Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
18/13.3TBVLP-E.G1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: JOÃO TRINDADE
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
AÇÃO EXECUTIVA
PAGAMENTO
FIADOR
SUB-ROGAÇÃO
DIREITO DE REGRESSO
HABILITAÇÃO DE ADQUIRENTE
INCIDENTES DA INSTÂNCIA
EXTINÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/22/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE EXECUÇÃO.
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÕES SOLIDÁRIAS - TRANSMISSÃO DE CRÉDITOS E DE DÍVIDAS / SUB-ROGAÇÃO LEGAL
Doutrina:
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª edição, Almedina, 346/347.
- Pires de Lima e Antunes Varela , “Código Civil” Anotado, vol. I, 4.ª edição, Coimbra Editora, 608.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 405.º, 523.º, 524.º, 534.º, 589.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 608.º, N.º 2, 615.º, N.º 1, AL. D).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

- DE 10/12/2013, PROCESSO N.º 1987/07.8TBAGD.C1.

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

-DE 7/10/2013, PROCESSO N.º 1403/12.3TJPRT.P1.
Sumário :
I - Numa acção executiva intentada contra a devedora principal e contra os fiadores desta, o co-fiador que satisfez integralmente o crédito à exequente, não sendo um terceiro, não pode ser sub-rogado por aquela nos seus direitos contra os demais fiadores, de molde a poder exigir de cada um deles a totalidade da dívida como se de o primitivo credor se tratasse (art. 589.º do CC).

II - O pagamento da quantia exequenda por parte do co-executado extinguiu o crédito da exequente, determinando, consequentemente, o fim da execução (art. 534.º do CC).

III - Estando finda a execução, surge tão só um direito de regresso do executado contra os demais fiadores que, não se confundindo com a sub-rogação, não pode ser objecto da primitiva execução através do incidente de habilitação do adquirente (arts. 523.º e 524.º do CC).

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça :



1 - Caixa AA, CRL instaurou, contra

Sociedade Agrícola BB. Lda, CC, DD, EE, FF e GG,

execução, pelo valor de € 391.371,77.

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2 - Serviram de títulos executivos dois documentos particulares, titulando dois empréstimos efectuados à Sociedade Executada, sendo os Executados pessoas singulares accionados na qualidade de fiadores.


Em 04 de Setembro de 2014, e por apenso ao processo de execução, o Executado EE deduziu incidente de habilitação de adquirente contra, os também Executados Sociedade Agrícola BB, CC, GG, FF e DD.

Invocou que entrou num entendimento com a Exequente mediante o qual:

•  fixaram em € 88.500,00 o valor global da dívida do Executado EE,

•  o Executado pagou esse valor mediante transferência de saldos bancários,

•  a Exequente declarou-se integralmente ressarcida relativamente ao Executado,

•  acordaram ficar o Executado sub-rogado no crédito da Exequente, e respectivas garantias.


Pediu que seja julgado habilitado nos autos na qualidade de Exequente.

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3 - Os Requeridos DD e CC contestaram:

aquele, invocou que a Exequente já não tinha qualquer crédito sobre si, mostrando-se também extinta a fiança que havia prestado;

este, invocou a impropriedade do meio usado e a impossibilidade de incidente de habilitação de adquirente em acção executiva.

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4 - O Requerente EE veio a desistir do pedido formulado relativamente ao DD, desistência que veio a ser homologada por decisão de 06 de Janeiro de 2015.

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5 - Foi proferida sentença que julgando procedente o pedido habilitou o Requerente EE a prosseguir a execução em substituição da Exequente Caixa AA.


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6 - Inconformados, recorreram desta decisão os Requeridos GG e FF.

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7 - A Relação julgando procedente a apelação revogou a decisão recorrida.

Em sua substituição, julgou:

procedente o incidente de habilitação de adquirente, considerando-se o Requerente EE habilitado para prosseguir na execução como Exequente, em substituição da Caixa AA.

improcedente o incidente de habilitação de adquirente, no que respeita aos co-Executados CC, FF e GG.

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8 - É desta decisão que foi interposta revista pelo executado/habilitado EE, que encerra as respectivas alegações com as seguintes conclusões:

I. O Recorrente EE vem interpor recurso do douto Acórdão prolatado pelo Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 2 de Junho de 2016, o qual considerou a apelação procedente, revogou a decisão recorrida e, em sua substituição, decidiu "julgar procedente o incidente de habilitação do adquirente, considerando-se o Requerente EE habilitado para prosseguir na execução como Exequente, em substituição da Caixa AA." e, simultaneamente, julgar "improcedente o incidente de habilitação de adquirente, no que respeita aos co-Executados CC, FF e GG."

II.   O Recorrente considera, com todo o respeito, que a decisão fez uma incorrecta interpretação das normas jurídicas aplicáveis in casu, concretamente dos arts. 592° e 650° do Código Civil e o 356° do Código de Processo Civil. A única decisão consentânea com o Direito subsumível aos factos assentes seria a da improcedência do recurso, mantendo-se na íntegra a decisão proferida na 1ª Instância.

III. O thema decidendum circunscreve-se ao regime jurídico da sub-rogação contratual, competindo determinar-se quais os efeitos materiais e processuais da sub-rogação operada entre o ora Recorrente e a anterior Exequente Caixa AA (CCAM), por via de um contrato de sub-rogação. Em concreto, a transmissão para o primeiro, por sub-rogação, do crédito que a CCAM executava nos autos principais e que lhe foi pago na íntegra pelo Recorrente.

IV. Feita a análise e exegese do Acórdão recorrido, dir-se-á, com todo o respeito, que o mesmo não procedeu à apreciação de única questão que importava dirimir, antes versando sobre matéria que não só não estava em crise no recurso. Face a tal circunstância, a decisão ora recorrida, além da já apontada inexacta aplicação do direito aos factos, acaba por exceder o âmbito do pedido do Apelante, o que a vicia de nulidade por excesso de pronúncia, a qual se arguirá a final.

V.    O ora Recorrente figurava como Executado no processo matriz, no qual era Exequente a CCAM. Ao lado do Recorrente, eram ainda executados a Sociedade Agrícola BB, Lda., CC, FF, GG e DD. Todos os Executados pessoas singulares haviam sido demandados na qualidade de fiadores da devedora principal Sociedade Agrícola BB, S.A. (SART).

VI. Após negociações com a Exequente foi alcançado um entendimento entre esta e o aqui Recorrente com vista ao pagamento da quantia exequenda, que fixaram o valor global em dívida em €88.500,00 (oitenta e oito mil e quinhentos euros), montante esse que foi integralmente pago à Exequente pelo Recorrente.

VII. Uma das condições impostas pelo Recorrente à Exequente era a de que pudesse assumir a sua posição processual nos autos em crise (18/13.3TBVLP), bem como em todos os processos nos quais estivesse em causa o crédito a cujo pagamento iria proceder. Para tanto, aquando da conclusão do negócio, foi expressamente estipulado que a Exequente sub-rogaria o Requerente na sua posição creditícia e, bem assim, na sua veste processual de Exequente nos autos principais e de Reclamante nos autos n.° 209/12.4TBVLP, a correr termos, então, no Tribunal Judicial de Valpaços.

VIII. O acordo em apreço foi subscrito e junto aos autos de execução no dia 1/8/2014, tendo sido junto com o Requerimento Inicial do incidente de habilitação sob doc. n.º 1, incidente que veio a ser considerado procedente, declarando o aqui Recorrente EE habilitado na posição processual da CCAM.

IX. Os Requeridos GG e FF, inconformados com a decisão, apelaram da mesma, peticionando que o co-fiador e aqui Recorrente EE fosse julgado "habilitado para prosseguir na execução principal como Exequente, em substituição da Caixa AA, com a especificação de que o seu direito de regresso contra os co-Executados e também fiadores solidários, GG, FF e CC está limitado à parte que a cada um deles compete".

X.   O Apelante não se insurge contra a habilitação do aqui Recorrente na posição de Exequente, mas tão-somente se irresigna quanto ao valor pelo qual a execução pode prosseguir quanto aos co-fiadores e à exigibilidade da obrigação.

XI. Como é sabido, o objecto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes. Contudo, em nosso entender erroneamente, decidiu-se no Acórdão agora em crise que a questão a decidir era a de "saber se estão verificados os pressupostos para a procedência da habilitação de adquirente". Esta circunstância eiva de nulidade a decisão, conforme melhor se aludirá a final

XII. Numa primeira parte, o Douto Acórdão recorrido conclui - e bem - que razão alguma se levanta contra a admissibilidade do incidente de habilitação no contexto de uma acção executiva. Portanto, temos que é dado assente no percurso lógico-dedutivo do aresto em sindicância que, numa primeira análise, não estaria vedado o recurso ao incidente de habilitação por parte do Recorrente.

XIII. Prossegue a decisão recorrida para um segundo ponto, no qual faz um correcto e inatacável enquadramento do regime da sub-rogação, nas modalidades voluntária e legal, para logo concluir que o legislador previu a transmissão sub-rogatória dos direitos do credor contra o devedor principal, a favor do solvem fiador e independentemente da vontade do credor (art. 644° C.C.).

XIV. Revertendo ao caso concreto, conclui-se que o Recorrente, ao menos quanto ao devedor principal - no caso a SART, LDA. - achou-se titular dos direitos da primitiva credora e Exequente CCAM por via da transmissão por sub-rogação dos direitos creditícios desta, acompanhado das respectivas garantias.

XV. Uma última constatação que se faz no Acórdão recorrido, é a de que, quando se verifique uma pluralidade de fiadores, são distintas as consequências jurídicas do pagamento por um dos fiadores, consoante se trate das relações entre fiadores ou entre o fiador solvem e o devedor principal. Enquanto, face ao devedor principal, opera a sub-rogação ope legis constante do art. 644°, perante os co-fiadores não há uma transmissão de créditos mas sim um direito de regresso, que se gera ex novo na esfera jurídica do solvem (arts. 650° n.° 1 e 524° C.C.).

XVI. Segundo o aresto em crise, o Recorrente, enquanto co-fiador, ao solver a dívida da Executada e mutuária SART, Lda., viu serem-lhe transmitidos os direitos do accipiens contra o devedor principal, acompanhados das garantias de que beneficiava, entre as quais as fianças. Já quanto aos demais fiadores, o acto de pagamento praticado pelo Recorrente desencadeou a extinção do crédito quanto àqueles, que passaram a ser seus devedores pelas quotas-partes que respectivamente lhes coubessem na dívida.

XVII. Com o devido respeito, o Recorrente considera que o regime legal das relações entre co-fiadores previsto no n.° 1 art 650°, não foi correctamente interpretado.

XVIII. Não ignorando que a redacção legal é equívoca - o que, de resto, é reconhecido doutrinalmente - o sentido que poderá ser atribuído ao citado preceito não poderá ser outro que não o de que, quando o co-fiador responda pela totalidade da dívida, o mesmo crédito transmite-se para a sua esfera jurídica por via da sub-rogação (legal); quanto ao devedor principal, o credor sub-rogado poderá exigi-lo na sua totalidade; quanto aos demais fiadores, o credor sub-rogado só poderá exigir de cada um a quota-parte que lhe couber na dívida, tal como prevêem as regras estabelecidas no regime das obrigações solidárias quanto ao direito de regresso (524° C.Civil).

XIX. O legislador estabeleceu, nestes termos, que o fiador que cumpra a obrigação garantida fica investido na mesma posição creditícia, e, na medida do seu cumprimento, contra o devedor - art. 644° e 650° n.° 1 primeira parte. Admitir que o mesmo facto jurídico — pagamento — é simultaneamente causa de transmissão de um direito via sub-rogação e de extinção por via do cumprimento — ainda que constitutivo de um direito que surge ex novo, de regresso - seria introduzir uma incongruência inultrapassável no sistema jurídico. Ademais, o intérprete há-de sempre estear-se no elemento literal, muito embora seja um simples ponto de partida hermenêutico, presumindo que o legislador "soube exprimir o seu pensamento em termos adequados." (art. 9º n.° 3 C. Civil).

XX. Além da errada interpretação do art. 650° n.° 1, a Veneranda Relação de Guimarães, ainda que proceda a uma descrição impoluta dos distintos regimes das figuras da sub-rogação e do direito de regresso, não alcançou o verdadeiro punctum dolens do caso vertente. E não o faz, aparentemente, por força de uma errada interpretação do negócio jurídico que titula o requerimento de habilitação de adquirente, junto ao requerimento inicial com o n.° 1.

XXI. O que efectivamente relevava apreciar iti casu, mais do que os efeitos entre co-fiadores da satisfação do crédito por um deles, era se a sub-rogação voluntária pelo- credor, pode afastar o regime da solidariedade entre fiadores constante do art. 650° n.° 1. Por outras palavras, aquilo que verdadeiramente importava analisar, porque é o distinguo destes autos de habilitação, era saber-se se, nos casos em que o legislador previu a sub-rogação (naturalmente que a legal), está vedada a possibilidade de operar a sub-rogação voluntária. Dito de forma mais directa: poderá o co-fiador, que satisfez integralmente o crédito, ser sub-rogado pelo credor nos seus direitos contra o devedor principal e, bem assim, nos mesmos direitos contra os demais fiadores, de molde a poder exigir de cada um deles a totalidade da dívida como se de o primitivo credor se tratasse? É esta, não outra, a questão fundamental que inere ao presente incidente de habilitação. E a resposta, quanto a nós, não poderá deixar de ser afirmativa.

XXII. Conforme decorre de todo o processado, com destaque para o aludido título junto sob doc. n.° 1, o ora Recorrente e a CCAM celebraram um acordo em fase anterior ao pagamento do crédito exequendo, no qual expressamente se previu que aquele ficaria sub-rogado nos direitos da credora, podendo prosseguir com o processo executivo na veste de exequente, com todas as garantias e acessórios.

XXIII. Este acordo, ao contrário do que erradamente se refere no aresto recorrido, não visou reafirmar o regime legal supletivo do art. 644°, pois nesse caso seria supérfluo e redundante; visava, antes pelo contrário, sub-rogar o solvens nos direitos da CCAM contra todos os executados.

XXIV. Em Julho de 2014, o Recorrente e a CCAM acordaram em fixar o valor global em dívida em €88.500,00 (oitenta e oito mil e quinhentos euros), montante esse pago à ali Exequente pelo primeiro, mais se estipulando que, com o pagamento, a ali Exequente sub-rogaria o Recorrente na sua posição creditícia.

XXV. O acordo em apreço foi subscrito e junto aos autos de execução no dia 1/8/2014 e o Recorrente EE veio aos autos requerer a sua habilitação na posição processual da Exequente, com vista a executar a devedora e os co-fiadores pela totalidade do valor que pagou à anterior credora. A qualidade de credor dos executados adveio ao Recorrente por via sub-rogatória legal (art. 650° n.° 1 C.Civil) e voluntária (art. 589° C. Civil).

XXVI. O aresto recorrido considerou que apenas se verificou uma sub-rogação legal, ao abrigo do art. 650° C.C., interpretando tal preceito no sentido já referido.

XXVII. Como se viu, ao pagar a dívida da afiançada executada no processo 18/13.3TBVLP, o Recorrente sempre teria adquirido o crédito da CCAM contra os co-fiadores por sub-rogação legal, e não por via do direito de regresso, nos precisos termos dos arts. 644° e 650° C. Civil, o que o investiria na qualidade de credor dos demais devedores solidários por via da transmissão do crédito a seu favor, mas apenas até ao limite da responsabilidade de cada um.

XXVIII. Mas, adicionalmente, a credora CCAM manifestou a vontade expressa de transmitir o seu crédito, com todas as garantias de que beneficiava, a favor do ora Recorrente, de molde a permitir-lhe prosseguir a presente acção executiva na qualidade de Exequente (doc. n.° 1 junto com o Requerimento Inicial).Este acordo expresso corresponde ao segundo tipo de sub-rogação, a voluntária, prevista no citado art. 589° C. Civil.

XXIX. O Douto Tribunal recorrido assim não interpretou o acordo, não obstante, feito o cotejo do título de habilitação junto com o R.I. sob doe. n.° 1, se constatar que foi claríssima a vontade do credor de sub-rogar o fiador que lhe pagou, permitindo-lhe prosseguir os autos na veste de exequente.

XXX. Nem se diga, como faz a Relação de Guimarães no Aresto recorrido, que o documento é "desnecessário", pois o resultado pretendido "sempre operaria independentemente da vontade das partes". Seria desnecessário, efectivamente, se tivesse sido vontade das partes a produção dos efeitos supletivamente previstos no art. 644° e 650° C.C. Mas assim não foi. O que as partes fizeram foi bem diferente: previram que o crédito se transmitiria para o ora Recorrente por sub-rogação, transmitindo-se a totalidade dos direitos do credor na medida em que foram satisfeitos pelo solvem. Tudo de molde a que o Recorrente pudesse prosseguir nos autos como Exequente, tal como expressamente se consignou.

XXXI. Ora, se a primitiva credora não pretendesse sub-rogar o Recorrente voluntariamente, para que este passasse a ser titular do crédito sobre a devedora e também, pelo mesmo montante, sobre os co-fiadores, tal como vinha a ser executado nos autos, não seria necessário qualquer acordo.

XXXII. O aresto em sindicância, além de não se debruçar verdadeiramente sobre o documento, procede a uma interpretação do negócio jurídico que não tem o mínimo de correspondência com a real vontade dos declarantes, que são só dois: o Recorrente e a CCAM. Não há, por isso, sequer que apelar às regras de interpretação e integração dos contratos constantes dos arts. 235° a 239° C.C.

XXXIII. Toda a actuação da credora e do ora Recorrente foi apenas num sentido: o de que os autos prosseguissem contra os demais executados, fossem ou não co-fiadores, por via da transmissão de créditos operada. Se dúvidas subsistissem a esse respeito, bastaria compulsar os autos e verificar o requerimento apresentado pela CCAM no dia 24/11/2014, muito após a transmissão do crédito, onde se lê: "Caixa AA, com sede em …, notificada do requerimento apresentado pelo executado CC, vem expor e requerer a V. Ex.a o seguinte:

A requerente cedeu o seu crédito a EE, que, por tal efeito, deduziu habilitação de cessionário no apenso "E". Não tem, pois, justificação a extinção da instância.".

XXXIV. O teor do requerimento em apreço é apodíctico, não permitindo a interpretação que o Acórdão recorrido faz da vontade dos declarantes. Esta errada interpretação do sentido do negócio jurídico operado entre a Exequente e o Habilitante ora Recorrente — que nem em crise estava na Apelação, que se ancora integralmente na pretensa inadmissibilidade do mesmo à luz do art. 650° n.° 1 — conduziu a Veneranda Relação ao erro de não abordar o verdadeiro cerne do vertente caso, precisamente o carácter supletivo do regime do art. 650° n.° 1 C.C..

XXXV. Em último caso, porque o nomen iuris não é vinculativo, sempre se poderia configurar o acordo entre a CCAM e o Recorrente como uma cessão de créditos, com precisamente o mesmo efeito que este aqui defende: o direito de demandar os co-fiadores pela totalidade do pagamento que procedeu e de que todos beneficiaram.

XXXVI.    Com efeito, o Acórdão recorrido não dedica uma linha à apreciação da viabilidade do negócio jurídico colocado em crise pelo Apelante, precisamente por errada interpretação do seu teor. Se o fizesse, com o devido respeito, não poderia senão concluir pela sua viabilidade e, nessa medida, pela improcedência da apelação.

XXXVII. O art. 589° é cristalino quanto à possibilidade de, no lídimo exercício do princípio da liberdade contratual, o credor sub-rogar nos seus direitos o terceiro de quem recebeu a prestação, sem necessidade de consentimento do devedor. Nenhum obstáculo legal existe que impeça a aplicação desta norma quando o terceiro é, ademais, fiador.

XXXVIII. Antes pelo contrário, seria paradoxal esse impedimento, já que é indubitável que a sub-rogação legal está prevista precisamente para conferir uma protecção adicional a terceiros que, de outro modo, teriam de provar a sua qualidade de garante ou o seu interesse directo na satisfação do crédito. Se o legislador admite que todo e qualquer sujeito possa ser sub-rogado pelo credor, destarte recebendo na sua esfera jurídica todos os seus direitos sobre todos os devedores, sentido algum faria que coarctasse tal prerrogativa àqueles que maior interesse têm na satisfação do crédito, que são precisamente os seus garantes.

XXXIX.    Além de introduzir uma incongruência inaceitável no sistema, tal solução seria incompreensível à luz do princípio constitucionalmente consagrado da autonomia privada.

XL. Haverá de concluir-se que o regime legal das relações entre fiadores, plasmado no art. 650° C.C., tem carácter supletivo, podendo ser afastado se o acapiens sub-rogar o co-fiador solvem ao abrigo do art. 589°. Por conseguinte, a sub-rogação pelo credor pode incidir sobre os direitos de que é titular contra todos os fiadores, permitindo que o fiador que proceda ao pagamento da dívida venha a demandar, pela sua totalidade, os co-fiadores, como se do primitivo credor se tratasse.

XLI. Inexistem óbices legais à admissibilidade do incidente de habilitação no contexto da acção executiva, tal como o próprio Tribunal a quo doutamente afirma na al. a) do sumário elaborado ao abrigo do art. 663° n.° 7 CPC e, de forma preclara, decide no ponto 7.1 da decisão.

XLII. Mas, a verdade é que, nem se compreenderia de outra forma, face à circunstância de, com a sub-rogação, o crédito transmitido ser acompanhado de todas as suas garantias, à semelhança do que ocorre com a cessão de créditos (584° e 582° CC). No vertente caso, uma das garantias do crédito da CCAM eram precisamente as penhoras realizadas nos autos.

XLIII. Não admitir a procedência do incidente de habilitação de cessionário, seria obstar à transmissão das garantias, já que a consequência seria a extinção do processo e, subsequentemente, dessas mesmas penhoras. Por conseguinte, não logra compreender a conclusão da al. d) do sumário do Acórdão recorrido, a qual é até contraditória com a decisão que acaba por proferir.

XLIV. Nem tão-pouco se poderá aceitar, como argumento para declinar a possibilidade do incidente de habilitação, o facto de o adquirente do crédito ser, simultaneamente executado, o que, para o Douto Tribunal a quo, seria uma situação "absurda". Tal assim não é, na medida em que, reunindo-se na mesma pessoa a qualidade de exequente e executado, naturalmente que se extinguiria a instância, do lado passivo, quanto a esse interveniente por impossibilidade superveniente da lide, tal como se extingue o direito material por confusão.

Da nulidade do Acórdão por excesso de pronúncia:

XLV. Conforme se havia aludido supra, considera o Recorrente, com o devido respeito, que o Acórdão recorrido se pronuncia acerca de questões que não estavam em sindicância, o que se reflecte numa decisão que vai para além do que o Apelante havia peticionado.

XLVI. O Apelante não se insurge contra a habilitação do aqui Recorrente na posição de Exequente, mas tão-somente se irresigna quanto ao valor pelo qual a execução pode prosseguir quanto aos co-fiadores e à exigibilidade da obrigação. Contudo, a Veneranda Relação decide pela improcedência da habilitação, o que não havia sido peticionado nem é, salvo melhor opinião, matéria de conhecimento oficioso.

XLVII. A nulidade da sentença por omissão ou por excesso de pronúncia, resulta da violação do disposto no n.° 2 do art. 608.° do CPC, nos termos do qual "[o] juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras" e "[n]ão pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras".

XLVIII. Determina a al. e) do n.° 1 do art. 615° CPC que é nula a sentença quando o juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, prevendo-se no art. 666° n.° 1 do mesmo diploma a aplicação à 2a instância do enunciado preceito.

XLIX. Nulidade essa que expressamente se argui, para os devidos efeitos.

Nestes termos, deverá o Douto Acórdão recorrido ser revogado, por violador dos artigos 589° e 650° n.° 1 do Código Civil e do art. 356° do Código de Processo Civil e substituído por decisão que defira o pedido de habilitação do Recorrente nos presentes autos, prosseguindo como Exequente quanto a todos os Executados, designadamente SART, S.A., CC, FF e GG.

Não foram apresentadas contra-alegações.

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9 - O mérito da causa:

O objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertos, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil.


As questões a resolver são as seguintes:

A. Nulidade- Excesso pronúncia

B. Execução-Pagamento-Extinção -Sub-rogação - Direito de regresso


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A - Nulidade excesso de pronúncia

Para que se verifique a nulidade de sentença/acórdão por excesso de pronúncia ( artº 615º,nº 1, al. d) do CPC) é necessário que o Tribunal conheça de questões de que não podia conhecer.

Diz o recorrente que o apelante não se insurgiu contra a habilitação na posição de exequente, mas tão-somente se irresigna quanto ao valor pelo qual a execução pode prosseguir quanto aos co-fiadores e à exigibilidade da obrigação. Ao julgar improcedente a habilitação exorbitou o objecto do recurso.

Vejamos:

Perante a questão levantada pelo apelante, é óbvio que cumpria ao Tribunal da Relação apreciar e decidir como o fez, independentemente do sentido da decisão, sem que tal constituísse qualquer excesso de pronúncia.

É que, com vista à melhor decisão da causa, tem o dever de conhecer, tem de percorrer um caminho, tem conhecer de questões mais abrangentes, para chegar às que em concreto lhe são postas à consideração, aliás em obediência ao disposto no art. 608.º, n.º 2, do CPC.

Assim sendo, não se verifica nulidade do acórdão por excesso de pronúncia, já que tal nulidade só se verifica quando o tribunal conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, o que não é o caso, já que o tribunal tinha de conhecer primeiro da legalidade da habilitação para depois, se fosse, caso disso, se debruçar sobre o valor da execução.


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B - Execução-Pagamento-Extinção - Sub-rogação – Direito de regresso

O recorrente sintetiza e bem o que está em causa:

Poderá o co-fiador, que satisfez integralmente o crédito, ser sub-rogado pelo credor nos seus direitos contra o devedor principal e, bem assim, nos mesmos direitos contra os demais fiadores, de molde a poder exigir de cada um deles a totalidade da dívida como se de o primitivo credor se tratasse?

Respondendo parece-nos que não.

Vejamos:

O recorrente/executado/fiador/habilitado veio aos autos requerer a sua habilitação na posição processual da exequente, com vista a executar a devedora e os co-fiadores pela totalidade do valor que pagou à anterior credora.

Só em relação a estes, os co-fiadores, teremos que nos debruçar.

Estamos em sintonia com o recorrente quando defende que art. 589° é cristalino quanto à possibilidade de, no lídimo exercício do princípio da liberdade contratual, o credor sub-rogar nos seus direitos o terceiro de quem recebeu a prestação, sem necessidade de consentimento do devedor. Nenhum obstáculo legal existe que impeça a aplicação desta norma a terceiro.

A terceiro diz, e bem, o recorrente. Só que ele não pode ser considerado terceiro.

Como é salientado no acórdão recorrido estamos perante uma acção executiva, sendo que o recorrente é executado/fiador/habilitado.

Portanto não é terceiro.

Por sua vez o título da exequente é a fiança prestada em regime de solidariedade, sendo que os Executados pessoas singulares outorgaram nos contratos de mútuo dados à execução na qualidade de fiadores da Sociedade Agrícola BB (SART).Todos se constituíram fiadores no mesmo título, pelo cumprimento integral e declararam renunciar ao benefício da excussão. Para além disso, não se convencionou o benefício da divisão, pelo que o credor podia demandar o conjunto de todos os fiadores, ou apenas exigir a um deles o pagamento integral da dívida.

A Relação julgou improcedente o incidente de habilitação de adquirente, no que respeita aos co-Executados CC, FF e GG.

Perante este quadro o recorrente pretende que o pedido de habilitação do prosseguindo como exequente quanto a todos os Executados.

Não podemos dar guarida á sua pretensão.

Na verdade o que ressalta dela é que quer impor aos restantes fiadores as cláusulas de um contrato que foi apenas estabelecido entre ele e a Caixa AA.

O princípio da liberdade contratual, estabelecido no artigo 405.º do Código Civil, permite aos cidadãos, dentro dos limites da lei, auto-compor os seus diversos interesses, mas não pode obrigar terceiros.

A cláusula segundo a qual o recorrente ficaria sub-rogado nos direitos da credora podendo prosseguir, com todas as garantias e acessórios com o processo executivo na veste de exequente não é extensível, não vincula, os co-fiadores que não emitiram qualquer vontade nesse sentido.

Na verdade, como bem se nota no acórdão recorrido, se o Executado pagou a quantia exequenda, extinguiu-se o direito relativamente ao credor Exequente (art. 534º CC), o que determina o fim da execução.

Sobre a hipótese de a sub-rogação legal operar nos devedores solidários, referem Pires de Lima e Antunes Varela: «O exemplo do devedor solidário não nos parece exacto. O crédito não se transfere, mas extingue-se (art. 523º); o devedor não é terceiro e o seu direito (regresso) tem natureza e regime próprios (art. 524º).» [[1]]

Deste modo não podemos deixar de estar em plena sintonia com o acórdão recorrido quando defende que estando finda a execução surge tão só um direito de regresso do recorrente.

Esse direito de regresso, surgido ex novo e com âmbito diverso, já extravasa o âmbito do título executivo, pelo que não pode ser objecto da, digamos, primitiva execução.

A sub-rogação, causa do incidente de habilitação de adquirente só pode, assim, actuar quanto à devedora principal, a executada SART.

Quanto aos executados pessoas singulares, o que o Recorrente tem é um direito de regresso, que é diferente da sub-rogação invocada como causa da habilitação.

Este direito de regresso terá de ser exercido em acção própria, que não o presente incidente de habilitação de adquirente.

«A sub-rogação, sendo uma forma de transmissão das obrigações, coloca o sub-rogado na titularidade do mesmo direito de crédito (conquanto limitado pelos termos do cumprimento) que pertencia ao credor primitivo. O direito de regresso é um direito nascido ex novo na titularidade daquele que extinguiu (no todo ou em parte) a relação creditória anterior ou daquele à custa de quem a relação foi considerada extinta. (…)

O direito de regresso, no caso da solidariedade passiva, é uma espécie de direito de reintegração (ou de direito à restituição) concedido por lei a quem, sendo devedor perante o accipiens da prestação, cumpre, todavia, para além do que lhe competia no plano das relações internas.» [[2]]

O direito de regresso é um direito “ex novo” que nasce na titularidade daquele que extinguiu a relação creditícia anterior, sendo, pois, um direito próprio, um direito à restituição do que pagou ao credor, quando se verificarem as circunstâncias previstas na lei que lhe concedeu o direito de regresso.([3])

A habilitação é inócua tendo em vista o que pretende o recorrente, salvaguardar a exigência do pagamento aos demais fiadores.

O recorrente não é terceiro.

Utilizando as palavras do Prof. Antunes Varela, dir-se-á que «O terceiro que paga é de algum modo favorecido, na medida em que adquire com o cumprimento da obrigação os direitos do credor, e realizando as mais das vezes um interesse próprio; o credor também é beneficiado, mediante a satisfação do crédito por terceiro, quando o devedor possivelmente não estaria em condições de o fazer; e beneficiado pode ainda ser o devedor, por se libertar da obrigação de cumprir (e de recair em mora, no caso de o não fazer) num momento que pode não ser oportuno para ele» ([2]).

Refere ainda este autor que «O favor subrogationis compreende-se nestes casos, não só por se tratar de um terceiro que cumpre a obrigação («o terceiro que cumpre a obrigação…»), na expressão literal do artigo 592.º), mas também pelo fim especial do cumprimento, que é o de evitar a execução da garantia, no interesse do solvens» ([3]).

Resulta do exposto, que o legislador entendeu haver justificação, nestes casos, para colocar o terceiro que paga na mesma posição ocupada pelo credor, sucedendo na posição deste último.

Daí que importe salientar que institutos de sub-rogação e de direito de regresso não se confundem, traduzindo-se a diferença entre eles, de acordo com a doutrina tradicional, nas seguintes dicotomias: i) pela sub-rogação, transmite-se um direito de crédito existente, ao passo que o direito de regresso significa o nascimento de um direito novo na titularidade da pessoa que, no todo ou em parte, extinguiu uma anterior relação creditória (art. 524.º) ou à custa de quem esta foi extinta (art. 533.º); ii) o direito de regresso, maxime na solidariedade passiva, traduz-se num direito de reintegração do devedor que, sendo obrigado com outros, cumpre para além do que lhe cabe na perspectiva das relações internas ([4])


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Caixa de texto: 11-DECISÃO:
Nesta conformidade, acorda-se em negar provimento à revista.
Custas pelo recorrente.
Notifique.


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Lisboa, 2017-02-22


João Trindade (Relator)

Tavares de Paiva

Abrantes Geraldes

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[[1]] In “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, pág. 608.
[[2]] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. II, 7ª edição, Almedina, pág. 346/347.
[3] Ac. Rel. Coimbra1987/07.8TBAGD.C1-10-12-2013
[4]Ac. R. Porto  1403/12.3TJPRT.P1  - 7-10-2013