Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
071728
Nº Convencional: JSTJ00006698
Relator: ALVES CORTES
Descritores: DIREITO DE PREFERENCIA
PREDIO RUSTICO
CULTURA
AFINIDADE
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ198603180717282
Data do Acordão: 03/18/1986
Votação: MAIORIA COM 2 DEC VOT E 1 VOT VENC
Referência de Publicação: DR N113 IS 1986/05/17, PÁG.1169 A 1174 - BMJ Nº 355 ANO 1986 PÁG. 121
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO
Decisão: UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Indicações Eventuais: ASSENTO DO STJ. MARCELLO CAETANO MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO 9ED PAG119. AFONSO QUEIRO IN LIÇÕES DIREITO ADMINISTRATIVO PAG150.
Área Temática: DIR CIV - DIR REAIS. DIR CONST.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 2 ARTIGO 1376 ARTIGO 1378 ARTIGO 1380 N1 ARTIGO 1381 A ARTIGO 1382 ARTIGO 9 N1.
L 2116 DE 1962/08/14 BII BIV BVI.
D 44647 DE 1962/10/26.
CONST82 ARTIGO 115 N5 ARTIGO 122 N1 G ARTIGO 206 ARTIGO 281 ARTIGO 293.
CPC67 ARTIGO 728 N3 ARTIGO 763 ARTIGO 764 ARTIGO 768 N3 ARTIGO 770.
PORT 202/70 DE 1970/04/21.
Legislação Estrangeira: CPC DA ITALIA ART374.
L FEDERAL DE ORGANIZAÇÃO JUDICIARIA DA SUIÇA ART16.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1983/07/12 IN BMJ N329.
ACÓRDÃO STJ DE 1979/05/15 IN BMJ N297 PAG335.
ACÓRDÃO STJ DE 1979/10/11 IN BMJ N290 PAG395.
ACÓRDÃO STJ DE 1985/05/09 IN BMJ N347 PAG240.
ACÓRDÃO STJ DE 1983/06/01 IN BMJ N328 PAG568.
Sumário :
O direito de preferencia pelo artigo 1380 do Codigo Civil não depende da afinidade ou identidade de culturas nos predios confinantes.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em plenario, no Supremo Tribunal de Justiça:

A, Ilheu interpos recurso para o plenario deste Supremo Tribunal de Justiça do acordão proferido em 12 de Julho de 1983, no processo n. 30205/1 deste Tribunal, alegando achar-se tal aresto em oposição com o Acordão tambem deste Supremo Tribunal de 15 de Maio de 1980, publicado no Boletim do Ministerio da justiça, n. 297, pagina 335, visto que enquanto o aresto recorrido considera, expressamente, indispensavel ao exercicio do direito de preferencia regulado nos artigos 1380 e 1381 do Codigo Civil uma afinidade de culturas predominantes dos terrenos confinantes, o citado Acordão de 15 de Maio de 1980 sustenta, expressamente, que a lei não distingue entre os tipos de cultura, de modo a exigir a identidade desta entre os terrenos contiguos, unicamente excluindo na alinea a) do artigo 1381 a hipotese de algum destes se destinar a fim que não seja a cultura.
O acordão de folhas 34 a folhas 36 reconheceu que ocorrem todos os requisitos ou pressupostos do recurso incluindo a invocada oposição.
Prosseguindo, por isso, o recurso, o recorrente apresentou alegação, ultimando-a com as seguintes conclusões:
1 - Para o exercicio de direito de preferencia previsto no artigo 1380 do Codigo Civil, nem a letra da lei nem o seu espirito distinguem entre os tipos de culturas dos terrenos confinantes, não sendo, assim, necessaria qualquer identidade ou afinidade de cultura entre os terrenos confinantes;
2 - Pelo contrario, e o proprio artigo 1381, alinea a), do mesmo Codigo Civil que unicamente proibe o direito de preferencia no caso de algum dos terrenos confinantes se destinar a algum fim que não seja a cultura;
3 - E e o que se compenetra com a finalidade legal de evitar a fragmentação e a dispersão da propriedade rustica atraves do emparcelamento, com o fim de melhorar as condições tecnicas e economicas da exploração agricola, o que tanto ocorre com terrenos de regadio ou de sequeiro como de regadio e de sequeiro;
4 - Por maioria de razão, não e necessaria, para tal exercicio do direito de preferencia, qualquer identidade ou afinidade de culturas predominantes entre os terrenos confinantes;
5 - Por outro lado, para efeito de apurar a unidade de cultura, a distinção entre terrenos de regadio e de sequeiro, arvenses e horticolas mostra-se clara, não sendo necessario recorrer ao conceito de cultura predominante, que, de resto, a lei não acolhe;
6 - Acresce que houve acordo das partes quanto a nenhum dos terrenos confinantes ser horticola e quanto a ambos esses terrenos terem area inferior a unidade de cultura, o que, alias, tambem resulta da identificação dos dois predios (ambos terras de semeadura, de vinha e arvores de fruto) e das suas areas (7356,75 m2) e 6952 m2, respectivamente).
A finalizar, o recorrente pede que se revogue o acordão recorrido e se confirmem a sentença da 1 instancia e o acordão da Relação de Lisboa, firmando-se assento no sentido de que "para o exercicio do direito de preferencia e, nomeadamente, para o apuramento da unidade de cultura, previstos no artigo 1380 do Codigo Civil, não e necessario provar as especies de cultura predominantes em cada um dos terrenos confinantes, bastando que se prove que ambos os terrenos confinantes são de cultura, independentemente das suas especies".
Os recorridos B e mulher, C e mulher, e D e mulher, tambem alegaram, concluindo que se deve proferir assento decidindo que "para o exercicio do direito de preferencia do artigo 1380 do Codigo Civil e requisito indispensavel que entre os terrenos confinantes se verifique afinidade de culturas, que ocorrera quando forem identicas as culturas dominantes em ambos os predios".
O Excelentissiomo representante do Ministerio Publico igualmente alegou, alvitrando para o assento o seguinte texto:
O direito de preferencia previsto no artigo 1380 do Codigo Civil não depende da identidade de cultura dos terrenos confinantes.
Apos o acordão de folhas 34 a folhas 36 ninguem veio por em crise a existencia dos pressupostos processuais do recurso ai reconhecida, incluindo a oposição de julgados.
Corridos os vistos legais, cumpre, por isso, apreciar e resolver.
Dispõe o n. 1 do artigo 1380 do Codigo Civil que "os proprietarios de terrenos confinantes, de area inferior a unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferencia nos casos de venda, dação em cumprimento ou apuramento de qualquer dos predios a quem não seja proprietario confinante".
A questão submetida a apreciação deste Supremo Tribunal de Justiça consiste em decidir se tal direito de preferencia so pode ser exercido quando exista afinidade ou identidade de culturas dos predios rusticos confinantes - posição adoptada pelo acordão recorrido - ou se, pelo contrario, não e necessaria essa afinidade de culturas para o exercicio do mesmo direito - posição assumida pelo Acordão deste Supremo Tribunal de 15 de Maio de 1980.
O direito de preferencia fundado na confinancia de predios rusticos insere-se num conjunto de disposições legais que tem por finalidade lutar contra a excessiva fragmentação da propriedade rustica, atendendo aos inconvenientes de ordem economica que dela resultam, designadamente a baixa produtividade de predios de reduzida area.
Assim, o artigo 1376 do Codigo Civil declara que os terrenos aptos para cultura não podem fraccionar-se em parcelas de area inferior a unidade de cultura fixada para cada zona do Pais, estabelecendo o subsequente artigo 1377 as excepções a tal proibição de fraccionamento.
O artigo 1378 do mesmo diploma indica os casos em que e admissivel a troca de terrenos, sendo proibida a que ocasione ficar algum dos predios sem a area da respectiva unidade de cultura.
O artigo 1382 do citado Codigo reporta-se ao emparcelamento, isto e, ao conjunto de operações de remodelação predial destinadas a por termo a fragmentação e dispersão dos predios rusticos pertencentes ao mesmo titular, com o fim de melhorar as condições tecnicas e economicas da exploração agricola, sendo regulado o emparcelamento pela Lei n. 2116, de 14 de Agosto de 1962, e pelo Decreto n. 44647, de 26 de Outubro do mesmo ano.
Todas essas providencias se destinam a impedir a excessiva divisão da propriedade rustica e a incentivar e facilitar o emparcelamento.
Em nenhuma delas, porem, se manifesta o proposito de subordinar o emparcelamento a homogeneidade de culturas, e o que a lei pretende e tão-somente diminuir a exagerada pulverização da propriedade fundiaria.
Os mencionados artigos 1376, 1377, 1378 e 1380 do Codigo Civil tiveram por fonte as bases I, II, IV, e VI da aludida Lei n. 2116, e nelas igualmente não se fazia depender o emparcelamento da identidade de culturas.
O que interessa e a area da unidade de cultura, e essa e a que se encontra fixada na Portaria n. 202/70, de 21 de Abril, segundo a qual, e no que concerne ao distrito de Setubal, aquele onde se situam os predios em causa, tal area e de 2, 5000 ha quanto aos terrenos de regadio arvenses, de 0, 5000 ha relativamente aos terrenos de regadio horticolas e de 5 ha quanto aos terrenos de sequeiro.
A natureza das culturas so se reveste de interesse para a determinação dessa area, devendo atender-se ai, sim, a predominante.
Sendo a finalidade da lei evitar a dispersão da propriedade rustica atraves do emparcelamento, atinge-se esse objectivo tanto com terrenos de regadio ou de sequeiro, como com terrenos de regadio e de sequeiro.
Se o legislador quisesse que o emparcelamento fosse obtido sem prejuizo da monocultura te-lo-ia dito de modo expresso, exigindo uma mesma e unica cultura nos predios a emparcelar, e o certo e que não o fez.
Acresce que o imediato artigo 1381 menciona os casos em que não existe o direito de preferencia em causa, não obstante a confinancia de predios, e nenhum deles se reporta a inexistencia de homogeneidade de cultura.
Importa, pois, concluir, como o fizeram os Acordãos deste Supremo Tribunal de 15 de Maio de 1980 e de 1 de Junho de 1983, publicados no Boletim do Ministerio da Justiça, ns. 297, pagina 335, e 328, pagina 568, respectivamente, que, em contrario da doutrina adoptada no acordão recorrido, não e necessaria a afinidade ou identidade de cultura nos predios confinantes para o proprietario de um deles exercer o direito de preferencia na vendo do outro.
Dessa forma o recurso procede, mas a sua procedencia não implica a revogação da decisão final do aresto recorrido de julgar a acção improcedente e absolver os reus do pedido.
Com efeito, essa decisão fundamentou-se tambem na circunstancia de, sendo indispensavel conhecer-se as culturas predominantes em cada predio para se determinar se a area de qualquer deles era inferior a unidade de cultura no distrito de Setubal, não se ter feito prova dos factos concretos atraves dos quais se pudesse proceder a tal determinação, ja que, a classificar-se qualquer dos terrenos como horticola, teria area superior a unidade de cultura, nos termos da referida Portaria n. 202/70, materia que não e objecto do presente recurso.
Assim, o assento a proferir se-lo-a nos termos do n. 3 do artigo 768 do Codigo de Processo Civil.
De harmonia com o exposto, concede-se provimento ao recurso, mas não se altera a decisão final do acordão recorrido, e formula-se o seguinte assento:
O direito de preferencia conferido pelo artigo 1380 do Codigo Civil não depende da afinidade ou identidade de culturas nos predios confinantes.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 18 de Março de 1986

Alves Cortez - Tinoco de Almeida - Gois Pinheiro - Senra Malgueiro - Luis Franqueira - Frederico Baptista - Julio Santos da Silva - Aurelio Fernandes - Corte Real - Moreira da Silva - Melo Franco - Solano Viana - Joaquim Figueiredo
- Dias da Fonseca - Lima Cluny - Villa Nova - Lopes Neves
- Magalhães Baião - Almeida Ribeiro - Licinio Caseiro - Manso Preto - Miguel Caeiro - Sa Coimbra - Pereira de Miranda (não reconhecendo relevancia ao invocado criterio da cultura dominante conforme Acordão deste Supremo de 26 de Junho de 1985 (Dec 348 - 414).

- Correia de Paiva (vencido conforme a declaração de voto que junto) - Alves Peixoto (votei segundo o voto do meu Exmo. Colega Correia de Paiva) - Campos Costa (vencido, quanto ao conhecimento do objecto do recurso, pelas razões constantes da declaração de voto que se anexa).
Declaração de voto:
Comentando o artigo 1380 do Codigo Civil, escreveram os Professores Pires de Lima e Antunes Varela:
"A razão da alteração introduzida pelo Codigo esta em não se justificar que a grande propriedade absorva a pequena propriedade que lhe e contigua. Desde que ja esta formada uma unidade de cultura, desaparece o interesse economico da absorção, ou, pelo menos, trata-se de um interesse que não justifica a restrição da preferencia, que apresenta igualmente inconvenientes sob o ponto de vista social e economico." (Codigo Civil Anotado, volume III, pagina 247).
"A limitação relativa ao fraccionamento de predios rusticos diz respeito apenas aos terrenos aptos para cultura." (Ibid., pagina 237).
O artigo 1376, n. 1, do Codigo Civil estabelece que
"os terrenos aptos para cultura não podem fraccionar-se em parcelas de area inferior a determinada superficie minima correspondente a unidade de cultura fixada para cada zona do Pais".
A Portaria n. 202/70 fixou as areas de unidade de cultura consideraveis viaveis relativamente a cada região ou zona do Pais.
A dita proibição visou garantir a existencia de unidades de cultura viaveis.
Por sua vez, o artigo 1380 previu o "emparcelamento", precisamente para "por termo a fragmentação e dispersão dos predios rusticos pertencentes ao mesmo titular, com o fim de melhorar as condições tecnicas da exploração agricola".
Resulta do artigo 1380 que o direito de preferencia so pode ser reconhecido a "proprietarios de terrenos confinantes, de area inferior a unidade de cultura".
Temos, portanto, de nos situar na linha divisoria dos dois terrrenos em causa e verificar se o emparcelamento que se visa alcançar permite o estabelecimento de unidade de cultura viavel, ja que um e outro terreno limitrofes devem ser de area inferior a unidade de cultura.
Se o objectivo legal e o de viabilizar certa unidade de cultura (pela adição, junção ou absorção dos dois terrenos em confronto), considero necessario que se trate de terreno com identica aptidão para essa cultura que se pretende favorecer e viabilizar.
Se a area de terreno de ambos ou algum deles for superior a unidade de cultura, deixa de existir a possibilidade de usar o direito de preferencia.
Pode, por outro lado, verificar-se a hipotese de na parte em que a confrontação se verifica existirem culturas diversificadas (arvenses-horticolas-sequeiro); ha então que determinar, relativamente a cada uma delas, qual e a cultura predominante, para de seguida se poderem comparar e, depois, concluir se o resultado da junção e a constituição de unidade de cultura viavel.
Sendo este, como julgo ser, o objectivo da lei, entendo ser fundamental a consideração da existencia da afinidade ou identidade de culturas nos predios confinantes, sem a qual se não pode alcançar a pretendida unidade, que o legislador visou.
Não esta em causa se algum dos proprietarios e latifundiario ou proletario, rico ou pobre, se tem outros predios ou unidades de cultura ou não.
Se os terrenos em confronto, de area inferior a unidade de cultura prevista como adequada para o local de situação, podem, emparcelados, conduzir a uma unidade de certa cultura viavel, ha que favorecer a constituição.
O reconhecimento do direito de preferencia a um dos proprietarios tem precisamente essa finalidade.
Inclino-me, por isso, para a jurisprudencia dos Acordãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Outubro de 1979 (Boletim do Ministerio da Justiça, n. 290, pagina 395) e de 12 de Julho de 1983 (Boletim do Ministerio da Justiça, n. 329).
Correia de Paiva.
Declaração de voto.
I - Da inconstitucionalidade dos assentos.
Continuo a entender que o artigo 2 do Codigo Civil esta ferido de inconstitucionalidade, so me causando surpresa que, apos o notabilissimo estudo de Castanheira Neves, O Instituto dos "Assentos" e a Função Juridica dos Supremos tribunais, e mesmo depois de o disposto no n. 5 do artigo 115 da Constituição da Republica haver entrado em vigor, nenhum particular interessado em defender orientação oposta a perfilhada por algum assento tenha sido suscitado em juizo a questão do não acatamento da doutrina firmada nos assentos.
Como a jurisprudencia deste Supremo Tribunal não me tem acompanhado (v., por todos, o Acordão de 9 de Maio de 1985, in Boletim do Ministerio da Justiça, n. 347, pagina 240), vai adoptar-se o caminho de refutar cada um dos argumentos que o Supremo Tribunal tem invocado em seu favor, não se curando em seu favor, não se curando aqui de apontar sequer os serios inconvenientes que o regime actual dos assentos acarreta (acerca disto, v. Castanheira Neves, ob. cit., paginas 626 e seguintes, e Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1 edição, pagina 224).
II - Argumento da necessidade dos assentos como meio de por fim a incerteza do direito.
O argumento acima referido e quase de nulo significado.
Em primeiro lugar, dir-se-a que, por mais vantagens que derivem dos assentos, tal nunca poderia constituir alicerce para se firmar a tese da plena constitucionalidade dos assentos. Na verdade, plasmadas com principios de ordem social, economica, cultural e de filosofia politica, as constituições brigam muitas vezes com leis ordinarias altamente beneficas para a comunidade, mas que se basearam em principios e ideias de outra indole. Ora, sempre que uma colisão destas se verifica, a lei ordinaria tem fatalmente de ser sacrificada, ainda que se trate de uma lei excelente. Por isso mesmo, o artigo 293 da Constituição da Republica prescreve, sem quaisquer restrições, que se não mantem o direito anterior a entrada em vigor da Constituição que seja contrario a Constituição ou aos principios nela consignados. Logo, não podem ser trazidos a colação os beneficios que resultam da observancia do artigo 2 do Codigo Civil, uma vez que dai nada se pode inferir acerca da constitucionalidade do preceito.
Dando, porem, de barato que tem interesse, para o efeito, averiguar dos reais beneficios dos assentos, sempre se dira que nas legislações dos outros paises não figuram decisões com força obrigatoria geral, e, apesar disso, ai tambem se faz sentir a conveniencia de evitar a incerteza do direito...
Por ultimo, o artigo 728, n. 3, do nosso Codigo de Processo Civil, devidamente interpretado e aplicado, preve um magnifico remedio para assegurar a uniformidade da jurisprudencia e impedir, por essa forma, a indesejada incerteza do direito. Com efeito, desde que algum projecto de acordão do Supremo Tribunal se afaste de orientação perfilhada pelas secções civeis reunidas o Presidente do Supremo Tribunal não podera deixar de submeter o dito projecto a apreciação das secções reunidas; e, sabedores disto, os juizes que porventura discordem da doutrina firmada no quase-assento, em bom criterio ( a fim de evitarem que no processo intervenham inutilmente todos os colegas das secções civeis), deverão abraçar a tese propugnada no quase-assento, embora com a declaração expressa de ser outro o se entendimento - declaração que tem a virtualidade de provocar a sujeição do tema juridico a nova reunião conjunta das secções quando, sobretudo merce de alteração no quadro dos juizes do Supremo, se apresentar como viavel uma modificação da tese sufragada no anterior quase-assento.
Não sera isso bastante para impedir a incerteza do direito?
Bem parece que sim, e tanto que outros sistemas legislativos consagram regimes algo semelhantes.
Assim, o artigo 374 do Codigo de Processo Civil italiano determina que o presidente do Supremo faça intervir todos os juizes das secções quando se esteja perante uma questão de direito ja decidida de modo diferente por uma das secções ou se trate de questão de grande importancia.
O artigo 16 da Lei Federal de Organização Judiciaria Suiça tambem prescreve que, sempre que uma secção do tribunal entenda ser de alterar a jurisprudencia seguida por outra secção, pelas secções reunidas ou pelo plenario, a secção so o pode fazer com o acordo da outra secção ou depois de uma decisão das secções interessadas ou do plenario.
III - Argumento de que o artigo 115, n. 5, da Constituição não se aplica aos assentos em virtude de eles estarem ha muito institucionalizados.
Como o n. 5 do artigo 115 apenas estabelece que "nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos", julga-se que o preceito se não observa quanto aos assentos, por ja terem sido criados antes de publicada a Constituição da Republica.
Trata-se de consideração muito frouxa.
Por um lado, ela olvida que, por força do artigo 293 da Constituição da Republica, se não mantem o direito ordinario que contrarie a Constituição, mesmo que seja anterior a entrada em vigor da dita Constituição.
Por outro lado, se o disposto no n. 5 do artigo 115 so valesse quanto as leis futuras, então continuariam validos todos os chamados regulamentos delegados ou autorizados, desde que anteriores a Constituição, apesar de o preceito ter querido acabar com eles.
IV - Argumento de que a constitucionalidade dos assentos aparece confirmada na alinea g) do n. 1 do artigo 122 da Constituição.
Quando a dita alinea g) estabelece que "são publicadas no jornal oficial [...] as decisões do Tribunal Constitucional, bem como as dos outros tribunais a que a lei confira força obrigatoria geral", parece efectivamente que se pressupõe a validade constitucional dos assentos.
A tal argumento, de inegavel valia, ja Castanheira Neves (ob. cit., pagina 408) soube dar adequada resposta; e, por isso, quase bastaria remeter para a leitura dessa resposta.
Em todo o caso, permita-se que, por outras vias, se destrua o relevo que se tem dado a alinea g) do n. 1 do artigo 122.

E certo e seguro que, assim como Jorge Miranda (Constituição e Democracia, paginas 321 e 322), Afonso Queiro (Lições de Direito Administrativo, pagina 389) e muitos outros juristas sustentam ainda hoje a plena validade dos assentos, e bem possivel que a maioria dos deputados que votou a Constituição partilhasse da mesma opinião; e dai que, muito coerentemente, não tivessem hesitado em consignar no artigo 122 a obrigatoriedade de os assentos serem publicados no jornal oficial.
Simplesmente, o que deve ser objecto de discussão e saber se uma norma legal com a indicação dos actos que tem de ser publicados no Diario da Republica sera suficiente para atribuir validade constitucional a regimes que, face a outras disposições, podem ser apodados de inconstitucionais.
Ora, a negativa impõe-se. Para o comprovar admita-se que o artigo 122 estabelecia que deviam ser publicadas na folha oficial as decisões judiciais que tivessem aplicado a pena de morte; claro que essa determinação não teria certamente força bastante para considerar revogado o artigo 24, n. 2, da Constituição, que não consente em caso algum a pena de morte.
Isto quer dizer que, desde que se reconheça que os assentos estão viciados de inconstitucionalidade, não e o preceituado na alinea g) do n. 1 do artigo 122 que pode servir de base para se subscrever doutrina oposta.
De resto, mesmo que se julgasse haver aqui uma colisão directa entre a alinea g) do n. 1 do artigo 122 e os preceitos que não autorizam os tribunais a exercer uma função legislativa, haveria ao menos que se reconhecer que aquela alinea g) se encontrava inquinada de inconstitucionalidade, na medida em que não repugna que semelhante vicio atinja as proprias normas da Constituição (confere Otto Bachof, Normas Constitucionais Inconstitucionais?).
V - Argumento de que o disposto no artigo 115, n. 5, não quis proibir a força obrigatoria das decisões judiciais.
Antes de entrar na apreciação do argumento da epigrafe supra esclareça-se como era equacionado o problema da constitucionalidade dos assentos no tempo em que não existia norma alguma semelhante ao actual artigo 115, n. 5.
Tudo se resumia em averiguar se os assentos resultavam de exercicio de uma função legislativa, uma vez que, como se sabe, essa função não cabe aos tribunais.
Para Castanheira Neves (ob. cit., paginas 315 e seguintes) os assentos são disposições materialmente legislativas.
E a partir do momento em que os assentos passaram a ter força obrigatoria geral (artigo 2 do Codigo Civil), deixando de ser apenas obrigatorias para os tribunais (como sucedia na vigencia do artigo 768 do Codigo de Processo Civil, na versão de 1939) tambem Marcelo Caetano (Manual de Direito Administrativo, 9 edição, I, paginas 119 e 120) sustentou que, face a Constituição de 1933, o artigo 2 do Codigo Civil atribuia afinal aos tribunais uma função legislativa.
Para estes autores os assentos eram, portanto, inconstitucionais, inconstitucionalidade que, segundo se me afigura, e mais patente quando os assentos são lavrados a coberto do artigo 770 do Codigo de Processo Civil, visto nesse caso o Supremo Tribunal não exercer função jurisdicional alguma, tal como esta aparece definida no artigo 206 da Constituição da Republica.
Diferentemente, para Alberto dos Reis (Codigo de Processo Civil Anotado, VI, pagina 315), Afonso Queiro (ob. cit.,loc cit) e Jorge Miranda (ob. cit.,loc. cit.)os assentos não são lei, mas actos puramente jurisdicionais; e dai a sua constitucionalidade.
Coloque-se agora o problema no dominio da revisão da Constituição operada em 1982, onde figura pela primeira vez o seguinte texto:
Nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficacia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos. (N. 5 do artigo 115)
Não tera esta disposição força bastante para que se deva considerar inconstitucional o estatuido no artigo 2 do Codigo Civil?
Nos acordãos que sobre a materia se tem pronunciado, o Supremo Tribunal tem optado por uma resposta negativa, fundando-se para tanto no parecer da Procuradoria- -Geral da Republica, de 20 de Junho de 1984 (Boletim do Ministerio da Justiça, n. 341, pagina 96), segundo o qual o n. 5 do artigo 115 teve por objectivo "proibir a interpretação autentica de leis atraves de actos normativos não legislativos (ex.: os regulamentos), ou de actos administrativos (ex.: despachos, directivas, etc)"
A este proposito convem reconhecer que, efectivamente, a vontade subjectiva do legislador foi a relatada na passagem acima transcrita do parecer da Procuradoria - -Geral da Republica.
So que, de ha muito, esta abandonada a doutrina de que a interpretação tem por objecto a determinação ou reconstituição da vontade ou do pensamento do legislador (voluntas ou mens legislatoris). Na verdade, o artigo 9 do Codigo Civil, combatendo os excessos a que podem conduzir as doutrinas subjectivistas e objectivistas, consagra o regime hibrido pelo qual, na interpretação da lei, se tem de atender ao pensamento legislativo e ainda a elementos de cariz objectivo (Pires de Lima e Antunes Varela, Codigo Civil Anotado, 2 edição,I, pagina 46).
Ora, sabido ate que para Alberto dos Reis (ob. cit., loc. cit.) e Manuel de Andrade (ob. cit., loc. cit.) os assentos valem como uma interpretação autentica da lei e que no ja referido parecer da Procuradoria- -Geral da Republica se declarou igualmente que no artigo 115, n. 5, se pretendeu "proibir a interpretação autentica das leis atraves de actos normativos não legislativos", parece de todo liquido que, perante a letra da lei e o seu espirito, o artigo 115, n. 5, proibe que actos de natureza não legislativa façam interpretação autentica de preceitos de lei. Logo, se para os adeptos da constitucionalidade dos assentos estes traduzem um acto não legislativo e que, sem sombra de duvida, interpreta, com eficacia externa, preceitos de lei, não se vislumbra como podem conciliar a tese que defendem com o preceituado no artigo 115, n. 5.
E se, mesmo apos uma analise atenta da letra e da ratio do artigo 115, n. 5, os corifeus da tese criticada sustentem que os assentos escapam as malhas dessa disposição, então ficarão seriamente comprometidos com as absurdas consequencias a que a sua doutrina conduz.
Na realidade, se o disposto no artigo 115, n. 5, não abarca os assentos, e uma vez que so os artigos 763 e 764 do Codigo de Processo Civil esclarecem que os assentos são decisões do Supremo Tribunal com o objectivo de resolver conflitos entre acordãos divergentes dos tribunais superiores, o artigo 115, n. 5, ja não poderia ser invocado para obstar que a lei adjectiva atribuisse a força obrigatoria dos assentos, por exemplo, a decisões judiciais do Supremo Tribunal de Justiça que, em nome da unidade do sistema juridico (artigo 9, n. 1, do Codigo Civil), alterassem ou revogassem qualquer preceito de lei (!) ou a decisão de um tribunal de comarca que, a titulo de ser injusta ou imoral, declarasse a suspensão de qualquer lei (!!!).
Em suma: mesmo que se admita que os assentos não resultam verdadeiramente do exercicio de uma função legislativa, a verdade e que a partir da entrada em vigor do artigo 115, n. 5, a Constituição passou a impedir, por forma bem expressa, que uma lei ordinaria confira a actos não legislativos (rectius, a decisões judiciais) competencia para interpretar preceitos legais, com força obrigatoria geral.
Alias, admite-se que, por terem presente o disposto no artigo 115, n. 5, os que não acreditam nos beneficios dos assentos não se pronunciaram no debate parlamentar acerca da proposta de aditamento ao artigo 206 da Constituição de um numero, onde se precisaria que "aos tribunais incumbe igualmente fixar, por meio de assentos, doutrina com força obrigatoria geral, nos casos previstos na lei de processo"
[Diario da Assembleia da Republica, 2 serie, de 5 de Maio de 1982, suplemento ao n. 87, pagina 1618 -(27)].
Com tal silencio - eficaz e inteligente metodo em reuniões de grupos de trabalho - e possivel que tenham assim querido deixar porta aberta para agora poderem triunfantemente invocar a inconstitucionalidade dos assentos...
Anote-se, ainda, que, não obstante a regra do artigo 115, n. 5, se considera perfeitamente aceitavel que o Tribunal Constitucional profira decisões com força obrigatoria geral, porque ai e a propria Constituição que o determina (artigo 281), e não simples lei ordinaria.
Como remate, cabe informar que Gomes Canotilho e Vital Moreira, no 2 volume da 2 edição da Constituição da Republica Portuguesa Anotada, que acaba de vir a lume, tambem sustentam, sem a menor sombra de hesitação,
"a inconstitucionalidade dos assentos em relação a normas legais, porque, independentemente da sua caracterização dogmatica como legislatio ou jurisdictio, eles se arrogam ao direito de interpretação (ou integração) autentica da lei".
Campos Costa.