Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B2456
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PIRES DA ROSA
Descritores: ACÓRDÃO POR REMISSÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
REGISTO DE IMAGEM
REGISTO DE VOZ
Nº do Documento: SJ20080417024567
Data do Acordão: 04/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: BAIXA A RELAÇÃO
Sumário :

1 – O desiderato de um “duplo grau de jurisdição” em matéria de facto, a exigência/possibilidade de um segundo julgamento em matéria de facto, não pode a Relação cumpri-lo por simples adesão ao despacho de motivação de facto elaborado em 1ª instância, por mais bem fundamentado que o considere.
2 – O tribunal da Relação, perante a adequada impugnação da matéria de facto, não pode eximir-se à obrigação do cumprimento do “iter processualis” definido no art.690º-A do CPCivil, designadamente no seu nº5.
3 – O tribunal da Relação não pode escudar-se numa fundamentação mais ou menos extensa ou mais ou menos rigorosa do tribunal recorrido para deixar de ouvir ( ou visionar )as cassetes de registo audio ( ou video ).
Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


AA, BB,CC, instauraram, em 17 de Março de 2003, no Tribunal Judicial de Tomar, contra
DD acção ordinária, que recebeu o nº398/03, do 2º Juízo, pedindo:
seja declarada nula e de nenhum efeito a procuração subjacente ao contrato de compra e venda do prédio que identificam nos autos;
e, em consequência, seja declarada nula a compra e venda outorgada por escritura, pela ré, de metade do prédio, sito na Rua de ..., nºs 000 e 000, em Tomar, que pertencia à de cujus EE;
e seja ordenada à ré a restituição do imóvel ao acervo da herança e ao primeiro autor;
e em conformidade seja ordenada o cancelamento da inscrição G-6 do prédio descrito sob o nº123 na CRPredial de Tomar.
Para o caso de assim não ser entendido, e subsidiariamente, seja a ré condenada a reconhecer aos AA o direito de preferência na quota alienada, na respectiva proporção da sua compropriedade.
Alegaram, em suma:
no dia vinte e seis de Abril de 2001 em Lisboa foi elaborado um documento com o título procuração;
desse documento consta que, perante FF, na qualidade de 2° ajudante do 22° cartório notarial, compareceu EE e por esta foi dito que: " pelo presente instrumento constitui sua bastante procuradora a Sr.ª D.DD (...), a quem confere os poderes para em relação a seis doze avos, de que é titular, do prédio urbano cito na rua de S. ... n.ºs 000 a 000, freguesia de S. ..., concelho de Tomar, descrito na conservatória do registo predial de Tomar sob. ° n.º 123, inscrito na matriz predial urbana daquela freguesia sob o art. 428° em seu nome e representação e nos termos que entender por convenientes, prometer vender, vender, transmitir, trocar, dividir ceder ou de qualquer forma alienar ou transformar aquela referida fracção nos termos e condições que entender recebendo quaisquer preços ou quantias e dando as respectivas quitações e, bem assim, para negociar consigo própria os referidos seis doze avos, vendendo-os, transmitindo-os ou alienando-os a si mesma, seja a que título for, nos termos e condições que julgar adequados, recebendo e dando o preço e respectiva quitação, concedendo também os poderes para, em seu nome e representação, representar em quaisquer escrituras, contratos, requerimentos ou outros documentos que se mostrem necessários aos fins acima consignados. Mais declarou a ora mandante conferir à ora mandatária os poderes acima identificados para representação em tudo quanto se relacione com o referido imóvel junto dos restantes co-proprietários e bem assim os poderes para a representar junto de quaisquer Repartições de Finanças, Conservatórias de Registo Predial, Câmaras Municipais, Governos Civis, Tribunais ou quaisquer outras entidades ou organismos públicos com que a referida fracção se relacionem, designadamente, para requerer alterações, registos provisórios ou definitivos, cancelamentos e averbamentos, podendo requerer alterações, modificações, rectificações à matriz, pagar impostos ou taxas, apresentar ou requerer quaisquer documentos, certidões ou cadernetas, impor reclamações, avaliações ou impugnações, receber títulos de anulação ou quaisquer quantias derivadas de colectas ou pagamentos indevidos ou excessivos, requerendo e assinado tudo o que se mostre necessário aos fins consignados nesta procuração. A referida procuradora poderá realizar o contrato consigo mesmo, o que tudo fica especificadamente consentido, nos termos e para os efeitos do art. Duzentos e sessenta e um do Código Civil. Que esta procuração é conferida também no interesse da mandatária, pelo que não poderá ser revogada sem o seu acordo, salvo ocorrendo justa causa, nos termos do número três do artigo 2650 do Código Civil, e não caducará com a morte, interdição ou inabilitação dela outorgante, nos termos dos artigos 1170 e 1175 do citado diploma legal";
no dia quatro de Julho de 2001, no 8° cartório notarial de Lisboa, DD, por si e na qualidade de procuradora de EE, declarou, em seu próprio nome, comprar à sua mandante e, como procuradora de EE vender-lhe a metade indivisa do prédio urbano sito na rua de S. ... n.ºs 000 a 000, freguesia de S. João Baptista, concelho de Tomar, descrito na conservatória do registo predial de Tomar sob. ° n.º 123, inscrito na matriz predial urbana daquela freguesia sob o art. 428°, pela importância de 3.000.000$00;
no entanto, à data da procuração, a falecida não estava capaz, não tendo, por isso, consciência do seu conteúdo;
tal é fundamento de nulidade da procuração e, consequentemente, da escritura outorgada com base nesta;
para o caso de assim não se entender, dado estarmos em face da venda de uma quota parte do prédio pertença em compropriedade aos AA e Ré, por preterição do direito de preferência, deve ser-lhes adjudicada a propriedade da quota alienada na proporção das respectivas quotas e pelo preço declarado.
Contestou a ré ( fls.71 ) pugnando pela total improcedência da acção para o que alegou, em suma:
no dia 26-4-2001, perante o 2º ajudante do 22° Cartório Notarial de Lisboa, D. EE fez a declaração que consta na procuração de livre e espontânea vontade, estando ciente do significado de tal declaração, bem como das consequências que dela poderiam resultar para o imóvel da rua de S. João n.º 27 em Tomar.
E defendeu, depois, improceder de direito o pedido subsidiário formulado pelos autores, por o direito de preferência invocado só existir aquando da venda ou oneração a terceiros, sendo que a ré é também comproprietária do prédio.
Os AA responderam a fls.110. mas, a fls.142, veio a ré defender o desentranhamento de tal articulado, por inadmissível.
A fls.176, depois de uma audiência preliminar que não conseguiu a conciliação das partes, foi proferido o despacho saneador, no qual além do mais se ordenou o pretendido desentranhamento do articulado de resposta. E, de seguida, fixaram-se os factos assentes e alinhou-se a base instrutória.
Efectuado o julgamento, com respostas nos termos do despacho de fls.525, e após alegações de direito da ré ( fls.532 ), foi proferida a sentença de fls.544 a 559, que julgou a acção improcedente por não provada e, em consequência, absolveu a ré da totalidade dos pedidos.
Inconformados, os autores interpuseram recurso da sentença mas o Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de fls.670 a 677, decidiu, por remissão, ao abrigo do disposto no nº5 do art.713º do CPCivil, negar provimento ao recurso de apelação, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada.
Em requerimento de fls.681 os autores vieram arguir a nulidade do acórdão – por o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra « não se pronunciar sobre a reapreciação da prova » - e interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal.
Em resposta, a ré pugnou pela não verificação da nulidade invocada e, em despacho de fls.708, o Exmo Desembargador-Relator veio dizer que « o acórdão aplicou o nº5 do art.713º do CPCivil, que se refere à decisão e aos seus fundamentos, de facto e de direito » e por isso se não verifica a pretendida nulidade. E admitiu o recurso, no efeito meramente devolutivo.
Alegando a fls.713, começam os autores/recorrentes além do mais, e em resumo, por CONCLUIR:
na apelação os recorrentes, impugnando a decisão sobre a matéria de facto, pediram ao Tribunal da Relação de Coimbra que « reavaliasse toda a prova documental e testemunhal produzida em audiência de julgamento »;
no acórdão proferido não há qualquer referência a essa reavaliação referindo apenas o acórdão que « a decisão proferida pela Mª Juíza de 1ª Instância, com base nos factos dados como provados e não provados se encontrava devidamente fundamentada;
os apelantes cumpriram escrupulosamente o disposto no art.690º-A do CPCivil;
ao não se pronunciar sobre a reapreciação da prova o acórdão recorrido incorreu em nulidade nos termos do disposto no art.668º, nº1, al. d ) do CPCivil;
e não se pronunciando sobre a prova produzida em audiência de julgamento, incorreu na nulidade prevista na al. b ) do nº1 do art.668º do CPCivil, porquanto se não encontra fundamentada a decisão de negar provimento ao recurso;
« em conformidade, deve o acórdão recorrido ser revogado e determinada a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Coimbra para que se proceda à reapreciação da prova produzida e registada ».
Contra – alegando a fls.759 a ré/recorrida CONCLUI, antes de mais e no que à arguida nulidade diz respeito:
em matéria de reapreciação da prova produzida, o ter-se o Tribunal a quo limitado a confirmar o que propósito já havia sido decidido em 1ª instância é atitude processual expressamente permitida em face do dispositivo do nº5 do art.713º do CPCivil;
o Tribunal da Relação não só se pronunciou sobre todas as questões suscitadas pelos recorrentes na sua apelação acolhendo, no que diz respeito à reapreciação da prova e pedido subsidiário, o que já havia sido decidido pelo tribunal de 1ª instância, como fundamentou devidamente a sua decisão em negar provimento ao recurso de apelação, mediante o acolhimento sem reservas dos fundamentos de facto e de direito que sustentam a decisão.
Estão corridos os vistos legais.
Cumpre decidir.
O Tribunal da Relação de Coimbra usa a faculdade prevista no nº5 do art.713º do CPCivil para negar provimento ao recurso e confirmar, por remissão para os fundamentos da decisão impugnada, o acórdão recorrido.
E realmente esta disposição legal abre a porta a tal faculdade quando o Tribunal da Relação confirmar inteiramente e sem qualquer declaração de voto o julgado em 1ª instância, quer quanto à decisão quer quanto aos respectivos fundamentos.
Ora bem:
o acórdão recorrido, depois de transcrever os factos que a 1ª instância julgou provados, acentua que « foi com base nesses factos, incluindo os provenientes das respostas aos quesitos as quais vêm devidamente fundamentadas, que a 1ª instância proferiu a decisão recorrida. Também o não provado foi correctamente fundamentado ».
E acrescenta:
« A decisão e os respectivos fundamentos não nos merecem qualquer censura, dada a sua essencial correcção e acerto ».
E remetendo, aqui, para nota (1) de rodapé escreve - « apenas dois aspectos do despacho de motivação de facto estão menos correctos ... Esses dois aspectos, porém, não contendem com a expressa motivação do provado e do não provado, a qual se apresenta ponderada, correcta e acertada ».
O negrito introduzido no texto é da nossa lavra e tem uma finalidade determinada – chamar a atenção para que a adesão aos fundamentos de facto da decisão ( que possibilitou o uso da faculdade do nº5 do art.713º ) é uma adesão ao facto tal como resulta da fundamentação das respostas aos quesitos, que o acórdão considera correctamente sustentada, tal como consta do despacho de motivação de facto exigido pelo nº2 do art.653º do CPCivil.
Esqueceu a Relação que o desiderato de um duplo grau de jurisdição em matéria de facto, a exigência/possibilidade de um segundo julgamento em matéria de facto, trazida ao processo civil português pelo Dec.lei nº39/95, de 15 de Fevereiro, não pode cumprir-se pela simples adesão ao despacho de motivação de facto elaborado em 1ª instância, ainda que a 2ª instância o considere bem fundamentado.
Um tal desiderato não se cumpre sem o cumprimento do iter processualis definido pelo art.690º-A do CPCivil, introduzido por aquele diploma legal e posteriormente alterado pelo Dec.lei nº183/2000, de 10 de Agosto, com o aditamento de um nº5 que expressamente reza – o tribunal de recurso procederá à audição ou visualização dos depoimentos indicados pelas partes ...
Ora exactamente a matéria de facto vinha impugnada no recurso de apelação, ao abrigo do disposto no nº1 do art.690º-A, sem que o tribunal da Relação tenha rejeitado, fosse com que fundamento fosse, essa impugnação. Ou seja, não pondo em causa os respectivos requisitos processuais.
E se é assim, e é assim, o Tribunal da Relação não pode eximir-se à obrigação do cumprimento desse iter para, só depois, poder afirmar que os factos são o que são - são os que foram fixados pela 1ª instância nos termos em que o foram, ou são outros e diferentes, por não ter a convicção probatória da 1ª instância o suporte de razoabilidade que permite mantê-los.
O Tribunal da Relação, perante o cumprimento pela recorrente do duplo ónus inscrito nas duas alíneas do nº1 e no nº2 do art.690º-A, não pode deixar de reapreciar a matéria de facto. Toda a matéria de facto atinente aos pontos postos em causa pelo recorrente, seja a documental, seja a pericial, seja a testemunhal, recolhida em escrito ou guardada em registo audio ou video .
Não pode escudar-se numa fundamentação mais ou menos extensa ou mais ou menos rigorosa do tribunal recorrido para dizer não vale a pena mais nada, não vale a pena ouvir sequer as cassetes de registo audio ( ou video ).
Por mais sugestiva ou adequada que seja ou pareça ser a fundamentação da decisão recorrida, o tribunal de 2ª instância tem de conhecer as provas produzidas, tem de ouvir as cassetes ( nos pontos indicados, ao menos ) sempre, porque só a partir dessa audição – e do confronto dela com as mais provas - pode aferir da razoabilidade ( ou adequação ) de que se falou e, se necessário, afirmar uma convicção probatória diferente.
O acórdão recorrido não fez isso.
E se não fez isso, não pode ter ainda por definitivamente fixada a fundamentação de facto à qual o nº5 do art.713º lhe permite aderir, uma vez que a apelação expressamente transporta a impugnação da decisão sobre o facto proferida pela 1ª instância
Como se escreve no Acórdão deste Supremo Tribunal no proc. nº07B1327 ( Alberto Sobrinho ), de 28 de Junho de 2007, in www.dgsi.pt/jstj, « para que este normativo possa ser aplicado é condição essencial que, desde logo, a matéria de facto não tenha sido impugnada. Se o quadro de facto em que assenta a sentença recorrida é atacado, quer dizer que não existe base material sustentável que permita a aplicação do regime jurídico adequado. E também sem a fixação definitiva desse quadro factual, não é possível apreciar se o enquadramento jurídico é o correcto ».
Ao descumprir o caminho processual a que estava obrigada, a Relação subtraiu ao julgamento do facto o seu próprio juízo, a sua própria jurisdição, incorrendo na nulidade por omissão de pronúncia a que alude a al. d) do nº1 do art. 668º CPCivil.
Impõe-se, portanto, chamar à colação o nº2 do art. 731º CPCivil para determinar a baixa do processo ao Tribunal da Relação de Coimbra para que aí se proceda à reforma do acórdão, que se anula.

D E C I S Ã O
Na procedência do recurso, anula-se o acórdão recorrido e determina-se a Baixa dos autos ao Tribunal da Relação de Coimbra para que, se possível com os mesmos Exmos Desembargadores, se proceda á reforma da decisão anulada nos termos descritos.
Custas do recurso a cargo dos recorridos.

LISBOA, 17 de Abril de 2008

Pires da Rosa (relator)
Custódio Montes
Mota Miranda