Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9158/15.3T8VNG.P1. S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
COLIGAÇÃO DE CONTRATOS
UNIÃO DE CONTRATOS
RESOLUÇÃO
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
DENÚNCIA
REVOGAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
OBRAS
ARRENDATÁRIO
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
RESTITUIÇÃO DE IMÓVEL
TRADIÇÃO DA COISA
RENDA
INDEMNIZAÇÃO
MORA
JUROS DE MORA
Data do Acordão: 09/29/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Sendo celebrados, em simultâneo, um contrato de arrendamento para habitação, com duração limitada, e um contrato de compra e venda do mesmo imóvel, entre os mesmos sujeitos, sem subordinação de um contrato ao outro, cada um destes contratos é autonomamente disciplinado pelo correspondente regime legal.
II - Extinguindo-se o contrato de arrendamento, por iniciativa do arrendatário (promitente comprador), tem este a obrigação de restituir o imóvel ao locador (promitente vendedor), por não se ter provado que o imóvel sempre teria sido entregue pelo promitente vendedor ao promitente comprador tendo por base a celebração do contrato promessa.
III - Mantendo-se o ex-arrendatário no gozo do imóvel, depois de ter sido interpelado pelo locador para a sua restituição, a mora no cumprimento deste dever tem como consequência o pagamento de uma indemnização correspondente ao dobro do valor da renda - art. 1045.º, n.º 2, do CC - até efetivo cumprimento da obrigação de restituição.
Decisão Texto Integral:

Processo n. 9158/15.3T8VNG.P1. S1

Recorrente: AA

Recorrida: “Massa Insolvente de Plazadouro - Investimentos Imobiliários, S.A”

I. RELATÓRIO:

1. “Plazadouro - Investimentos Imobiliários, S.A.”, com sede em ... propôs (em 27.10.2015) ação, sob a forma comum, contra AA, com domicílio ..., na qual formulou os seguintes pedidos:

a) Condenação do Réu a reconhecer o direito da Autora à restituição da fração autónoma identificada no artigo 1º da petição inicial, e objeto de contrato de locação, devendo o Réu ser condenado, cumulativamente:

b) A entregar à Autora o locado, livre de pessoas e bens e no estado em que o Réu o recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização;

c) A pagar à Autora as rendas vencidas e não pagas devidas entre janeiro de 2014 e maio de 2014 (referentes aos meses de fevereiro a junho de 2014), que perfazem 5.323,34 €, acrescidas de indemnização no valor de 50 % das rendas em mora, que perfaz 2.661,67 €;

d) A pagar à Autora, a título de indemnização pela não restituição do locado, o dobro das rendas que seriam devidas desde a data para a qual o Réu denunciou o contrato de arrendamento (30 de Junho de 2014) até que tal restituição ocorra, ou seja, à razão de 2.133,52 € por mês, o que, até à presente data, perfaz o montante de 34.136,32 €;

e) A pagar à Autora juros de mora desde a citação para a presente ação até efetivo pagamento, sobre as quantias devidas nos termos atrás referidos.

 

2. Alegou para o efeito, e em síntese, ter celebrado com o Réu um contrato escrito de arredamento por prazo certo, tendo por objeto a fração autónoma identificada no artigo 1º da p.i., tendo ainda sido acordado entre as partes uma promessa de compra e venda, nos termos do respetivo escrito, cuja cópia consta a fls. 9 a 12.

Acrescentou ter o Réu resolvido (denunciado) aquele contrato de arrendamento, para produzir efeitos a partir do final de Junho de 2014, e bem assim comunicado a resolução do aludido contrato-promessa, por perda de interesse na aquisição da dita fração; para ambas as situações invocando a falta de condições de habitabilidade da mesma, apresentando vícios que, apesar de comunicados à Autora, nunca haviam sido solucionados, motivação essa que não correspondia à verdade e sendo insubsistente para considerar justificada a cessação dos aludidos contratos;

Alegou, ainda, que o Réu deixou de liquidar as rendas que se venceram entre janeiro e maio de 2014, para além de não ter restituído o locado, livre de pessoas e bens, a partir da data por aquele fixada para a cessação do contrato de arrendamento, razão pela qual eram devidos os montantes das rendas e respetiva indemnização peticionados, bem assim a desocupação da identificada fração.

3. O Réu apresentou contestação, na qual se defendeu por exceção e impugnação, arguindo a caducidade do direito da Autora em ver cessado o contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas; alegou ter resolvido ambos os contratos (de arrendamento e promessa de compra em venda) com justa causa, por a aludida fração apresentar deficiências que não possibilitavam a sua ocupação, apesar da Autora ter sido interpelada para proceder à competente reparação, mas sem que se tivesse disponibilizado a concretizá-la, o que justificava o não pagamento das rendas peticionadas, e bem assim a não entrega da aludia fração, por ao contestante assistir mantê-la em seu poder na base do direito de retenção que lhe assistia.

Concluiu pela improcedência das pretensões formuladas pela Autora, e deduziu reconvenção consistente no reconhecimento a favor do demandado do direito de retenção sobre a identificada fração e condenando-se a Autora a pagar ao Réu o montante de 100.000 €, equivalente ao dobro do sinal prestado no âmbito do aludido contrato-promessa, acrescido de juros de mora até seu efetivo e integral pagamento.
A autora replicou, sustentando a improcedência do pedido reconvencional.

4. Findos os articulados, e tendo sido dado conhecimento do estado de insolvência da autora declarado por sentença de 4.11.2016, a respetiva Massa Insolvente constituiu mandatária a patrona que havia desencadeado a lide, requerendo o seu prosseguimento para conhecimento dos pretensões inicialmente formuladas.

Foi proferido despacho a dispensar a realização de audiência prévia, a fixar o valor da ação e a julgar extinta a instância quanto ao pedido reconvencional.

5. A primeira instância proferiu sentença a julgar parcialmente procedente a ação, no respeitante aos pedidos inicialmente deduzidos, com a consequente condenação do Réu «a pagar à Autora as rendas até à data da operação de efeitos da resolução contratual - data da receção da carta, abril de 2014». Mas sendo absolvido dos demais pedidos contra o mesmo formulados.

6. Inconformada com tal decisão, a autora interpôs recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação decido:

«julgar parcialmente procedente a apelação interposta pela Autora e, nessa medida, alterando-se o sentenciado, condena-se o Réu nos termos seguintes:

a) A entregar à Autora a identificada fração, livre de pessoas e bens;

b) A pagar à Autora as rendas vencidas entre janeiro e maio de 2014, acrescidas da respetiva indemnização, a totalizar o montante global de 7.985,01 €;

c) A pagar à Autora a indemnização mensal de 1.066,76 €, entre julho de 2014 e a data da citação do demandado para os termos da ação;

d) A pagar à Autora a indemnização mensal de 2.133.52 €, a partir da citação do demando até à efetiva entrega da mencionada fração;

e) A pagar juros de mora sobre os referidos montantes, nos termos acima definidos.»

7. Inconformado o réu, interpôs o presente recurso de revista, em cujas alegações formulou as conclusões que se transcrevem:

«I. Vem o presente recurso de revista interposto do acórdão que julgou procedente a acção de processo comum e, consequentemente, condenou o Réu, ora Recorrente, no pedido formulado pela Autora, ora Recorrida;

II. O Recorrente não pode conformar-se com tal decisão, uma vez que se verifica uma clamorosa errada aplicação do direito ao caso vertente,

III. Pelo que se recorre da matéria de direito fixada pelo Tribunal a quo, que erradamente aplicou o regime jurídico pertinente à factualidade provada.

IV. Entendeu o Tribunal recorrido, ao contrário da sentença proferida em sede de 1ª instância, impender sobre o Réu a obrigação de indemnizar a Autora, pelas rendas vencidas e não pagas, assim como pela ocupação do locado.

V. Neste conspecto, considerou o Tribunal a quo estar ferida de ilicitude a resolução do contrato de arrendamento operada pelo Réu.

VI. Ilicitude essa que derivaria da falta de fundamento legítimo para tal resolução, uma vez que não se verificaria o disposto no art. l083°, n.5 do CC.

VII. Segundo aquele tribunal, não incumpriu a Autora a sua obrigação de reparar os defeitos verificados no imóvel (facto provado n.21) (arts.1031°, b e 1074º, n. l do CC).

VIII.   Razão  pela  qual  não  assistiria  ao  Réu  fundamento  bastante  para licitamente resolver o contrato de arrendamento.

IX. Tal solução repudia-se, por ser manifestamente infundada perante a factualidade provada e perante a ordem jurídica.

X. Fundamenta-se a Relação na factualidade vertida nos pontos 23 e 29 para afirmar que o Réu impediu o acesso da A. ao locado para que esta pudesse fazer as reparações que lhe competiam.

XI. Ora, antes de mais, o aludido ponto 23 dos factos provados nada dá como provado a não ser que entre a A. e o engenheiro responsável pelas reparações se desenrolou determinada comunicação.

XII. Dele se extrai, apenas, isso mesmo; nada se apurando quanto à veracidade do conteúdo da aludida comunicação.

XIII. Nem quando lido conjuntamente com o ponto 29 se pode extrair tal conclusão, pois este último carece da contextualização oferecida pela própria fundamentação avançada pela Relação para o dar como provado.

XIV. Nomeadamente, aí refere o Tribunal a quo se ter sustentado, para alterar neste conspecto a matéria de facto, no depoimento da testemunha BB, considerando tal depoimento como válido e de extrema importância.

XV. Ora, como o próprio tribunal recorrido refere, desse depoimento extrai-se também que a testemunha em apreço, o engenheiro responsável pelas reparações, se havia já deslocado ao imóvel por três vezes, sem nada ter reparado em nenhuma delas.

XVI. Só na sua quarta deslocação foi a Autora, na pessoa do referido Sr. Engenheiro BB, impedido de aceder ao locado.

XVII. Portanto, desde logo, ao contrário do afirmado pelo Tribunal a quo, o Réu não impediu a A. de aceder ao locado para fazer as devidas reparações.

XVIII. Ao invés, foi a Autora que, em três visitas sucessivas ao imóvel arrendado pelo Réu, nada reparou, limitando-se a criar a aparência de que estaria a cumprir as obrigações que lhe são impostas, nos termos do art. l031°, b) e 1074º do CC. 

XIX. Assim, já não seria exigível ao Réu aceder a uma quarta visita da Autora.

XX. É que, atento o imposto pelo princípio da boa fé e pelo princípio da confiança, não era exigível ao Réu confiar que seria à quarta visita que a Autora iria reparar o imóvel.

XXI. O facto de por três vezes ter acedido ao locado sem nada reparar inculca no Réu a confiança justificada no facto de a Autora apenas pretender aparentar que tencionava resolver os defeitos invocados por aquele.

XXII. Não se comportou, portanto, a Autora, de forma honesta, correcta e leal, pelo que a exigência de aceder ao imóvel mais uma vez consubstancia um abuso de direito (art.334°), intolerável atentos os ditames da boa fé.

XIII. Assim sendo, e daqui se concluindo que não cumpriu a Autora as obrigações de reparação do locado que sobre ela impendiam por facto que só àquela é imputável, não cumpriu a sua obrigação capital de assegurar o gozo do locado.

XIV. O que, tudo somado, confere ao autor o direito potestativo de resolver o contrato, nos termos do disposto no art. l083°, n.5 do CC.

XXV. Além disso, até ao momento em que operou tal resolução, e uma vez que as condições de habitabilidade do imóvel se encontravam precludidas devido aos defeitos verificados no mesmo, tinha o Réu o direito de não pagar as rendas vencidas, uma vez que o não pagamento integral das mesmas é proporcional à privação do gozo do locado pelo mesmo sofrida, atenta a gravidade dos defeitos aludidos.

XXVI. Pelo que, bem vistas as coisas, nada deve o Réu a título de rendas vencidas, nem qualquer indemnização pelo não pagamento das mesmas.

XXVII. Decidiu ainda o Tribunal, com fundamentação que igualmente se repudia, condenar o Réu na restituição do locado à Autora.

XXVIII. Ora, tal só seria admissível se, tal como o Tribunal recorrido entendeu, o que desde já não se concede, o contrato-promessa de compra e venda do imóvel entre as partes celebrado em simultâneo com o supra mencionado contrato de arrendamento não influenciasse esta exacta problemática.

XXIX. Antes de mais, recorde-se que, como notou o Tribunal de 1ª instância, o contrato-promessa, que tem como objecto o mesmo imóvel que subjaz ao arrendamento ora em crise, ainda se encontra em vigor, não lhe sendo aposto, neste momento, qualquer prazo para o seu cumprimento.

XXX.     Não se verificou, por isso, nenhum incumprimento definitivo do mesmo.

XXXI. Acresce que entre os dois referidos contratos intercede uma especial relação de interdependência.

XXXII. Relação essa que se consubstancia num nexo funcional e num vínculo substancial que impede que se olhe para cada um deles, não obstante conservarem a sua individualidade, de forma autónoma e isolada.

XXXIII. Pelo que tal relação sempre terá implicações em aspectos determinados do regime jurídico de cada um deles.

XXXIV. Ademais, adquire, no âmbito de tal relação de co-dependência, o referido contrato-promessa uma capital centralidade teleológica que o configura como causa e pilar da relação contratual existente entre as partes ora em juízo.

XXXV. Pelo que se poderá dizer assumir o contrato-promessa de compra e venda do imóvel as vestes de contrato dominante e causal sobre e do contrato de arrendamento.

XXXVI. Essa mesma relação é demonstrada pelo facto (facto provado n.5) de não só logo no momento da celebração se ter pago o sinal (pelo Réu, obviamente), como as rendas pagas até ao momento da celebração do contrato prometido se terem como parcialmente dedutíveis no preço do imóvel acordado entre as partes.

XXXVII. Esta característica implica até que se perspective o contrato celebrado entre as partes como teleologicamente análogo ao contrato de leasing, o que reforça a centralidade da promessa de compra e venda, pois que a finalidade económica da relação contratual levada aos autos sempre foi, afinal, a transmissão onerosa da propriedade do imóvel.

XXXVIII. Ora, tendo em conta tal relação funcional entre os aludidos contratos, é impossível defender, como faz a Relação, que a traditio do imóvel ocorre apenas no âmbito do contrato do arrendamento, quando ela claramente se dá ao abrigo e por causa do contrato-promessa.

XXXIX.    Assim sendo, e encontrando-se tal contrato por cumprir, não impende sobre o Réu nenhuma obrigação de restituir o locado.

XL. É que, como se sabe, a detenção do imóvel é legítima até ao momento em que se celebre a compra e venda ou até que alguma das partes opere a resolução da promessa, porque, desde logo, foi pela proprietária do imóvel consentida (a detenção).

XLI. Pelo que a extinção da instância reconvencional, que prejudicou o reconhecimento do direito de retenção do imóvel a título da obrigação, a cargo da Autora, de restituir o dobro do sinal (obrigação que nem sequer se verificou, uma vez que, como já se referiu, o contrato-promessa permanece em vigor), em nada prejudica que agora se reconheça, como se impõe, a legitimidade do Réu para ocupar o imóvel,

XLII.    Sendo que não se lhe impõe restituir o mesmo.

XLIII. O que implica, igualmente, que nada seja devido pelo Réu à Autora, a título de indemnização pela ocupação do locado, uma vez que tal detenção é perfeitamente lícita face à juridicidade a que é subsumível a factualidade provada.

Termos em que, com o mui douto suprimento de V. Exas deve ser dado provimento ao presente Recurso de Revista, negando o Tribunal ad quem, in totum, o Acórdão recorrido e, consequentemente, confirmando, in totum, a Douta Sentença proferida pelo tribunal de 1ª instância. Com o que se fará a tão costumada Justiça.»

8. A recorrida contra-alegou defendendo, em síntese, a improcedência do recurso. 

II. ANÁLISE DO RECURSO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS:

1. Admissibilidade do recurso:

Preenchidos os pressupostos gerais de admissibilidade, e tendo o acórdão recorrido revogado a decisão da primeira instância, em sentido desfavorável ao recorrente, a revista é admissível, nos termos do art.671º, n.1 do CPC.

2. O objeto do recurso:

O objeto do recurso é, em termos gerais, delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, para além das questões de conhecimento oficioso, nos termos dos artigos 608º, n.2, 635º, n.4, e 639º do CPC.

No objeto do presente recurso cabe apenas a apreciação de questões jurídicas já conhecidas pelo acórdão recorrido, pelo que aqui não cabe conhecer de qualquer questão nova, nem, tão-pouco, de rebater simples argumentos jurídicos apresentados pelo recorrente.  

 Nas conclusões das suas alegações, para além de discorrer sobre matéria de facto (sobretudo nos pontos X a XXI), que é irrelevante para a delimitação do objeto do presente recurso, o recorrente sustenta a sua discordância do acórdão recorrido em duas ordens de razões.

Por um lado, alega [no ponto XXVI das suas conclusões] que nada deve a título de rendas vencidas, nem qualquer indemnização pelo não pagamento das mesmas, porquanto [afirma no ponto XXV], atendendo à existência de defeitos no local arrendado, entende que tinha o direito de não pagar as rendas.

Por outro lado, quanto à obrigação de restituir o imóvel, afirma [ponto XXIX e seguintes] que o contrato-promessa, que tem como objeto o mesmo imóvel, ainda se encontra em vigor, não havendo prazo estabelecido para o seu cumprimento. Consequentemente, e por entender que o regime deste contrato é dominante face ao regime do contrato de arrendamento, a detenção do imóvel seria legítima até ao momento da celebração do contrato prometido ou até que alguma das partes proceda à resolução do contrato promessa. Por essa razão, também nada deveria à autora a título de indemnização pela ocupação do imóvel.

Embora nas conclusões das alegações do recorrente não se identifique uma específica e expressa impugnação do segmento decisório que o condenou a pagar juros de mora sobre os montantes que foi condenado a pagar a título de rendas e de indemnizações, deve, porém, concluir-se que esse segmento decisório se encontra implicitamente impugnado quando o recorrente manifesta a sua discordância com o pagamento daquelas quantias pecuniárias.

O segmento decisório que condena o réu a pagar as rendas vencidas, e não pagas, na vigência do contrato, apesar de confirmar a condenação proferida pela primeira instância, não apresenta, porém, total coincidência quanto à fundamentação e à extensão de tal decisão, pelo que, não existindo uma nítida duplicidade confirmatória de um segmento decisório claramente autonomizável, não se deve excluir a revista nessa parte.

Assim, as concretas questões a apreciar no presente recurso são as de saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação do direito quando condenou o réu:

1ª – a entregar à autora a fração autónoma identificada no ponto 1º da factualidade provada:

2ª – a pagar as rendas vencidas, na vigência do contrato de arrendamento, entre janeiro e maio de 2014 e inerente indemnização, no valor total de 7.985,01 €;

3ª – a pagar o valor mensal de 1.066,76€, entre julho de 2014 e a data da citação do réu para a presente ação;

4ª – a pagar a indemnização de 2.133.52 € (correspondente ao dobro da renda), a partir da citação e até à efetiva entrega do imóvel;

5ª – a pagar juros de mora sobre os montantes referidos nos pontos anteriores.

3. A factualidade provada:

Após alterações introduzidas pela segunda instância (que abrangeram os pontos xx e xx) a factualidade provada ficou definida nos seguintes termos:

« I - A Autora celebrou com o Réu, em 4 de Fevereiro de 2011, contrato de arrendamento de duração limitada para habitação e contrato-promessa de compra e venda da fração "ET", correspondente a uma habitação Tipo T2, no 0º …, do ..., corpo …, com entrada pelo n.00 da Rua ..., em ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 52 da União de Freguesias de ... (ex artigo 821 da Freguesia de ...) e registada na 1ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.341 - ..., com licença de utilização n. 237/09, emitida pela C. M. de ... em 8 de Maio de 2009.

2. O contrato de arrendamento para habitação foi celebrado por prazo certo de 2 anos, com início em 1 de março de 2011, sujeito a renovações automáticas de 1 ano, tendo sido acordada a renda anual inicial no valor de 11.880€, paga em duodécimos mensais de 990€, no 1º dia útil anterior ao mês a que respeitava e sujeita a atualizações anuais;

3. Fruto de atualizações anuais, a renda mensal vencida em janeiro de 2014 era de 1.056,30 € e a vencida em fevereiro de 2014 passou a ser de 1.066,76 €;

4. Foi, ainda, acordado entre as partes que, caso o locatário, ora Réu, pretendesse opor-se à renovação do contrato de arrendamento deveria fazê-lo com 120 dias de antecedência em relação ao termo do prazo, não podendo fazê-lo cessar unilateralmente antes do prazo inicial de 2 (dois) anos ou durante uma renovação em curso;

5- Uma vez que o referido contrato comportava, não só um contrato de arrendamento, mas também um contrato-promessa de compra e venda da mesma fração autónoma, foi acordado entre as partes que o preço de compra e venda da mesma fração seria de 200.000 €, a pagar da seguinte forma:

a) Como sinal e princípio de pagamento e na data de assinatura do mesmo contrato, o ora Réu entregou à ora Autora a importância de 40.000 €;

b) Como reforço de sinal, o ora Réu entregou à Autora 10.000 €,00 (a pagar até 30 de julho de 2011);

c) O remanescente do preço, ou seja 150.000 €, seria a pagar até 31 de janeiro de 2013, no ato da escritura de compra e venda que deveria ocorrer no prazo de 24 meses após a assinatura do contrato;

6. As partes acordaram ainda que, sendo a escritura pública de compra e venda
celebrada dentro do prazo estipulado, ou seja, 24 meses a contar da data de assinatura do
referido contrato-promessa de compra e venda, ao preço acordado seria deduzido o seguinte:

a) O equivalente a 70 % do valor das rendas efetivamente pagas até à data de assinatura da escritura pública de compra e venda, caso esta se realizasse nos primeiros 12 meses a contar da assinatura do contrato-promessa de compra e venda;

b) O equivalente a 50 % do valor das rendas efetivamente pagas até à data de assinatura da escritura pública de compra e venda, caso esta se realizasse entre o 13º mês e os 24 meses a contar da assinatura do contrato promessa de compra e venda;

7. Bem como ficou acordado que incumbe ao locatário, aqui Réu, o dever de notificar a ora Autora para a celebração da escritura pública de compra e venda com uma antecedência mínima de 30 dias;

8. Expressamente, mais foi estipulado (cláusula 11):

 “Se o locatário dentro do prazo referido no n. 2 antecedente não notificar a locadora ou, tendo-o feito, não comparecer na data designada para a escritura em condições de a celebrar, perde de imediato o direito ao sinal pago e reforços de sinal, os quais reverterão integralmente a favor da locadora, mantendo-se o contrato de arrendamento

Em caso algum haverá lugar à restituição, pela locadora, das rendas que lhe foram pagas na vigência do arrendamento ...”.

9.  Ao abrigo do contrato de arrendamento, o Réu tomou posse da fração e começou
a habitar a mesma
contra o pagamento da renda mensal;

10. Mas dentro do prazo de 24 meses a partir da assinatura do contrato promessa de compra e venda, acordado para o efeito, o Réu não notificou a Autora para fazer a escritura de compra e venda;

11. No final dos 24 meses em causa, o Réu referiu à Autora que mantinha todo o interesse na compra, mas que por razões pessoais não lhe convinha fazer a mesma nessa altura e pediu que a Autora tolerasse aguardar mais 12 meses, até Março de 2014, ao que a Autora acedeu de boa-fé, ainda dando uma oportunidade ao Réu de fazer a compra da habitação nos 12 meses seguintes;

12. Findo o período suplementar dos 12 meses que a Autora acedeu a esperar pela realização da escritura, o Réu voltou a pedir que a Autora que aguardasse outros 12 meses (até Janeiro de 2015) para ser celebrada a escritura de compra e venda do imóvel, pedido que fez pessoalmente ao Sr. Paulo Ribeiro, director de departamento da Autora;

13. Em resposta a tal pedido, aquele último comunicou ao Réu que este novo adiamento só seria aceite se fosse feita a adaptação do contrato-promessa e em especial passasse a constar da respectiva al. b), da Cláusula l1.9 que só seria deduzido ao preço final a pagar pela compra e venda o equivalente a 25 % do valor das rendas efectivamente pagas até à data da celebração da escritura;

14. Por email, datado de 3.2.2014, o Réu respondeu, solicitando, quanto à alteração da al. b), da Cláusula 11.9 do contrato-promessa de compra e venda, que:

"... a redução da percentagem de 50 % para 25 % da dedução dos valores pagos até à escritura seja apenas relativa a este ano e que o que está para trás, ou seja a dedução de 50 %, se mantenha quanto aos 3 anos já cumpridos desde o contrato promessa de compra e venda";

 15. Autora e Réu não chegaram a entendimento, pelo que não foi acordado nenhum novo adiamento da data limite para ser feita a compra e venda;

16. Entretanto e a partir de Janeiro de 2014 (inclusive) o Réu deixou de pagar as rendas devidas ao abrigo do contrato de arrendamento;

17. Em 12 de Março de 2014 encontravam-se já vencidas e não pagas as rendas relativas aos meses de Fevereiro, Março e Abril de 2014, no montante de 2.970 €

18. O Réu, por carta de 29 de Março de 2014, e recebida pela Autora em 7 de Abril de 2014, comunicou à Autora:

            1. A denúncia do contrato de arrendamento, com efeitos a partir de 30 de Junho de 2014;

2. A perda de interesse na compra do imóvel objecto do contrato-promessa de compra, invocando a sua resolução por incumprimento por parte do promitente vendedor, ora Autora (que consubstancia nas als. a) a g), do n. 2 da carta expedida), e pedindo a devolução do sinal prestado em dobro no prazo de 8 dias, findo os quais procederia à via judicial e gozaria do direito de retenção do imóvel após a extinção do contrato de arrendamento;

 19. A Autora, em 15 de Abril de 2014, por carta registada com aviso de recepção, respondeu ao Réu, exigindo o pagamento das rendas vencidas e não pagas à data, acrescidas da indemnização legal de mora, rejeitando a existência de qualquer justa causa para a resolução do contrato-promessa de compra venda, negando o alegado direito do Réu à devolução do sinal em dobro e recordando que foi o Réu quem entrou em incumprimento contratual e não a Autora;

20. O imóvel é de boa construção;

21. Ocorreu incidente consubstanciado numa fuga de água da base do chuveiro do WC de apoio, devidamente participado ao seguro, e que foi objecto de peritagem e testes para detectar a causa do problema;

22. Na sequência do incidente ocorrido foram dadas instruções pela Autora aos serviços técnicos para agendar com o Réu o início da intervenção para resolver o mesmo;

 23. O engenheiro responsável por agendar a intervenção informou a Autora que o Réu ficara de confirmar a data inicialmente proposta para início dos trabalhos, o que não fez, dando origem a vários pedidos de contacto do mesmo para reagendamento;

24. Foi enviada carta pela Autora ao Réu (Abril de 2014), em que a Autora solicitou ao Réu o contacto imediato e direto com Autora ou com o Sr. Eng. BB, o qual aguardava a marcação da data para início da reparação, uma vez não é possível aceder à fracção sem a colaboração do Réu, alertando-o de que, não o fazendo no prazo máximo de 8 dias após ser recebida a mesma comunicação, seria o Réu responsabilizado pelos danos causados no prédio por não permitir o acesso à fracção para reparação;

25.  Entre o final de Janeiro e o princípio de Fevereiro de 2014, o Réu informou a Autora de deficiências de construção que surgiram na fracção arrendada, nomeadamente de infiltrações de humidades que provocavam deteriorações em aposentos dessa mesma fracção[1].

26. Em 29 de Janeiro de 2014, por correio eletrónico, a Autora informou o Réu que permitiria um novo adiamento da escritura, por mais um ano, ou seja, até 1 de Março de 2015, mas que só o faria mediante a alteração da Cláusula 11ª, al. b) do referido contrato-promessa, concretamente passaria a ter a seguinte redacção:

será deduzido o equivalente a 25 % do valor das rendas efectivamente pagas até à data da celebração da escritura", portanto, uma redução de 50 %, para 25 %;

 27. Em 3 de Fevereiro de 2014, o Réu, em resposta, solicitou à Autora que a redução da percentagem de 50 % para 25 % da dedução dos valores pagos até à escritura fosse apenas relativa ao ano de 2014 e não de todas as rendas já liquidadas nos últimos 3 anos, devendo estas serem deduzidas nos termos inicialmente acordados;

28. O Réu não recebeu qualquer resposta à sua proposta.

29. As deficiências manifestadas na dita fracção, tal como referido no Ponto 25 supra, após serem comunicadas à Autora, foram objecto de levantamento por parte desta última, na sequência de visita pela mesma ordenada, mas não vieram a ser reparadas por o Réu não ter acertado com a Autora uma data em que seria facultado o acesso a essa fracção[2].

30.  O Réu deixou de pagar as rendas em Janeiro de 2014;

31. O Réu comunicou à Autora [carta mencionada em 18], em 29 de Março de 2014, a sua intenção de denúncia do contrato de arrendamento e a perda de interesse na compra do imóvel objecto do contrato promessa de compra e venda. Mais se menciona em tal missiva:

“1º- A denúncia do contrato tem subjacente a falta de condições que o imóvel oferece, pois devido às infiltrações de água ... sem que até à presente data fossem resolvidas pelo locador, que apenas se limitou a visitar o imóvel e fazer um levantamento dos danos.

2º - No que ao contrato promessa de compra e venda diz respeito ... perdeu o aqui declarante o interesse na compra do imóvel referido ... desde logo porque:

a) O imóvel tem infiltrações de água que já originaram o levantamento de soalho, deslocações de móveis, caída de rodapés, danificação de paredes, com lesões no vizinho do andar de baixo do aqui declarante, retirada de imóveis da casa de banho;

b) Acresce que o edifício objecto do contrato promessa não tem os padrões de qualidade publicitados, as paredes não têm o isolamento adequado, uma vez que se ouvem os vizinhos nos andares, existem infiltrações, as portas estão empenadas;

c) Um edifício que se publicitava como um lugar adequado ou destinado à residência de pessoas de classe média alta, um lugar com reserva da vida privada dos condóminos, tem a garagem constantemente aberta, face ao entra e sai de pessoas que arrendaram lugares de garagem e que nenhuma ligação existe com o edifício, pois são pessoas que trabalham em escritórios de um outro edifício; ora não pretende o aqui declarante comprar uma fracção cuja garagem é um parque de estacionamento para pessoas não condóminas no edifício;

d) Acresce que foram várias as interpelações para restauro/reparação da fracção, interpelações essas que até à presente data não surtiram qualquer efeito;

e) Está assim privado o aqui declarante de usar o imóvel na totalidade;

f) O declarante está depressivo por ter sido induzido em erro quanto à qualidade do edifício que se propunha a comprar

g) Foi publicitado um produto de grande qualidade, quando na verdade a construção tem várias anomalias a diversos níveis”.

32. A Autora, através de carta de 15.04.2014 remetida ao Réu e em resposta à comunicação deste último mencionada no Ponto anterior, declinou qualquer responsabilidade e rejeitou a existência de justa causa para a resolução dos contratos de arrendamento e de promessa de compra e venda, apenas reconhecendo ter ocorrido no imóvel (dita fracção) uma fuga de água da Base do chuveiro do WC de apoio[3].

33.  Até hoje, volvidos mais de dois anos após o envio da carta mencionada em 18. e 31., o imóvel não foi alvo de quaisquer intervenções ou reparações por parte da Autora.

34. O Réu, através de carta de 5.7.2016, recebida pela Autora, e cujo teor consta a fls. 76v a 77, comunicou a esta última, entre o mais, que estava disponível para agendar uma reunião no intuito de ser realizada uma visita ao imóvel, afim de serem verificados os defeitos de construção que originavam infiltrações de água[4].»

*

4. O direito aplicável:

4.1. A questão da restituição do imóvel.

A questão de saber se o recorrente tem, ou não, o dever de restituir o imóvel à recorrida tem subjacente não apenas a análise da extinção do contrato de arrendamento, mas também a relação entre este contrato e o contrato-promessa de compra e venda, de modo a apurar qual o ato que sustentou a transferência do gozo do imóvel para o réu-recorrente.

Considera-se definitivamente assente nos autos que o contrato de arrendamento se encontra extinto, pois nenhuma das partes discorda de tal facto.

Todavia, a qualificação jurídica do modo como o arrendatário-recorrente procedeu a essa extinção não foi absolutamente coincidente nas decisões das instâncias, e não é consensual no entendimento das partes. Alega o recorrente que procedeu à resolução do contrato, com base no art.1083º, n.5 do CC, dada a falta de realização de obras pela recorrida. Esta, nas suas contra-alegações, sustenta que o contrato foi extinto por denúncia do arrendatário, e não por resolução.

O acórdão recorrido, apesar de hesitações quanto à qualificação do modo de extinção do contrato de arrendamento, acabou por concluir que esse contrato se extinguiu por denúncia.

O acórdão recorrido sustentou a extinção do contrato de arrendamento nos termos que se transcrevem:

«Na sentença impugnada concluiu-se que a comunicação (carta) dirigida pelo Réu à Autora e reportada nos Pontos 18 e 31, mais precisamente no que dizia respeito ao contrato de arrendamento, equivalia a uma declaração resolutiva, tendo em vista pôr termo a esse contrato com a invocação de justa causa, posto outro não poder ser o alcance a ser atribuído ao naquela carta vertido segundo as regras da hermenêutica negocial que decorrem, nomeadamente, do prescrito nos arts. 236 e 238 do CC.

Neste aspecto cremos assistir inteira razão ao tribunal “a quo”, pois que apesar de na dita carta ser utilizada a expressão “denúncia do contrato” para ter “efeitos a partir de 30 de Junho de 2014”, aí se indica o fundamento para a cessação do contrato, ou seja, uma invocada “falta de condições que o imóvel oferece”, decorrente de “infiltrações de água”, com reflexos nos aposentos da fracção, sem que fossem solucionadas pela Autora.

Ora, sendo invocados motivos para a cessação desse contrato, cremos estar-se perante uma declaração resolutória e não de denúncia, sendo que aquela é caraterizada por lhe subjazer a invocação dum fundamento normalmente sustentado no incumprimento, enquanto a última decorre da manifestação para a cessação do contrato sem necessidade de ser indicada a respectiva causa ou motive (…).

Desta forma e ao contrário do que vem expendido no discurso alegatório da recorrente parece não sobrarem motivos para, diante da falada manifestação de vontade do Réu, deixar de considerar que foi visada a cessação do aludido contrato de arrendamento por via da sua resolução. (…)

Na decisão impugnada entendeu-se que da realidade dada como apurada decorria a comprovação de justa causa para fundamentar a resolução do aludido contrato, posto que a Autora havia violado a obrigação, enquanto locadora, de manter o locado em condições de habitabilidade, sendo que sobre a mesma impendia o dever de concretizar as obras indispensáveis a essa finalidade.

Sendo inquestionável impender sobre a locadora a obrigação de concretização de obras de reparação, desde logo como princípio geral a atender para os termos do art. 1031, al b) e 1074, n. 1, ambos do CC, é certo também que, na concreta situação em litígio, essa obrigação se impõe, por princípio, à Autora/recorrente, atento o que é possível extrair da realidade vertida no conjunto dos Pontos 25 e 29, de onde resulta a existência de infiltrações de humidades na dita fracção arrendada, a exigirem a competente reparação.

Ainda que dos assinalados Pontos não resulte a exacta dimensão das deficiências manifestadas no locado por força da infiltração de humidades, com o pormenor indicado na comunicação dirigida pelo Réu à Autora (carta reportada no Ponto 31 supra), sempre é possível constatar, senão uma situação em que se encontra afectada a habitabilidade da dita fracção, a recolher apoio no prescrito no art.1083, n.5 do CC para fundamentar a resolução do contrato, pelo menos uma significativa diminuição das condições de habitabilidade do mesmo com a potencialidade de justificar tal resolução à luz do requisito geral previsto no corpo do n. 2 do citado preceito legal.

Contudo, por forma a que se dê como verificada a violação positiva de manutenção do gozo do locado, assente no incumprimento do dever de realizar as competentes obras de reparação, necessário se torna que o arrendatário tolere a concretização das mesmas, sob pena de, assim não sucedendo, estar afastada a possibilidade de reconhecer fundamento bastante à resolução do contrato, na base do prescrito no n. 2 ou n.5 do citado art. 1083º do CC (…)

Ora, trazendo à colação o constante dos Pontos 23 e 29 supra, cremos ser possível constatar que a “tolerância” exigível ao Réu, por forma a que a Autora desse cumprimento ao dever de reparação que sobre a mesma impende, não ocorreu, assim inviabilizando a realização dos trabalhos inerentes ao cumprimento daquela obrigação.

Sendo isto que retiramos da realidade apurada, torna-se questionável poder dar-se como verificada a licitude ou validade da declaração resolutiva do mencionado contrato de arrendamento da iniciativa do Réu, a ponto de se perguntar se os efeitos perseguidos através da dita comunicação implicam, apesar disso, a extinção (cessação) do contrato.

Trata-se de problemática que não tem recebido solução unânime da doutrina ao abordar, em termos gerais, a eficácia extintiva da declaração resolutiva ilícita (inválida) (…)

Seja qual for a opção que se tome sobre esta matéria e partindo do pressuposto que, no caso em presença, nos deparamos perante uma resolução ilícita do aludido contrato de arrendamento, por o fundamento que lhe subjazeu não poder considerar-se operante - isto ao contrário do concluído pelo tribunal “a quo” que, para esse efeito, partiu do pressuposto do incumprimento pela Autora da obrigação de manter o locado em condições de habitabilidade, algo que, na base do atrás ponderado, não é de verificar -sempre diremos que a aludida declaração pode equivaler à extinção daquele contrato por via da sua denúncia.

Com efeito, sendo admissível a utilização dessa via para colocar termo ao contrato em causa nos autos (v. art. 1098, n. 3 e 6 do CC), cremos ser manifesto que o Réu quis, de facto, extinguir a relação contratual, algo que na lide vem aceite pela Autora, razão pela qual se tenha como adquirida a cessação do mencionado vínculo contratual (…)»

Para que o arrendatário possa invocar a resolução do contrato não basta a verificação de um qualquer fundamento. Alegando-se a existência de defeitos do local arrendado, a resolução pode ocorrer nas seguintes hipóteses: demonstrando os requisitos previstos no art.1050º, alínea b) do CC (que dispensaria a culpa do locador), ou demonstrando o preenchimento da hipótese do art.1083º, n.5. Nesta última hipótese cabe ao arrendatário, em geral, demonstrar o seguinte: quais as obras que o locador deve realizar, que a omissão dessas obras compromete a habitabilidade do local arrendado e que tal omissão é imputável ao locador.

No caso em apreço cabia ao arrendatário demonstrar, desde logo, que a habitabilidade do local arrendado se encontrava comprometida, decorrendo essa falta de aptidão do imóvel da falta de determinadas obras. Não resultando da factualidade provada (nomeadamente dos pontos 21, 25 e 29) que estes pressupostos se encontravam preenchidos, torna-se irrelevante indagar se a não realização de obras era imputável ao locador ou ao arrendatário, para efeitos da operatividade do direito de resolução (sendo descabido perorar sobre a questão de saber se o exercício do direito de resolução era lícito ou ilícito).

Deste modo, sempre ficaria prejudicada a questão de saber se o exercício do direito de resolução era lícito ou ilícito, e se existiu ou não mora imputável ao arrendatário. Simplesmente, porque não se verificavam os pressupostos cumulativos para a invocação do direito de resolução. Consequentemente, fica prejudicada a questão do invocado abuso de direito da autora, que o recorrente refere no ponto XXII das suas conclusões.

Não se encontrando preenchidos os pressupostos para a resolução, deve concluir-se que, apesar de se tratar de um contrato com prazo certo, este se pode extinguir por denúncia (rectius, revogação unilateral), nos termos do art.1098º, n.3 do CC, quando observados os prazos de pré-aviso (ou com a penalização prevista no n.6), sem necessidade de invocação de qualquer fundamento para a extinção do contrato. Aliás, na comunicação enviada pelo arrendatário ao locador, em 29.03.2014, este afirma expressamente que pretende “a denúncia do contrato de arrendamento, com efeitos a partir de 30 de junho de 2014”.

 O acórdão recorrido entendeu que o contrato se extinguiu em 30 de junho de 2014, e não sendo essa conclusão posta em causa pelo recorrente, esse ponto deve considerar-se encerrado, sem necessidade de indagar se, pela aplicação conjugada dos números 3 e 6 do art.1098º do CC, seria essa a data exata da extinção do contrato.

Da extinção do contrato de arrendamento emerge para o arrendatário a obrigação de restituir a coisa locada, como estabelece o art.1038º, alínea i) do CC. Assim, deveria o recorrente ter restituído o imóvel no dia 30 de junho de 2014.

Todavia, o recorrente sustenta que sempre poderia manter o gozo do imóvel ao abrigo do contrato promessa de compra e venda (que continuaria em vigor) porque, na sua tese, o regime deste contrato se sobreporia ao do contrato de arrendamento.

            Vejamos, para este efeito, a relação entre o contrato de arrendamento e o contrato promessa de compra e venda. Importa, assim, apurar se o gozo do imóvel foi conferido ao recorrente ao abrigo do contrato de arrendamento ou do contrato promessa de compra e venda e, bem assim, em que medida o regime próprio de um destes contratos se pode projetar no regime do outro.

            A entrega do imóvel é um efeito típico (decorrente da lei) do contrato de locação [art.1022º e art.1031, alínea a) do CC], mas é apenas um efeito eventual do contrato-promessa de compra e venda. Assim, enquanto efeito eventual, a entrega do imóvel prometido vender (traditio) só existe se for especificamente convencionada pelas partes.

            No caso concreto, deu-se como provado (no ponto 9 da factualidade assente) que:

«Ao abrigo do contrato de arrendamento, o Réu tomou posse da fração e começou
a habitar a mesma contra o pagamento da renda mensal
».

            De nenhum ponto da factualidade provada se pode concluir que essa entrega do imóvel corresponderia também a uma traditio do imóvel no âmbito do contrato-promessa de compra e venda.

Aliás, as partes convencionaram (vd. ponto 8 da factualidade provada) que, se o contrato promessa de compra e venda se extinguisse, o contrato de arrendamento se manteria; mas não convencionaram o contrário, nem convencionaram que o gozo do imóvel se manteria no âmbito do contrato-promessa de compra e venda.

É, assim, inequívoco que a entrega do imóvel ao réu se baseou na celebração do contrato de arrendamento.

Na tese do recorrente, dada a existência de conexão entre os dois contratos, sempre o gozo do imóvel poderia ser feito valer no domínio do contrato-promessa (depois da extinção do contrato de arrendamento) e manter-se-ia até à celebração do contrato prometido.

Vejamos se lhe assiste razão.

Existe, na realidade, alguma conexão entre o contrato de arrendamento e o contrato promessa de compra e venda, celebrados entre os mesmos contratantes e respeitando ao mesmo imóvel. Identifica-se, desde logo, uma conexão externa, temporal e formal, porquanto ambos os contratos foram celebrados ao mesmo tempo e constaram do mesmo documento. E identifica-se ainda uma conexão interna ou funcional quanto aos efeitos que as partes expressamente pretenderam atribuir a essa conexão, ou seja, os de imputar parte das rendas pagas ao montante do preço da compra e venda, caso o contrato prometido tivesse sido celebrado no prazo de 12 ou de 24 meses, a contar da assinatura daqueles contratos. Tais efeitos encontram-se explicitados no ponto n.6 da factualidade provada, com o seguinte teor:

«As partes acordaram ainda que, sendo a escritura pública de compra e venda
celebrada dentro do prazo estipulado, ou seja, 24 meses a contar da data de assinatura do referido contrato-promessa de compra e venda, ao preço acordado seria deduzido o seguinte:

a) O equivalente a 70 % do valor das rendas efetivamente pagas até à data de assinatura da escritura pública de compra e venda, caso esta se realizasse nos primeiros 12 meses a contar da assinatura do contrato-promessa de compra e venda;

b) O equivalente a 50 % do valor das rendas efetivamente pagas até à data de assinatura da escritura pública de compra e venda, caso esta se realizasse entre o 13º mês e os 24 meses a contar da assinatura do contrato promessa de compra e venda

Todavia, identifica-se também a existência de uma nítida “clausula separatória[5], da qual resulta que o regime do contrato-promessa de compra e venda não se sobreporia ao regime do contrato de arrendamento. Trata-se da convenção, referida no ponto 8 da factualidade provada, da qual decorre que, caso o contrato prometido não fosse celebrado, o contrato de arrendamento se manteria, não havendo restituição das rendas pagas.

 É, assim, inequívoco (sem necessidade de maiores desenvolvimentos doutrinais), que, apesar da sua simultaneidade jurisgénica, os contratos celebrados mantiveram a sua independência quanto à respetiva subsistência e aos regimes aplicáveis. Efetivamente, nesta concreta pluralidade de contratos não se identificam as notas típicas dos contratos mistos[6], porque (como resulta da factualidade provada) os contratos celebrados não perderam a sua individualidade. No caso concreto, para além da convenção específica sobre a imputação de parte das rendas no preço da venda (que apenas se destinava a valer caso o contrato prometido tivesse sido celebrado no prazo de 24 meses), nada permite concluir que as partes pretendessem atribuir outros efeitos normativos a essa conexão de contratos. Deve, assim, concluir-se que cada um dos contratos se rege pela disciplina legal que tipicamente lhe corresponde.

No contrato promessa de compra e venda de um imóvel, o promitente comprador só pode deter o imóvel numa de duas hipóteses. Na vigência do contrato, por existir um específico acordo das partes destinado à entrega do imóvel prometido vender ao promitente comprador, ou seja, a denominada traditio [configurável como uma antecipação ou um sucedâneo antecipatório da futura obrigação de entregar a coisa vendida, prevista na alínea b) do art.879º do CC]. Verificando-se a extinção do contrato promessa, o promitente comprador pode continuar a deter a coisa prometida vender, com base em expressa previsão legal – o art.755º, n.1, alínea f) do CC – quando se verifiquem os pressupostos do direito de retenção (enquanto garantia do recebimento do crédito emergente do incumprimento imputável ao promitente vendedor, nos termos do art.442º do CC). No caso concreto, a consideração desta última hipótese encontra-se imediatamente afastada porque, como consta do relatório supra, não chegou a existir conhecimento do pedido reconvencional.

A traditio da coisa prometida vender não é um efeito automático da celebração de um contrato promessa de compra e venda. Tal exige um específico acordo das partes a tal dirigido. Ora, no caso concreto não se provou que tal acordo tivesse existido. E o ónus de provar tal facto cabia ao recorrente-réu, nos termos do art.342º do CC, por ser o sujeito a quem esse direito aproveitaria.

Se o arrendatário acedeu ao gozo do imóvel por via da celebração de um contrato de arrendamento (válido e eficaz), terminando este contrato (e no caso concreto terminou por decisão do arrendatário), desaparece a base jurídica que lhe permitia manter o gozo desse bem.

Ao tomar a iniciativa de extinguir o contrato de arrendamento, não pode o arrendatário promitente comprador pretender manter o gozo do imóvel. Tal só seria possível, caso se demonstrasse que a traditio do imóvel também havia sido convencionada no âmbito do contrato promessa de compra e venda. E tal não foi demonstrado.

Confirma-se, assim, embora com fundamentação parcialmente distinta, a decisão recorrida que condenou o recorrente a entregar o imóvel à recorrida, dando cumprimento à obrigação de restituir o imóvel arrendado logo que termine o contrato de arrendamento, como decorre do art.1038º, alínea i) e o art.1081º do CC.

 4.2. Quanto à condenação do recorrente no pagamento das quantias pecuniárias.

Devemos, desde já, afirmar que o acórdão recorrido não merece censura na decisão de condenar o réu a pagar as rendas vencidas na vigência do contrato de arrendamento e inerente penalização pela mora no pagamento, bem como na decisão de o condenar a indemnizar a autora pelo incumprimento do dever de restituir o imóvel e ainda em juros de mora pelo não pagamento atempado das quantias pecuniárias devidas. 

4.2.1. Quanto às rendas devidas na vigência do contrato.

Tendo-se concluído, no acórdão recorrido, que o contrato de arrendamento terminou em 30.06.2014, e que o arrendatário não pagou as rendas vencidas entre janeiro e maio de 2014, o réu-recorrente encontra-se em incumprimento do dever principal que o art.1038º, alínea a) do CC lhe impunha na vigência do contrato.

Aliás, o recorrente não se opõe à conclusão de que tais rendas se encontram vencidas; apenas tenta justificar o não pagamento com a alegação da existência de defeitos no imóvel (pontos XXV e seguintes). Ora, como decorre da natureza do recurso de revista, não é a este nível recursório que se apreciam fundamentos que não foram submetidos à apreciação da decisão recorrida, que, obviamente, sobre tal matéria se não pronunciou.

Encontrando-se o pagamento dessas rendas em mora, tem o locador o direito a uma indemnização, no montante de 50% sobre os valores em dívida, nos termos do art.1041º, n.1 do CC[7]. Só não haveria lugar a esta indemnização se o contrato fosse resolvido por iniciativa do locador, o que no caso concreto não se verifica, dado que o contrato foi extinto por iniciativa do arrendatário.

O recorrente deve, assim, a título de rendas não pagas e indemnização prevista no art.1041º, n.1, o montante global de € 7.985,01.

4.2.2. Quanto à indemnização pela não restituição do imóvel ao locador.

Tendo-se concluído que o contrato de arrendamento terminou em 30.06.2014, e que ao réu não assistia o direito de manter o gozo do imóvel ao abrigo do contrato promessa de compra e venda, por não ter havido traditio da coisa prometida vender (e a eventual questão do direito de retenção não ter chegado a ser conhecida), devia o réu ter dado cumprimento à obrigação de restituir o imóvel à locadora, como lhe era imposto pelo art.1038º, alínea i) e 1081º, n.1 do CC.

Não cumprindo esse dever (mantendo o gozo do imóvel), e independentemente da causa invocada para esse efeito, constitui-se o ex-arrendatário na obrigação de indemnizar o locador em montante equivalente ao montante da renda anteriormente paga, como estabelece o art.1045º, n.1 do CC. Esta indemnização é, assim, devida desde 1 de julho de 2014 e até à data em que o réu foi citado.

O recorrente deve, portanto, pagar à recorrida o valor mensal de €1.066,76, entre julho de 2014 e a data da citação.

Com a citação do réu para a presente ação, e inerente interpelação para o cumprimento da obrigação de restituir o imóvel, o réu constituiu-se em mora agravada, nos termos do art.1045º, n.2, passando a indemnização prevista no n.1 desse artigo para o dobro do montante até então pago. Embora, em rigor, o arrendatário esteja em falta quanto à obrigação de restituir a coisa locada desde o fim do contrato, o alcance do n.2 do art.1045º só se compreende, por confronto com o seu n.1, após a existência de interpelação para a entrega. De contrário, o n.1 do art.1045º não teria alcance normativo autónomo.

Assim, desde a citação e até ao efetivo cumprimento do dever de restituir o imóvel é o recorrente responsável pelo pagamento de uma indemnização correspondente ao dobro do valor da renda (anteriormente paga), no montante mensal de € 2.133,52.

4.2.3. Quanto à obrigação de pagar juros de mora sobre as quantias pecuniárias devidas pelo recorrente.

Estando em mora quanto ao cumprimento das obrigações pecuniárias supra referidas, o recorrente torna-se responsável pelos inerentes juros de mora (art.806º do CC), como se entendeu no acórdão recorrido.

Quanto à indemnização prevista no n.2 do art.1045º do CC, que continua a vencer-se até à efetiva entrega do imóvel, no valor de € 2.133,52 por mês, são também devidos juros de mora, a contar do momento em que cada uma dessas mensalidades é devida.

4.3. Em resumo, como resulta da factualidade provada, o recorrente mantém o gozo de um imóvel, propriedade da recorrida, sem pagar, desde 2014, qualquer contrapartida pecuniária por esse gozo, apesar de ter procedido à extinção do contrato de arrendamento e de ter invocando a falta de condições de habitabilidade do imóvel. Invocou simultaneamente a resolução do contrato promessa (ponto 18 da factualidade provada) para (em reconvenção) poder invocar o direito de retenção. Como a reconvenção não pôde ser conhecida, inverteu a sua estratégia e passou a defender a subsistência do contrato-promessa para, nesse âmbito, fazer valer a traditio do imóvel.

O recorrente só de si pode queixar-se, pois adotou uma estratégia para se manter no gozo do imóvel que não tem acolhimento legal.

Se pretendia continuar a habitar o imóvel não devia ter procedido à extinção do contrato de arrendamento, pois bem sabia (porque tal consta claramente do acordado entre as partes) que o gozo do imóvel lhe foi transmitido com base na celebração do contrato de arrendamento (e não no contrato promessa de compra e venda, de cujo destino não cuida o presente recurso).

A perda do gozo do imóvel resulta, assim, de uma decisão unilateral do réu-recorrente, ao extinguir o contrato de arrendamento, pois a consequência do exercício desse direito extintivo é a obrigação de restituir o imóvel ao locador, como estabelece o art.1038º, alínea i) do Código Civil.

III. DECISÃO: Pelo exposto, considera-se o recurso improcedente e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas: pelo recorrente.

Lisboa, 29.09.2020

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Ricardo Costa

Ana Paula Boularot

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

_______________________________________________________


[1] Redação dada pelo acórdão recorrido.
[2] Redação dada pelo acórdão recorrido.
[3] Redação dada pelo acórdão recorrido.
[4] Redação dada pelo acórdão recorrido.
[5] Sobre o conceito e o alcance da cláusula separatória nos complexos negociais, vd. Francisco Pereira Coelho, Contratos Complexos e Complexos Contratuais (tese de doutoramento), Coimbra Editora, 2014, pág.152 e 153.
[6] Sobre a noção de contratos mistos e o modo de determinar o regime aplicável, vd. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I (10ª ed), página 279 e seguintes. Sobre a tipologia dos contratos mistos no contexto dos complexos contratuais, vd. também Francisco Pereira Coelho, Contratos Complexos e Complexos Contratuais (2014), página 239 e seguintes. 
[7] A redação dada pela Lei n.13/2019 não é aplicável ao caso concreto.