Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
211/17.0T8VLN.G1.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: ASSUNÇÃO RAIMUNDO
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
PRAZO DE CADUCIDADE
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 12/10/2019
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DA FAMÍLIA / FILIAÇÃO / ESTABELECIMENTO DA FILIAÇÃO / ESTABELECIMENTO DA MATERNIDADE / RECONHECIMENTO JUDICIAL.
DIREITO CONSTITUCIONAL – PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS / DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS / PRINCÍPIOS GERAIS – DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1817.º, N.º 1.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 16.º, N.º 1, 18.º, N.º 2, 26.º, N.ºS 1 E 3 E 36.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 21-03-2013, PROCESSOS N.º 1906/11.7T2AVR.P1.S1;
- DE 21-03-2013, PROCESSO N.º 1906/11.7T2AVR.P1.S1;
- DE 14-01-2014, PROCESSO N.º 155/12.1TBVLC-A.P2.S1;
- DE 27-05-2014, PROCESSO N.º 165/13.1TBVLR.P1.S1;
- DE 31-01-2017, PROCESSO N.º 440/12.2TBBCL.G1.S1;
- DE 15-02-2018, PROCESSO N.º 2344/15.8TB8BCL.G1.S2, TODOS IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

- ACÓRDÃO N.º 401/2011, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT;
- ACÓRDÃO N.º 309/2016, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT;
- ACÓRDÃO N.º 424/2016, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT;
Sumário :

I - É entendimento do Tribunal Constitucional que o legislador ordinário goza de liberdade para submeter as ações de investigação da paternidade a um prazo preclusivo, desde que acautelado o conteúdo essencial dos direitos fundamentais em causa, cabendo-lhe fixar, dentro dos limites constitucionais admitidos pelo respeito pelo princípio da proporcionalidade

II - Assim sendo, ainda que se aceite o direito à verdade biológica e ao estabelecimento do respetivo vínculo jurídico como direitos fundamentais, isso não impede que o legislador possa harmonizar ou até mesmo restringir o exercício de tais direitos em função de outros interesses ou valores igualmente tutelados, na medida em que não estamos perante direitos absolutos.

III - No âmbito das ações de investigação de paternidade não assiste apenas a tutela do interesse da pessoa que pretende saber quem são os seus pais e estabelecer o inerente vínculo; assiste, igualmente, a concreta proteção dos investigados e suas famílias, cuja tutela não pode deixar de ser considerada, sendo precisamente a necessidade de harmonização de cada um destes interesses com o interesse público da segurança jurídica e da estabilidade social e familiar que legitima que o legislador estabeleça os prazos em apreço (para a propositura de ação de investigação da paternidade), não sendo, assim, injustificado nem excessivo fazer recair sobre o titular do direito um ónus de atuação diligente quanto à iniciativa/impulso processual para o apuramento definitivo da filiação, não fazendo prolongar ad aeternum, através de um regime de imprescritibilidade, uma situação de incerteza que não é desejável.

III - Daí que, por ser conforme à jurisprudência constitucional, seja de concluir que a fixação legal de prazos de caducidade para a propositura de ações de investigação da paternidade, desde que tais prazos se mostrem proporcionados ou razoáveis, não ofende o núcleo essencial dos direitos fundamentais à integridade e identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade e de constituir família, nos termos dos arts. 16º, nº 1, 18º, nº 2, 26º, nºs 1 e 3, e 36º, nº 1, todos da Constituição da República Portuguesa. 

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – Relatório:

No Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, Juízo de Competência Genérica, Juiz 1, corre termos a presente ação comum de investigação da paternidade que AA moveu a BB, pedindo a final que seja declarada judicialmente a paternidade do réu relativamente à autora.

Alegou, em síntese, que nasceu no dia 17 de outubro de 1961 e que, apesar de apenas ter sido registada no assento competente como filha de sua mãe, é ela também filha do réu, já que nasceu em consequência das relações sexuais que aquele manteve com a sua mãe em total exclusividade, sendo certo ainda que o réu sempre a tratou como sua filha.

Após citação do réu, a ação não sofreu contestação.

Após o decurso dos trâmites normais, foi efetuada a audiência de julgamento, tendo a sentença proferida concluído pela caducidade do direito da autora de propor a presente ação de investigação de paternidade, por já ter decorrido o prazo de dez anos, a que alude o artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, absolvendo o réu do pedido.

Inconformada com a decisão, a autora recorreu para o Tribunal da Relação de Guimarães, que veio a confirmar a decisão da 1ª instância.

Desta decisão a autora recorreu para este Tribunal, apresentando revista excecional, formulando as seguintes conclusões:

1- O presente recurso deve considerar-se admissível, nos termos do disposto no artigo 672, nºs 1 e 2, do C.P.C., por estarem em causa questão de inegável relevância jurídica, interesses de particular relevância social, e encontrar-se em contradição com acórdão proferido por este Supremo Tribunal no processo nº 440/12.2TBBCL.G1. S1.

2 - De entre os factos dados como provados nos autos, resulta que a recorrente nasceu das relações sexuais entre a sua mãe e o recorrido, encontrando-se ainda nos mesmos um relatório pericial que fixa em 99,99999994% a probabilidade de o R. ser pai biológico da A.;

3 - Todavia, o acórdão recorrido, a exemplo do que sucedera na primeira instância, escudando-se no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 401/2011, bem como em vários acórdãos deste Supremo Tribunal, considerou a constitucionalidade da norma e caducado o direito de propositura da ação de investigação de paternidade, porquanto proposta para além dos dez anos previstos no artigo 1817º, nº 1, ex-vi, artigo 1873º, ambos do Código Civil;

4 - Relevando o valor da “segurança jurídica, associado à propositura da ação de investigação da paternidade, como um valor superior do ordenamento jurídico em relação aos direitos à identidade pessoal, à integridade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, incluindo o próprio princípio da justiça, que pretere”;

5 - Diga-se, ainda, quanto à recorrente e contrariamente ao demais plasmado no acórdão recorrido, que de todo se deixa impugnado, que nunca colheria o argumento “caça fortunas” ou pretender quaisquer bens do recorrido, pois este beneficia, desde o início, do apoio judiciário com nomeação de patrono, o que não sucede com a recorrente;

6 - Isso, sim, com a declaração de paternidade pode ainda vir a ter que prestar alimentos ao seu ascendente;

7 - Ora, ao contrário do acórdão recorrido, o acórdão fundamento invocado -proc.º nº 440/12.2TBBCL.G1.S1, já transitado em julgado, deste Supremo Tribunal, defende que o prazo limitador previsto no artigo 1817º, nº 1, do C.Civil, constitui uma restrição excessiva ou desproporcionada, quer aos direitos supra mencionados (de identidade pessoal - artº 26º, e de constituir família - artº 36º 1, da CRP), quer ao nº 2, do artigo 18º, da CRP quer, finalmente, ao próprio direito geral de personalidade da investigante, este último nos termos do artigo 70º, do Código Civil;

8 - Pelo que declarou a sua inconstitucionalidade;

9 - Ora, O Tribunal Constitucional, através do seu recente acórdão nº 488/2018, de 4 de outubro, acaba por acolher, não apenas as razões plasmadas no acórdão fundamento, como vai mesmo para além dele;

10- E, invertendo de todo as razões plasmadas no Ac. nº 401/11, abrigado pelo acórdão recorrido, não deixa quaisquer dúvidas, quando refere: “A segurança jurídica do investigado e da sua família foi um argumento hipervalorizado pelo Acórdão nº 401/2011, e que não tem, face à hierarquia de valores fixada na Constituição, peso suficiente para prevalecer sobre os direitos fundamentais, pessoalíssimos, do investigado, nem sobre os interesses de ordem pública relacionados com a filiação”.

11- Concluindo, assim, pela inconstitucionalidade da existência de um prazo de caducidade para propor uma ação de investigação de paternidade (e maternidade);

12 - Pelo que, as ações de investigação de paternidade devem poder ser instauradas a todo o tempo, sendo constitucionalmente ilegítima qualquer limitação temporal para o exercício destes direitos;

13 - O que está em plena consonância, de resto, com o teor do artigo 26º, da Constituição da República Portuguesa: “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade…”;

14 - E decidiu: “Julgar inconstitucional a norma do artigo 1817º, nº 1, do Código Civil, na redação da Lei nº 14/2009, de 1 de abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873º, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26º, nº 1, 36º, nº 1, e 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa”.

15 - Releve-se, ainda, que no plano da doutrina, com especial ênfase para Joaquim de Sousa Ribeiro - R.L. J., Ano 147, nº 4009, março-abril de 2018, págs. 214 e seguintes - A inconstitucionalidade da limitação temporal ao exercício do direito à investigação da paternidade, praticamente toda ela defende a inexistência de prazo para o investigante intentar a ação de investigação de paternidade;

16 - O que também sucede, como é evidenciado no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 488/2018 e em grande medida, no plano do direito comparado;

17 - Assim, deve, também, ser declarado por este Venerando Tribunal a invocada inconstitucionalidade;

18 - E, declarando tal inconstitucionalidade, atento o facto dado como provado no nº 11, dos factos dados como provados, deverá declara-se que a recorrente é filha do recorrido, com as legais consequências, nomeadamente o competente averbamento no assento de nascimento da recorrente;

19 - Assim, o acórdão recorrido, aplicando o artigo 1817º, nº 1, ex-vi artigo 1873º, ambos do Código Civil, o que deveria ter recusado, por manifestamente inconstitucional, violou os artigos 18º, nº 2, 26º e 36º, da Constituição da República Portuguesa, bem assim como o artigo 70º, do Código Civil.

Termos em que, procedendo na íntegra o presente recurso de revista excecional, deve revogar-se o acórdão recorrido e produzir-se acórdão em conformidade com o conteúdo das conclusões supra.

O réu contra-alegou e concluiu pela manutenção da decisão recorrida.

A Formação deste Supremo Tribunal, prevista no nº 3 do art. 672º, do Código de Processo Civil, decidiu admitir a revista excecional subsumida às alíneas a) e b) do nº 1 do 672º, do referido diploma legal.

Cumpridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – Factos:

Encontra-se fixada a seguinte matéria de facto:
1. A A. nasceu no dia … de … de 19… e encontra-se registada como filha de CC.
2. No assento de nascimento da A. não se encontra averbado o nome do seu pai.
3. O R. e a mãe da A. conheciam-se e eram naturais do mesmo lugar e freguesia - ..., ... - e tiveram, durante algum tempo, uma relação de namoro, isto numa altura em que o R. se encontrava emigrado no ....
4. Nessa sequência desse namoro e da grande intimidade que existia entre o R. e a mãe da A., estes passaram a manter relações sexuais um com o outro.
5. De tais relações sexuais resultou a gravidez da mãe da A.
6. As relações de cópula completa havidas entre o R. e a mãe da A., CC, ocorreram nos primeiros cento e vinte dias dos trezentos que precederam o nascimento daquela.
7. A esposa do R., DD, reconhecia a A. como filha do seu marido.
8. Para além disso, quando a A. tinha 6, 7 ou 8 anos, numa altura em que o R. se encontrava em Portugal, foi ela abordada por este último, que a tratou expressamente como filha.
9. E o pai do R. e avô paterno da A., EE, sempre falou à A. como neta até à sua morte, e até lhe ofereceu dinheiro.
10. O réu apenas veio a contrair matrimónio em ..de agosto de ....
11. Encontra-se junto aos autos um relatório pericial que fixa em 99,99999994% a probabilidade de o R. ser pai biológico da A.
12. A presente ação deu entrada em juízo no dia … de … de ….

III - O Direito:

De acordo com a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça, o âmbito do recurso determina-se em face das conclusões da alegação do recorrente pelo que só abrange as questões aí contidas, como resultava dos arts. 684º nº3 e 685º-A, nº1. do Código de Processo Civil, anterior à reforma introduzida pela Lei 41/2013 de 26 de junho, e continua a resultar das disposições conjugadas dos arts. 635º, nº 4, 637º, nº2 e 639º, ex vi art. 679º, todos do Código de Processo Civil.

Nos termos do preceituado nos arts. 608º nº 2, 635º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal.

Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar o seguinte ponto:

- Da constitucionalidade da caducidade do direito de ação relativa a ação de investigação de paternidade, nos termos do art. 1817º, nº 1, ex vi artigo 1873º, ambos do Código Civil.

A questão a decidir prende-se em saber se o prazo de dez anos após a maioridade ou emancipação, que atualmente está fixado no art. 1817º, nº 1, do Código Civil (diploma a que pertencerão todas as normas legais a citar, sem menção de origem), é ou não constitucional.

A ação de investigação da paternidade, por força do art. 1817º, ex vi, art. 1873º, só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade.

Resulta dos factos provados que a autora, nascida em … de outubro de …, apenas em … de maio de 20…, decidiu propor ação de investigação de paternidade com vista ao reconhecimento judicial do pretenso pai. Tinha, como se vê, … anos de idade.

Quid juris, em relação ao prazo de dez anos a que se refere a citada norma legal.

A autora, como se retira da sua petição inicial e dos posteriores recursos nos autos, veio defender a tese que o prazo aludido no nº1, do art. 1817º, é um prazo limitador da possibilidade da autora, enquanto filha, propor a presente ação de investigação da paternidade, defendendo a inconstitucionalidade da referida norma.

Diferentemente entenderam as 1ª e 2ª instâncias, apoiando-se na tese de que “… a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante, não se afigura desproporcional, não violando os direitos constitucionais ao conhecimento da paternidade biológica e ao estabelecimento do respetivo vínculo jurídico, abrangidos pelo direitos fundamentais à identidade pessoal, previsto no artigo 26.º, n.º 1, e o direito a constituir família, previsto no artigo 36.º, n.º 1, ambos da Constituição.”

Efetivamente, a jurisprudência não tem sido uniforme no tratamento desta concreta questão, sendo fundamentalmente duas as posições em confronto:

Uma no sentido de que, estando em causa interesses inalienáveis da pessoa, como seja o direito à identidade pessoal, nele incluído o direito de conhecer e ver reconhecida a sua ascendência biológica, configurando, assim, um direito de índole pessoalíssimo e, como tal, imprescritível, consagrado constitucionalmente, decorrendo que o estabelecimento de prazos de caducidade, sejam eles quais forem, a condicionar a instauração da ação de investigação de paternidade/maternidade, traduzem restrições desproporcionadas ao direito de identidade pessoal e ao direito de integridade moral violadoras da Constituição .

Já a outra posição, no sentido do estabelecimento de prazos, escora-se em princípios de certeza e segurança jurídicas, argumentando que a possibilidade de instauração da ação a todo o tempo, origina uma situação de incerteza temporalmente muito prolongada sobre o pretenso pai e seus herdeiros, dificuldades, perdas ou “envelhecimento das provas” e a instrumentalização da ação, como incentivo para a “caça às fortunas”.

Esta última posição foi acolhida no Código Civil de 1966, defendendo PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, que “(…) foi a tal consideração ético-pragmática de combate à investigação como puro instrumento de caça à herança paterna e de estímulo à determinação da paternidade (…) em tempo socialmente útil”.

No entanto, e na sequência da inconstitucionalidade declarada pelo Acórdão nº 23/2006, de 10 de janeiro, a Lei nº 14/2009, de 1 de abril, veio alterar a redação do nº 1 do art. 1817º, alargando, para dez anos posteriores à maioridade ou emancipação, o prazo para a propositura da ação de investigação.

No entanto, mesmo depois da alteração do nº1, do art. 1817º, continuaram a ser proferidos neste Supremo Tribunal de Justiça acórdãos que recusaram a aplicação do normativo em causa com fundamento na sua inconstitucionalidade material.

Todavia, essa tese decaiu na apreciação que foi feita pelo Tribunal Constitucional, o que obrigou à prolação de novos arestos em conformidade com o juízo de não inconstitucionalidade[1].

Como se afirma no Acórdão nº 247/2012 daquele Tribunal, que acolhe a solução a que se chegou no Acórdão nº 401/2011[2], deve continuar a entender-se que "o legislador ordinário goza de liberdade para determinar, desde que acautelado o conteúdo essencial dos direitos fundamentais em causa, se pretende submeter as ações de investigação da paternidade a um prazo preclusivo ou não, cabendo-lhe ainda fixar, dentro dos limites constitucionais admitidos pelo respeito pelo princípio da proporcionalidade, o concreto limite temporal de duração desse prazo".

Indispensável é que esteja assegurado o exercício efetivo do direito de ação de investigação da paternidade dentro do prazo de caducidade legalmente previsto e em termos compatíveis com a natureza especialmente pessoal do direito fundamental a tutelar e tal veio a concretizar-se nas diversas alíneas do art. 1817º do Código Civil.

Como o Acórdão n.º 401/2011 sublinhou, estas normas previnem a hipótese de não estarem reunidas as condições de facto e de direito necessárias ao exercício do direito de ação dentro do prazo (objetivo) de dez anos previsto no n.º 1 do mesmo preceito legal, aditando a este prazo mais três anos, que apenas começará a correr quando essas mesmas condições estiverem efetivamente verificadas. A extinção do direito ao conhecimento da paternidade biológica e ao estabelecimento do respetivo vínculo jurídico só operará depois de esgotados todos os prazos de caducidade previstos no artigo 1817.º do Código Civil – o que constitui uma importante válvula de segurança do sistema.

Acresce que, de modo a adequar o funcionamento do prazo de caducidade à natureza pessoalíssima do direito que lhe está subordinado, o legislador optou pela utilização de conceitos abertos e indeterminados na fixação do termo inicial de alguns dos prazos de caducidade acrescidos previstos no artigo 1817.º do Código Civil. Com efeito, de acordo com o n.º 3 deste preceito legal, aplicável ex vi do artigo 1873.º, a ação pode ainda ser proposta nos três anos posteriores ao conhecimento, pelo investigante, após o decurso do prazo previsto no n.º 1, de «factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação», designadamente quando cesse o tratamento como filho pelo pretenso pai [alínea b)], e, em caso de inexistência de paternidade determinada, nos três anos seguintes ao conhecimento superveniente de «factos ou circunstâncias que possibilitem ou justifiquem a investigação» [alínea c)].

Desse modo, garante-se ao titular do direito fundamental virtualmente afetado pelo prazo de caducidade a possibilidade de instaurar a ação quando, uma vez decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, surjam factos ou circunstâncias que tornem razoável o exercício tardio do direito de ação. A ausência de uma tipificação fechada dos factos ou circunstâncias justificativos da instauração da ação após o transcurso desse prazo permite ao aplicador do direito, em especial ao juiz, a formulação de juízos de ponderação suscetíveis de cobrir a especificidade de cada caso concreto sujeito à sua apreciação e integrar no conceito legal todos os factos e circunstâncias concretas, de natureza objetiva e/ou subjetiva, que possam justificar, à luz desse padrão de razoabilidade, o exercício do direito de ação após os 28 (ou 26) anos de idade do investigante.

O que a lei não consente –  e a Constituição manifestamente não tutela –  é o exercício arbitrário do direito de ação de investigação da paternidade a qualquer tempo. Se é verdade que a decisão de instaurar estas ações, atenta a sua natureza, convoca complexas e singularizadas valorações pessoais, com forte carga emocional, também é verdade que, estando em causa uma decisão que pode ter graves implicações, jurídicas e pessoais, para terceiros, é exigível que a essa complexa ponderação se siga uma tomada de decisão responsável e madura.

Sufragando este mesmo entendimento, o recente Acórdão do Pleno do Tribunal Constitucional, de 3-7-2019, publicado no Diário da República n.º 190/2019, Série II, de 2019-10-03[3], veio mais uma vez decidir “Não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, aplicável ex vi do disposto no artigo 1873.º do mesmo diploma, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante.”

Feita esta abordagem sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal de Justiça importa realçar que se é certo que a lei civil portuguesa não adotou a regra da “imprescritibilidade” do direito de investigação da paternidade, tendo, desde sempre, constituído opção do legislador o estabelecimento de limites temporais ao exercício desse direito, não menos certo é que, após as alterações introduzidas aos prazos de caducidade do direito de investigar a paternidade pela Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, o Tribunal Constitucional atestou a conformidade constitucional do regime atualmente em vigor.

Podemos mesmo afirmar que é entendimento do Tribunal Constitucional que o legislador ordinário goza de liberdade para submeter as ações de investigação da paternidade a um prazo preclusivo, desde que acautelado o conteúdo essencial dos direitos fundamentais em causa, cabendo-lhe fixar, dentro dos limites constitucionais admitidos pelo respeito pelo princípio da proporcionalidade, o concreto limite temporal de duração desse prazo.

Não podemos deixar de transcrever a declaração de voto do Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro, que subscrevendo o recente acórdão constitucional e a decisão que fez vencimento, afirma: “(…) Os termos em que os interesses dos implicados se contrapõem, e bem assim o direito fundamental à identidade pessoal que deles releva, permite, no entanto, compreender a importância de que neste domínio se reveste o tempo: o decurso de um período longo sem que o investigante tenha agido com vista a atualizar o estado jurídico e o valor simbólico associados ao facto da progenitura fragiliza irremediavelmente o peso constitucional da sua pretensão e reforça o peso da pretensão oposta do investigado e de terceiros que integrem o universo das suas relações familiares. A inércia do investigante sinaliza um desinteresse pela «verdade biológica», estabelecendo-se reflexamente uma «verdade social» constitutiva da identidade pessoal do investigado e dos que lhe são mais próximos. Por tudo isto, creio que a fixação de um prazo razoável para instaurar a ação de investigação da paternidade, como me parece ser o de 10 anos sobre a maioridade ou a emancipação, com as ressalvas imprescindíveis para os casos previstos nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 1817.º do Código Civil, é uma forma adequada, necessária e proporcional de realizar a concordância prática ditada pela natureza do problema.

Vou mais longe. Não basta afirmar que a solução consagrada na lei de fixação de um prazo de caducidade é constitucionalmente admissível; trata-se de uma imposição constitucional decorrente do dever estatal de não sacrificar integralmente o direito à identidade pessoal do investigado e seus familiares, radicada na «verdade social» que se estabelece gradualmente pelo decurso do tempo. Foi essa, de resto, a solução que o legislador encontrou para problemas homólogos em matéria de filiação, entre os quais se destaca a definição de um prazo para a impugnação da paternidade do marido da mãe na alínea a) do n.º 1 do artigo 1842.º do Código Civil, que o Tribunal Constitucional julgou não inconstitucional nos Acórdãos n.ºs 589/2007, 593/2009, 179/2010, 446/2010 e, se bem que na perspetiva oposta da apreciação constitucional da própria possibilidade de impugnação quando se verifica posse de estado, no recente Acórdão n.º 308/2018.

Creio que o direito do descendente adulto ao estabelecimento da filiação tem exatamente o mesmo fundamento e peso constitucional do que o direito do pai que descobre não ser o progenitor do filho a impugnar a paternidade fundada na presunção matrimonial. Trata-se, nas duas situações, de colocar a ordem jurídica ao serviço da «verdade biológica», na medida − e apenas nessa estrita medida – em que tal facto, segundo o juízo insindicável do autor da ação, realize uma dimensão da sua identidade pessoal. E trata-se ainda, nas duas situações, de estabelecer um equilíbrio entre a pretensão legítima do autor ao reconhecimento oficial e integral dessa verdade na sua vida e a pretensão não menos legítima do réu e da sua família a que as suas próprias identidades pessoais se não encontrem eternamente submetidas ao domínio volitivo de terceiro. Ora, a concordância entre ambas pode fazer-se, unicamente, através de prazos razoáveis, como aqueles que a lei estabelece para as duas situações.”

Assim sendo, ainda que se aceite o direito à verdade biológica e ao estabelecimento do respetivo vínculo jurídico como direitos fundamentais, isso não impede que o legislador possa harmonizar ou até mesmo restringir o exercício de tais direitos em função de outros interesses ou valores igualmente tutelados, na medida em que não estamos perante direitos absolutos. Na verdade, temos que compreender que neste âmbito não assiste apenas a tutela do interesse da pessoa que pretende saber quem são os seus pais e estabelecer o inerente vínculo; assiste, igualmente, a concreta proteção dos investigados e suas famílias, cuja tutela não pode deixar de ser considerada, sendo precisamente a necessidade de harmonização de cada um destes interesses com o interesse público da segurança jurídica e da estabilidade social e familiar que legitima que o legislador estabeleça os prazos em apreço (para a propositura de ação de investigação da paternidade), não sendo, assim, injustificado nem excessivo fazer recair sobre o titular do direito um ónus de atuação diligente quanto à iniciativa/impulso processual para o apuramento definitivo da filiação, não fazendo prolongar ad aeternum, através de um regime de imprescritibilidade, uma situação de incerteza que não é desejável.

Daí que, por ser conforme à jurisprudência constitucional, seja de concluir que a fixação legal de prazos de caducidade para a propositura de ações de investigação da paternidade, desde que tais prazos se mostrem proporcionados ou razoáveis, não ofende o núcleo essencial dos direitos fundamentais à integridade e identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade e de constituir família, nos termos dos arts. 16º, nº 1, 18º, nº 2, 26º, nºs 1 e 3, e 36º, nº 1, todos da Constituição da República Portuguesa.  

Termos em que se conclui não ser materialmente inconstitucional a norma constante do nº 1 do art. 1817º, tendo, assim, que improceder o recurso interposto.

*

IV – Decisão:

Nos termos expostos, e sem necessidade de maiores considerandos, acorda-se em julgar improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 10-12-2019

Cons. Assunção Raimundo  (Relatora)

Cons. Ana Paula Boularot (Voto de Vencida)

Cons. Fernando Pinto de Almeida

SUMÁRIO

(Da relatora)

___________________
DECLARAÇÃO DE VOTO

Vencida, teria revogado o Aresto sob impugnação e julgado procedente a acção de investigação de paternidade.

Prima facie, e sempre s.d.r.o.c., entendo que o «direito à identidade pessoal» e o «direito à integridade pessoal» consagrados nos artigos 26º, nº1 e 25º, nº1 da Lei Fundamental, encontram-se ao serviço do núcleo essencial da pessoa humana e da sua vida, englobando o que se denomina os direitos da personalidade, estando o seu conteúdo delimitado, além do mais, pelo direito do individuo à sua historicidade pessoal, implicando necessariamente o direito ao conhecimento da identidade dos seus progenitores, aqui se fundando, logicamente, o direito à investigação da paternidade, além do mais, o qual é, por essência, imprescritível.

Aliás, em termos de direito comparado podemos destacar que os artigos 270º do Código Civil Italiano e 210º do Código Civil Holandês estabelecem a imprescritibilidade da acção para que o filho possa obter a declaração judicial da paternidade ou da maternidade; solução simétrica advém do disposto nos artigos 1606º do Código Civil Brasileiro, 133º do Código Civil Espanhol e 104º do Código da Família da Catalunha, de onde resulta que a acção de prova da filiação compete ao filho enquanto for vivo; idêntica posição é postulada pelos Códigos Civis Alemão e Austríaco, aí se não se encontrando expressamente previsto qualquer prazo para a instauração das acções deste jaez; e mesmo entre os Códigos que tiveram como modelo o Código Civil Português de 1966, alguns deles, como o Código Civil de Cabo Verde (artigo 1802.º), o Código de Família de Angola (artigo 184.º) e o Código Civil de Macau (artigo 1677.º), afastaram-se da nossa opção, tendo determinado que este tipo de acções pode ser proposta “a todo o tempo”.

O estabelecimento de um prazo de caducidade pela Lei – artigo 1817º do CCivil – está longe de constituir uma tema pacífico, em termos de direito constituído, o que tem conduzido a diferentes entendimentos jurisprudenciais neste Supremo Tribunal, maxime e  inter alia no sentido da inconstitucionalidade daquele prazo os Ac STJ de 21 de Setembro de 2009 (Relator Sebastião Póvoas), de 10 de Janeiro de 2012 (Relator Moreira Alves), de 14 de Janeiro de 2014 (Relator Martins de Sousa), de 16 de Setembro de 2014 (Relator Hélder Roque), embora este último numa situação paralela de impugnação de paternidade) e de 15 de Fevereiro de 2018 (Relatora Graça Amaral), in www.dgsi.pt.

Esta posição é idêntica à que deixei expressa no meu voto de vencida ao Ac deste STJ de 8 de Novembro de 2016 (Relator Fernandes do Vale), in www.dgsi.pt, a qual reitero, não obstante a declaração de constitucionalidade recentemente declarada pelo Tribunal Constitucional, invocada na tese que faz vencimento.

No caso dos autos, a materialidade fáctica apurada é mais que evidente no que tange aos laços de filiação, veja-se a percentagem obtida em sede de exame de ADN, além do mais, sendo incompreensível que tal prova seja ultrapassada pelo decurso de um prazo de caducidade, enquanto o direito de propriedade é imprescritível, cfr artigo 1313º do CCivil e os direitos de crédito ditos normais, prescrevem num prazo de vinte anos, cfr artigo 309º do mesmo diploma, ficando estes direitos, os de propriedade e os de crédito numa posição mais protegida que o direito à identidade pessoal, o que não deixa de suscitar enormes perplexidades num Estado de Direito.

(Ana Paula Boularot)

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[1] Assim ocorreu com o Ac. do STJ, de 21-3-13 (proc. nº 1906/11.7T2AVR.P1.S1), cuja decisão foi entretanto invertida na sequência de uma pronúncia do Tribunal Constitucional, dando origem ao Ac. do STJ, de 15-10-13; e com Ac. do STJ, de 27-5-14 (proc. nº 165/13.1TBVLR.P1.S1), a que se sucedeu novo aresto do STJ, de 13-1-15, em conformidade com o juízo de não inconstitucionalidade. Podemos ainda citar, de entre os acórdãos do STJ que continuaram a pronunciar-se no sentido da inconstitucionalidade dos prazos de caducidade estabelecidos no artigo 1817.º, os Acórdãos do STJ, de 21.03.2013 (processo nº 1906/11.7T2AVR.P1.S1), de 14.01.2014 (processo nº 155/12.1TBVLC-A.P2.S1), de 31.01.2017 (processo nº 440/12.2TBBCL.G1.S1) e de 15.02.2018 (processo nº 2344/15.8TB8BCL.G1.S2), todos acessíveis in www.dgsi.pt.
[2] Acórdão saído do Plenário do Tribunal Constitucional, que não julgou inconstitucional a norma do nº 1 do art. 1817º, que prevê o prazo de 10 anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante. No mesmo sentido, entre muitos outros, os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 309/2016 e 424/2016, In www.tribunalconstitucional.pt.
[3] Recurso n.º 394/2019, que conheceu o recurso para o Peno do Acórdão do TC n.º 488/2018, e que motivou a suspensão dos presentes autos nos termos do despacho de fls.192.