abril, que consagrava no seu anexo 3, ponto 5, o príncipio da restituição dos baldios aos seus legítimos utentes, que passariam a administrá-los, através das respetivas associações, exclusivamente ou em colaboração com o Estado.

Na sequência, o Decreto-Lei nº 39/76, de 19 de Janeiro, visando promover a sua entrega às comunidades locais, definia  os baldios como «os terrenos comunitariamente usados e fruídos por moradores de determinada freguesia ou freguesias, ou parte delas» (art. 1º) e  estatuía que «os terrenos baldios se encontram fora do comércio jurídico, não podendo, no todo ou em parte, ser objeto de apropriação privada por qualquer forma ou título, incluída a usucapião» (art. 2º)  e que «são devolvidos ao uso, fruição e administração dos respetivos compartes, nos termos do presente diploma …» (art. 3º).

Este diploma mantinha, porém, transitoriamente, os baldios sob administração das autarquias locais, enquanto não reunisse a assembleia de compartes e não desse entrada no então Ministério da Agricultura e Pescas uma ata comprovativa de que fora escolhida a forma de administração do baldio e eleito o respetivo conselho diretivo, definindo os termos dos procedimentos de «transição» (art. 18° nºs 1, 2, 3 e 4).

Simultaneamente, o DL nº 40/76, de 19 de janeiro, veio consagrar uma “anulabilidade a todo o tempo” dos atos e negócios que tivessem por objeto a apropriação de terrenos baldios.

Por seu turno, a Lei nº 79/77, de 25 de outubro reafirmou  que a administração dos baldios competia aos executivos autárquicos (art. 109º), normativo que acabou por ser  revogado pela Lei nº 91/77, de 31 de dezembro, dando origem a problemas jurídicos que coube à jurisprudência resolver.[6][7][8]

Veio, mais tarde, a ser publicada a Lei nº 68/93 de 4 de setembro (Lei dos Baldios), a que nos dedicaremos de seguida, com mais atenção, por ser a lei aplicável ao caso em apreço, com as alterações introduzidas pela Lei nº 89/97, de 30 de julho.[9]

Estabelece-se no seu art. 1º que «são baldios os terrenos possuídos e geridos por comunidades locais», sendo estas o “universo dos compartes”.

No art. 2º, nº 1, fixa-se o seu âmbito de aplicação, consignando-se que se aplica aos baldios propriamente ditos, aos terrenos passiveis de aproveitamento como baldios, aos baldios apossados por particulares, ainda que ulteriormente transmitidos, aos terrenos licitamente adquiridos por uma comunidade local.

Por sua vez, no art. 4º, da mesma Lei prescreve-se que “os atos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento, tendo por objeto terrenos baldios, bem como da sua posterior transmissão, são nulos, nos termos gerais de direito, exceto nos casos expressamente previstos na presente lei.” (nº 1); e que “a declaração de nulidade pode ser requerida pelo Ministério Público, por representante da administração central, da administração regional ou local da área do baldio, pelos órgãos de gestão deste ou por qualquer comparte” (nº 2), entidades que têm também legitimidade para requerer a restituição da posse do baldio, no todo ou em parte, a favor da respetiva comunidade ou da entidade que legitimamente o explore (nº 3).

No art. 10º, prevê-se a possibilidade de arrendamento e de cessão de exploração total ou parcial do baldio.

No que concerne à administração dos baldios dispõe o art. 11º que «os baldios são administrados, por direito próprio, pelos respetivos compartes, nos termos dos usos e costumes aplicáveis ou, na falta deles, através de órgão ou órgãos democraticamente eleitos.».

E consigna-se no art. 22º, nºs 1 e 5º que, sem prejuízo da sua revogação a todo o tempo, «os poderes de administração dos compartes podem por estes ser delegados nos termos da presente lei em relação à totalidade ou parte da área do baldio, ou de uma ou mais das respetivas modalidades de aproveitamento, na junta de freguesia em cuja área o baldio se localize, ou no serviço da Administração Pública que superintenda na modalidade ou modalidades de aproveitamento a que a delegação se reporte.».

Interessa ainda destacar o disposto no art.  34º, desta Lei que reafirma que a devolução dos baldios aos compartes, operada pelo DL nº 39/76 se mantém e que os baldios que ainda não tenham sido devolvidos, sê-lo-ão logo que, constituída a assembleia de compartes, esta tome a iniciativa de promover essa devolução.

Por fim, e pela relevância que assume para a apreciação deste recurso, importa ter  presente o art. 36º, da mesma Lei, no qual se preceitua que: «a administração de baldios que, no todo ou em parte, tenha sido transferida de facto para qualquer entidade administrativa, nomeadamente para uma ou mais juntas de freguesia, e que nessa situação se mantenha à data da entrada em vigor da presente lei, considera-se delegada nestas entidades com os correspondentes poderes e deveres e com os inerentes direitos, por força da presente lei, e nessa situação se mantém, com as adaptações decorrentes do que nesta lei se dispõe, até que a delegação seja expressamente confirmada ou revogada nos novos moldes agora prescritos.(nº 1); Finda a administração referida no número anterior, haverá lugar a prestação de contas, nos termos gerais, pela entidade gestora. (nº 2); As receitas líquidas apuradas serão distribuídas nos termos eventualmente previstos no ato de transferência ou em partes iguais pela entidade gestora e pela comunidade dos compartes (nº 3).

Como, a respeito deste normativo, afirma Jaime Gralheiro[10], “ a «transferência de facto» da administração dos baldios, no domínio do DL 39/76, de 19 de janeiro, resultou de um contumaz incumprimento por parte das Câmaras e, particularmente das Juntas, da obrigação legal que sobre elas impendia, por força do disposto no art. 18º, nº 2, do citado DL.

A Lei 68/93 pretendeu acabar com esta situação que levou as autarquias a manterem-se, de facto, no exercício da administração dos baldios. E continua o mesmo autor: “Fê-lo, reconhecendo como legítima a administração que tais entidades vinham exercendo sobre os baldios, ao mesmo tempo que prevê o termos dessa administração e as responsabilidades das mesmas entidades pelas contas que terão que apresentar quando a administração terminar.”. (…) “Finda a administração (seja qual for a fonte) as entidades administrantes são obrigadas a prestar contas nos termos gerais. (…)”.

Feito este breve enquadramento, e retornando ao caso em análise, afigura-se-nos que a Relação, ao determinar que o montante a restituir pela 1ª Ré ao Autor deve ser apurado em ação de prestação de contas, a instaurar posteriormente, decidiu acertadamente.

Com efeito:

Resulta dos factos provados (cf. nºs 7, 8 e 9) que a Junta de Freguesia de Feirão, em 2.2.2002, deu de arrendamento à sociedade H....., Lda., para exploração de um parque eólico (aerogeradores), os prédios baldios identificados nos autos, tendo, posteriormente, sido cedida a posição contratual de arrendatária à ora 2ª Ré, Empreendimentos Eólicos do Douro S.A..

O arrendamento foi celebrado pelo prazo de 20 anos, mediante o pagamento de uma renda anual, a atualizar nos termos fixados no contrato, a qual, em janeiro de 2015, era de € 81.000,00 (cf. facto provado sob o nº 37).

Ficou também provado que a 1ª Ré foi criada por agregação, integrando o património e assumindo todos os direitos e deveres, bem como as responsabilidades legais, judiciais e contratuais das freguesias agregadas de Felgueiras e Feirão (cf. facto provado sob o nº 1).

Mais se provou que os terrenos baldios foram administrados, primeiramente pela Junta de Freguesia de Feirão e depois pela 2ª Ré (cf. facto provado sob o nº 35) que, não obstante tem vindo a receber as rendas, desde a data de propositura da ação (cf. facto provado sob o nº 31).

E que, no exercício dessa administração, a Junta de Freguesia de Feirão e também a 2ª Ré fizeram limpezas e abriram caminhos (cf. facto provado sob o nº 36).

Ora, perante tal acervo factual, não se vislumbra qualquer fundamento para dissentir do veredicto da Relação que, em conformidade com o quadro legal aplicável, designadamente do estatuído na Lei dos Baldios (Lei nº 68/93), mormente no seu art. 36º, decidiu que, finda a administração dos baldios pela autarquia (a 1ª Ré), haverá lugar a prestação de contas, nos termos gerais, com vista a apurar o saldo que deverá entregar ao Autor, “atentos os critérios fixados na lei e as particularidades do caso vertente”, pois não pode deixar de se atender ao modo como, em prol da respetiva comunidade local, foram aplicadas as receitas (que recebeu) geradas pelo contrato de arrendamento, tendo por objeto os ditos baldios.[11] É que, tendo (a comunidade local) beneficiado de investimentos realizados com os rendimentos auferidos, durante a administração dos terrenos por parte da autarquia, como tudo a leva a crer ter sucedido no caso em apreço  (cf. facto provado sob o nº 36), não poderia receber novamente quantias de que já usufruiu.

Improcede, pois, o recurso, nesta parte.

16. Nas conclusões da revista, o recorrente veio arguir (a título subsidiário) a nulidade do acórdão recorrido, nos termos previstos na 2ª parte, da al. c), do art. 615º, do CPC., alegando que o segmento decisório, na parte em que alude a «comunidades locais» enferma de ambiguidade e obscuridade, tornando a decisão ininteligível, pois se fica sem saber a que comunidades locais se está a referir, se à de Feirão ou se também à de Felgueiras, devendo ser clarificado que a aplicação das receitas a considerar na prestação de contas deve ser apenas a que foi efetuada em benefício da comunidade local de Feirão, onde os baldios se situam, e não também na comunidade de Felgueiras.

Como se sabe, a interpretação de uma sentença judicial, como ato jurídico que é, deve obedecer, por força do disposto no art. 295º, do CC, aos critérios de interpretação dos negócios jurídicos. Significa isto que a sentença deve ser interpretada de acordo com o que dispõem os art. 236º e 238º, do mesmo Código, isto é, vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do seu contexto e que aí encontre um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso.

Nesta conformidade, a interpretação da sentença importa a correlação  teleológica entre a motivação e o dispositivo decisório, elementos que reciprocamente se condicionam e determinam, fundindo-se em síntese normativa concreta, entendimento que, de resto, é sublinhado pelo Professor, Vaz Serra, in, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 110º, página 42 (cf., a este propósito, o Professor Castanheira Neves, in, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 110º, páginas. 289 e 305).

Ora, no caso concreto, o dispositivo deve ser interpretado em sintonia com o que se consignou na fundamentação, mormente no seu ponto II. 4., em que se afirma com total clareza que “a usufruição que aí se destaca é a do povo de Feirão (“moradores das comunidades locais da freguesia de Feirão”), como, aliás, foi devidamente esclarecido no acórdão proferido, em Conferência, pela Relação.

Não vemos, assim, que a decisão enferme da nulidade apontada.


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IV – Decisão

17. Pelo exposto, acorda-se em negar provimento à revista.

Lisboa, 18.3.2021


Relatora: Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado

1º Adjunto: Oliveira Abreu

2º Adjunto: Ilídio Sacarrão Martins

Nos termos e para os efeitos do disposto no art. 15º-A, do Decreto-Lei nº 20/2020, atesto que, não obstante a falta de assinatura, os Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos deram o correspondente voto de conformidade.


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[1] Etimologicamente, o termo poderá derivar do árabe baladi: árido ou inculto, ou de baldo germânico): inútil – cf. Manuel Rodrigues, Os Baldios, 1987, 18 e Jaime Gralheiro, Comentário à Lei dos Baldios, 1990, pág. 20.
[2] Tratado de Direito Civil, III, Parte Geral, Coisas, 3ª edição, Almedina, pág. 131.
[3] V. Marcello Caetano, O Direito, ano 94 (1962), págs. 136 e ss.
[4] Manuel Rodrigues, Os Baldios, 1987, págs. 52-54.
[5] Cf. Menezes Cordeiro, Tratado, pág. 149.
[6] Cf. Menezes Cordeiro, Tratado, pág. 149.
[7] Cf. Manuel Rodrigues, Os Baldios, 1987, págs. 52-54.
[8] Cf. ac. do STJ de 9.6.1988, BMJ 378, págs. 735.
[9] A Lei nº 68/93, entretanto revogada pelo n.º 1 do artigo 58.º da Lei n.º 75/2017, de 17 de agosto, foi alterada pela Lei nº 72/2014, de 2 de setembro.
[10] Comentário à Nova Lei dos Baldios (Lei nº 68/93, de 4 de setembro), Almedina, págs. 198-199.
[11] Note-se que a atual Lei dos Baldios (Lei nº 75/2017, de 17 de agosto), disciplina no seu art. 14.º, sob a epígrafe «aplicação das receitas dos baldios» o modo como as receitas obtidas com a exploração dos recursos dos baldios devem ser aplicadas, determinando que sejam investidas na sua valorização económica e em benefício das respetivas comunidades locais, nomeadamente:
a) Na administração dos imóveis comunitários;
b) Na valorização desses baldios e na constituição de reservas para sua futura valorização no mínimo de 20 % dos resultados positivos obtidos;
c) Na beneficiação cultural e social dos habitantes dos núcleos populacionais de residência dos seus compartes;
d) Em outros fins de interesse coletivo relevante, deliberados pela assembleia de compartes.
2 - Os resultados positivos obtidos com gestão florestal, caso existam, devem ser objeto de reinvestimento florestal, nos termos da alínea a) do número anterior.