Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
11/13.6YFLSB.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: SOUTO DE MOURA
Descritores: HABEAS CORPUS
BURLA QUALIFICADA
PRISÃO ILEGAL
PENA DE PRISÃO
CUMPRIMENTO SUCESSIVO
LIBERDADE CONDICIONAL
Data do Acordão: 01/30/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: INDEFERIDO
Área Temática:
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS.
DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS - CRIMES CONTRA O PATRIMÓNIO / CRIMES CONTRA A PROPRIEDADE.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - MEDIDAS DE COACÇÃO - MODOS DE IMPUGNAÇÃO.
Doutrina:
- Jorge Miranda e Rui Medeiros, “Constituição da República Portuguesa”, Anotada, Tomo I, p. 344.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 222.º, N.º2. 223.º, N.º3.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 63.º, N.º3, 202.º, ALS. A) E B), E 217.º, N.º 1, 218.º, N.ºS1 E 2 AL. A).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 31.º, N.ºS 1 E 2, 32.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-Nº 423/03.
Sumário :

I  -   Estando a arguida em cumprimento de pena, a entidade que ditou tal pena é competente para o fazer, já que se trata do tribunal coletivo que subscreveu o acórdão. Os factos que presidiram à condenação são punidos com pena de prisão, tratando-se dum crime de burla qualificada dos arts. 218.º, n.º 1, 202.º, al. a), e 217.º, n.º 1, todos do CP, e de outro também de burla qualificada dos arts. 218.º, n.º 2, al. a), 202.°, al. b), e 217.º, n.º 1, todos do CP.
II -  O TEP só terá que colocar obrigatoriamente em liberdade condicional, a requerente, cumpridos que sejam 5/6 da soma das penas que tenham que ser cumpridas sucessivamente, de acordo com o n.º 3 do art. 63.º do CP. Mas, bem antes disso, será apreciada a colocação da arguida em liberdade condicional, quando se atingir a 1/2 da soma das penas em questão, o que terá previsivelmente lugar a 31-07-2014.
III - Não cabe nas finalidades da providência de habeas corpus apreciar a existência de nulidades processuais apontadas aos processos onde foi juridicamente aplicada a pena de prisão, nulidades que só em via de recurso ordinário podem ser arguidas. O pedido apresentado agora pela arguida apresenta-se, pois, como manifestamente infundado.
Decisão Texto Integral:

A – PEDIDO 

AA, ..., atualmente presa no Estabelecimento Prisional de Tires, redigiu pelo seu próprio punho um pedido de HABEAS CORPUS, com os fundamentos que em síntese se passam a referir:

A requerente esteve presa desde 31/7/2007, em cumprimento da pena de 8 anos de prisão, aplicada em cúmulo, à ordem do Pº 222/07.3PBCLD do Tribunal de Caldas da Rainha, tendo atingido os 2/3 da pena em 30/11/2012, nas suas palavras, “sem qualquer avaliação ou medida de flexibilização”.

A 12/12/2012 ficou ligada ao Pº 1480/05.3TALRA [do Tribunal da Comarca da Nazaré], o que constitui nulidade, por ser um processo em que está com termo de identidade e residência. “Pois se foi desligada de um processo posteriormente aos 2/3 da sua pena, sem nunca ter sido avaliada, foi ligada posteriormente a um processo sem trânsito em julgado pois o mesmo irá para novo recurso ou até novo julgamento.”

Entende pois que foi cometida uma “ligação ilegal a um processo com TIR, e ainda muito longe do seu desfecho final”.

Em documento que juntou, e que é uma fotocópia de ofício do Tribunal da Comarca da Nazaré (com referência ao Pº 1480/05.3TALRA), datado de 19/10/2012, fica-se a saber que a decisão proferida nos autos ainda não tinha naquela altura, transitado, por ter sido interposto recurso. E depreende-se do comentário escrito à mão pela requerente, em tal fotocópia, que o recurso terá sido do Mº Pº, que a requerente fora enganada pelo advogado, revogando a procuração, e que fora “interposto o justo impedimento pelo artigo 146º do Código de Processo Civil ”, querendo também ela recorrer. Nunca fora notificada de qualquer trânsito em julgado na sua pessoa, ou do advogado.

De tudo isto parece resultar, se bem se entende a sua pretensão, que a arguida considera que está presa em virtude de ato nulo, que seria o mandado de desligamento (fls. 5) em virtude do qual ficou a cumprir pena à ordem do Pº 1480/05.3TALRA.

B – INFORMAÇÃO A QUE SE REFERE O ART. 223.º, Nº 1 DO CPP.

Foi fornecida a informação do art. 223.º, nº 1, do CPP, nos termos da qual, a requerente foi condenada na pena de 8 anos de prisão no Pº 222/07.3PBCLD, do 1º Juízo do Tribunal Judicial das Caldas da Rainha cujo cumprimento se iniciou a 31/7/2007 [tempo de prisão a contar desde 31/7/2007].

Por acórdão proferido no Pº 1480/05.3TALRA e 1º Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça, transitado a 20/3/2012, foi condenada na pena de 6 anos de prisão.

A 12/12/2012 foi remetida a certidão do acórdão ao TEP de Lisboa (3º Juízo), tendo também aí sido recebida, então, a comunicação do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça, nos termos da qual interessava a ligação da reclusa AA ao referido Pº 1480/05.3TALRA.

Nessa mesma data, ao abrigo do art. 63º nº 1 do CP, o TEP ordenou a interrupção do cumprimento de pena à ordem do Pº Pº 222/07.3PBCLD, do 1º Juízo do Tribunal Judicial das Caldas da Rainha, e o ligamento ao Pº 1480/05.3TALRA, do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça.

Mais se informa que a arguida tem ainda pendente o Pº 791/07.8TAMGR do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça, e que a metade do somatório das penas em que a arguida se encontra condenada se atingirá a 31/7/2014, data em que será apreciada a liberdade condicional.

C - APRECIAÇÃO

Convocada a secção criminal e notificado o Ministério Público e o defensor, teve lugar a audiência (artº 223º, nº 3, e 435º do C. P. P.). Cumpre dar conta da apreciação que se fez da pretensão do requerente.

1 – A Constituição da República prevê ela mesma a providencia de Habeas Corpus, estipulando:

“Haverá Habeas Corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.” (nº 1 do artº 31º).

O nº 2 do preceito, a propósito da legitimidade para se lançar mão do instituto, apelida expressamente a medida em causa como “providencia”, o que a distancia dos recursos em sentido próprio, como meio de impugnação. Aliás é a própria Constituição que, no nº 1 do artº 32º, prevê:

“O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.”

Que a providência de Habeas Corpus se não confunde com os recursos parece consensual, importando, no entanto, atentar na questão do tipo de relação a estabelecer com estes. Desenham-se a tal propósito duas posições, procurando apurar-se o que está em jogo: “se uma tutela quantitativamente acrescida, na medida em que se refere a situações que não têm outra tutela, se uma tutela qualitativamente acrescida, na medida em que diz respeito a situações mais graves de privação da liberdade” (In Jorge Miranda – Rui Medeiros,  “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, pag. 344). A orientação jurisprudencial que este Supremo Tribunal vem defendendo aponta no primeiro sentido, o que foi também confirmado pelo Tribunal Constitucional (Acórdão nº 423/03).

Assentando a providencia de Habeas Corpus numa prisão ilegal, resultante de abuso de poder, e coexistindo enquanto meio impugnatório previsto pelo legislador, ao lado dos recursos, daí a sua caracterização como medida excecional. Excecional no sentido de estar vocacionada para atender a situações excecionais pela sua gravidade. Trata-se portanto de providência destinada a atalhar, de modo urgente e simplificado, a casos de ilegalidade patente, flagrante, evidente. Não de ilegalidade que se revele simplesmente discutível.

2 – O nº 2 do artº 222º do C.P.P. faz depender a procedência da petição de Habeas Corpus de um conjunto de circunstâncias taxativamente enumeradas. Concretamente, do facto de a prisão

“a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

  b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

  c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.”

Vejamos então se tem lugar qualquer dessas circunstâncias, e concretamente a da al. c) do preceito.

 3 –  Os dados fornecidos pelos autos permitem-nos reconstituir a seguinte sequência:

No Pº 222/07.3PBCLD do 1º Juízo do tribunal das Caldas da Rainha, a arguida foi condenada a 3 anos e 6 meses de prisão por acórdão de 5/7/2010. No acórdão de 19/5/2011 foi feito cúmulo desta com outras penas, e aplicada a pena conjunta de 12 anos e 6 meses de prisão. O STJ mudou esta pena, em recurso, para 8 anos de prisão.

Entretanto, a 31/7/2007, a arguida havia sido presa preventivamente à ordem do Pº 352/06.9TALRA do 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Leiria. Mas como havia sido condenada noutro processo, o Pº 350/02.1JALRA do mesmo 3º Juízo, ficou ligada a este último a 20/9/2007. As penas aplicadas nestes dois processos foram englobadas no cúmulo antes referido, feito a 19/5/2011, no Pº 222/07.3PBCLD do 1º Juízo do tribunal das Caldas da Rainha. Daí que a 28/2/2012 a requente tivesse ficado ligada ao Pº 222/07.3PBCLD. Depois, e como se viu, ficou ligada ao Pº 1480/05.3TALRA, do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça.

Na sua informação, o Merº Juiz refere que a arguida passou a cumprir pena à ordem deste Pº 1480/05.3TALRA, em virtude de decisão condenatória transitada em julgado a 20/3/2012. E, a fls. 36 e seg. destes autos, pode ver-se a certidão do acórdão proferido a 29/2/2012, no processo. Aí se certifica efetivamente que a decisão transitou em julgado a 20/3/2012. Portanto, bastante tempo antes, da data em que a arguida ficou ligada ao processo, que foi a 12/12/2012.

Tanto basta para que se considere não verificada qualquer das situações que, segundo o art. 222º, do CPP, pode fundamentar um pedido de Habeas Corpus.

Estando a arguida em cumprimento de pena, a entidade que ditou tal pena é competente para o fazer, já que se trata do tribunal coletivo que subscreveu o acórdão.

 Os factos que presidiram à condenação são punidos com pena de prisão, tratando-se dum crime de burla qualificada dos art.s 218º nº 1, 202º al. a), e 217º nº 1 todos do CP, e de outro também de burla qualificada dos art.s 218º nº 2 al. a), 202º al. b), e 217º nº 1 todos do CP (fls. 62).

O TEP só terá que colocar obrigatoriamente em liberdade condicional, a requerente, cumpridos que sejam 5/6 da soma das penas que tenham que ser cumpridas sucessivamente, de acordo com o nº 3 do art. 63º do CP. Mas, como se viu, bem antes disso será apreciada a colocação da arguida em liberdade condicional, quando se atingir a metade da soma das penas em questão, o que terá previsivelmente lugar a 31/7/2014.

Diga-se, a terminar, que a requerente já formulou pedido de Habeas Corpus equivalente, o qual foi indeferido por acórdão do STJ de 27/12/2012 (Pº 138/12.IYFLSB.S1, 5ª Secção, relatado pelo Conselheiro Rodrigues da Costa).

Aí invocou a falta de notificação pessoal da decisão proferida no Pº 1480/05.3TALRA, o que redundaria em nulidade, e portanto na falta de trânsito em julgado da decisão que a condenou, bem como o diferendo que opôs a arguida ao seu advogado.

Recordamos a passagem desse acórdão, em que nos revemos, onde se afirma que não cabe nas finalidades da providência de habeas corpus apreciar a existência de nulidades processuais apontadas aos processos onde foi juridicamente aplicada a pena de prisão, nulidades que só em via de recurso ordinário podem ser arguidas. 

O pedido apresentado agora pela arguida apresenta-se como manifestamente infundado.

D - DELIBERAÇÃO

Pelo exposto, e tudo visto, delibera-se neste Supremo Tribunal de Justiça indeferir, ao abrigo do artº 223º nº 4 e al. a) do CPP, o pedido de Habeas Corpus apresentado por AA.

sanção do art. 223.º, nº 6, do CPP: 6 UC

Taxa de Justiça: 2 UC.

Lisboa, 30 de janeiro de 2013

Souto de Moura (relator) **
Isabel Pais Martins
Carmona da Mota
(Acórdão e sumário redigidos de acordo com o novo Acordo Ortográfico)