Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
17/14.8TBVZL.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: SEGREDO PROFISSIONAL
QUEBRA DE SEGREDO PROFISSIONAL
ABUSO DE PODERES DE REPRESENTAÇÃO
PROCURAÇÃO
MORTE
EXTINÇÃO
DEPOIMENTO
VALOR PROBATÓRIO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
RECURSO DE REVISTA
PRINCÍPIO DISPOSITIVO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
TERCEIRO
INOPONIBILIDADE DO NEGÓCIO
NULIDADE DO ACÓRDÃO
Data do Acordão: 09/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / INSTRUÇÃO DO PROCESSO / PROVA TESTEMUNHAL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO / RECURSO DE REVISTA.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / REPRESENTAÇÃO / REPRESENTAÇÃO VOLUNTÁRIA.
DIREITO CONSTITUCIONAL – DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS / ACESSO AO DIREITO E TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA.
Doutrina:
- Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, IV Volume, p. 355;
- Heinrich Ewald Horster, A Parte Geral do Código Civil Português, Almedina, 6.ª reimpressão, p. 483, 484, 476 e 477;
- Helena Mota, Do Abuso de Representação, Coimbra, 2001, p. 164;
- Isabel Alexandre, Provas Ilícitas em Processo Civil, Almedina, 1998, p. 174;
- João de Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, Volume II, Edição da AAFDL, 1995, p. 411 e 412;
- José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, Volume II, 2.ª Edição, p. 240 e 241;
- Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, 2.º Volume, p. 536;
- Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, A Procuração Irrevogável, Almedina, p. 98;
- Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 7.ª Edição, p. 52 e ss., 180 a 186, 276, 278, 296;
- Pereira Rodrigues, Os Meios de Prova em Processo Civil, Almedina, 2016, 2.ª Edição, p. 191;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição, 1987, p. 240 e 249;
- Rui Pinto, Falta e Abuso de Poderes na Representação Voluntária, AAFDL, 1994, p. 47 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 497.º, N.º 3, 607.º, N.º 4, 608.º, N.º 2, 615.º, N.º 1, ALÍNEAS B) E C), 635.º, N.º 4, 639.º, 663.º, N.º 2, 666.º, 671.º, 674.º, N.ºS 1 E 3, 682.º, N.º 2 E 684.º.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 264.º, 265.º, N.º 1, 268.º E 269.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 20.º.
CÓDIGO DO NOTARIADO, APROVADO PELO DL N.º 207/95, DE 14 DE AGOSTO: - ARTIGO 32.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- PROCESSO N.º 246/10.3TBLLE.E1.S1, RELATOR ANTÓNIO PIÇARRA.
Sumário :
I – A alegação de que o Tribunal da Relação, na reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, violou o princípio do dispositivo, configura, em abstrato, um erro de direito cuja apreciação se inscreve nas atribuições do Supremo Tribunal de Justiça;

II – O segredo profissional apenas legitima a recusa a depor relativamente aos factos abrangidos pelo sigilo (cf. art. 497º, nº3 do CPC).

III - O valor probatório de um depoimento prestado em infração do sigilo profissional não fica afetado de modo absoluto, podendo, quando muito, constituir nulidade processual inominada a ser invocada pelo interessado, sob pena de sanação;

IV - O abuso de representação ocorre, por exemplo, nos casos em que o representante, ainda que dentro dos limites formais dos poderes que lhe foram outorgados, utiliza conscientemente esses poderes em sentido contrário ao seu fim ou às indicações do representado;

V - Nos casos em que a procuração é subscrita também no interesse do representante (ou só no interesse dele) a morte do representado não extingue a procuração.

Decisão Texto Integral:
I – Relatório


1. AA instaurou a presente ação declarativa com processo comum contra BB, CC e DD, pedindo que:

a) – Seja reconhecida a sua qualidade de herdeira de EE;

b) – Seja declarada a ineficácia dos contratos de compra e venda referidos nos arts. 25º, 27º e 69º, da p.i.;

c) Seja declarada a invalidade da hipoteca constituída pelos 2º e 3º réus a favor da Caixa FF sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 1…4, e inscrito na matriz sob o art. 516º, ordenando-se o cancelamento das hipotecas ou demais ónus que incidam sobre o prédio, a favor da FF;[1]

c) – Seja ordenado o cancelamento dos registos de aquisição a favor dos réus;

d) – Sejam os réus condenados a entregar à autora os bens objeto dos contratos de compra e venda referidos na p.i..

Subsidiariamente, caso se venha a verificar uma impossibilidade legal de restituição dos bens à herança, designadamente por serem os réus merecedores da tutela consagrada no art. 291º, CC, pediu a condenação dos réus a pagar-lhe, a título de indemnização, uma quantia de montante igual ao valor dos ditos imóveis.[2]

Para tanto, alegou, em síntese, que:

Em 2.6.2008 faleceu, no estado de viúvo e sem testamento, EE, pai da autora.

O falecido deixou dois filhos, um dos quais, por escritura pública outorgada em 25.7.2013, repudiou a herança.

A autora é, portanto, a única herdeira do seu pai.

A ré BB, com quem o falecido EE viveu nos últimos anos da sua vida, aproveitando-se do seu estado de dependência e de fragilidade física e psicológica, dele obteve duas procurações, com as quais logrou efetuar a venda a si própria de inúmeros prédios de que aquele era titular, uma das quais precedida de “justificação”. Porém, o preço de tais vendas, ainda que inferior ao valor real dos prédios, não chegou a ser pago.

Posteriormente, a ré BB vendeu aos demais réus três dos prédios que, nos termos atrás referidos, havia adquirido a EE.

Atendendo, porém, ao montante do preço declarado nas escrituras e ao facto de o mesmo não ter sido efetivamente pago, é de considerar que as transações em causa foram efetuadas de forma contrária aos fins da representação concedida àquela ré e com abuso dos seus poderes, sendo que também não foram ratificadas pelo representado.

Por outro lado, num dos casos, a compra e venda foi realizada após a morte do mandante, ou seja, já depois de caducado o mandato conferido por EE à ré BB.

Acresce que o segundo réu e a terceira ré agiram de má-fé, pois, muito embora tivessem sido avisados de que a presente ação iria ser instaurada, tal não os impediu de celebrar o contrato de compra e venda aqui posto em causa.

2. Os réus contestaram, pedindo que a ação fosse julgada improcedente.

2.1. Em sua defesa, a ré BB alegou, em síntese, que:

Viveu com EE, em união de facto, desde 1992 até à data do seu óbito.

Os negócios em causa nesta ação foram celebrados através de procuração e com respeito pela vontade do falecido EE, tendo sido pago o correspondente preço.

2.2. Por sua vez, os réus DD e CC alegaram, em resumo, que:

Para a aquisição dos imóveis, recorreram à mediação de uma empresa imobiliária e a crédito bancário, desconhecendo a existência de qualquer vício que pudesse afetar a validade da sua aquisição pela anterior proprietária.

Também nunca foram informados da existência de qualquer processo judicial, visando impugnar os atos translativos da propriedade dos imóveis.

Em qualquer caso, alegaram que a anulação do negócio não lhes é oponível, dado que a presente ação não foi instaurada nem registada no prazo de três anos posteriores à conclusão do negócio em causa, tendo os réus, por seu turno, registado a sua aquisição em data anterior à da propositura e do registo desta ação.

Subsidiariamente, e para o caso de a ação proceder, deduziram reconvenção pedindo a condenação da autora a pagar-lhes a quantia que se venha a liquidar posteriormente, correspondente ao valor das obras e das despesas que efetuaram nos prédios que adquiririam, bem como o reconhecimento do direito de retenção sobre os imóveis até que se encontre pago tal montante.

3. Na réplica, a autora alegou que eventuais obras realizadas pelos reconvintes terão tido lugar após a instauração da presente ação, sendo certo que era do conhecimento geral que os negócios em questão iriam ser impugnados judicialmente. Com tal fundamento, pediu a improcedência da reconvenção.

4. A autora requereu a intervenção principal provocada da Caixa FF, a favor de quem se mostra registada hipoteca sobre o prédio urbano adquirido pelos réus, alegando que a nulidade da compra e venda desse imóvel determinará, necessariamente, a invalidade da hipoteca constituída pelos 2º e 3º réus.

5. Por despacho de fls. 258-260, foi admitida a intervenção principal provocada da Caixa FF. Na contestação apresentada, a FF alegou ter celebrado com os réus um contrato de mútuo, garantido por hipoteca constituída sobre imóvel em discussão nesta ação. Mais alegou desconhecer os demais factos relatados nos autos.

6. Realizado o julgamento, foi proferida sentença que, julgando procedentes quer a ação quer a reconvenção:

I) – Reconheceu a autora como herdeira de EE;

II) - Declarou ineficazes os negócios celebrados por escritura pública, identificados nos pontos 7.17, 7.19 e 7.24 dos factos provados, com exceção do ato de justificação da aquisição;

III - Declarou nula a hipoteca constituída a favor da Caixa FF sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 1…4, inscrito na matriz sob o artigo 3…7, registada mediante a ap. 1483 de 2014/01/17;

IV) – Determinou o cancelamento das inscrições do registo predial efetuadas com base nas escrituras e título suprarreferidos, com exceção da referente ao ato de justificação da aquisição, bem como da hipoteca mencionada no artigo anterior;

V) - Condenou a autora a pagar aos réus CC e DD a quantia de EUR 17.593,81, a título de benfeitorias por estes realizadas nos imóveis que adquiriram;

VI) - Condenou os réus CC e DD a entregar à autora os imóveis identificados em tais escrituras, reconhecendo-lhes o direito de retenção sobre os imóveis adquiridos por via da escritura mencionada no ponto 7.24 dos factos provados até que lhes seja paga a quantia de EUR 17.593,81;

VII) – Condenou a ré BB a entregar à autora os demais imóveis identificados nas escrituras mencionadas nos pontos 7.17 e 7.19 dos factos provados.

7. Inconformados com a sentença, dela apelaram a Caixa FF, SA e os réus. A autora, por sua vez, interpôs recurso subordinado, tendo o Tribunal da Relação de … proferido acórdão com o seguinte dispositivo:

“(…) Concede-se provimento ao recurso interposto por BB, Ré, decretando a “inexistência, nas escrituras púbicas ora em apreço, de actuação da recorrente com abuso de representação, confirmando-se os plenos efeitos das mesmas”;

“Igualmente, concedendo provimento ao Recurso de CC e DD, réus, alterando-se a matéria de facto, excluindo-se “dos factos dados como provados os factos 7.23 e 7.26 e aditando-se o facto “foi vontade do representado atribuir à sua representante, ré BB, aqueles prédios, sem que o haja, naquelas circunstâncias, feito depender de directa e adrede forma, valor e correspondente entrega àquele”, por, assim, se haver provado que “a Ré BB agiu na circunscrição dos poderes que lhe foram atribuídos, por isso, também, declarando válido o negócio celebrado por esta com os Réus apelantes, que se absolvem do pedido”;

“Nega-se provimento, com base nas razões expostas, ao recurso da Caixa FF, SA, Interveniente Principal, bem como provimento se nega ao RECURSO SUBORDINADO, interposto pela Autora AA, quanto a estes, se mantendo, na dimensão e abrangência do peticionado, a decisão.”.

8. Inconformada com o assim decidido, veio a autora interpor recurso para este Supremo Tribunal, dizendo, em conclusão:

1. A matéria de facto apurada justifica o pedido na ação e a sentença de procedência, de ineficácia das três vendas em causa: as compras da BB, ambas, por abuso de representação, e a segunda, de 2008, também por representação sem poderes; a compra de CC e DD por afectada do vício derivado das precedentes.

2. Em causa, essencialmente, uma situação em que o finado, velho, incapaz e doente, passou procuração à concubina e esta vendeu a si própria os bens todos do mandante, por preço de um décimo do valor de mercado, que aliás não pagou, sendo a segunda venda posterior à morte do dominus.

3.   É patente no caso o abuso de representação, por falta de contemplatio domini, guiando-se a procuradora pelo seu interesse em exclusivo, com prejuízo manifesto do interesse do mandante (art. 268.2, C.Civil).

4.      Como é patente, ainda, quanto à segunda venda, posterior à morte do mandante, a falta de poderes de representação da procuradora (art. 269.-, C.Civil), por o mandato caducar com a morte (arts. 265º-1,1174º-a), 1175º).

5. A procuração, com efeito, não caducaria se fosse passada no interesse do procurador, mas não basta para tal a declaração no documento, é preciso ainda uma relação subjacente que vincule o mandante a uma prestação em favor do procurador, relação que não foi alegada nem provada.

6. A alteração da matéria de facto, no caso dos autos, não briga com estas conclusões:

 a) A eliminação do facto 7.23 (A procuradora quis, não comprar, mas receber os bens gratuitamente) é irrelevante, tal como era irrelevante e sem interesse o facto para o caso;

b) A eliminação do facto 7.26 (A procuradora sabia que prejudicava o mandante, ao fazer as compras pelos ditos preços e sem os pagar) é igualmente irrelevante, posto que a conclusão decorre cristalina do quadro factual do contexto;

c) O facto aditado (o finado quis atribuir os bens à procuradora, independentemente do meio utilizado, do valor envolvido e do pagamento do mesmo) é também ele irrelevante, já que tal vontade multímoda não é reconhecida pelo ordenamento, fora do quadro de um negócio específico, nem o facto pode servir para sanar, por via gratuita, um negócio oneroso inquinado na sua essência.

7. O aditamento do facto pela Relação é ilegal, quer por falta de alegação do próprio facto (art. 615º-1, al. a), ex art. 5º, CPCivil), quer porque baseado exclusivamente em prova nula, contra legem (o depoimento da notária, que está vinculada a sigilo profissional e viola a Lei nº 155/2015, de 15/9 - art. 81º, mais arts. 417º e 195º-1, C.P.Civil).

8. Estando em causa apenas o direito, o controlo da legalidade, o conhecimento desta matéria pelo Supremo não é excluído pelo direito positivo (art. 662º-4, C.P.Civil, sujeito a redução teleológica).

9. A mais do exposto, o douto acórdão recorrido junta à falta de fundamentação nuns pontos, o excesso de pronúncia noutros, bem como ininteligibilidade do decidido em outros pontos ainda, por ambiguidade, obscuridade e contradição o que torna o acórdão nulo - como indicado na alegação (nºs 4-5), para que se remete com a devida vénia, por razão de brevidade (art. 615º-l, als b)-c)-d).

9. Foram apresentadas contra alegações.


***


10. Como se sabe, o âmbito objetivo do recurso é definido pelas conclusões apresentadas (arts. 608.º, n.º2, 635.º, nº4 e 639º, do CPC), pelo que só abrange as questões aí contidas.[3]

Por sua vez – como vem sendo repetidamente afirmado – os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação do tribunal que proferiu a decisão impugnada, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal a quo.

Sendo assim, as questões de que cumpre conhecer consistem em saber se:

- O acórdão recorrido enferma das nulidades apontadas;

- O Supremo Tribunal de Justiça pode sindicar a decisão recorrida, na parte que, no âmbito da reapreciação da decisão relativa aos pontos de facto impugnados na apelação, alterou essa mesma decisão de facto;

- A ré agiu com abuso de representação e/ou falta de poderes de representação;

- E, como questão prévia, se a revista é admissível.



***


II – Fundamentação de facto

11. As instâncias deram como provado que:

7.1 – No dia 2 de junho de 2008, faleceu, na freguesia e concelho de …, onde residia, sem testamento ou qualquer disposição de última vontade, EE, no estado de viúvo, com 86 anos de idade (artigo 1º da petição inicial);

7.2 – O falecido EE deixou a suceder-lhe como únicos e universais herdeiros, os seus filhos GG, casado com HH, no regime da comunhão de adquiridos e a autora AA, casada com II sob o regime da comunhão de adquiridos (artigo 2º da petição inicial);

7.3 – No dia 15 de julho de 2013, mediante escritura de “repúdio de herança” celebrada no Cartório Notarial de JJ, lavrada de fls 56 a fls 56v do livro de notas para escritura diversas número vinte e três A, o herdeiro GG declarou repudiar a herança aberta por óbito de seu pai EE, falecido no estado de viúvo de KK, declarando ainda não ter descendentes, e a mulher do outorgante, HH declarou autorizar o seu cônjuge para a prática de tal ato (artigo 3º da petição inicial);

7.4 - O falecido EE ficou viúvo em 7 de novembro de 1988, de KK, com quem era casado em primeiras e recíprocas núpcias de ambos no regime da separação de bens (artigo 5º da petição inicial);

7.5 – Algum tempo após ter enviuvado o falecido EE, a ré BB dele começou a cuidar, mediante o pagamento de um preço cuja grandeza não foi possível apurar e, a partir de data que em concreto também não foi possível apurar e até este ter passado a viver em lar de idosos, começaram ambos a viver em comunhão de cama, mesa e habitação, na casa da ré BB, em … (6º, 67º da petição inicial, artigo 1º da contestação da ré BB e artigo 16º da contestação apresentada pelos réus CC e DD);

7.6 – No dia 1 de agosto de 2005, no Cartório Notarial de …, foi celebrada escritura pública denominada pelos outorgantes EE e BB como “Compra e Venda”, na qual ambos declararam serem comproprietários do prédio aí identificado (sito na Avenida …, lote quinze, …, freguesia da Charneca da Caparica, descrito na conservatório do Registo Predial sob o nº 9…7), declarando o primeiro vender à segunda a sua metade indivisa em tal prédio, pelo preço de € 17.500,00, preço este que a ré BB nunca entregou ao falecido EE (artigos 10º, 11º e 13º da petição inicial);

7.7 - Em 31 de Agosto de 2007, quando o EE tinha 84 anos de idade e se encontrava internado no Hospital de …, em Lisboa outorgou a procuração cuja cópia consta de fls 85, na qual, além do mais aí exarado declarou:

“Que, pelo presente instrumento, constitui bastante procurador BB (…) a quem confere os poderes necessários para, podendo outorgar negócio consigo mesma, em seu nome prometer e/ou vender pelo preço, cláusulas e condições que entender por convenientes, todos e quaisquer prédios urbanos ou rústicos, de que sitos na freguesia de …, concelho de …, nomeadamente os seguintes prédios: prédio urbano, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 46…8 e inscrito na matriz sob o artigo 3…7; prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 36…3 e inscrito na matriz sob o artigo 300; quatro prédios rústicos, em que nenhum deles se encontra registado na Conservatória do Registo Predial de …, tendo cada um deles os seguintes artigos matriciais: 350; 391; 417; 379. Receber os preços, dar as competentes quitações, outorgar e assinar os competentes contratos promessa de compra e venda e respetivas escrituras” (artigos 14º, 68º da petição inicial);

7.8 – Para efeito de elaboração de tal procuração, a Notária compareceu no hospital onde EE se encontrava internado (artigos 15º e 68º da petição inicial);

7.9 – Embora o outorgante de tal procuração soubesse assinar o seu nome, em tal procuração apenas apôs o dedo, por já não lograr assinar, pelo menos desde 15 de novembro de 2004, por força de problemas de saúde de que padecia (artigo 16º da petição inicial e artigo 9º da contestação da ré BB);

7.10 - EE, à data da outorga de tal procuração, já sofrera um AVC isquémico com hemiparesia esquerda e sofria de insuficiência cardíaca e de problemas de saúde que, em menos de um ano, o levaram à morte (artigos 17º e 18º da petição inicial);

7.11 – A ré BB conhecia tal estado de saúde do falecido EE (artigo 19º da petição inicial);

7.12 - Algum tempo após a outorga da procuração, o hospital contactou os filhos do falecido EE, informando que o pai tinha tido alta e que ninguém ali o fora buscar (artigo 20º da petição inicial);

7.13 - Quando os filhos se prestavam para o ir buscar, a ré BB retirou o EE do hospital, tendo-o vindo a colocar, em data que em concreto não foi possível apurar, em …, num lar de terceira idade (artigo 21º da petição inicial);

7.14 – A colocação de EE em tal lar foi efetuada pela ré BB sem que do facto tivesse dado conhecimento à família deste (artigo 21º da petição inicial);

7.15 - No dia 18 de outubro de 2007, quando ainda se encontrava a habitar com a ré BB, nessa mesma habitação e antes de ter sido colocado num lar de terceira idade, EE outorgou a procuração cuja cópia integral consta de fls 140 e ss dos autos, na qual, além do mais aí exarado declarou:

“Que, pelo presente instrumento, constitui sua bastante procuradora BB (…) a quem confere os poderes necessários para em seu nome outorgar e assinar a escritura de justificação do direito de propriedade do mandante referente ao prédio urbano, de que é dono e legítimo possuidor, com exclusão de outrem, composto por uma casa de habitação de rés-do-chão com duas lojas e primeiro andar com seis divisões (…) sito no lugar de …, freguesia de …, concelho de …, inscrito na matriz predial da respetiva freguesia, em nome do mandante sob o artigo 5…3 e omisso na respectiva Conservatória do Registo Predial (…)

Mais lhe confere poderes para, podendo outorgar negócio consigo mesma, em seu nome prometer e/ou vender, pelo preço, cláusulas e condições que entender por convenientes, o prédio urbano acima identificado, receber os preços e deles dar a respetiva quitação (…).

Que esta procuração é irrevogável, nos termos do número três do artigo duzentos e sessenta e cinco e número dois do artigo mil cento e setenta, ambos do Código Civil, em virtude de a mesma ser conferida também no interesse da mandatária (…)” (artigos 23º e 68º da petição inicial; artigo 11º da contestação apresentada pela ré BB);

7.16 – EE não sabia ler, encontrava-se doente, sem capacidade para cuidar de si próprio, necessitando do apoio de terceiros, facto que era do conhecimento da ré BB (artigo 24º da petição inicial);

7.17 - Mediante escritura pública denominada “compras e vendas”, outorgada em 23 de outubro de 2007, no Cartório Notarial de …, a ré BB declarou outorgar por si e na qualidade de procuradora em nome e representação de EE declarou, além do mais aí exarado:

“Que, pelo preço global de catorze mil, quinhentos e cinquenta euros, que o seu representado já recebeu, vende a si mesma:

- Pelo preço de dez mil euros o prédio urbano sito no lugar de …, freguesia de …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº mil e noventa e quatro (…) prédio este inscrito na matriz predial urbana da respectiva freguesia sob o artigo 367 (…);

- Pelo preço de mil e quinhentos euros, o prédio rústico, denominado “R…”, composto por terreno de cultura de sequeiro com videiras, oliveiras, laranjeiras e fruteiras, eira e barraca, sito no lugar de …, freguesia de …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número mil e noventa e cinco (…) inscrito na matriz predial rústica daquela freguesia sob o artigo 300 (…) – actualmente art. 3…1 da União das Freguesias de …. e …;

- Pelo preço de seiscentos e cinquenta euros, o prédio rústico composto por pinhal, denominado “S…”, sito no lugar de …, freguesia de …, concelho de … (…) omisso no Registo Predial e inscrito na matriz respetiva em nome do seu representado sob o artigo 4…7 (…);

- Pelo preço de seiscentos euros, o prédio rústico composto de pinhal e mato (…) denominado “D…”, sito no lugar de …, freguesia de … e concelho de … (…), omisso no Registo Predial e inscrito na matriz respetiva em nome do seu representado sob o artigo 3…0 (…);

- Pelo preço de mil euros, o prédio rústico composto por pinhal e mato (…), denominado “D…”, sito no lugar de …, freguesia de …, concelho de … (…) omisso no Registo Predial e inscrito na matriz respetiva sob o artigo 3…6 (…);

- Pelo preço de oitocentos euros, o prédio rústico composto por pinhal (…) denominado “….”, sito no lugar de …, freguesia de …, concelho de … (…), omisso no Registo Predial e inscrito na matriz respetiva em nome do seu representado sob o artigo 391 (…)” – (artigo 25º da petição inicial; artigo 8º da contestação da ré BB);

7.18 – Tais prédios valiam, na altura, cerca de € 122.735,00 (artigos 26º, 33º, 35º, 41º da petição inicial);

7.19 – No dia 16 de junho de 2008, munida da procuração suprarreferida, a ré BB outorgou escritura pública, no Cartório Notarial de …, denominada “Justificação e Compra e Venda” aí declarando outorgar tal escritura “(…) por si e na qualidade de PROCURADORA, em nome e representação de EE (…) com ela residente, conforme procuração irrevogável (…)”, sendo que, nessa altura, já este havia falecido, na qual, além do mais aí exarado declarou: “(…) que pelo preço de dois mil quatrocentos e cinquenta e cinco euros e vinte e dois cêntimos, que o seu representado já recebeu, vende a si mesma o referido prédio urbano” - o prédio urbano composto por uma casa de habitação de rés-do-chão com 2 lojas e primeiro andar com 6 divisões, a confrontar do norte, sul, nascente e poente com o seu representado EE, sito no lugar de …, freguesia de …, inscrito na matriz predial da dita freguesia sob o artigo 7…4 e omisso na respetiva Conservatória do Registo Predial, actualmente descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 1…4 (artigos 27º, 28º, 53º, 59º da petição inicial);

7.20 - O prédio tinha o valor de cerca de € 21.000,00 (artigos 26º, 29º, 35º, 41º da petição inicial);

7.21 - Os preços indicados nas escrituras não foram pagos ao dito EE, que também não ratificou as compras e vendas mencionadas em 7.17 e 7.19 (artigos 30º, 48º, 51º,62º da petição inicial);

7.22 - O falecido EE não sabia ler nem escrever, apenas sabia assinar o seu nome, o que fazia com dificuldade e, pelo menos a partir de 15 de novembro de 2004, na sequência de problemas de saúde de que padeceu, deixou mesmo de fazer (artigo 31º da petição inicial e artigo 9º da contestação da ré BB);

7.23[4]Ao celebrar as escrituras supra mencionadas, a ré BB quis não comprar, mas receber aqueles prédios a título gratuito (artigos 32º, 41º da petição inicial);

7.24 – Em 17 de janeiro de 2014, mediante “Título de Compra e Venda e Mútuo com Hipoteca e Fiança”, a ré BB declarou vender aos réus CC e DD, que, por sua vez, declararam comprar, os seguintes prédios:

- Urbano composto de casa de habitação com dois andares, sito no … …, com o artigo matricial 5…6 (anteriormente inscrito na matriz da extinta freguesia de … sob o artigo 367), pelo preço de € 70.000,00;

- Urbano composto de casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar, sito no …, com o artigo matricial 714 (anteriormente inscrito na matriz da extinta freguesia de … sob o artigo 543), pelo preço de € 15.000,00;

- Rústico, composto de terreno de cultura de sequeiro com videiras, oliveiras, laranjeiras, fruteiras, eira e barraca, sito em …/…, com o artigo matricial 3…1 (anteriormente inscrito na matriz da extinta freguesia de … sob o artigo 3…0), pelo preço de € 1.000,00 (artigos 34º e 69º da petição inicial);

7.25 – Os réus CC e DD registaram tais aquisições a seu favor, mediante, respetivamente a ap. 1482 de 2014/01/17 (artigo 70º da petição inicial e artigos 6º e 108º da contestação dos réus CC e DD);

7.26[5] - Bem sabia a ré BB, que ao fazer aquelas compras (mencionadas nos factos 7.17 e 7.19) por aqueles preços, e ao não proceder ao respetivo pagamento, prejudicava o EE e, consequentemente, os seus herdeiros (artigos 46º e 50º da petição inicial);

7.27 – A celebração da escritura de “Justificação” foi publicada no jornal “Diário de …” e no “C…”, não o tendo sido no jornal “N…” - o mais lido no concelho onde o bem se localiza (artigo 56º da petição inicial);

7.28 – Os segundo e terceiro réus vivem em comunhão de mesa, leito e habitação um com o outro (artigo 71º da petição inicial);

7.29 – Com vista à celebração do negócio supra referido, os réus CC e DD efetuaram pesquisas na internet, após dirigiram-se à imobiliária responsável pela venda, visitaram a casa, da qual gostaram, tendo procedido à sua negociação através da imobiliária, tendo feito preceder tal negócio de contrato promessa (artigo 6º da contestação apresentada pelos réus CC e DD);

7.30 - Após celebração da escritura pública, os réus CC e DD realizaram obras e ali estão a viver (artigo 6º da contestação apresentada pelos réus CC e DD);

7.31 – Para tanto, os réus CC e DD recorreram, além do mais, à ajuda financeira de familiares (artigo 8º da contestação apresentada pelos réus CC e DD);

7.32 – Os imóveis adquiridos pelos réus CC e DD estiveram publicitados para venda durante vários anos, estando neles placas colocadas anunciando essa intenção (artigos 10º e 71º da contestação apresentada pelos réus CC e DD);

7.33 – No momento de tal aquisição, o prédio não apresentava condições de habitabilidade (artigo 37º da contestação apresentada pelos réus CC e DD);

7.34 – Cerca de 15 dias após a aquisição definitiva dos prédios, os réus CC e DD foram avisados e tiveram conhecimento de que o negócio de aquisição de tais prédios pela ré BB ao falecido EE estava a ser impugnado, mediante acção interposta no tribunal (artigo 7º e 8º da réplica);

7.35 – Após a celebração do contrato promessa em 20 de setembro de 2013, os réus CC e DD tiveram conhecimento de rumores relativos a desavenças familiares entre o falecido EE e os filhos (artigos 51º, 52º, 90º da contestação dos réus CC e DD);

7.36 - Entenderam os réus solicitar junto da responsável da Imobiliária esclarecimentos adicionais sobre a legalidade da transação (artigo 53º da contestação apresentada pelos réus CC e DD);

7.37 – Na sequência da solicitação de tais esclarecimentos, a imobiliária informou que a transmitente era a legítima proprietária e que todos os atos que lhe haviam conferido a propriedade tinham sido realizados por escritura pública, com intervenção de notários e devida e definitivamente registados, não havendo notícia de qualquer discrepância entre todos eles (artigos 54º e 55º da contestação apresentada pelos réus CC e DD);

7.38 – Os réus são professores (artigo 56º da contestação apresentada pelos réus CC e DD);

7.39 – Os réus CC e DD não supuseram que pudesse estar pendente qualquer questão com a ora autora, desconhecendo qualquer vício na aquisição dos imóveis por parte da ré BB, daí que tenham realizado a escritura no dia 17 de janeiro de 2014, data até à qual não tinham sido informados da pendência de qualquer ação judicial a tal propósito (artigos 95º, 96º e 97º da contestação dos réus CC e DD);

7.40 – Para adquirirem os imóveis, os réus recorreram a crédito bancário, tendo solicitado um empréstimo à Caixa FF, por contrato de 17/1/2014 que mereceu o nº 00…85, e tendo constituído em benefício de tal instituição uma hipoteca sobre o imóvel sito no Lugar de …, freguesia de …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 1…4 e inscrito na matriz sob o artigo 3…7, hipoteca essa que foi registada mediante a ap. 1483 de 2014/01/17 (artigos 57º, 58º, 91º da contestação apresentada pelos réus CC e DD, artigos 3º e 6º do articulado apresentado pela interveniente e documento de fls 68);

7.41 – Tal instituição bancária exigiu todos os documentos necessários à celebração de tal negócio, que lhe foram facultados, dos mesmos constando que a ré BB era a proprietária dos prédios, e não colocou qualquer dúvida sobre a regularidade, validade ou suficiência dos documentos apresentados, não obstante deter experiência nesse tipo de negócios, possuindo equipas de funcionários especializados, advogados, notários privativos (artigos 59º, 60º, 92º, 93º, 94º da contestação apresentada pelos réus CC e DD);

7.42 – De tal financiamento encontrava-se em dívida em 26 de maio de 2015 a quantia de € 49.250,64 e o mesmo está a ser pontual e regularmente cumprido (artigos 4º e 5º do articulado da interveniente);

7.43 – O réu CC recebeu uma carta do mandatário da autora, Dr. LL, datada de 29 de janeiro de 2014, já após a celebração da escritura de compra e venda, da qual consta, além do mais aí exarado: “Muito embora lhe tenham sido vendidos os prédios urbanos que V. Exa. Vem possuindo em … com os artigos 3…7-urbano, 3…0-rústico e 5…3, todos da freguesia de …, não lhe foi vendido o recheio, o qual pertence aos filhos, minha cliente incluída. (…) Solicitava, pois, que parasse de alienar e destruir os recheios das casas que adquiriu e o entregasse à Exma. Sra. Dr.ª MM, que em … é quem representa os interesses da minha constituinte” (artigos 64º, 65º e 66º da contestação apresentada pelos réus CC e DD);

7.44 – Os réus CC e DD tinham interesse em adquirir na zona de … habitação, porque o pai do réu é dali natural e ambos têm familiares ali residentes com terrenos em cultivo (artigos 73º e 74º da contestação apresentada pelos réus CC e DD);

7.45 – Um familiar dos réus chamou-lhes a atenção de que a venda da propriedade em questão estava anunciada no sítio da internet de uma determinada imobiliária (artigo 75º da contestação apresentada pelos réus CC e DD);

7.46 – Na sequência do referido no artigo anterior os três conversaram sobre a possibilidade de trocar aquelas propriedades pelo apartamento onde viviam (artigo 76º da contestação apresentada pelos réus CC e DD);

7.47 – Em data que em concreto não foi possível apurar, mas situada em setembro de 2013, os réus CC e DD telefonaram para a agência imobiliária, tendo sido informados por uma mediadora que o preço era € 95.000,00, tendo afastado a hipótese de troca pelo apartamento dos réus, tendo-lhes sugerido que fizessem uma proposta de aquisição (artigos 77º e 78º da contestação apresentada pelos réus CC e DD);

7.48 – Os réus foram informados que a venda seria relativa aos três artigos em conjunto e propuseram a sua aquisição por € 80.000,00 (artigo 80º da contestação apresentada pelos réus CC e DD);

7.49 – Foi agendada com a mediadora uma visita aos imóveis, na sequência da qual os réus mantiveram a proposta da sua aquisição por € 80.000,00, dado que as casas se encontravam degradadas e os terrenos com vegetação, exigindo manutenção e intervenção dispendiosa (artigos 81º, 85º, 86º e 87º da contestação apresentada pelos réus CC e DD);

7.50 – A mediadora, depois de ter falado com a ré BB, informou os réus que esta baixava o preço para € 86.000,00, preço este com o qual os réus concordaram e pelo qual veio a ser celebrado o negócio (artigos 89º, 90º da contestação apresentada pelos réus CC e DD e 14º da réplica);

7.51 – No dia 20 de setembro de 2013 foi celebrado contrato promessa de compra e venda, sendo que foi nessa ocasião que os réus contactaram com a ré BB pela primeira vez (artigo 90º da contestação apresentada pelos réus CC e DD);

7.52 – A D. MM, procuradora da autora, no dia 19 de janeiro de 2014, acompanhada da NN, no dia 19 de janeiro de 2014, dirigiu-se aos imóveis para, em representação da autora, exigir que lhe fossem entregues fotos de família e um baú que se encontrava na casa grande, tendo ainda dado indicações para que nada fosse entregue à irmã do falecido EE (artigos 99º e 100º da contestação apresentada pelos réus CC e DD);

7.53 – A D. MM não informou os réus da pendência de qualquer ação ou de que a ré BB não teria poderes para lhes vender a casa, nem sequer os questionando por serem os novos proprietários dos imóveis (artigos 99º, 101º, 102º da contestação apresentada pelos réus CC e DD);

7.54 – No dia 23 de janeiro de 2014, a dita MM voltou ao contacto dos réus, exigindo agora o recheio da casa, sem nada dizer sobre a titularidade dos imóveis (artigo 104º da contestação apresentada pelos réus CC e DD);

7.55 – A presente ação foi instaurada no dia 29 de janeiro de 2014 e foi registada no dia 31 de janeiro de 2014 (artigo 108º da contestação apresentada pelos réus CC e DD);

7.56 – Os réus realizaram obras nas casas que adquiriram, tendo reparado tetos e soalhos, pintado paredes e tetos, procedido à limpeza de fachadas, colocado azulejos e reparado canalizações nas casas de banho e cozinha, procedido a trabalhos de limpeza e desmatação, tendo importado tais trabalhos em € 17.593,81 (artigos 143º, 146º, 147º, 148º, 149, 150º, 152º, 153º, 154º, 165º da contestação apresentada pelo réu CC e pela ré DD)

7.57 – Tais obras foram realizadas com autorização da anterior proprietária (artigo 154º da contestação apresentada pelos réus CC e DD);

7.58 – Tais obras foram realizadas depois de os réus terem conhecimento da interposição da presente ação (artigo 6º da réplica);

7.59 – Após a celebração do contrato promessa, a ré DD falou, por telefone, com uma familiar do falecido EE, que lhe comunicou que teria havido desentendimentos familiares, que iria averiguar e que depois lhe comunicaria (artigo 9º da réplica);

7.60 – Os réus passaram a residir com a sua família nos prédios que adquiriram, ali pernoitando, recebendo os amigos, fazendo as suas refeições, recebendo o correio, daí saindo para os respetivos empregos e levando os filhos à escola, realizando todas as tarefas da vida diária, à vista de todos os vizinhos e até dos familiares da autora, sem oposição expressa de ninguém (artigos 155º, 156º, 157, 158º, 159º, 160º, 161º, 162º, 163º).

7.61.[6] Foi vontade do representado atribuir à sua representante, ré BB, aqueles prédios, sem que o haja, naquelas circunstâncias, feito depender de directa e adrede forma, valor e correspondente entrega àquele.

12. Por sua vez, foi considerada não provada a factualidade alegada nos artigos 7º, 8º, 9º, 12º, 54º, 55º, 71º no segmento não transposto para os factos provados, 72º da petição inicial; 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 13º, 14º, 15º da contestação apresentada pela ré BB; 7º, 14º, 15º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 28º, 31º, 35º, 37º na parte não transposta para os factos provados, 39º, 40º, 41º, 42, 43º, 44º, 45º, 46º, 49º, 50º, 61º, 62º, 72º, 79º, 82º, 93º, 84º, 103, 110º, 122º, 123º, 124º, 125º, 126º, 127º, 128º, 129º, 130º, 131º, 144º, 145º da contestação apresentada pelos réus CC e DD; artigos 11º, 12º, 13º, 14º este no segmento não transposto para os factos provados da réplica.


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III – Fundamentação de direito

13. Questão prévia: da admissibilidade da revista

Nas contra alegações foi suscitada a questão da admissibilidade da revista alegando-se que a recorrente não indicou o fundamento do recurso e, além disso, que não cabe nos poderes do STJ envolver-se na apreciação do mérito do julgamento proferido pela Relação no plano dos factos, nem apreciar as nulidades assacadas ao acórdão recorrido.

Não é, porém, assim.

Na verdade, a recorrente indica como fundamento da revista a violação da lei substantiva, a violação da lei de processo e as nulidades previstas nos arts. 615º e 666º, ambos do CPC, o que, nos termos do disposto no art. 674º, nº 1, do mesmo Código, e desde que verificados os demais pressupostos (cf. art. 671º), lhe confere o direito a interpor recurso para este Supremo Tribunal.

Por sua vez, sendo, como é, admissível a revista, é nas alegações de recurso que as nulidades do acórdão recorrido deverão ser invocadas, sendo objecto de pronúncia nos termos previstos no art. 684º, do CPC.

Já quanto à decisão proferida pelo tribunal recorrido sobre matéria de facto, é certo que tal decisão não pode, em regra, ser alterada pelo STJ, como decorre dos arts. 674º, nº3 e 682º, nº2, ambos do CPC.

Todavia, excecionando a lei as situações previstas na 2ª parte do art. 674º, é indubitável que eventuais erros de direito com repercussão no plano dos factos cabem nas atribuições do Supremo Tribunal de Justiça.

Nada obsta, portanto, à admissão da presente revista.


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14. Das nulidades do acórdão recorrido

Nas alegações da revista, a recorrente invocou a nulidade do acórdão recorrido por falta de fundamentação, ininteligibilidade, ambiguidade, obscuridade, contradição e excesso de pronúncia.

Vejamos, pois.

É entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência que o vício da sentença previsto no nº 1, al. b), do art. 615º, do CPC, aplicável aos acórdãos da Relação por via das normas remissivas dos artigos 663.º, n.º 2, e 666.º, do CPC, apenas se verifica quando se omite ou se mostra de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar a decisão, ou, para além disso, se, não obstante a indicação dos factos, não é enunciado o quadro legal aplicável, de forma a deixar transparecer suficientemente os seus fundamentos.

De igual modo, eventuais deficiências da motivação da decisão de facto não integram a nulidade em análise. Também o não uso (ou o uso deficiente) pela Relação dos seus poderes processuais em sede de reapreciação da decisão de facto é insuscetível, em princípio, de configurar a aludida nulidade. Quando muito, poderá ocorrer nulidade se ocorrer falta absoluta de motivação da decisão de facto, em termos que tornem ininteligível a sentença - cfr. art. 615º, nº 1, al. c), 2ª parte, do CPC.

Ora, in casu, o acórdão recorrido discrimina os factos provados e não provados, com análise crítica da prova no âmbito do julgamento da impugnação da decisão de facto, bem como a correspondente fundamentação jurídica.

Não ocorre, por conseguinte, a invocada nulidade.


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A recorrente invoca também a nulidade do acórdão por oposição dos fundamentos com a decisão.

Esta nulidade, prevista na alínea c), do nº 1, do artigo 615º, do CPC, segundo a qual a sentença é nula quando os fundamentos estejam em manifesta oposição com a decisão, sanciona o vício de contradição formal entre os fundamentos de facto ou de direito e o segmento decisório da sentença.


Como se sabe, a sentença deve conter os fundamentos, devendo o Juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes (cf. art. 607, nº4, do CPC).


Ora, constituindo a sentença um silogismo lógico-jurídico, de tal forma que a decisão seja a conclusão lógica dos factos apurados, aquela nulidade – como tem sido unanimemente afirmado na doutrina e na jurisprudência - só se verifica quando das premissas de facto e de direito se extrair uma consequência oposta à que logicamente se deveria ter extraído.


Ora, no caso dos autos, não se depreende qualquer relação de exclusão formal entre a fundamentação de facto e de direito e o dispositivo da decisão recorrida, pelo que – manifestamente – não ocorre a nulidade assacada à decisão recorrida.


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A recorrente imputa ainda ao acórdão recorrido a nulidade por ambiguidade, obscuridade e ininteligibilidade, prevista na 2ª parte da al. c), do art. 615º, do CPC.


Mais uma vez, sem razão.


Com efeito:


Sem questionar o estilo, impõe-se considerar que o acórdão recorrido analisou detalhadamente a prova produzida, revelando as razões que levaram o julgador a decidir num sentido, e não noutro. Discorreu sobre o enquadramento jurídico dos factos, indicando as normas jurídicas aplicáveis, as possíveis soluções jurídicas, a opção tomada e a jurisprudência ponderada, em termos que permitem acompanhar o raciocínio seguido e o resultado que proclamou.


Note-se, aliás, que, na sua peça processual, a recorrente revelou compreender o conteúdo do acórdão, que analisou com toda a minúcia, o que permite concluir, ainda com mais segurança, pela inverificação dos apontados vícios.

Não padece, pois, a sentença da aludida nulidade.



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Veio, finalmente, invocar a nulidade por excesso de pronúncia, afirmando que o acórdão recorrido conheceu indevidamente de questão que, na apelação, os réus haviam suscitado apenas a título subsidiário.


A nulidade por omissão e/ou excesso de pronúncia coloca-se face às «questões» a decidir, quais sejam as pretensões deduzidas, consubstanciadas nos respetivos pedidos e causas de pedir, ou as exceções e seus fundamentos, deduzidas pelo réu ou que sejam de conhecimento oficioso. Já no âmbito do recurso, os vícios de omissão ou de excesso de pronúncia são configuráveis em função dos erros de facto ou de direito que tenham sido invocados.


No caso em apreço, o acórdão recorrido, muito embora tenha considerado que a apreciação de determinadas alegações dos réus/apelantes se mostrava prejudicada pela solução jurídica encontrada (cf. fls. 70 e 71), acabou por tecer considerações sobre os institutos jurídicos invocados pelos réus, sem que, contudo, tal tivesse assumido qualquer relevância no plano decisório (cf. segmento dispositivo do acórdão).


Não foi, portanto, cometida a nulidade invocada.



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15. Do erro na fixação dos factos materiais da causa

Como já se referiu, salvo situações de exceção, o Supremo Tribunal de Justiça só conhece matéria de direito, sendo as decisões proferidas pela Relação no plano dos factos, em regra, irrecorríveis (art.º 46.º, da Lei de Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/13, de 26 de Agosto – e arts. 662.º, n.º 4, 674º, nº 3, e 682º, todos do CPC).

O Supremo pode, no entanto, sindicar a decisão da matéria de facto se for invocada uma violação das regras substantivas de direito probatório (art.º 674º, nº 3, 2ª parte, do CPC), ou seja, quando estiver em causa um erro de direito. Pode também apreciar a suficiência ou (in)suficiência da matéria de facto provada e não provada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, bem como aferir da existência de contradições na matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito (art.º 682.º, n.º 3).

Os poderes do Supremo nesta matéria abarcam ainda o controlo da aplicação da lei adjetiva em qualquer das dimensões destinadas à fixação da matéria de facto provada e não provada – art.º 674º, n.º 1, al. b), do CPC –, com a restrição que emerge do disposto no art.º 662º, nº 4, do CPC que exclui a sindicabilidade do juízo de apreciação da prova efetuado pelo Tribunal da Relação e a aferição da formação da convicção desse Tribunal a partir de meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação. 

Dito isto, debrucemo-nos sobre o caso em apreciação.

A recorrente insurge-se contra a alteração da matéria de facto introduzida pela Relação no âmbito da impugnação do julgamento de facto. Concretamente, alega, quanto à eliminação dos factos ínsitos nos pontos 7.23 e 7.26, que a decisão proferida é nula por falta de fundamentação e, quanto ao aditamento de um outro facto, a violação do princípio do dispositivo (por invocada falta de alegação da matéria em causa nos articulados da acção) e a produção/valoração de «prova nula ou proibida» (o depoimento de testemunha vinculada a segredo profissional e que, não obstante, se prestou a depor).

Ora bem.

Já acima dissemos que eventuais deficiências no plano da motivação da decisão de facto não configuram nulidade, pelo que se torna desnecessário tecer considerações complementares para justificar a improcedência da nulidade invocada.

Relativamente ao invocado aditamento indevido de um facto pelo Tribunal da Relação, a alegação da recorrente configura, em abstrato, um erro de direito cuja apreciação se inscreve, nos termos antes expostos, nas atribuições deste Supremo Tribunal.


Todavia, desde já se adianta que a razão não está do lado da recorrente.


Com efeito:


Sabido que o Tribunal não está sujeito às concretas expressões utilizadas pelas partes, não oferece dúvidas de que, no contexto dos autos, a matéria aditada pela Relação ao elenco dos factos provados corresponde a factualidade alegada nas contestações, tendo toda a defesa dos réus sido desenvolvida em torno da alegação de que a vontade do pai da autora, o já falecido EE, era a de atribuir à ora ré BB, amplos poderes de disposição relativamente aos imóveis de que era proprietário.


No que respeita à violação do segredo profissional, também não sufragamos a tese da recorrente.


Na verdade:


O direito à prova está constitucionalmente consagrado no art. 20º, da Constituição da República Portuguesa, como princípio geral do acesso ao direito e aos tribunais, que a todos é assegurado para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.


As garantias constitucionais do acesso ao direito e ao processo equitativo não ficariam salvaguardadas se não fosse, correlativamente, facultado às partes a possibilidade de apresentar os meios de prova destinados a lograr provar os factos alegados e cujo ónus da prova lhes incumbe, nos termos da lei.


Nesta conformidade, no seio da prova testemunhal, o dever de cooperação para a descoberta da verdade configura um princípio geral (cf. art. 417º, nº1 do CPC) que, não obstante, admite algumas excepções.


Uma das situações em que é legítima a recusa a depor está relacionada com a necessidade de obstar à violação do segredo profissional (cf. arts. 417º, nº3, al. c) e 497º, nº3 ambos do CPC).


Todavia, uma vez que a protecção do segredo não constitui um valor absoluto, há que fazer caso a caso uma ponderação dos valores em conflito (averiguação da verdade ou a protecção de direitos dos cidadãos beneficiados pelo segredo), por forma a determinar qual deles deve prevalecer.


Relativamente aos notários, o dever de segredo profissional vem consagrado no artigo 32.º do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de Agosto, em cujo 32.º, sob a epígrafe «segredo profissional e informações», se estabelece:

1 - A existência e o conteúdo dos documentos particulares apresentados aos notários para legalização ou autenticação, bem como os elementos a eles confiados para a preparação e elaboração de actos da sua competência, estão sujeitos a segredo profissional, que só pode ser afastado caso a caso e por motivo de interesse público, mediante despacho do director-geral dos Registos e do Notariado.

2 - Salvo em relação ao próprio autor ou seu procurador com poderes especiais, os testamentos e tudo o que com eles se relacione constituem matéria confidencial, enquanto não for exibida ao notário certidão de óbito do testador.

3 - O notário não é obrigado a mostrar os livros, documentos e índices do cartório, senão nos casos previstos na lei, e deve guardá-los enquanto não forem transferidos para outros arquivos ou destruídos nos termos da lei.

4 - O notário deve prestar verbalmente as informações referentes à existência dos actos, registos ou documentos arquivados que lhe sejam solicitadas pelos interessados e, a pedido expresso das partes, deve fornecer fotocópias não certificadas dos mesmos, com mero valor de informação, quando deles possa passar certidão.

5 - As informações referentes aos registos lavrados no livro de protestos de título de crédito, desde que sejam solicitadas por instituições de crédito ou seus agentes, podem ser fornecidas sob forma sumária, por escrito.

Desta norma resulta, com clareza, que o segredo profissional dos notários não tem carácter ilimitado, estando, pelo contrário, circunscrito à prática de determinados atos.

Por outro lado, o segredo profissional apenas legitima a recusa a depor relativamente aos factos abrangidos pelo sigilo (cf. art. 497º, nº3 do CPC).

Ora, no caso dos autos, a recorrente não logrou minimamente demonstrar que o depoimento prestado pela Srª Notária tenha incidido sobre factos abrangidos pelo segredo profissional, nos termos prescritos pelo Código do Notariado, o que compromete decisivamente o sucesso da sua alegação.

Ainda que assim não fosse, o valor probatório de um depoimento prestado em infracção do sigilo profissional não fica, por isso, afetado de modo absoluto.

Já Alberto dos Reis defendia que “o depoimento tem o mesmo valor que teria se a testemunha não estivesse sujeita ao segredo profissional; as inabilidades legais de que fala o art. 624º (actual art. 496º) funcionam e atuam através do regime dos arts. 639º e 640 (atuais arts. 513º e 514º); para a inabilidade do nº5 do art. 624º acresce o dever imposto à testemunha de se recusar a depor; se esta rede de disposições se revela ineficaz, o depoimento fica no processo como qualquer outro meio de prova legalmente produzido; simplesmente, porque a testemunha infringiu uma obrigação jurídica, sofre as consequências do seu acto, fica sujeita à responsabilidade civil e penal”.[7]


Lebre de Freitas, por seu turno, sustenta que tal situação integra uma nulidade processual inominada que deve ser invocada pelo interessado no momento em que foi cometida sob pena de sanação (cf. arts. 197º, nº1 e 199º do CPC).[8]


Ora, a recorrente não só não suscitou a questão no decurso da audiência em que a Srª Notária prestou o seu depoimento, como participou activamente na sua inquirição, sem levantar quaisquer objeções, pelo que, eventual vício, estaria necessariamente sanado.

 

Concluindo, diremos que, não tendo o acórdão recorrido violado as pertinentes disposições legais, no domínio da reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, é inequívoca a improcedência do invocado fundamento da presente revista.  


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16. Do abuso de representação e da caducidade do mandato


A recorrente insurge-se contra a decisão proferida pelo Tribunal da Relação que, ao invés do que decidira a 1ª instância, considerou inexistir abuso de representação e, consequentemente, declarou válidos e eficazes os negócios celebrados pela ré BB, ao abrigo dos poderes de representação que lhe haviam sido conferidos pelas procurações outorgadas por EE.


Vem, a propósito, citar um recente acórdão deste Supremo Tribunal, proferido no processo n.º 246/10.3TBLLE.E1.S1, ainda não publicado, de que foi relator o Juiz Conselheiro António Piçarra, e em que se escreveu:


“Como se sabe, constitui princípio basilar da «autonomia privada e da autodeterminação do homem que este, em vez de agir ele próprio, possa autorizar outrem para encontrar um resultado ou negociar um efeito que deve valer juridicamente»[9] e, nessa medida, as declarações negociais nem sempre são prestadas pelas próprias partes, podendo ser formuladas e manifestadas por outros que agem em vez das partes ou de uma delas.

É o que acontece na representação (artigo 258.º do Código Civil) em que há um representante que participa no tráfico jurídico negocial em nome de outrem (contemplatio domini), o representado, e os efeitos dos negócios por aquele concluídos produzem-se, directa e imediatamente, na esfera jurídica deste (dominus negotii)[10].

Uma das fontes do poder de representação é a procuração, definida pelo artigo 262.º do Código Civil como o ato pelo qual alguém (dominus) atribui a outrem (procurador), voluntariamente, poderes representativos. Trata-se, portanto, de acto unilateral, por intermédio do qual, é conferido ao procurador o poder de celebrar negócios jurídicos em nome de outrem (dominus), em cuja esfera jurídica se vão produzir os seus efeitos (artigo 262.º do Código Civil)[11]. A concessão desses poderes de representação não é ilimitada. Está circunscrita ao âmbito dos poderes contidos na procuração, sob pena de, sendo tais poderes extravasados, existir abuso de representação.”.

O abuso de representação está regulado no art. 269º, do CC em que se se estabelece que o disposto no artigo 268º, do mesmo Código, é aplicável ao caso de o representante ter abusado dos seus poderes, se a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso.

Ou seja: “só é aplicável o regime da ineficácia previsto no artigo anterior (268º) se a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso. Em qualquer outro caso, o negócio considera-se validamente celebrado em nome do representado, sem prejuízo, claro, da responsabilidade que pode incidir sobre o procurador".[12]

"São, assim, três os elementos da facti species do art. 269º:

1 - uma atividade abusiva do representante;

2 - conhecimento ou dever de conhecer o abuso, por parte do terceiro;

3 - verificados os pressupostos anteriores, a cominação da ineficácia do negócio representativo, para o representado, nos mesmos termos do artº. 268º"[13]

O abuso de representação ocorre, assim, por exemplo, nos casos em que o representante, ainda que dentro dos limites formais dos poderes que lhe foram outorgados, utiliza conscientemente esses poderes em sentido contrário ao seu fim ou às indicações do representado.[14]

Nos casos em que a procuração é subscrita também no interesse do representante (ou só no interesse dele) há que atender, sobretudo, ao teor da relação jurídica causal que desencadeou a emissão da procuração e a concessão de poderes representativos.

Como refere Pedro Pais de Vasconcelos,[15] a procuração encontra-se sempre integrada por uma relação jurídica que lhe está subjacente (cf. arts. 264º e 265º, nº1, do CC) e que é a causa fundamento da procuração. É na relação subjacente que se encontra e da qual resulta qual a função económico-social que a procuração irá desempenhar. Através da sua análise é, então, possível definir o interesse, ou interesses, que esta traduz.

No caso dos autos, tendo presente o elenco factual dado como provado do qual resulta, com suficiente clareza, que as procurações foram conferidas também no interesse da procuradora, é de concluir – tal como se decidiu no acórdão recorrido - não haver fundadas razões que permitam concluir que a ré BB tenha exorbitado os poderes representativos ou tenha agido com animus nocendi.


Por outro lado, quanto à pretendida declaração de ineficácia dos negócios celebrados com os réus CC e DD, caberia à autora igualmente demonstrar que estes "conheciam ou deviam conhecer o abuso" (cf. parte final do artigo 269º), o que manifestamente não logrou fazer.


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Do mesmo modo, atenta a factualidade provada, não se vislumbra como fundamentar a alegada falta de poderes de representação da procuradora quanto à venda realizada em 16.6.2008, ou seja, já depois do falecimento do representante.


Repare-se que “A procuração é um negócio jurídico através do qual uma pessoa com legitimidade para afetar determinada situação jurídica confere legitimidade a outrem para agir sobre essa situação jurídica. É, por isso, fundamentalmente, um instrumento de legitimação. A procuração está ligada à situação jurídica objecto da legitimação, e não à pessoa do dominus. (…). Deve, consequentemente, entender-se que a natureza jurídica da procuração não exige a sua extinção em virtude da morte do dominus originário. (…) Não obstante isto, a morte do dominus pode determinar indirectamente a extinção da procuração. (…) A procuração extingue-se, mas não em razão da morte do dominus; antes devido à extinção do negócio que constitui a relação subjacente nos termos do art. 265º, nº1, do Código Civil (…) Caso o negócio que constitui a relação subjacente não caduque com a morte do dominus, a procuração manter-se-á em vigor.”.[16]


Ora, no caso em apreço, da matéria de facto provada resulta claramente que a relação subjacente à procuração é constituída por um negócio do qual resulta um interesse próprio do procurador, o qual não caduca com a morte do dominus (cf. art. 1175º, do CC).


Em suma: a procuração em causa (sendo irrevogável) produziu efeitos post mortem legitimando a procuradora a celebrar os contratos aqui em discussão os quais, como acertadamente se decidiu no acórdão recorrido, não se mostrem inquinados por qualquer vício que comprometa a sua validade e/ou eficácia.


Improcedem, pois, todas as conclusões da recorrente.



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IV- Decisão


17. Nestes termos, negando a revista, acorda-se em confirmar o acórdão recorrido.


Custas pela recorrente.


Lisboa, 27.9.2018


Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado (Relatora)

José Sousa Lameira

Hélder Almeida

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[1] Cf. A ampliação do pedido (fls. 117) e o despacho de fls. 258-259.
[2] Cf. ampliação do pedido deduzida a fls. 814 e despacho que a admitiu, a fls. 814-815.
[3] Para além daquelas que devam ser conhecidas oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), o STJ conhece de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações de recurso, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra ou outras (arts. 608.º, n.º 2, 635.º e 639.º, n.º 1, e 679º, do mesmo diploma), sendo de ter presente que, para este efeito, as «questões» a conhecer não se confundem com os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, aos quais o tribunal o tribunal não se encontra sujeito (art. 5.º, n.º 3, também do CPC).
[4] Eliminado pela Relação.
[5] Eliminado pela Relação.
[6] Facto aditado pela Relação.
[7] Cf. Código de Processo Civil Anotado, IV Vol., pág. 355. No mesmo sentido, se pronuncia Pereira Rodrigues, Os Meios de Prova em Processo Civil, Almedina, 2016, 2ª edição, pág. 191 e, ao que parece, Isabel Alexandre, Provas Ilícitas em Processo Civil, Almedina, 1998, pág. 174.
[8] Cf. Código de Processo Civil Anotado, 2º Vol.,pág.
536.
[9] Cfr. Heinrich Ewald Horster, in A Parte Geral do Código Civil Português, Almedina, 6ª reimpressão, págs. 476 e 477.
[10] Cf., a este propósito, João de Castro Mendes, in Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, edição da AAFDL, 1995, págs. 411 e 412, Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, pág. 240, Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, 7ª edição, págs. 276 e 278, e José de Oliveira Ascensão, in Direito Civil, Teoria Geral, Vol. II, 2ª edição, págs. 240 e 241.
[11] Cf.,neste sentido, Heinrich Ewald Horster, in A Parte Geral do Código Civil Português, Almedina, 6ª reimpressão, págs. 483 e 484; Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, 7ª edição, pág. 296; Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, in A Procuração Irrevogável, Almedina, págs. 98 e Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, 1987, pág. 240.
[12] Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", vol. I, 4ª edição, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra, 1987, pág. 249.
[13] Cf. Helena Mota, in "Do Abuso de Representação", Coimbra, 2001, pág. 164.
[14] Cf. Rui Pinto, Falta e Abuso de Poderes na Representação Voluntária, AAFDL, 1994, págs. 47 e ss.
[15] Ob. cit, págs. 52 e segs.
[16] Cf. Pedro Pais de Vasconcelos, ob. cit., págs. 180-186.