Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
268/12.0TBMGL.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO
CONFIANÇA JUDICIAL DE MENORES
ADOPÇÃO
INTERESSE SUPERIOR DA CRIANÇA
ANULAÇÃO DA DECISÃO
AUDIÇÃO DA CRIANÇA
DIREITO DE AUDIÇÃO
Data do Acordão: 12/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: ANULADO O ACÓRDÃO E DETERMINADA A BAIXA DO PROCESSO
Área Temática:
DIREITO DA FAMÍLIA E MENORES - PROCESSO DE REGULAÇÃO DO EXERCÍCIO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS / DIREITO DA CRIANÇA A SER OUVIDA / AUDIÇÃO DA CRIANÇA.
Legislação Nacional:
LEI N.º 147/99, DE 01-09: - ARTIGOS 4.º, ALÍNEA I), 84.º.
REGIME GERAL DO PROCESSO TUTELAR CÍVEL, APROVADO PELA LEI N.º 141/2015, DE 08-09: - ARTIGOS 4.º, N.ºS 1, ALÍNEA C), E 2, 5.º.
Sumário :
I - A audição da criança num processo que lhe diz respeito – no caso, de promoção e protecção – não pode ser encarada apenas como um meio de prova, tratando-se antes de um direito da criança a que o seu ponto de vista seja considerado no processo de formação da decisão que a afecta.

II - O exercício do direito de audição, enquanto meio privilegiado de prossecução do superior interesse da criança, está, naturalmente, dependente da maturidade desta.

III - A lei portuguesa actual, seguindo os diversos instrumentos internacionais, alterou a forma de determinar a obrigatoriedade dessa audição, tendo passado a prever – onde antes se estabelecia que era obrigatória a audição de criança com mais de 12 anos “ou com idade inferior quando a sua capacidade para compreender o sentido da intervenção o aconselhe” – que a criança deve ser ouvida quando tiver ”capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em conta a sua idade e maturidade” (art. 4.º, al. c), do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08-09).

IV - A ponderação acerca da maturidade da criança terá de se revelar na decisão, só estando dispensada a justificação para a sua eventual não audição quando for notório que a sua baixa idade não a permite ou aconselha.

V - A falta de audição da criança afecta a validade das decisões finais dos correspondentes processos por corresponder a um princípio geral com relevância substantiva, não sendo adequado aplicar-lhe o regime das nulidades processuais.

Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:



1. Por acórdão de 5 de Janeiro de 2016 do Tribunal da Comarca de Viseu foi deliberado aplicar aos menores AA, BB e CC, filhos de DD e EE, a medida de confiança a instituição com vista a futura adopção, “prevista nos artigos 35º, nº 1, alínea g), 38º-A e 62º-A, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo”.

Para assim decidir, o tribunal teve como preenchidos os requisitos previstos no artigo 1978º, nº 1, als. d) e e) do Código Civil.

Foi ainda designado para o efeito o Centro de Acolhimento “Projecto FF, da Fundação …, em … e designado o curador provisório; e determinou-se que os três irmãos mantivessem contactos entre si.

Este acórdão foi confirmado pelo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de fls. 119, cuja síntese conclusiva foi a seguinte:

«a) A medida de promoção e protecção de confiança a pessoa seleccionada para adopção, prevista no art.35 alínea g) da LPJCP ( Lei nº147/99 de 1/9 ), foi introduzida pela Lei nº31/2003 de 22/8, e pressupõe que se demonstre não existir ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afectivos próprios da filiação (requisito autónomo), através da verificação objectiva (independente de culpa da actuação dos pais) de qualquer das situações descritas no nº1 do art.1978 do CC.

b) Apesar de na alínea d) do nº1 do art.1978 (na redacção da Lei nº31/2003) estar previsto apenas a incapacidade dos pais por doença mental, o espectro normativo, numa interpretação teleológica, abrange outras situações similares.

c) O perigo exigido na alínea d) do nº1 do art.1978 do CC é aquele que se apresenta descrito no art.3º da LPCJP, conforme expressamente se remete no nº3 do art.1978 do CC, sem que pressuponha a efectiva lesão, bastando, assim, um perigo eminente ou provável.

d) A medida de promoção e protecção de confiança a pessoa seleccionada para a adopção ou a instituição com vista a futura adopção (arts.38-A e 62-A da LPCJP), para além de afastar o perigo do menor, visa simultaneamente a “ confiança pré-adoptiva “, dispensando a acção prévia de confiança judicial destinada à adopção, significando que o instituto da adopção é agora cada vez mais orientado para protecção das crianças e dos jovens.

e) Toda a intervenção deve ter em conta o “interesse superior da criança”, princípio consagrado no art.3º nº1 da Convenção Sobre os Direitos da Criança, que a Lei de Protecção das Crianças e Jovens em Perigo coloca à cabeça dos princípios orientadores (alínea a) do art.4º), e enquanto conceito jurídico indeterminado carece de preenchimento valorativo, cuja concretização deve ter por referência os direitos fundamentais, como o direito da criança ao desenvolvimento integral da sua personalidade, e a situação casuística».

No caso, o Tribunal da Relação de Coimbra considerou que os factos provados demonstravam cabalmente que os menores se encontravam em “situação de perigo (cf. pontos 1) a 32) dos factos provados) dada a falta grave e reiterada de cuidados elementares aos menores, nomeadamente em relação à saúde, alimentação e educação (…)”. Recordou que tinha sido esta situação que levou à aplicação judicial de “medida de apoio junto dos pais pelo período máximo de 6 meses (…), que se revelou insuficiente, mantendo-se a situação de perigo; e ainda a “inexistência ou sério comprometimento dos vínculos afectivos” (cf. pontos de factos provados 38) a 71), 98) a 106))”.

Considerou ainda que não deveria ser determinada a entrega das crianças aos cuidados do pai e dos avós paternos, por não ser adequada ao “integral desenvolvimento das crianças”.

2. DD e EE interpuseram recurso de revista excepcional, não admitido pelo acórdão da formação prevista no nº 3 do artigo 672º do Código Civil, que determinou que o processo fosse à distribuição.

Verifica-se, todavia, que, de entre as várias questões colocadas na revista, os recorrentes suscitam a questão de os menores não terem sido ouvidos no processo, nestes termos (transcrevem-se as correspondentes conclusões das alegações):

(…) 2. A questão sub judice prende-se, por um lado, com o "interesse superior da criança" e o preenchimento deste conceito jurídico indeterminado, e, por outro lado, com o facto de os menores terem sempre o direito de serem ouvidos – quanto mais não seja de forma oficiosa pelo Tribunal – devendo as suas declarações serem tidas em conta na medida da sua capacidade cognitiva, quando em causa está a tomada da medida de confiança a instituição com vista a futura adopção, prevista nos artigos 35°, n.° 1, alínea g), 38°A e 62°A, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo.

(…)

44. Os menores nunca foram ouvidos ao longo do processo.

45. O certo que, tendo em conta a natureza da decisão, tendo esta efeitos irreversíveis, os menores têm não só o direito de ser ouvidos, de acordo com o disposto nos art.s 4o e 84°, ambos da Lei n.° 147/99, como a este direito encontra correspectividade no dever do tribunal ouvi-los.

46. Realça-se ainda que segundo Ana Teresa Leal, Procuradora República in http://www.cej.mi.pt/cej/recursos/ebooks/familia/Tutela­ Cível_Superior Interesse Criança_Tomo I.pdf"O direito da criança a ser ouvida e a exprimir a sua opinião encontra-se consagrado nos arts. 12° e 13° da Convenção Sobre os Direitos da Criança. Portugal, como país subscritor, está obrigado ao cumprimento das directrizes ali estabelecidas. A criança tem direito a ser ouvida e a sua opinião deve ser tida em consideração nos processos que lhe digam respeito e a afectem. Este é um direito que não pode ser visto só por si mas que deve ser tido em conta na interpretação de todos os outros direitos."

49.      A audição dos menores é tanto mais fundamental quando se tem em
conta que essa audição ajudará a concretizar o interesse superior dos mesmos.”


3. A falta de audição, quando a audição é devida, ou a falta de justificação para a não audição das crianças afectam a subsistência do acórdão recorrido, constituindo uma questão prévia a saber, por um lado, se ocorre ou não dupla conformidade de decisões das instâncias 2, por outro, em que medida o Supremo Tribunal de Justiça o poderá apreciar.

Não houve audição em 1ª Instância; foi no recurso de apelação que a falta de audição foi suscitada, a título subsidiário “ao abrigo dos arrt. 662 nº 2 b) CPC “. O acórdão recorrido entendeu então que:

«Os Apelantes, nas alegações de recurso, requererem, subsidiariamente, a audição dos menores, ao abrigo do disposto no art.662 nº2 b) CPC.

Está hoje estatuído positivamente, em diversos instrumentos jurídicos, o princípio da audição da criança.

A Convenção Sobre os Direitos da Criança, estabelece no seu art.12º o direito de audição da “criança com capacidade de discernimento”.

A Convenção Europeia Sobre o Exercício dos Direitos da Criança (25/1/1996) (Resolução da Assembleia da República nº7/2004 de 13/12) (arts.3º e 6º).

O art. 23 do Regulamento (CE) nº 2201/2003 de 27/11/2003

A Lei nº 147/99 de 1/9 consagra expressamente o direito de audição (art.4 i)) e no art.84 -“As crianças e os jovens com mais de 12 anos, ou com idade inferior quando a sua capacidade para compreender o sentido da intervenção o aconselhe, são ouvidos pela comissão de protecção ou pelo juiz sobre as situações que deram origem à intervenção e relativamente à aplicação, revisão ou cessação de medidas de promoção e protecção. A criança ou o jovem tem direito a ser ouvido individualmente ou acompanhado pelos pais, pelo representante legal, por advogado da sua escolha ou oficioso ou por pessoa da sua confiança”.

Da conjugação destas normas resulta que, neste tipo de processos de protecção, os tribunais devem ouvir obrigatoriamente as crianças maiores de doze anos, bem como as de idade inferior desde que revelem capacidade de discernimento.

Nenhum dos menores tem mais de doze anos de idade, e durante o debate não foi ouvido qualquer deles, nem oficiosamente, nem a requerimento, sendo que estavam representados por patronos (fls. 598 e segs.).

Os Apelantes, perante o depoimento das testemunhas (técnicos) em audiência, as quais elaboraram os relatórios sociais de acompanhamento juntos ao processo, onde, além do mais fazem referência a verbalização do AA e BB sobre as agressões físicas cometidas pelo pai, não tomaram aí qualquer posição, nomeadamente requerendo a audição dos menores, para o efeito.

Também nem sequer equacionam a falta de audição (no pressuposto da capacidade de discernimento, mas não alegado) no âmbito das nulidades processuais, que mesmo que se verificasse, não arguiram em tempo oportuno.

Pretendem agora a audição a coberto do art.662 nº2 b) CPC, ou seja como novos meios de prova, nomeadamente quanto ao facto das agressões físicas. Acontece que a realização, mesmo oficiosa, pela Relação de novos meios de prova só pode efectivar-se em “caso de dúvida fundada sobre a prova realizada”.

Ora, com o devido respeito, a análise crítica da prova efectuada (documental, pericial e testemunhal) não suscita “dúvida fundada” sobre esses elementos de prova, máxime quanto à prova testemunhal, relativamente ao facto da agressão».


Todavia, a audição da criança num processo que lhe diz respeito não pode ser encarada apenas como um meio de prova, com o qual se pretende fazer prova de um facto relevante no processo. É muito mais vasta a finalidade da audição. Trata-se antes de mais de um direito da criança a que o seu ponto de vista seja considerado no processo de formação da decisão que a afecta.

O exercício do direito de audição, enquanto meio privilegiado de prossecução do superior interesse da criança, que consabidamente norteia processos como o presente, está naturalmente dependente e relacionado com a maturidade da criança em causa. A lei portuguesa actual – cfr. artigos 4º, i) e 84º da Lei nº 147/99 de 1 de Setembro, na anterior e na actual redacção, que lhes foi dada pela Lei nº 142/2015, de 8 de Setembro de 2015, e artigos 4º e 5º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei nº 141/2015, de 8 de Setembro, e que se aplica aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor (artigo 5º da Lei nº 141/2015) –, seguindo os diversos instrumentos internacionais vinculativos (ou não) do Estado Português, alterou a forma de determinar a obrigatoriedade de audição da criança. Onde dantes se estabelecia como obrigatória a audição da criança com mais de 12 anos “ou com idade inferior quando a sua capacidade para compreender o sentido da intervenção o aconselhe” (nº 1 do artigo 84º da Lei nº 147/99), diz-se agora que a criança deve ser ouvida quando tiver “capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em conta a sua idade e maturidade” art.4º, c), do Regime Geral do Processo Tutelar Cível).

Se antes da entrada em vigor da Lei nº 141/2015 se exigia que o tribunal ouvisse as crianças com mais de 12 anos e, quanto àquelas que tivessem idade inferior, ponderasse a sua maturidade e justificasse a decisão de não as ouvir – salvo se a criança tivesse uma idade em que é notória essa falta de maturidade, naturalmente –, após a sua entrada em vigor essa ponderação não pode deixar de se revelar na decisão – continuando a ser dispensada quando for notório que a baixa idade da criança não a permite ou aconselha.


4. Não é adequado aplicar o regime das nulidades processuais à falta de audição. Entende-se antes que essa falta afecta a validade das decisões finais dos correspondentes processos, por corresponder a um princípio geral com relevância substantiva e, por isso mesmo, processual.


Assim sendo, anula-se o acórdão recorrido e determina-se que o processo baixe a fim de, ou serem ouvidos os menores, se a sua capacidade de compreensão assim o determinar, ou ser justificada a sua não audição.


Sem custas.


Lisboa, 14 de dezembro de 2016


Maria dos Prazeres Beleza (Relatora)

Salazar Casanova

Lopes do Rego