Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1195/08.0TVLSB.E1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
SUB-ROGAÇÃO
INÍCIO DA PRESCRIÇÃO
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
PAGAMENTO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
SEGURADORA
DESPESA HOSPITALAR
PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 01/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPOSABILIDADE CIVIL / RESPOSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS.
Doutrina:
-Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Volume III, p. 383 e ss.;
-Castro Mendes, Limites Objetivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática , pp. 36 e ss.;
-Vaz Serra, RLJ, Ano IX, p. 360.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL: - ARTIGO 498.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDAOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


-DE 13-04-2000;
-DE 20-02-2001;
-DE 17-12-2002;
-DE 21-01-2003;
-DE 08-11-2005;
-DE 04-11-2008;
-DE 10-09-2009;
-DE 22-10-2009;
-DE 27-10-2009;
-DE 25-03-2010;
-DE 16-11-2010;
-DE 16-03-2011;
-DE 07-04-2011;
-DE 29-11-2011;
-DE 05-06-2012;
-DE 18-10-2012;
-DE 10-01-2013;
-DE 12-09-2013;
-DE 07-05-2014;
-DE 03-12-2015;
-DE 19-05-2016;
-DE 09-06-2016;
-DE 14-07-2016;
-DE 21-09-2017, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I – É de três anos o prazo de prescrição do exercício do direito de reembolso pelo Fundo de Garantia Automóvel relativamente ao pagamento da indemnização por ele satisfeita (como garante) ao lesado ou a terceiros;

II - Como se estabelece no art. 498º, nº 2, do CC, o dies a quo da contagem daquele prazo prescricional corresponde ao do pagamento, não relevando para este efeito, a data do acidente;

III – Para efeitos da contagem do prazo prescricional, pode justificar-se a sua autonomização, em caso de pagamentos faseados, relativamente a cada núcleo indemnizatório autónomo e juridicamente diferenciado.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – Relatório

1. Em 7.4.2008, o Hospital Militar Principal[1] instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra “AA - Companhia de Seguros, SA”[2] e o Fundo de Garantia Automóvel, pedindo a condenação dos réus a pagar-lhe os seguintes montantes:

- A 1.ª Ré: “a quantia de 112 990,16 €, a título de capital, mais 5.092,50 € (50% de 10 185,00€, relativos à fatura junta como doc. 60), 10 777,25€ (50% de 21 555,45 €, relativos à fatura junta como doc. 63) e juros de mora, vencidos a contar da interpelação sobre o montante de 179 732,54 €, e nos juros vincendos até efetivo e integral pagamento”;

- O 2.º Réu: “a quantia de 135 309,05 €, a título de capital, mais 5.092,50 € (50% de 10 185,00€, relativos à fatura junta como doc. 60), 10 777,25€ (50% de 21 555,45 €, relativos à fatura junta como doc.63) e juros de mora vencidos a contar da interpelação sobre o montante de 201 979,06 €, e nos vincendos até efetivo e integral pagamento.”.

Para tanto, alegou, em síntese, que:

Em 16 de Maio de 2003, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes os veículos automóveis ...-...-CZ, no qual seguia o soldado BB, e …-…-UD.

Em consequência das lesões sofridas no acidente, o soldado BB foi submetido a tratamentos no Hospital Militar e em outras unidades de saúde, a expensas do autor, sendo que, devido à gravidade do seu estado, continua internado.

À data do sinistro, a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação relativa ao veículo ...-...-UD encontrava-se transferida para a 1ª ré; por sua vez, o veículo ...-...-CZ não era portador de seguro válido.

Os réus acordaram, entre si, em assumir a responsabilidade inerente ao acidente que vitimou o soldado BB, na proporção de 50% para cada um.

2. Ambos os réus contestaram.

3. Nos termos requeridos pelo réu Fundo de Garantia Automóvel, foi admitida a intervenção principal de:

- “Companhia de Seguros DD, SA.”, alegando ser a seguradora que, à data do acidente, garantia a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo de matrícula ...-...-CZ; e de

- EE, na qualidade de proprietário do veículo com a matrícula ...-...-CZ e dos herdeiros de FF, condutor daquele veículo no momento do acidente e falecido na mesma data.

4. A interveniente “Companhia de Seguros DD, SA”, contestou, invocando, além do mais, a prescrição de eventuais direitos que o autor pretenda fazer valer nesta ação contra a interveniente.

5. O interveniente EE, devidamente citado, não contestou. Os herdeiros do falecido FF foram citados editalmente, tendo o Ministério Público, em sua representação, apresentado contestação em que invocou a exceção de prescrição do direito do autor, o Hospital Militar Principal.

6. No despacho saneador, foi julgada procedente a exceção de prescrição invocada pela interveniente “Companhia de Seguros DD”, absolvendo-se, esta, do pedido (cf. fls. 224-228).

Por sua vez, foi julgada improcedente a exceção de prescrição invocada pelo Ministério Público, em representação dos herdeiros do falecido FF.

7. No decurso da ação, veio o Fundo de Garantia Automóvel requerer, ao abrigo do disposto no art. 275º, do anterior CPC, a apensação a estes autos da ação ordinária n.º 472/10.5TBACN, que aquele instaurara, em 30.10.2010, contra a “Companhia de Seguros DD, S.A.” e GG, alegando que em ambas as ações está em discussão o mesmo acidente de viação e haver toda a conveniência em evitar que sejam proferidas decisões contraditórias sobre idêntica matéria, o que foi deferido (cf. fls. 284).

8. Nesse processo apenso, o Fundo de Garantia Automóvel, ali autor, pediu a condenação das ali rés (as suprarreferidas “Companhia de Seguros DD, S.A.” e GG) a pagar-lhe a quantia de EUR 263.286,23, bem como uma importância correspondente às despesas efetuadas e a efetuar com a gestão do processo, a liquidar posteriormente.

Para tanto, alegou, em síntese, que:

Em virtude dos danos sofridos pelo soldado BB, em consequência do acidente, o “FGA” despendera a quantia global de EUR 263.286,23, sendo as rés responsáveis pelo respectivo reembolso. Para fundar a sua pretensão, alegou ainda que para a 1ª ré (a “Companhia de Seguros DD, S.A”) havia sido transferida a responsabilidade civil emergente de acidente de viação quanto ao veículo ...-...-CZ e que, provando-se a inexistência de seguro válido e eficaz, à data do acidente, caberia à 2ª ré (GG) reembolsar o FGA, por ser a única herdeira do condutor do veículo CZ, falecido no acidente.

9. A ré contestou, invocando, além do mais, a prescrição do direito do autor, por já terem decorrido cinco anos desde a data do acidente.

Também o Ministério Público, em representação da 2ª ré, citada editalmente, excecionou a prescrição.

10. Na réplica, o autor pugnou pela improcedência da exceção de prescrição, alegando, por um lado, que os pagamentos efetuados ao lesado são dotados de eficácia suspensiva do prazo prescricional e, por outro, ter provocado a interrupção daquele prazo, através da interpelação dos réus para proceder ao pagamento das quantias reclamadas nesta mesma ação.

11. Na audiência prévia (cf. fls. 347 e ss. do processo principal), foi julgada procedente a exceção de prescrição invocada pelas rés na ação apensa, e, em consequência, foram as mesmas absolvidas do pedido.

12. Inconformado com esta decisão, o Fundo de Garantia Automóvel, interpôs recurso de apelação (o qual, apesar de admitido a subir imediatamente, nos próprios autos, apenas subiu com o recurso interposto da sentença proferida no processo principal).

13. No Tribunal da Relação, foi proferido acórdão que, revogando a decisão da 1ª instância:

- Julgou improcedente a exceção de prescrição invocada pelos réus na ação apensa e determinou o prosseguimento desses autos;

- Considerou prejudicado o conhecimento do recurso interposto da sentença, proferida no processo principal.

14. Irresignada (somente) quanto à decisão proferida sobre a prescrição, veio a ré “Companhia de Seguros DD, SA”, interpor recurso para este Supremo Tribunal.

Nas suas alegações, em conclusão, disse:

1 - O acidente dos autos ocorreu a 16 de Março de 2003;

2 - A ação judicial só deu entrada em juízo em 2 de Novembro de 2010;

3 - Por consequência mais de 3 (e mais de 5 anos até) decorridos sobre a data do acidente;

4 – E mais de 3 (e mais de 5 anos) decorridos sobre a data em que o FGA teve dele conhecimento e começou a efetuar pagamentos de indemnizações a ele relativas;

5 - O FGA tomou conhecimento do acidente a 7 de Novembro de 2003 (cf. doc. n° 2 junto com a p.i.);

6 - A 03.12.2003, acordou com a então denominada AA - Companhia de Seguros, S.A. (atualmente CC), a regularização do acidente, assumindo 50% da responsabilidade,

7 - E efetuou os primeiros pagamentos a 7 de Janeiro de 2004 (cf. art° 69 da sua douta p.i.);

8 - O FGA expediu notificação judicial avulsa à Ré ora alegante a 11 de Maio de 2009;

9 - Na data em que a Ré ora recorrente foi notificada nos termos da mencionada notificação judicial avulsa, também já tinham decorrido mais de 5 anos contados da data em que o FGA tinha tido conhecimento do acidente e até, daquela em que tinha iniciado o pagamento de indemnizações a terceiros lesados em consequência da ocorrência do mesmo;

10 - O prazo de prescrição dos direitos do FGA conta-se, pelo menos, desde o dia em que o mesmo teve conhecimento da sua obrigação de indemnizar e aceitou tal dever;

11 - Ainda que, em tal momento ignorasse e mesmo que lhe não fosse então possível conhecer em toda a extensão, a exata dimensão dos mesmos;

12 - Não alegou o FGA e muito menos demonstrou nos presentes autos, a existência de qualquer facto que pudesse interromper ou suspender a prescrição dos seus direitos;

13 - O FGA veio aos autos, sub-rogado nos direitos dos mencionados recebedores;

14 - Nos termos do disposto no art° 593, n° 1 do Código Civil, "o sub-rogado (no caso o FGA), adquire, na medida da satisfação do direito do credor (os eventuais lesados no acidente) os poderes que a este competiam;

15 - Um desses poderes, no caso o "poder"/direito de interposição de ação judicial por parte dos lesados (eventualmente contra a ora Recorrente), em consequência do acidente dos autos, tinha um horizonte temporal limitado para o seu exercício, tendo-se esgotado, por prescrição, a 16 de Maio de 2008;

16 - Tal poder não sofreu assim, qualquer alteração, nomeadamente relativa a eventual alargamento quanto ao tempo de exercício, por via da sub-rogação operada;

17 - Nos termos expostos, e tendo a ação sido interposta a 2 de Novembro de 2010, encontram-se irremediavelmente prescritos todos os direitos que o A. FGA se arroga;

18 - Ao caso dos autos não são aplicáveis as disposições constantes do Decreto-Lei n° 291/2007 de 21 de Agosto;

19 - Acresce que na ação principal isto é, na que foi interposta pelo Hospital das Forças Armadas (entretanto redenominado “Polo de Lisboa do Hospital das Forças Armadas”), na qual o FGA é Réu, requereu este a intervenção principal provocada da Ré ora recorrente;

20 - Na sequência do que, tendo aí esta tomado a posição de Ré, apresentou contestação, na qual, defendendo-se também por exceção, invocou a prescrição dos direitos que o A. contra si invocava;

21 - Nessa ação foi proferida despacho saneador a 9 de Maio de 2011, o qual consta de fls. 224 a 228 dos autos (como aliás bem reconhece e aduz o douto acórdão de que ora se recorre a fls. 2v. do mesmo), no qual foi a exceção de prescrição invocada julgada procedente e aí absolvida a Ré ora recorrente do pedido;

22 - De tal despacho/sentença que absolveu a Ré do pedido não foi interposto qualquer recurso, seja pelo A. Hospital, seja pelo FGA, requerente do chamamento, pelo que tal decisão absolutória transitou em julgado;

23 - Não sendo o direito do FGA um direito novo, mas aquele em que foi sub-rogado pelo Hospital das Forças Armadas, a mencionada absolvição do pedido com fundamento em prescrição, que o FGA deixou transitar, é-lhe necessariamente oponível;

24 - Acresce que, tendo o FGA tomado conhecimento do acidente a 7 de Novembro de 2003 e iniciado a realização de pagamento a terceiros lesados, logo a 7 de Janeiro de 2004, era seu ónus ter interposto desde logo, ou no limite, do prazo prescricional a competente ação para ser reembolsado do que vinha pagando;

25 - A tal não obstando que, nessa ação formulasse pedido para liquidação em momento ulterior, relativo a novos pagamentos que houvesse eventual e provavelmente tivesse de vir a efetuar no futuro;

26 - A tal não obstando que, nessa ação formulasse pedido para liquidação em momento ulterior, relativo a novos pagamentos que houvesse eventual e provavelmente tivesse de vir a efetuar no futuro;

27 - É aliás essa a jurisprudência constante e absolutamente pacífica dos nossos tribunais superiores quanto ao prazo para exercício dos direitos dos lesados, isto é, a de que tal prazo começa a correr da data em que os mesmos tomaram conhecimento do facto gerador do seu direito, conforme dispõe o art° 498, n° 1, do Código Civil;

28 - Ora, se assim é para os lesados em geral, nenhuma razão existe que justifique tratamento diverso e mais favorável para o FGA;

29 - Acresce que, ainda que se considerasse ao caso aplicável o disposto no n° 2 do art° 498º, do Código Civil, o prazo de que o FGA disporia para o efeito era tão-somente de 3 anos, não prevendo a lei para o mesmo a possibilidade da sua extensão;

30 - Ao caso dos autos não é aplicável o disposto no Dec. Lei n° 291/2007 de 21 de Agosto;

31 - O douto acórdão ora sob recurso, ao assim não ter decidido, violou o disposto nos art°s 498, n°s 1 e 3, 592 e 593 do Código Civil e o art.º 25, n° 1 do Dec. Lei n° 522/85 de 31/12;

32 - O douto acórdão sob recurso deve ser revogado e substituído por outro que, repondo a douta decisão proferida em Ia instância, e, em consequência julgando procedente a prescrição invocada pela ora recorrente e absolvendo esta do pedido, faça a costumada Justiça.

15. Nas contra-alegações, pugnou-se pela confirmação do acórdão recorrido.

16. Como se sabe, o âmbito objetivo do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (arts. 608.º, n.º 2, 635.º, nº 4, e 639º, do CPC), importando, assim, apreciar e proferir decisão sobre (i) sobre a eficácia preclusiva do caso julgado e (ii) se procede, ou não, a exceção de prescrição do direito invocado pelo Fundo de Garantia Automóvel.


***

II – Fundamentação de facto

17. Com relevância para a decisão do recurso, as instâncias consideraram assente que:

- O acidente de viação em litígio ocorreu em 16.05.2003;

- O Autor intentou a presente ação em 1.11.2010.

- Em 22 de Setembro de 2010, o Instituto de Seguros de Portugal, Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, responsável pela gestão do Fundo de Garantia Automóvel, nos termos do n.º 3 do artigo 47.º, do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, certificou que «de acordo com os documentos arquivados no processo de sinistro n.º 50794, o Fundo de Garantia Automóvel despendeu o montante total de 262 286,23€ (duzentos e sessenta e três mil duzentos e oitenta e seis euros e vinte e três cêntimos; do referido montante EUR 261 588,25 correspondem a indemnizações satisfeitas ao (s) lesado (s) e EUR 1.697,98 a despesas com a instrução do processo. De acordo com os registos informáticos o último pagamento efetuado pelo FGA neste processo ocorreu no dia 20/6/2008».

- O Fundo de Garantia Automóvel pagou as seguintes quantias, nas datas indicadas:

- À HH - Peritagem Automóvel, SA, o valor de 178,50€, em 07-01-2004;

- Ao Centro Médico da …, pela observação e avaliação clínica que mandou fazer ao sinistrado BB, a quantia de 156,36€, em 30-08-2004; a quantia de 166,12€, em 06-03-2007; e a quantia de 45,00€, em 20-12-2007;

- A II, Construção Civil, pelas obras de adaptação da residência do sinistrado, a quantia de 1 018,35€, em 08-1102006; e a quantia de 1 383,76€, em 24-05-2007;

- À JJ Unipessoal, Lda, pela cadeira Elevatória de BB, a quantia de 2 358,72€, em 25-08-2006; e de 5 503,68€, em 26-12-2006;

- Ao sinistrado BB, as quantias de 50 000,00€ a título de danos não patrimoniais, e de 200 000,00€, a título de danos patrimoniais (IPP, auxílio de 3.ª pessoa, dano biológico), conforme recibo com a data de emissão em 13-12-2007;

- Ao sinistrado BB, pela aquisição de uma cama elétrica com o respectivo colchão adequado à sua condição física, a quantia de 1 214,84€, conforme recibo com a data de emissão de 26-05-2008.


***


III - Fundamentação de Direito

18. Muito embora a ação (apensa) tenha sido instaurada em 30.10.2010, o acórdão recorrido foi proferido em 3.11.2016 e a decisão da 1ª instância em 18.2.2015, pelo que ambas as decisões foram proferidas na vigência da Lei n.º 41/2013, que alterou o Código de Processo Civil. Tem, assim, aplicação ao caso o Código de Processo Civil com as alterações introduzidas pela referida lei (cf. arts. 5º n.º 1, 7º n.º 1 e 8º).

a) Do caso julgado

19. A recorrente sustenta que a decisão proferida no processo principal, a julgar procedente a exceção de prescrição (ali invocada pela interveniente “Companhia de Seguros DD, SA”), produziu efeitos de caso julgado, obstando a que o mesmo ou outro tribunal seja colocado perante a possibilidade de a contradizer.

Defende, assim, que o Tribunal recorrido, sob pena de ofender o caso julgado, não podia ter julgado procedente a exceção de prescrição, invocada na ação apensa pela aqui ré, a “Companhia de Seguros DD, SA”.

Não é, contudo, assim, como veremos.

20. Como se estabelece no art. 619º, nº 1, do CPC (que reproduz, com a mera atualização das remissões, o anterior art. 671º, do mesmo Código), transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele, nos limites fixados pelos arts. 580º e 581º (…).”.

Por sua vez, dispõe-se no nº 1, do artigo 580º, do CPC (que reproduz, sem alterações, o anterior art. 497º, do mesmo Código) que a exceção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, quando a primeira delas já tiver sido julgada mediante decisão transitada.

Para tal efeito, o nº 1, do artigo 581º, do CPC (que reproduz, sem alterações, o anterior art. 498º, do mesmo Código) Código consigna que a causa se repete quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

De harmonia com os nºs 2, 3 e 4, do mesmo artigo, há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; há identidade de pedido quando numa e noutra ação se pretende obter o mesmo efeito jurídico; há identidade de causa de pedir, quando a pretensão deduzida nas duas ações proceder do mesmo facto jurídico.

Como se sabe, o caso julgado formal só tem valor intraprocessual, ou seja, só é vinculativo no próprio processo em que a decisão foi proferida; em contrapartida, o caso julgado material, além de uma eficácia intraprocessual, é suscetível de produzir os seus efeitos para além do processo em que foi proferida a decisão transitada.[3]

Ao caso julgado material são correntemente atribuídas duas funções: uma função positiva que opera o efeito de autoridade do caso julgado e uma função negativa que opera por via de exceção impedindo que uma nova causa possa ocorrer sobre o mesmo objeto - pedido e causa de pedir - e entre as mesmas partes.

Como já ensinava, Castro Mendes, os efeitos de autoridade do caso julgado e a exceção do caso julgado, ainda que constituindo duas formas distintas de eficácia deste, mais não são do que duas faces da mesma moeda[4].

Ora, no caso vertente, é inquestionável não estarem verificados os requisitos do caso julgado, definidos nos arts. 580º e 581º, do CPC.

Efetivamente, a decisão proferida no processo principal recaiu sobre a matéria da prescrição invocada pela interveniente “Companhia de Seguros DD, SA”, no âmbito da relação jurídica que constitui o objeto de tal processo, e em que figuram, como autor, o Hospital Militar Principal e, como réus, “AA - Companhia de Seguros, SA” e o Fundo de Garantia Automóvel.

Concretizando: no processo principal, o Hospital Militar pedia a condenação dos réus a pagar-lhe o montante despendido com os cuidados de saúde que prestara ao lesado, tendo a decisão proferida apreciado (tão somente) se o direito que o autor pretendia fazer valer contra a ali interveniente estava prescrito, tendo concluído em sentido afirmativo. Não se pronunciou, contudo, sobre se o eventual direito de reembolso do Fundo de Garantia Automóvel sobre a DD estava prescrito, matéria que apenas veio a ser apreciada e decidida na ação apensa, por ali ter sido suscitada pela ré.

É, assim, manifesto que o caso julgado formado com a prolação da decisão no processo principal não tem a eficácia preclusiva que a recorrente lhe pretende atribuir.

Improcede, pois, a exceção de caso julgado.

b) Da prescrição

21. Como já se referiu, na ação apensa, as rés (“Companhia de Seguros DD, SA,” e o Ministério Público, em representação da 2ª ré), invocaram a prescrição do direito do ali autor (o Fundo de Garantia Automóvel), alegando que, aquando da propositura da ação, já havia decorrido o prazo de cinco anos, sobre a data do acidente.

Na 1ª instância, considerou-se que o prazo de prescrição aplicável era o de três anos a contar da data do acidente, por força do disposto no art. 498º, nº 1, do CC. Em face disso, dado que o acidente ocorreu em 16.5.2003 e a ação foi instaurada em 30.10.2010[5], julgou-se procedente a exceção de prescrição.

O Tribunal da Relação, porém, muito embora tenha considerado ser aplicável o prazo prescricional de três anos, entendeu que o mesmo se contava, nos termos previstos no nº2, do art. 498º, do CC, isto é, a partir do cumprimento (e não do acidente) e, relevando a data do pagamento pelo Fundo de Garantia Automóvel, julgou improcedente a exceção.

No recurso interposto pela ré seguradora para este Supremo Tribunal, veio a recorrente sustentar que o prazo de prescrição é de cinco anos, a contar da data do acidente e/ou da data em que o Fundo de Garantia Automóvel teve conhecimento de que estava obrigado a indemnizar o lesado.

Insiste, por isso, que o prazo prescricional se esgotou em 16.5.2008, ou seja, em data anterior à da instauração da ação (30.10.2010[6]).

Vejamos.

22. Nos termos do art. 21º, n.º 2, al. b), do D.L. n.º 522/85, de 31 de Dezembro, o Fundo de Garantia Automóvel responde pelas indemnizações decorrentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório, quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido e eficaz.

Por sua vez, dispõe-se no nº 1, do art. 25º, do Dec. Lei nº 522/85, de 31/12 na redação dada pelo Dec. Lei nº 122-A/86, de 30/5 [7], que "satisfeita a indemnização, o Fundo de Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado, tendo ainda direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a liquidação e cobrança".

Configura-se, assim, uma verdadeira sub-rogação legal, que coloca o sub-rogado na titularidade do mesmo direito de crédito que pertencia ao credor primitivo, independentemente de qualquer declaração de vontade do credor ou do devedor nesse sentido.

Nesta medida, tendo o “FGA” adiantado ao lesado, e/ou a terceiro, o correspondente ao montante dos danos por aquele sofridos, ficou, legalmente, sub-rogado nos direitos do mesmo.

23. Qual é, porém, o prazo (prescricional) de que dispõe o sub-rogado para exercer o direito ao reembolso, sob pena da sua extinção? 

O art. 498º, nº 1 do Cód. Civil, no quadro da responsabilidade civil por factos ilícitos, prevê que o direito de indemnização do lesado prescreve no prazo de três anos,[8] a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso.

Por sua vez, no nº 2, do referido preceito legal estabelece-se que prescreve, igualmente, no prazo de três anos, a contar do cumprimento, o direito de regresso entre os responsáveis.

Finalmente, no seu nº 3, estipula-se que, se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável.

Sendo este o quadro legal, coloca-se a questão de saber se o sub-rogado pode beneficiar da extensão do prazo prescricional prevista no nº3 do art. 498º, CC, nos casos em que os factos praticados pelo lesante possam configurar um ilícito criminal, para o qual a lei penal preveja um prazo de prescrição que exceda o já referido prazo-regra de 3 anos, previsto no nº1 do art. 498º do CC.

É, essa, a posição defendida pela recorrente nos articulados da ação e também neste recurso, entendimento que não sufragamos.

24. Com efeito:

O nº 3 do art. 498º, do CC, tem em vista compatibilizar os prazos de prescrição previstos na lei civil e na lei penal, já que, por força do chamado «princípio de adesão», a dedução da indemnização civil tem lugar, em regra, no processo criminal. Na verdade, não faria sentido que se extinguisse, por prescrição, o direito à indemnização civil - conexa com o crime – se ainda estivesse a decorrer o prazo de prescrição do procedimento criminal.

Ora, sendo aquelas, no essencial, as razões que estão na origem da consagração do alongamento do prazo previsto no nº 3 do art. 498º, do CC, as quais têm plena justificação quando se está (ainda) no âmbito da definição do direito do lesado, o mesmo não se pode dizer quando se trata do direito de reembolso (seja exercido por via do direito de regresso ou da sub-rogação), cujo fundamento se encontra completamente dissociado do ilícito criminal.[9]

Neste contexto, e fazendo apelo às regras de interpretação, plasmadas no art. 9º, do CC., não parece defensável outra solução.

Como argumento final, afigura-se-nos ser ainda de trazer à colação o regime jurídico atualmente consagrado pelo DL nº 291/2007, de 21/8, em cujo art. 54º, nº 6, se estatui expressis verbis que aos direitos do Fundo de Garantia Automóvel (previstos nos números anteriores) é aplicável o nº 2 do art. 498º, do CC, relevando para o efeito, em caso de pagamentos fracionados, a data do último pagamento efetuado.

Tal só pode significar que o legislador, ao excluir expressamente a possibilidade de o “FGA” se prevalecer do alongamento do prazo do nº 3 do art. 498º, do CC, quis dissipar quaisquer dúvidas que a este respeito ainda pudessem subsistir.

É, assim, de concluir que em ação (como a dos autos) instaurada pelo Fundo de Garantia Automóvel visando obter o reconhecimento do seu direito ao reembolso e a condenação do responsável civil no pagamento da indemnização por ele satisfeita (como garante) ao lesado, o prazo de prescrição do exercício do direito do sub-rogado é o de três anos, por aplicação analógica do disposto no transcrito nº 2 do art. 498º, do CC.[10]

Na verdade, o “direito de regresso" e o “direito de sub-rogação” desempenham, do ponto de vista prático ou económico, uma análoga «função recuperatória» no âmbito das «relações internas» entre os vários sujeitos que estavam juridicamente vinculados ao cumprimento de certa obrigação ou, embora não o estando, acabaram por realizar efetivamente – na veste de garantes ou interessados diretos no cumprimento – a prestação devida.

25. Por outro lado, como se estabelece no art. 498º, nº 2, do CC, o dies a quo da contagem deste prazo prescricional corresponde ao do pagamento, não relevando para este efeito, a data do acidente.[11]

Efetivamente, antes de satisfazer a indemnização, o FGA não é titular de qualquer direito de crédito, pelo que não pode exercer qualquer direito em lugar do lesado (ou do terceiro).

Como ensinava Vaz Serra (RLJ, 99, 360):

 “A sub-rogação supõe o pagamento... e, portanto, o terceiro que paga pelo devedor só se sub-roga nos direitos do credor com o pagamento. Enquanto não o faz, não é sub-rogado e não pode, por isso, exercer os direitos do credor."

E, mais adiante:

"É que o eventual sub-rogado, enquanto não efetuar o pagamento, não tem crédito contra o terceiro responsável (crédito cujo montante será determinado pelo pagamento que fizer), e não tem sequer um crédito já existente mas ainda inexigível."

Compreende-se, deste modo, que o início do prazo de prescrição do direito atribuído ao “FGA” pelo art.º 25 do DL 522/85, de 31 de Dezembro, deva ser estabelecido, por analogia, nos termos previstos no art.º 498, n.º 2, do CC.

26. Neste domínio, assume ainda particular relevância a questão de saber se, relativamente a montantes que o sub-rogado tenha pago faseadamente ao lesado ou a terceiros, o prazo prescricional se começa a contar do momento em que é paga cada parcela, sem que tal obste a que venha, depois, exercer o seu direito de sub-rogação quanto a outras quantias que venha a pagar, ou se a contagem do prazo se inicia a partir da data em que tenha sido efetuado o último pagamento.

A letra da lei (art. 498º, nº2, do CC), só por si, não permite resolver a situação.

Sobre esta problemática, escreveu-se no ac. do STJ de 7/4/2011, disponível in www.dgsi.pt:

“Não sendo a letra da lei - ao reportar-se apenas ao «cumprimento», como momento inicial do curso da prescrição - suficiente para resolver, em termos cabais, esta questão jurídica, será indispensável proceder a um balanceamento ou ponderação dos interesses envolvidos: assim, importa reconhecer que a opção pela tese que, de um ponto de vista parcelar e atomístico, autonomiza, para efeitos de prescrição, cada um dos pagamentos parcelares efetuados ao longo do tempo pela seguradora acaba por reportar o funcionamento da prescrição, não propriamente à «obrigação de indemnizar», tal como está prevista e regulada na lei civil (arts. 562º e segs.) mas a cada recibo ou fatura apresentada pela seguradora no âmbito da ação de regresso, conduzindo a um - dificilmente compreensível - desdobramento, pulverização e proliferação das ações de regresso, no caso de pagamentos parcelares faseados ao longo de períodos temporais significativamente alongados.

Pelo contrário, a opção pela tese oposta - conduzindo a que apenas se inicie a prescrição do direito de regresso quando tudo estiver pago ao lesado - poderá consentir num excessivo retardamento no exercício da ação de regresso pela seguradora, manifestamente inconveniente para os interesses do demandado (…).

Por outro lado, a ideia base da unidade da «obrigação de indemnizar» poderá ser temperada pela possível autonomização das indemnizações que correspondam ao ressarcimento de tipos de danos normativamente diferenciados, consoante esteja em causa, nomeadamente:

- a indemnização de danos patrimoniais e não patrimoniais, sendo estes ressarcidos fundamentalmente através de um juízo de equidade, e não da aplicação da referida teoria da diferença;

- a indemnização de danos que correspondam à lesão de bens ou direitos claramente diferenciados ou cindíveis de um ponto de vista normativo, desde logo os que correspondam à lesão da integridade física ou de bens da personalidade e os que decorram da lesão do direito de propriedade sobre coisas.”

Em suma, e tal como se concluiu no mencionado aresto, “se não parece aceitável a autonomização do início de prazos prescricionais, aplicáveis ao direito de regresso da seguradora, em função de circunstâncias puramente aleatórias, ligadas apenas ao momento em que foi adiantada determinada verba pela seguradora, já poderá ser justificável tal autonomização quando ela tenha subjacente um critério funcional, ligado à natureza da indemnização e ao tipo de bens jurídicos lesados, com o consequente ónus de a seguradora exercitar o direito de regresso referentemente a cada núcleo indemnizatório autónomo e juridicamente diferenciado, de modo a não diferir excessivamente o contraditório com o demandado, relativamente à causalidade e dinâmica do acidente, em função da pendência do apuramento e liquidação de outros núcleos indemnizatórios, claramente cindíveis do primeiro.”

Perfilhamos idêntico entendimento, afigurando-se-nos inteiramente aplicável ao caso em apreço a doutrina do referido aresto.[12]

No caso vertente, está provado que o último pagamento efetuado pelo “FGA” ocorreu em 20-06-2008, pelo que é manifesto não ter ainda decorrido o prazo prescricional de três anos, nem à data da instauração da presente ação nem da citação da recorrente (cf. art. 323º, nº1, do CC).

A idêntica conclusão se chegará, caso se atribua relevância à data do último pagamento de cada um dos núcleos indemnizatórios, diferenciados em função de critérios funcionais.

Efetivamente, estando em causa a indemnização por danos patrimoniais e danos não patrimoniais, o ressarcimento quanto a estes foi adiantado pelo FGA, pela última vez, em 13.12.2007 e, relativamente aos danos patrimoniais, o último pagamento teve lugar, como já se disse, em 20.6.2008.

Improcede, pois, o recurso.


***

IV – Decisão

27. Nestes termos, negando provimento à revista, acorda-se em confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 18 de Janeiro de 2018

Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado (Relatora)

José Sousa Lameira

Hélder Almeida

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[1] Atualmente, “Polo de Lisboa do Hospital das Forças Armadas.”.
[2] Atualmente, “CC - Companhia de Seguros, SA”.
[3] cf. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III Vol., 383 e ss..
[4] V. Limites Objetivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, págs. 36 e segs.
[5] E não em 1.11.2010, como, por lapso ali se refere.
[6] E não 2.11.2010, como, por lapso, se refere nas alegações do recurso.
[7] Diploma que não obstante ter sido entretanto revogado pelo DL nº 291/2007, de 21/8 - é aqui aplicável, atenta a data do acidente.
[8] Em derrogação do prazo geral previsto no art. 309º, do CC.
[9] Tem sido esta a orientação da jurisprudência do STJ, como resulta, entre outros, dos acórdãos de 19.5.2016, de 18/10/2012, de 29/11/2011, de 16/11/2010, de 27/10/2009 e de 4/11/2008, e, muito concretamente, em situações de sub-rogação legal no direito do lesado, dos acórdãos de 3/12/2015, de 5/06/2012 e de 7/05/2014, disponíveis em www.dgsi.pt.

[10] Cf., a título exemplificativo, os acs. deste Supremo Tribunal de 9.6.2016, de 10.1.2013, de 25.3.2010 e de 22.10.2009, disponíveis em www.dgsi.pt.
[11] Cf., neste sentido, os acs. do STJ de 12.9.2013, de 10.1.2013, de 13.4.2000, de 20.2.2001, de 17.12.2002, 21.1.2003, de 8.11.2005, de 10.9.2009 e de 16.3.2011, disponíveis em www.dgsi.pt.

[12] Cf., a este respeito, os acórdãos do STJ de 14.7.2016, de 19.5.2016 e de 21.9.2017, disponíveis em www.dgsi.pt.