Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B2294
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NEVES RIBEIRO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
VALORES MOBILIÁRIOS
Nº do Documento: SJ200510110022947
Apenso:
Data do Acordão: 10/11/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário : 1. É da competência do tribunal administrativo a apreciação de uma acção de indemnização por responsabilidade extracontratual, decorrente de actuação (ou não actuação) ilícita de uma Autoridade de Regulação Económica, actuando no exercício de autoridade.
2. A determinação da natureza pública ou privada da relação litigiosa, ao tempo da acção, e a consequente determinação do tribunal competente para dela conhecer, devem considerar a acção (pedido e causa de pedir), tal como configurada pelo autor, tendo ainda em conta as demais circunstâncias disponíveis pelo Tribunal que relevem da exacta configuração dos termos da causa proposta.
3. No caso, em concreto, a configuração da acção feita pelo autor mostra que não está em apreço judicial uma questão de direito privado donde resulte a obrigação de indemnizar solicitada, mas, essencialmente, e apenas, uma questão de direito público, relativa à licitude ou não, da actuação da CMVM, como Entidade Reguladora Independente do mercado a que se dirige, conforme aos seus estatutos e ao CVM, em particular, o art. 353.º (atribuições) do CVM.
4. Consequentemente, estando em causa a apreciação de uma relação jurídica de direito administrativo, cuja ofensa veio alegadamente a dar causa à obrigação de responsabilidade civil extracontratual que se pretende fazer valer através da acção, o tribunal comum - neste caso cível - é incompetente em razão da matéria, para dela conhecer.
5. A partir da vigência da nova reforma do contencioso administrativo - Janeiro de 2004 - deixa de relevar a distinção entre regime de direito público e regime de direito privado, como critério de determinação da competência judiciária - administrativa ou comum, respectivamente - para conhecer da responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público.
6. A alínea g), do n.º 1, do art. 4.º do novo ETAF determina que “compete aos tribunais de jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham, nomeadamente, por objecto (…) questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público (…)”, independentemente da natureza do regime de direito público ou privado aplicável à relação litigiosa.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
Enunciado da questão do agravo e método de conhecimento do seu objecto

1. O presente agravo consiste em saber se, para julgar a causa, tal como o autor a apresentou, é competente, em razão da matéria, o tribunal cível ou o tribunal administrativo.
A Primeira Instância, logo no despacho saneador do processo, respondeu que era competente o tribunal administrativo, configurando a relação litigiosa como de natureza de direito público.
O Autor agravou. E a Relação de Lisboa deu-lhe razão, declarando competente o tribunal cível, reconhecendo o carácter privado da mesma relação.
A Ré, Comissão do Mercado dos Valores Mobiliários, doravante CMVM, agravou da decisão da Relação, defendendo que os factos apresentados pelo Autor configuram uma relação de direito público, tal como havia considerado a 1ª Instância.
Por conseguinte, o tribunal comum é incompetente em razão da matéria, para conhecer da causa, na versão apresentada pelo Autor.
É esta, em síntese, a questão do agravo objectivado através das 18 conclusões da agravante, com as quais pretende demonstrar o carácter público/administrativo da relação obrigacional que, contra ela, vem accionada pelo Autor/recorrido.
2. Para a resolver, convirá aprofundar o tema, o melhor possível, dado que o acórdão recorrido se suporta unicamente em acórdão anterior deste Tribunal, proferido em caso idêntico, em princípio, no domínio da mesma legislação, e que se pronunciou pela competência do tribunal comum.
E não nos parece ser esta a melhor solução. (1).

Consequentemente, iremos estudar a questão, afigurando-se procedente, para melhor entendimento do seu desenvolvimento, a antecipação de uma nota metodológica inicial, relativa aos temas que podem enquadrar o objecto de conhecimento do agravo a solucionar, ajudando à melhoria da percepção do resultado a que conduz.
Assim:
A) Em que consiste, e como se justifica, no actual estado de evolução da economia de mercado, a regulação económica, em geral;
B) Em que consiste, e como se justifica, em particular, a regulação económica efectuada através da CMVM;
C) A competência material do tribunal cível versus a competência material do tribunal administrativo;
D) Como configura o Autor a relação conflituosa contra a Ré, CMVM;
E) Se tal configuração, em resultado do apuramento verificado, relativamente ao alegado acto ilícito gerador da accionada responsabilidade civil extracontratual por parte da CMVCM, se ajusta ao perfil de uma relação administrativa ou de uma relação de direito privado - e, daí, a consequente determinação da competência judiciária material, ao tempo da propositura da acção, que se pretende escrutinar com o conhecimento do objecto deste agravo.
F) Finalmente, face ao desenvolvimento, avaliar se foi adequada, ou não, a decisão recorrida (suportando-se inteiramente em acórdão do STJ, que transcreve, na parte relevante para a solução), ao atribuir competência material ao foro comum.
II
Desenvolvimento

1. Estudemos, sucessivamente as questões enunciadas, começando pela da alínea A):
Em que consiste, e como se justifica, no actual estado de evolução da economia de mercado, a regulação económica, em geral.
Trata-se, como é de supor, da regulação económica pública, ao lado da regulação económica privada, feita esta através de instrumentos jurídicos como o Código Comercial; o Código das Sociedade Comerciais; as Leis relativas a outros tipos de sociedades (cooperativas, desportivas, de advogados, SGPS, etc. ...); as Leis respeitantes ao direito de consumo; e sem excluir disposições do próprio Código Civil, etc, etc. ...
E regulação económica pública, ou melhor: e pública, porque representa a face de intervenção do Estado na economia, particularmente em certos sectores de actividades que são essenciais à realização da Sociedade, enquanto modelo económico possível da nossa área de civilização.
Como resultado de certas alterações históricas, assistiu-se nos dois últimos séculos, a uma autêntica transformação do Estado.
Primeiro, como liberal e subsequente passagem para o welfare state, para o Estado social, também apelidado de Estado de serviço público, ou novo Estado administrativo, atenta a relevância e peso dos serviços públicos e das funções administrativas.
Depois, com a transição, nas últimas décadas do século XX – marcada pela crise do anterior modelo público - para o Estado regulador, para a desintervenção, com o abandono ou diminuição, por parte do Estado, de muitas das actividades de prestação de bens ou serviços.
Liberalizados os grandes serviços públicos, de gestor e empresário, o Estado passa, essencialmente, a garantir, a controlar, a regular a oferta de actividades e serviços por agentes económicos particulares que correspondem a tarefas e funções desempenhadas cada vez mais por autoridades reguladoras independentes, que acompanham, fomentando, o funcionamento do mercado. (2).
A regulação é vista como instrumento fundamental de correcção de deficiências do mercado, a melhor forma de afectar recursos disponíveis, e portanto, a melhor forma de, em linguagem mais "corriqueira" fazer aumentar o bolo. (3).
A regulação económica surge como necessidade social de regulação do exercício de certas actividades de produção, de distribuição e de consumo de bens ou serviços, desfazendo assimetrias naturalmente provocadas "pelo mercado à solta", ou, então, monopolizado, sem proveito para o consumidor quanto ao acesso aos bens e aos serviços e sua qualidade, falseando as condições de concorrência entre os operadores, e forçando outros a desistir ou sobreviver em condições desiguais.
Daí que a regulação económica represente um dos passos de desenvolvimento do longo processo económico, situado entre o monopólio público/monopólio privado que ainda hoje, perante uma economia extremamente sofisticada e tendencialmente global, anda à procura de ajustar o seu caminho, face á lógica (ou ás diferentes lógicas) do mercado mundial, em espaço aberto, e, por aqui, cheio de contingências, sempre evolutivas.
Constitui uma parte do direito económico. Mais: de direito económico, entre nós, com raiz organizativa constitucional, nos artigos 80.° e seguintes, ao modelar, entre o mais, os limites da iniciativa privada, as formas de propriedade, os limites da intervenção pública na economia; ao garantir o funcionamento eficiente do mercado, assegurando uma equilibrada concorrência, contrariando as formas de organização monopolista, criando instrumentos jurídicos e técnicos necessários ao planeamento democrático do desenvolvimento económico e social [particularmente, artigo 81° alíneas e), h) i), da Constituição - incumbências prioritárias do Estado] - tudo reflectido, ao nível de actuação programática, no Plano de desenvolvimento económico e social (artigo 90° da Constituição). (4).

Por paradoxal que pareça, a redução do peso do Estado-empresário e a liberalização de determinados sectores da actividade económica, a que se tem assistido ao longo dos últimos anos em diversos países, tem sido acompanhada por um alargamento do papel regulador do Estado, como novo paradigma de intervenção pública.(5).

2. A lógica da regulação pública independente - aliás expressamente admitida pelos artigos 266° e, particularmente, 267°-3 ("A lei deve criar autoridades independentes ") da Constituição da República, em resultado da 4ª revisão constitucional - está no facto de o Estado passar a reduzir o seu papel não só como burocrata, mas também como empresário, produtor ou distribuidor de bens ou serviços, colocando-se numa posição reguladora, não através dele próprio, como acontecera no seu passado interventor, mas através de mecanismos adequados de regulação, confiada a órgãos públicos próprios, conferindo-lhes, por lei, independência, imparcialidade e neutralidade na gestão do mercado respectivo e para eficiência deste - bolsa, seguros, banca, telecomunicações, espaço radioeléctrico, comunicação social, água, energia, transportes, etc.
Ao Estado resta, entretanto, dedicar-se essencialmente a tarefas de regulação de actividades privadas, visando assegurar a prestação de serviços de interesse económico geral, para além de assegurar directamente as tarefas essenciais de prestação de certos serviços, como a defesa nacional, a segurança interna, a protecção civil, a prevenção e combate a incêndios florestais, alguns serviços primários de saúde e higiene pública, etc. (6).

Entre os limites de um exclusivo monopólio público de certas actividades e de um monopólio privado, há uma escala de gradações intermédias, onde o Estado, ora avança, ora recua, conforme as ideias económicas determinantes do modelo de actuação económica e os sinais reveladores das diferentes sinergias do mercado, ou dos diferentes mercados - se assim quisermos dizer — e cujas fronteiras jurídicas deixaram de existir, caindo até as fronteiras físicas, como sucede na U.E. e no E.E.E.
Aí está, caracteristicamente, uma área em que o direito anda a reboque, modelando a realidade económica e social no seu devir constante e com elevado grau de imprevisibilidade, em função de factores variáveis — naturais ou humanos — que impedem diagnósticos e terapêuticas sustentados, qualquer que seja a qualidade das convenções acordadas para a competitividade e crescimento das sociedades, especialmente tecnológicas. (7).

A ninguém surpreenderá, dizer-se que estamos perante uma «terceira revolução industrial» (telecomunicações, informática, engenharia genética) que veio modificar todo o processo económico trazendo também modificações relevantes na estrutura dos mercados. A regulação económica é um direito novo, particularmente evolutivo, que ainda procura as fronteiras exactas do seu objecto próprio, á medida que os mercados se tornam abertos e globais. (8).
E aí, ainda, dá lugar a um espaço - a Justiça da economia - que se abre a problemas e reflexões novas, que levam os autores a afirmar que, "se o contencioso da economia implica uma economia do contencioso, também a criação de entidades públicas reguladoras decorre em parte do reconhecimento de uma certa incapacidade dos juízes comuns em apreciar e decidir questões eminentemente económicas."(9).

3. Remontemos um pouco à história económica, para melhor poder enquadrar na "circunstância de hoje" o desempenho das entidades reguladoras independentes, em Portugal.
É suficiente para se perceber, uma curta retrospectiva histórica, que se projecte apenas a partir dos anos trinta em diante (e sem perder de vista o laisser faire laisser passer que vinha do século anterior), podemos dizer que a economia de mercado, não foi do agrado do Estado Novo. (10).
O intervencionismo estatal que caracterizou toda a política económica continuava a ser muito apertado durante a década de sessenta.
O artigo 70° da Constituição Política da República estipulava que o Estado tinha «o direito e a obrigação de coordenar e regular superiormente a vida económica e social». Seguia, naturalmente na mesma linha, o Estatuto do Trabalho Nacional - uma das leis fundamentais do regime - dizendo que «O Estado reconhece na iniciativa privada o mais fecundo instrumento de progresso e da economia da Nação», mas estabelecia que a economia corporativa deveria procurar que os seus elementos não estabelecessem entre si oposição prejudicial ou concorrência desregrada (artigos 4º e 7º).
O intervencionismo económico tinha-se desenvolvido, não só por opção ideológica do regime, proclamado corporativo, mas também como reacção às dificuldades criadas no plano interno pela crise económica dos anos trinta, e, depois, pelas dificuldades decorrentes da Segunda Guerra Mundial.
Mas, a partir do fim desta Guerra, começou a desenhar-se um movimento em sentido inverso, especialmente no domínio das relações internacionais a que Portugal não poderia continuar a ficar fechado e para o qual contribuíram as organizações económicas internacionais em que Portugal se integrou.
São exemplos: As medidas de liberalização das importações e de pagamentos internacionais adoptados no âmbito da OCDE; a entrada para o FMI, para o Banco Mundial e para o GATT; e a partir de 1960, a participação na EFTA da qual só viríamos a sair, quando a adesão às Comunidades Europeias, em 1985.
De qualquer modo, durante toda a década de 60, e até 1974, o Estado continuava a desempenhar um papel extremamente activo na orientação e controlo da actividade económica, estando ainda generalizada a intervenção administrativa nos preços - no produtor, no comerciante e no consumidor.
Disciplinava-se a evolução dos salários, a taxa de juro e a taxa de câmbio; e reprimia-se a concorrência em vários mercados; licenciava-se a indústria, ocupando o Estado posição dominante em sectores chave da economia, como os transportes, as comunicações, a electricidade. Mantinha-se a protecção dos produtos nacionais contra a concorrência externa, limitando-se apertadamente os movimentos de capitais, não obstante os avanços obtidos, no sentido da liberalização, promovidos pela OCDE e pela EFTA. Procurava-se, finalmente, incentivar o desenvolvimento económico através dos chamados planos de fomento. (11).

A ideologia corporativa foi substituída durante os anos 74/75, consagrando a Constituição de 1976 que «a organização económica-social da República Portuguesa assenta no desenvolvimento das relações de produção socialistas, mediante apropriação dos meios de produção, e solos, bem como dos recursos naturais, e no exercício do poder democrático das classes trabalhadoras» (artigo 80°), sendo a organização económica e social orientada pelo Plano (artigo 91°). As sucessivas revisões constitucionais, particularmente a de 89, viriam a eliminar esta orientação ideológica constitucional, com eliminação de preceitos de tipo socialista, enfraquecendo o papel do Plano, anularam as referências à reforma agrária e revogaram o princípio da irreversibilidade das nacionalizações, tornando claro (sobretudo depois da Adesão) que o modelo de organização económica assentava preponderantemente sobre a propriedade privada e sobre os mecanismos de mercado. Em 1992, por efeitos da vigência plena do Acto Único Europeu (1986), procedeu-se á eliminação completa do proteccionismo contra a concorrência estrangeira, mesmo extra-europeia, eliminaram-se os monopólios do Estado, de importação (cereais, oleaginosas, bacalhau, etc.), abrindo-se os concursos públicos à concorrência internacional, suprimindo-se totalmente o controlo sobre preços, liberalizaram-se as telecomunicações e o sector rodoviário.
O sector financeiro foi o que mais se revolucionou em consequência da liberalização da circulação dos capitais entre os Estados-Membros e países terceiros (artigos 56° a 60° do TCE).
O que, tudo ponderado, na perspectiva em análise, leva a concluir que o Estado, de interventor activo no mercado (empresário) de bens e serviços, veio gradualmente a perder peso na economia como seu agente activo, passando a agente regulador, principalmente em sectores de actividades de interesse geral, quando quer garantir à Sociedade a provisão de certos produtos ou serviços de carácter universal, dentro de um determinado padrão de preço, qualidade, segurança, acessibilidade (12) etc, ou quando quer liberalizar um determinado sector, mas garantir que o processo decorra dentro de determinados parâmetros pre-estabelecidos.
De início, ele próprio agente regulador, através fundamentalmente dos seus serviços integrados (em regra, Direcções Gerais). (13)
Depois, e porque ele próprio era parte interessada como agente activo e beneficiário do mercado, e poderia lesar outros agentes, ou suscitar ambiguidades sobre condições igualitárias de concorrência com eles, no mercado sectorial que em causa estivesse, acabou por entregar essa regulação a entidades personificadas, independentes.
3.1. A partir dos anos 80, por influência da economia americana, o Estado passou a revolucionar a sua relação com a economia. (14).

Por um lado, na crescente redução da intervenção directa como Estado/empresário, em troca do reforço do seu papel regulador; por outro, numa considerável "desgovernamentalização" da função reguladora, confiando-a justamente a entidades públicas independentes, munidas dos necessários poderes regulamentares, administrativos e sancionatórios.
Do que se trata agora, é de prosseguir a transferência de funções da competência da Administração directa do Estado para entidades reguladoras, separadas e dotadas de grande independência, na senda da solução inaugurada, entre nós, desde há muito, pelo Banco de Portugal, e depois, pela CMVM, (1991) pela Entidade Reguladora do Sector Eléctrico (1995).(15)

Já sem falar da velha Companhia das Índias!

Lembre-se, nesta passagem, que a própria Alta Autoridade para a Comunicação Social - com sede constitucional, artigo 39º- também se insere na filosofia de desintervenção estatal dos meios de comunicação social, assegurando a independência da informação e estabelecendo regras de convivência concorrencial equilibrada entre os diferentes operadores, evitando, por exemplo, abusos de posição dominante, excesso de concentrações, ou cartéis de fixação de preços por aqueles operadores.
Está, de resto, agendada para discussão e para a aprovação, na Assembleia da República, uma Proposta de Lei que fixa à Autoridade para a Comunicação Social um estatuto de autoridade económica independente, diferente da actual configuração - facto que é do conhecimento público, e recentemente noticiado.(16).

3.2A génese das entidades reguladoras localiza-se nos Estados Unidos da América, onde constitui uma realidade com mais de um século, na figura das "independente agencies'' e nas denominadas "Independente Regulador Comissos " (IRC), devendo-se a sua criação ao compromisso de, por um lado, ter de haver regulação, e, por outro, dever-se manter a economia livre da ingerência do Governo. (17)
A regulação compreende a capacidade para estabelecer normas, garantir a sua aplicação e execução, bem como fiscalizar o seu cumprimento e efectivar a punição das infracções às normas reguladoras. O que leva os autores a afirmar que a regulação compreende três poderes típicos do Estado: O poder normativo; o poder executivo e um poder para judicial, que podem coexistir, ou não, numa entidade única. (18)

A regulação tem natureza administrativa, mas não supõe a subordinação hierárquica, ou poder de orientação tutelar, revestindo, consequentemente, as decisões dos órgãos reguladores, um elevado grau de independência, de neutralidade e de imparcialidade, cabendo aos tribunais apreciar a conformidade da sua actuação com o direito, sem prejuízo de se lhe reconhecer uma ampla margem de discricionariedade técnica, onde os tribunais não podem nem devem chegar, em função do conteúdo da especificidade discricionária. Esta zona não é susceptível de tutela judiciária pelo envolvimento altamente técnico que a caracteriza. A novidade que a emergência das autoridades independentes representa na evolução recente do modelo tradicional de Administração, reside no facto de se tratar de autoridades públicas de natureza administrativa, mas que não se integram em nenhuma das categorias de direito administrativo existentes. Dispõem de estatuto de independência orgânica e funcional que não tem paralelo no quadro da organização administrativa tradicional. (19)

4. A regulação económica, numa acepção ampla, traduz-se na definição, aplicação e fiscalização do cumprimento de normas de conduta privativas de certas actividades económicas que originariamente cabiam ao Estado, a órgãos autónomos da Administração Pública, ou a Serviços nela integradas.
A regulação pública económica distingue-se da regulação pelo mercado ou por regras provenientes de entidades privadas dotadas de poder económico suficiente para as tornarem efectivas (regulamentos de associações, códigos de conduta) (20).

Aconteceu que uma progressiva evolução da regulação pública levou à atribuição de tarefas públicas a entidades reguladoras independentes do poder político e dos operadores económicos do sector regulado.
Tratou-se do reconhecimento da necessidade de lhe conferir um nível elevado de independência e de imparcialidade e do reforço de uma estrutura normativa estável, neutra aos ciclos eleitorais, ou sucessões governativas, como factores inevitáveis de exigências de funcionamento eficiente, qualitativo e competitivo, dos mercados ou das áreas de actuação que em causa estiverem.
Importante será, evitar a "governamentalização", ou pior ainda, a "partidarização" do sistema económico a regular (21).
Assim, surgem as entidades reguladoras dos mercados de bens ou serviços, essencialmente com poderes de supervisão, com conteúdo heterogéneo, consoante o tipo de mercado a regular (22).

Pessoas dotadas de independência, orgânica e funcional, em relação à entidade criadora - o Estado - e às entidades reguladas e aos utentes.
São também dotadas de poderes de fiscalização, investigação e sancionatório, bem como de correspondentes poderes normativos, emitindo normas e instruções em relação às entidades supervisionadas, mesmo em relação ao Estado, onde quer que este seja empresário, sócio ou investidor.
Alguns exemplos: (23).

O Instituto Nacional de Transporte Ferroviário (INTF) que regula, supervisiona e fiscaliza o sector ferroviário, bem como as concessões de serviços públicos nesta área;
A Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) que regula, supervisiona e fiscaliza os sectores do gás natural e da electricidade;
O Instituto Regulador das Águas e Resíduos (IRAR) que regula, supervisiona e fiscaliza a qualidade dos serviços prestados pelos sistemas intermunicipais e municipais de água de abastecimento público, de águas residuais urbanas e de resíduos sólidos urbanos;
A Autoridade Nacional das Comunicações (ICP-ANACOM) que regula, supervisiona e fiscaliza o mercado das telecomunicações; a gestão do espaço radioeléctrico, [e das comunicações electrónicas — art° 3.°,bb) da Lei n° 5/04, de 10 de Fevereiro], e outras actividades afins;
O Banco de Portugal que regula, supervisiona e fiscaliza, internamente, o mercado bancário e as instituições de crédito; o sistema de pagamentos no âmbito do Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC); a emissão de notas com curso legal e poder liberatório, etc.;
O Instituto de Seguros de Portugal (ISP) que regula, supervisiona e fiscaliza o mercado de seguros - actividade seguradora e resseguradora, mediação de seguros e fundos de pensões, bem como actividades conexas ou complementares daquelas;
A Autoridade da Concorrência (AC) que regula, supervisiona e fiscaliza o exercício das actividades concorrenciais por forma que se exerçam sem falsearem a igualização das condições do mercado - qualidade, preço, protecção do consumidor, acesso igualitário dos concorrentes à prestação de serviços ou produção de bens, segundo o que dispõe a Lei n.° 18/2003,de 11 de Junho, particularmente nos artigos 14° a 17°, e ainda conforme aos Estatutos da Autoridade da
Concorrência, aprovados pelo Decreto-lei n.° 10/2003, de 18 de Janeiro. (24).

Finalmente - e era sobretudo aqui que queríamos chegar - A Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) que regula, supervisiona e fiscaliza a actividade de intermediação financeira, nos termos do Código do Mercado de Valores Mobiliários, doravante CVM, conforme prevê o artigo 4º do seu estatuto, aprovado pelo DL n.° 486/99, de 13 de Novembro.
Todas estas entidades jurídicas são qualificadas pelo respectivo instrumento legal (Decreto-Lei) de criação e pelo correspondente estatuto, como pessoas colectivas de direito público, dotadas de autonomia administrativa e com património próprio. São, por conseguinte, categorias personificadas dos serviços do Estado, pertencendo embora a categorias organizatório-institucionais diferentes, sendo que o INTF e o IRAR são expressamente qualificados como institutos públicos, e a ERSE, o ICP-ANACOM, o ISP e a CMVM, pela ampla independência de que dispõem em relação ao Governo, se aproximam da categoria de entidades administrativas independentes (AAI), seguindo em regra um regime de direito público, garantindo a neutralidade política da gestão administrativa que desempenham, assegurando que o sector sobre o qual actuam se desenvolva de acordo com as suas próprias regras, as regras e os critérios técnicos do sector em causa ( banca, bolsa, seguros, etc.)(25).

5. Explicado e exemplificado o quadro institucional, de aparecimento, de estrutura orgânica e funcional, de atribuições e de competências das Autoridades Reguladoras Independentes, voltemos então à CVMV, porque é esta que em causa está, como agravante da decisão recorrida.
Porque assim é, estamos na altura de recolocar, em termos de método de análise, a questão enunciada na alínea B, ou seja, em que consiste, e como se justifica, em particular, a regulação económica efectuada através da CMVM.
Depois do que ficou explicado em geral, e relativamente às entidades públicas reguladoras de certos mercados, não surpreende agora, dizer-se que a CMVM é uma pessoa colectiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira e de património próprio (artigo 1º do Estatuto aprovado pelo DL n.° 473/99, de 8 de Novembro).
Tem poderes de autoridade como: o poder regulamentar no âmbito dos mercados de valores mobiliários [artigo 9º, n), do Estatuto; 198°, 351° e 369° do CVM]; o poder de aprovar actos e conceder autorizações (artigo 360°, n.° 1, c) do CVM; o poder de emitir ordens, efectuar registos obrigatórios [artigos 208°, 360°, n.° 1, d) do CVM]; o poder de inspeccionar e apreender livros e documentação necessários à aquisição e conservação da prova, nos casos de investigação pela possível prática de crimes contra o mercado (artigos 361° e 385° do CVM); o poder de fiscalizar o cumprimento da lei e dos regulamentos, investigar, acusar, aplicar medidas cautelares, aplicar coimas e sanções acessórias em processo de contra-ordenação, para além do que se prevê na Lei Quadro das contra-ordenações (artigos 408° a 412° do CVM) (26).

Tem também o poder de aprovar actos e conceder autorizações definidas na lei, de realizar, de registar e cancelar actos, visando garantir o controlo da legalidade e de conformidade com os regulamentos, os factos ou elementos sujeitos a registo ou à organização da sua supervisão (artigos, 300° a 303°; e 358° e 365° do CVM).
Estes poderes públicos de regulação económica atribuídos por lei à CMVM explicam-se pela necessidade económico-financeira de uma "mão visível" interceder na actividade de mediação financeira, na promoção dos mercados financeiros, e, de um modo de dizer mais amplo, em toda a supervisão e regulação que estão especificadas nos artigos 352° a 377° do CVM (todo o Título VII) (27).

A CMVM dispõe de independência em relação ao Executivo, pelo menos de um ponto de vista formal e jurídico, embora em certa maneira a sua actuação possa estar condicionada pelas orientações do Ministro das Finanças, no entanto as funções de supervisão estão imunes ao controlo governamental, não dependendo de autorização, nem de aprovação ministerial. (28)

Quanto ao aspecto orgânico existe uma preocupação de o legislador garantir a inamovibilidade dos titulares dos seus órgãos, não podendo o Ministro exonerá-los durante o exercício do mandato, reduzindo assim o efeito prático da possibilidade de exercitar o poder de orientação.(29) .

6. Importa uma consideração intercalar.
A independência funcional e orgânica das Autoridades Reguladoras dos Mercados (Mercados Sectoriais correspondentes) levanta duas questões fundamentais, sob o ponto de vista jurídico-constitucional.
A primeira — de que estamos a tratar — respeita à determinação do tribunal competente em razão da matéria para conhecer da ilicitude (ou não) de um acto gerador de responsabilidade civil extracontratual, da autoria de uma autoridade reguladora — CMVM.
A segunda questão — que apenas deixaremos enunciada — respeita aos poderes de autoridade das entidades reguladoras. É que estas entidades têm poderes «parajudiciais», especialmente, os sancionatórios.
A doutrina, a este propósito, tem questionado o poder de aplicar sanções por parte de autoridades administrativas independentes, o que pode pôr em causa o princípio da separação de poderes. (30).

Como sublinha o Professor Canotilho, em parecer inédito recente: "Alguns vêem nestes poderes das autoridades administrativas independentes o surgimento de uma "repressão administrativa" semelhante ao contestado regime do "Administrador-Juiz". Outros chegam mesmo a sugerir que os poderes repressivos das autoridades reguladoras constituem uma usurpação da reserva do juiz. "Fora do domínio hierárquico, a atribuição de um poder sancionatório a autoridades administrativas é talvez uma aberração. Seria mais simples e mais claro transferir este poder para os juízes. (31).

7. Passemos à competência material do tribunal cível versus a competência material do tribunal administrativo.
A competência judiciária em razão da matéria (a par da competência hierárquica e da competência internacional) é de ordem pública. (32).

Só pode decorrer da lei; e é indelegável, a não ser que a lei permita a delegação.
Fixa-se em função da natureza da matéria a judicar, sendo critério relevante da sua atribuição, a escolha do tribunal que mais vocacionado estiver para dela conhecer. (33).

Reclama a eficiência de organização judiciária com vista à melhor prestação da qualidade da justiça pública.

7.1. A organização judiciária portuguesa integra, fundamentalmente, três Ordens - a que a Constituição chama categorias de tribunais (artigo 209°).
Em jeito de organograma, poderemos traçar o quadro seguinte:
A Ordem Constitucional; A Ordem Judicial Comum e a Ordem Administrativa (que envolve a fiscal).
Fixemos então a nossa reflexão sobre as duas últimas Ordens Judiciárias, verificando como elas ganham visibilidade na Constituição do modo que assim se enuncia:
O artigo 212°, n.° 1, diz, relativamente à jurisdição comum:
«Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas as outras ordens judiciais».
E o artigo 214°, n.°3, diz, quanto à ordem administrativa:
«Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais».
A regra geral é a da jurisdição comum e sempre subsidiária.
Não se estranha, por isso, que o artigo 18°, n.° 1, da Lei n.° 3/99, de 13 de Janeiro (LOFTJ), recuperando uma orientação que já estava, e está, no artigo 66° do Código de Processo Civil, venha confirmar que «são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».

De resto, não é por acaso que, os tribunais que integram a ordem judiciária comum, são designados na linguagem corrente, e vulgarmente, como os "tribunais comuns". (34)

7.2. Quando a Constituição e a Lei estabelecem e organizam (estatuem) a Ordem Judiciária do Estado, fixam as competências dos órgãos judiciais integrantes da estrutura judiciária correspondente. Por forma que, a cada categoria judiciária orgânica é atribuída uma parcela ou medida da jurisdição.
E a competência, fracção ou parcela de poder jurisdicional da categoria orgânica respectiva a que são afectadas certas matérias contenciosas, Portanto, basta examinar a lei orgânica (o estatuto) de determinada categoria de tribunal, para se verificar se certa causa está, ou não está, compreendida na área da sua jurisdição.

7.3. O art. 3º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, (ao tempo da acção) na linha do que estatui a Constituição, nos preceitos anteriormente reproduzidos, dispunha que «incumbe aos tribunais administrativos e fiscais… dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais».
E o artigo 51°, aplicável ao nosso caso, (corresponde ao actual artigo 4°do ETAF) aos estabelecer, nas várias alíneas, os limites da jurisdição administrativa, exclui do âmbito dessa jurisdição, na alínea f), as acções ou recursos que tenham por objecto: ... «as questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja uma pessoa de direito público».
Como se sabe, a situação alterou-se a partir de 1 de Janeiro de 2004, data a partir da qual vigora o novo ETAF, que não se aplica aos processo pendentes nessa data ( artigo 2º-1 da Lei n.° 13/02, de 19 de Fevereiro, que aprova o Estatuto).
O artigo 4º, n.° 1 alínea g), relativamente ao âmbito de jurisdição, dispõe que «Compete aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto ... questões em que, nos termos da lei, há lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público».
E embora a redacção não pareça feliz (35).
, dado o problema que tradicionalmente se levantava à volta desta questão (relação de direito público/relação de direito privado) e da competência judiciária correspondente, certo é que a exposição dos motivos do ETAF, não deixa qualquer dúvida sobre o verdadeiro alcance pretendido pelo legislador (Ponto 2 da Exposição de Motivos):
«Neste quadro se inscreve a definição de âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que, como a Constituição determina, faz assentar a definição do âmbito da jurisdição administrativa num critério substantivo, centrado no conceito de “ relações jurídicas administrativas e fiscais", mas sem erigir esse critério em dogma... não estabelece uma reserva material absoluta. A existência de um modelo típico e de um núcleo próprio de jurisdição administrativa e fiscal não é incompatível com uma certa liberdade de conformação do legislador, justificada por razões de ordem prática, pelo menos quando estejam em causa domínios de fronteira, tantas vezes de complexa resolução, entre direito público e direito privado».
«A jurisdição administrativa passa assim a ser competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado».
O que leva a concluir que o legislador do novo ETAF cometeu à jurisdição administrativa a apreciação de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, independentemente da questão de saber se esta responsabilidade emerge de uma actuação de gestão pública ou de uma actuação de gestão privada.
A distinção deixa de ter interesse relevante, para o efeito de determinar a jurisdição competente, que passa a ser, em qualquer caso, a jurisdição administrativa. Todos os litígios emergentes de actuação da Administração Pública que constituam pessoas colectivas de direito público em responsabilidade extracontratual pertencem, portanto, à competência dos tribunais administrativos (36).

7.4. O que se quis significar no ponto 7.3, foi que, se a competência judiciária, relativamente ao caso em apreço, se colocasse depois da vigência da reforma do contencioso administrativo (1 de Janeiro de 2004), a questão estaria expressamente resolvida a favor da competência do tribunal administrativo, dada a envolvência, na relação litigiosa, de uma pessoa colectiva de direito público (a CMVM), accionada como devedora de uma obrigação de indemnizar com fonte em responsabilidade civil extracontratual, independentemente do carácter privado ou público do regime de direito aplicável à relação em litígio. (Nomeadamente: artigos 22° e 271° da CR; DL 48.051, de 21 de Novembro de 1967; ou artigo 501°, entre outros, do CC).
Consequentemente, voltamos à questão tradicional de saber, se, o litígio colocado pelo autor na acção, é uma questão de direito privado, ou uma questão de direito público, não obstante a agravante ser, por lei, uma pessoa jurídica de direito público, conforme já se esclareceu.
Donde, ainda: se for uma questão de direito público, estaremos perante uma causa que deve pertencer ao foro administrativo, sendo incompetente o foro comum, como decidiu a Primeira Instância.
Se for uma questão de direito privado, naturalmente que cairemos na competência do foro comum, conforme decidiu a Relação.
Tudo isto, considerando o disposto no artigo 51°, alínea f), reproduzida já.
Vamos, então, explorar este caminho:
a)- Primeiro, através de uma ideia básica e simplificadora sobre a noção de relação de direito público - o que ajuda à compreensão do que vai dizer-se e do sentido da decisão a que vai chegar-se. E,
b)- Depois, no numero seguinte, veremos como vem apresentada, e como se caracteriza, a relação conflituosa, na configuração da acção proposta pelo Autor/recorrido.
Voltemos, então, àquela ideia primária: a noção de relação jurídica, de direito público, versus relação jurídica de direito privado. (37).

A relação de direito público é regulada essencialmente por normas de direito público; a relação de direito privado é regulada por normas de direito privado. É do ABC dos Manuais Jurídicos que estudam estas matérias, em que, classicamente, repousa, quer a dicotomia (apenas pedagógica - claro!, já que o Direito é um todo inteiro) dos grandes ramos: Direito Público/Direito Privado; quer a dupla função do direito objectivo - público e privado. (38)

Dos vários critérios de distinção (o da natureza dos interesses; o da posição dos sujeitos; ou o da qualidade em que intervêm na relação) (39)
, aquele que mais tem recolhido o consenso generalizado da doutrina e da jurisprudência, é o que considera a qualidade em que o sujeito (público) intervém na relação jurídica.
Será uma relação de direito público, quando um dos sujeitos ( o de direito público) intervém na relação jurídica que em causa estiver, numa qualidade que lhe confere, por lei, e em razão do interesse publico que prossegue, uma posição de supremacia, um poder de autoridade, sobre o outro sujeito dessa mesma relação, impondo-lhe unilateralmente a sua vontade, por via da necessidade daquele prosseguimento. Com a crescente criação de situações novas de tipo social a tutelar pelo direito, em domínios onde o traço de demarcação entre o público e o privado é cada vez mais difícil de definir (assim, por exemplo: no direito do trabalho, no direito financeiro, da bolsa, da banca, dos seguros, do consumo, do ambiente, da bioética, do desporto, da negociação à distância, das nova tecnologias ...) uma correcta perspectivação (40) do que seja, e deva ser, o âmbito do direito público e privado, impõe-se, como forma de modelar a intervenção do próprio direito ( e do Estado) (41) na vida social, aproximando-se, tanto quanto possível, e na medida socialmente útil, da sua real função normativa, reguladora da vida das pessoas, e delas próximo, enquanto cidadãos - agentes individuais ou intergrupo.
É exactamente com este sentido que pode afirmar-se, na esteira de Radbruch que "nada caracteriza melhor uma determinada Ordem Jurídica do que a relação em que, dentro dela, são colocados, um em face do outro, o Direito Público e o Direito Privado, e o modo como aí, são distribuídas, entre estes dois domínios, as diversas relações jurídicas".
Trata-se - passe a expressão, quando falamos de direito público - de uma relação de poder, que se desenha em modelo vertical. De cima para baixo, como estrutura típica do poder, através da relação Estado/Cidadão. (42)
E de cima para baixo, enquanto projecta o exercício de um poder de soberania (na linguagem antiga: um poder majestático), ou uma sua parcela, mas sempre de forma imperial, impositiva e unilateral, como acto de poder soberano (o tão apregoado Jus Imperii).
Ao contrário, a relação de direito privado estrutura-se na horizontal, ou seja, pessoa a pessoa, numa posição em que os dois sujeitos, estão confrontados numa situação de igualdade, formal e substancial: são verdadeiros pares ou partes iguais, gozando de um igual estatuto, e de idêntica qualidade relacional, igualmente vinculados na modelação dos correspondentes direitos, deveres e sujeições, recíprocos, a que estão adstritos.
Nenhum dos sujeitos tem, ou actua, na qualidade de "Majestade" na relação que os vincula reciprocamente.
Mas ambos estão colocadas no mesmo plano de estatuto jurídico, sem que um se superiorize ao outro, na regência do vínculo jurídico que os liga, pelos ditos, direitos, deveres e sujeições.
8. É altura de particularizar, verificando, conforme ficou enunciado atrás, [ponto 7.4. b)], como é que a relação jurídica em conflito é apresentada na acção indemnizatória contra a agravante, CMVM, com base em facto ilícito extracontratual, causa de pedir de todos os pedidos.
Diz o Autor que:
«É titular de 6.000 acções ordinárias, ao portador, fungíveis e escriturais, do valor nominal de Esc. 1 000S00 cada, no capital da OA, todas inscritas em conta de valores mobiliários escriturais aberta nos livros da AD, SA.;
O registo de tais acções encontra-se bloqueado para efeitos judiciais, a pedido do A., ao abrigo do disposto no art. 54°, n.°2 do Cod. do MVM, desde 23/12/97;
A AD, está obrigada, designadamente, a emitir declarações para efeito do exercício dos direitos sociais inerentes às acções, extractos de conta e certificados comprovativos dos direitos e vinculações a elas relativos e ainda a exercer, em nome e no interesse do A., e os direitos patrimoniais atinentes às mesmas acções;
Acontece que ela (AD) tem vindo a violar sistematicamente aqueles deveres, impedindo que o A. exerça os direitos sociais relativos às sobreditas acções;
A Interbolsa, só violou os registos relativos à conta de valores mobiliários da AD depois de haver dado notícia dessa intenção à CMVM e obtido desta a sua anuência; (Sublinhámos).
A CMVM autorizou tacitamente que fosse violado o direito de propriedade do A. e o bloqueio que a AD impusera aos seus registos nas contas da Interbolsa»; (Idem quanto ao sublinhado).
E acrescenta, especificamente, no que mais releva:
"A 2.ª R. só terá violado os registos relativos à conta de valores mobiliários, da 1.ª R, depois de haver dado notícia dessa intenção à CMVM (a 3ª ré), e obtido desta a sua anuência." (Artigo 52° da petição);
«A qual também se encontrava prevenida da impossibilidade legal de fazer operar a "expropriação do A.".(Artigo 53°);
"Já nessa altura, tinha a 3ª R, a CMVM, conhecimento, em consequência de comunicações que recebera de diversos accionistas da OA, que a gestão e as contas desta sociedade se encontravam impugnadas judicialmente desde 1993. "(Artigo 54°);
«A 3.ª R, (a CMVM) no exercício das suas funções de supervisão do mercado de valores mobiliários, tinha conhecimento da fraude com que se procurara criar a aparência de uma Oferta Pública de Aquisição (OPA) para subsequente realização de uma "expropriação por utilidade particular". (Artigo 56°);
"Na verdade, quando, no dia 23.12.97, surgiu publicado um anúncio da autoria da 5ª R., dizendo que, caso os accionistas da 7.ª R. não aceitassem uma oferta que lhes dirigia, válida "até ao 3º dia, inclusive, posterior ao da publicação da referida oferta no Diário da República, faria lavrar uma escritura pública em que seja declarada a aquisição da totalidade das acções, a 3ª R.(CMVM) tinha obrigação legal de ordenar a suspensão imediata de tal "oferta", atenta a mera circunstância de os dias assinalados à sua validade serem dias de encerramento do mercado de valores mobiliários, por razões legais e de procedimento dos intermediários financeiros, por ela sancionados." (Artigo 57°);
"A 3.ª R. (a CMVM) a quem a lei comete o encargo de zelar pela transparência do mercado de valores mobiliários, incumpriu o Cód. Do MVM, deixando que o referido anúncio e os actos nele referidos fossem praticados sem imediato levantamento do processo contra-ordenacional correspondente".(Artigo 59º):
"Ao sobredito incumprimento, a 3.ª R. (a CMVM) acrescentou, depois. a autorização tácita para que fosse violado o direito de propriedade do A. e o bloqueio que a 1." R. impusera aos seus registos nas contas da 2ª."(Artigo 60º);
"Para além de autorização tácita concreta, houve uma autorização prévia expressa, mediante instruções dadas em violação da lei e da CRP. que permitiram àquela 2.ª R. violar registos nela existentes em nome de intermediários financeiros, mesmo contra oposição destes, e com base em documentos cuja legalidade aprecia, mas a que confere relevância mesmo quando de conteúdo manifestamente falso, como no caso vertente", (Artigo 61°).
Como sublinha a agravante na conclusão XVII, o Autor - mantendo a tese da petição - volta a defender, nos artigos 61.° a 63.° da Réplica, que «os actos ilícitos imputados à R. CMVM consistiram na autorização dada à R. Interbolsa-associação para a prestação de serviços às bolsas de valores (Interbolsa) para violar os registos de propriedade e a inscrição de bloqueio, constante da conta de valores mobiliários escriturais do A., autorização essa resultante de "normas" e "instruções", dadas à R. Interbolsa, mediante o Regulamento Geral da Central de Valores Mobiliários e do Sistema de Liquidação e Compensação; e ainda na ausência de ordem de suspensão da oferta» Em síntese, na versão do Autor, a CMVM não bloqueou, como devia, as 6.000 acções do Autor, ao invés, cancelou o registo do bloqueio, anteriormente por ele solicitado, e obtido.
Por conseguinte, esta Ré, possibilitou a oferta pública da sua aquisição (OPA), por parte da 7ª (a OW), contra o que, afinal, se queixa o autor, invocando, por aí, a ilicitude do comportamento da agravante, e, daí ainda, o dever de o indemnizar, por causa disso.
É esta, ainda afinal, a causa de pedir que sustenta o efeito jurídico pretendido pelo autor - o pedido indemnizatório por obrigação decorrente de responsabilidade extracontratual.
Reside aqui a chave e a solução do conflito sobre a competência material para conhecer da causa.
Se violou ou não o dever de manter o bloqueio das acções, ou se, de acordo com as suas atribuições de Entidade Independente, supervisora, fiscalizadora, enfim, reguladora da mobilidade do mercado de valores mobiliários, abriu caminho à OPA, em prejuízo do Autor, essa é a questão de fundo. E sendo-o, o que fica em causa é um acto de autoridade cuja apreciação está fora da jurisdição do tribunal comum.(43)

8. 1. O mesmo aspecto que acaba de ser considerado, visto de outra maneira:
A CMVM no exercício das suas funções de supervisão do mercado de valores mobiliários, tinha, alegadamente conhecimento de uma fraude com que se procurara criar a aparência de uma Oferta Pública de Aquisição (OPA - artigo 523° e segs., ao tempo, do CVM; hoje, artigos 173° e segs., do actual), por parte da OW, em prejuízo do Autor. A CMVM tinha a obrigação legal de ordenar imediatamente a suspensão da oferta lançada pela OW, por se tratar de oferta fraudulenta, e com fundamento nos seus poderes de supervisão e fiscalização (artigos 12° a 17°, ao tempo, do CVM, hoje 352° e seguintes, do actual). Na tese da acção, terá incumprido o Cód MVM e desrespeitado as suas atribuições estatutárias, deixando que fossem praticados os actos inerentes à Oferta Pública de Aquisição por parte da OW, sem imediato levantamento do processo contra-ordenacional correspondente, acabando por levantar o bloqueio das acções, em prejuízo do Autor que, por isso, se afirma queixoso e "expropriado".
A INTERBOLSA só violou os registos relativos à conta de valores mobiliários da AD - DEALER depois de haver dado notícia dessa intenção à CMVM e obtido desta a sua anuência.
Ainda no entendimento do Autor, a CMVM, para além da anuência à Interbolsa, deu autorização prévia expressa, mediante "instruções" que permitem à Interbolsa violar registos nela existentes em nome de intermediários financeiros, mesmo contra oposição destes.

8.2. Na tese do Autor, a CMVM, tinha e continua a ter, competência de supervisão, de regulação, fiscalizadora, investigadora e sancionatória.
A CMVM tinha o dever legal de obstar ao acto da INTERBOLSA, conforme os seus poderes legais e atribuições estatutárias de direito público - diz o Autor.
Ou seja, regressando a nova síntese, é o Autor que fundamenta a responsabilidade civil contra a CMVM, deste modo:
- por um lado, por ter dado "autorização" e "instruções" à Interbolsa, para esta exercer um poder regulamentar de natureza pública: o de transferir unilateralmente valores mobiliários (ilícito por acção);
- por outro lado, por não ter obstado ao acto de aquisição forçada de acções por parte da Ré OW e a todos os procedimentos conexos, incluindo o próprio acto da Ré Interbolsa (ilícito por omissão).

8.3. A conclusão a retirar de todo o conjunto desenvolvido, não pode, a nosso ver, deixar de ser outra que não seja a do exercício de poderes públicos por parte da CMVM, que se deixaram caracterizados no ponto 5, exercício esse, alegadamente lesivo da esfera patrimonial do Autor e, consequentemente, sujeitando-a, nesse entendimento, à obrigação de indemnizar o dano porventura produzido na esfera jurídica lesada, não obstando afinal a uma oferta pública de aquisição de acções (que integrava as do autor) e que lhe era hostil.
Trata-se de um acto unilateral e impositivo da Administração do mercado intermediário financeiro, regulado por normas de direito público, claramente expressivas do Jus Imperii, que supõe a constituição de uma relação de direito público - porventura acto ofensivo da esfera privada do Autor, praticado ao abrigo daquele direito (daquele “império”).
E relação essa, com que perfil pessoalizado?
Com este: um dos sujeitos - a CMVM, digamos, a expressão do Estado - interveio na relação, no exercício de um Jus Imperii, vis a vis o outro sujeito - o particular, o Autor - que pretende ser indemnizado em consequência de uma actuação levada a cabo, sob a égide desse "império".
Assinala-se aqui, claramente, o "Estado", com marca de Estado-Administração/CMVM, accionado por um particular - o cidadão – numa relação jurídica, entre os dois constituída, e que opõe um ao outro – o autor e o réu na relação controvertida, trazida por aquele ao tribunal.
E está accionado porque usou de "armas de Estado", como Administração Pública (rectius: a CMVM) enquanto entidade de regulação económica, pública e independente, e como titular dos correspondentes poderes públicos institucionais, que lhe são confiados por lei, com vista à realização dos objectivos, estatutários «de regulação, supervisão, fiscalização e promoção dos mercados de valores mobiliários e das actividades que nos mesmos exerçam todos os agentes que neles intervenham directa ou indirectamente...». (Artigo 12° do CVM, então vigente, actual artigo 353°, n.° 1). (44).

Por delimitação negativa, estamos, pois, longe da situação de responsabilidade por actos de gestão privada preenchida pelo artigo 501° do Código Civil - base em que o Autor sustentou a acção e por que se orientou o acórdão recorrido.

9. A questão seguinte, de acordo com o método que se vem desenvolvendo, enunciado no ponto 2, consiste em saber se, a configuração da acção nos termos anteriormente descritos (pontos 7.,7.1, e 7.2), se ajusta ao perfil de uma relação administrativa ou de uma relação de direito privado - e, daí, a consequente determinação da competência judiciária material que se pretende escrutinar com o conhecimento do objecto deste agravo. A resposta, de forma transparente, até já se acabou por dar acima!
O mesmo é dizer que, perante o que foi exposto ao longo do discurso judicativo, colocar agora a questão, é resolvê-la. E resolvê-la, concluindo que estamos perante uma relação de direito público, a nosso ver, inquestionavelmente!
Não merece a pena repetir agora, ideias já antes expendidas. Recicla-se tão só, as que decorrem conclusivamente, de forma concisa, e tentando a clareza possível, das considerações que se deixaram desenvolvidas:
a) Está em causa na acção donde emerge o presente agravo - e neste – a apreciação da legalidade de actuação (ou não actuação) de uma Autoridade Pública Administrativa, actuando como tal, corporizada na pessoa jurídica, de direito público - a CMVM, aqui recorrente - que é uma entidade independente de regulação económica, pública, dos mercados de valores mobiliários e actividades conexas, segundo estabelece o artigo 12° do CVM (ao tempo da acção), e que corresponde ao que dispõe, actualmente, o artigo 353°-l do CVM.
b) E porque assim é, a obrigação accionada traduz um conflito regulado pelo direito público, e, por conseguinte, revê-se, na linguagem da lei transcrita, vigente ao tempo, numa "questão de direito público" entre um particular, atingido na sua esfera jurídica por um alegado acto administrativo que tem subjacente uma questão daquela natureza, e o Estado (Estado - Administração dos mercados financeiros, através de um modelo de regulação económico-jurídico apropriado), e um particular, atingido na sua esfera jurídica por tal acto administrativo, praticado nos termos indicados nos pontos 7, 7.1, e 7.2, sob a égide de poderes públicos, atribuídos por lei.
c) Ora, a determinação da natureza pública ou privada da relação litigiosa correspondente, e a consequente determinação do tribunal, materialmente competente para dela conhecer, deve considerar a acção (pedido e causa de pedir), tal como é configurada pelo Autor, tendo ainda em conta as demais circunstâncias disponíveis pelo Tribunal que relevem da exacta configuração dos termos da causa proposta.
d) A configuração da acção feita pela Autor/recorrido mostra que não está em apreço judicial uma questão de direito privado, donde resulte a obrigação de indemnizar solicitada, mas, essencialmente, e apenas, uma questão de direito público, relativa á legalidade da actuação da CMVM, nas condições sintetizadas na alínea b) antecedente.
e) Consequentemente, estando em causa a apreciação de uma relação jurídica de direito administrativo, que veio alegadamente a dar causa à obrigação de responsabilidade civil extracontratual que se pretende fazer valer, através da acção, o tribunal comum - neste caso cível - é incompetente em razão da matéria, para conhecer da acção, assim proposta.

10. Finalmente, completando a análise, resta uma palavra, de referência respeitosa e necessária, ao acórdão recorrido, como ficou anunciado no último ponto do n.° 2, indicativo do método a seguir [alínea f)].
O seu fundamento socorre-se inteiramente do acórdão deste Tribunal, de 28 de Fevereiro de 2002, citado de início, e junto a fls. 1268.
Ora, a doutrina deste último acórdão é esta, a partir da transcrição fiel da parte nuclear do próprio acórdão recorrido:
«A CMVM é uma pessoa colectiva de direito público dotada de autonomia administrativa e financeira e património próprio. Rege-se pelas disposições do Código do Mercado de Valores Mobiliários, aprovado pelo DL n.° 142-A/91, de 10/4, e pelo seu regulamento interno, bem como no que por aquele e por este não for especialmente regulado, exclusivamente pelo ordenamento jurídico e financeiro aplicável que revistam natureza, forma e designação de empresa pública de regime de direito privado (artigo 11°). As empresas públicas regem-se pelo DL n.° 260/76, de 8/4, pelos respectivos, estatutos e que não seja regulado especialmente pelas normas de direito privado; porém, determinados aspectos do seu funcionamento estão submetidos a um regime de direito público quando a empresa explore um serviço público.
É este o caso da CMVM atendendo à natureza pública das suas atribuições e competências, definidas nos artigo, 12°, 14° e segs. , do Cód. do MVM.
É por isso que, dos actos praticados pelo conselho directivo da CMVM, ou por delegação, por qualquer dos seus membros, cabe recurso contencioso para os tribunais administrativos, nos termos do artigo 46° do Cod. do MVM.
Do mesmo modo, cabe recurso aos tribunais administrativos, a competência em razão da matéria (Sic), para julgamento dos recursos dos actos administrativos e executórios dos órgãos das empresas sujeitas a um regime de direito público... ( ).
Já pelo que respeita às acções para efectivação da responsabilidade civil das empresas públicas por actos de gestão, dos seus órgãos, compete aos tribunais judiciais o julgamento dos respectivos litígios ainda que se trate das empresas sujeitas a um regime de direito público, por força do disposto no artigo 46o-, n.° 1, do DL n.° 260/76, de 8 de Abril.
No entender do legislador, a efectivação da responsabilidade civil de uma empresa pública nunca constitui litígio emergente de uma relação jurídica administrativa». (Os sublinhados não pertencem à transcrição do reproduzido acórdão do Supremo).
«Neste caso, a CMVM rege-se pelo ordenamento jurídico aplicável às empresas públicas de regime de direito privado, por força do artigo 11° do Cod. do MVM».
A partir deste segmento, que assim transcreveu, conclui, agora o próprio acórdão recorrido, na mesma orientação do acórdão de que se socorreu: «Assim sendo, muito embora a alínea h) do n° 1 do artigo 51.º do EATF estabeleça que aos tribunais administrativos compete conhecer das acções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, a decisão não pode deixar de ser a de que a causa se insere no âmbito da competência material dos tribunais judiciais».

10.1. A tese do acórdão, sufragando, como se disse, tal qual a do Supremo, e sempre com o devido respeito, não é correcta. É singularmente conclusiva: «Já pelo que respeita às acções para efectivação da responsabilidade civil das empresas públicas por actos de gestão dos seus órgãos, compete aos tribunais judiciais o julgamento dos respectivos litígios ainda que se trate das empresas sujeitas a um regime de direito público, por força do disposto no artigo 46°, n.° 1, do DL n° 260/76, de 8 de Abril».
Avulta da conclusão afirmativa, que se dá por demonstrado o que se quer demonstrar, relativamente à competência judiciária para as acções de responsabilidade civil extracontratual contra entidades de direito público, afastando, sem justificar, a aplicação da alínea h), indicada, e, consequentemente, retirando tal competência aos tribunais administrativos, relativamente a actos de gestão pública da CMVM.
Não só o artigo 46°, n.° 1, do DL n.° 260/76 (por sinal já expressamente revogado, à data do acórdão do Supremo, pelo artigo 40º-1 do DL n.° 558/99, de 17 de Dezembro), em parte alguma do preâmbulo ou do corpo normativo, reconhece aos tribunais judiciais competência material para conhecimento do regime da responsabilidade civil das empresas públicas, por actos de gestão pública - e a competência tem de resultar expressamente da lei, ponto 5 - como envolveria, sem explicar, uma radial mudança dogmática, a atribuição aos tribunais comuns de competência para conhecer de questões de responsabilidade civil administrativa, "consagrada" através da fragilidade de uma via indirecta e ambígua de remissão, não especificada, para uma norma fora (e estranha) à organização judiciária.
Seria uma forma pouco recomendável de legislar num Estado de Direito, que, entre o mais, exige transparência do legislador e não caminhos tortos!
E atente-se ainda no que segue:

10. 2. Afinal o que diz (o que dizia) o invocado n.° 1 do dito artigo 46° do DL 260/76, de 4 de Abril?
Diz isto:«Salvo o disposto nos números seguintes (aqui há um lapso, pois o artigo só tem outro n.°s que é o n.°2), compete aos tribunais judiciais o julgamento de todos os litígios em que seja parte uma empresa pública, incluindo as acções de efectivação da responsabilidade civil por actos de gestão dos seus órgãos, bem como a apreciação da responsabilidade civil dos titulares desses órgãos para com os respectivos empresas».
A remissão genérica, ou em bloco, feita pelo artigo 11º do anterior CVM (1991) («A CMVM rege-se pelo presente diploma e pelo seu regulamento interno, bem como, no que por aquele e por este não for especialmente regulado, exclusivamente pelo ordenamento jurídico e financeiro aplicável às entidades que revistam natureza, forma, e designação de empresa pública de regime de direito privado, não estando sujeita às normas aplicáveis aos fundos e serviços públicos»), não significa uma remissão automática, e específica, para o artigo 46º-1, em causa, em matéria de competência judiciária.
O que significa textualmente é a remissão para um regime jurídico e financeiro de direito privado, provavelmente para flexibilizar a gestão corrente, e no que tiver de tipo empresarial, a CMVM, em particular, desobrigando-a do controlo financeiro a que se sujeitavam os fundos e os serviços autónomos, considerado factor de bloqueio daquela gestão.
Pretende que o regime das relações jurídicas em que intervenha a CMVM possa ser igual ao das empresas públicas, na parte em que o Código não regule, submetendo-a ao regime do direito privado.
Isto mesmo resulta - e joga - com a explicação do n.° 3, parte final, do preâmbulo do DL 260/76, quanto à flexibilização de regras de gestão das empresas públicas.
Mas não pretende abranger, definir ou delimitar a competência judiciária para conhecer de todas as relações jurídicas em que intervenha a CMVM.
Seguramente que não, relativamente aos actos administrativos geradores de responsabilidade civil extracontratual!
E que a tutela judiciária de tais actos, já estava coberta, já decorria expressamente do artigo 51°. do ETAF de 1984, na altura vigente, particularmente da alínea h) do n.° 1. ao prevenir que «compete aos Tribunais Administrativos do Círculo conhecer das acções sobre responsabilidade civil dos entes públicos, por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública».
Enfim, o artigo 11° do CVM tem a ver, antes, com a estruturação orgânica e funcional da CMVM, que não legitima o recurso ao disposto no artigo 46º-1, sobre competência judiciária, e remete apenas, na medida aplicável à CMVM, para um regime material de direito privado, mais agilizado, sem pretender entrar no campo da competência judiciária.
Esta, sempre teria que resultar de lei atributiva expressa, como já se disse no decurso deste texto, ao tratar-se da competência judiciária material. (Ponto 7).

10.3. Não teria qualquer sentido razoável a remissão, genérica e indiscriminada, para um controlo judiciário comum de actos praticados pela CMVM, ao abrigo dos poderes públicos conferidos pelo próprio CVM (artigos 12° e segs.), quando, este mesmo CVM, contempla directamente a tutela judiciária destes actos, em sede de impugnação, particularmente, quando dispõe no artigo 46° (por sinal também artigo 46°), especialmente n.°s 1 e 4 do próprio CVM (1991) que:
n.° 1: "Dos actos administrativos praticados pelo conselho directivo da CMVM ou por delegação do conselho, por qualquer dos seus membros, cabe recurso contencioso para os tribunais administrativos, nos termos gerais ".
E o n.° 4: "Nos recursos interpostos de actos administrativos referidos no n.° 1, praticados no exercício de poderes de supervisão e de fiscalização, presume-se até prova em contrário, que a suspensão da eficácia do acto administrativo determina grave lesão do interesse público".
Contemplando-os, em sede de impugnação (recurso), não faria qualquer sentido coerente e unificador do sistema judiciário que, em sede de acção, (petição) afastasse (sem o dizer inequivocamente) a jurisdição administrativa prevenida pela transcrita alínea h), do artigo 51° do ETAF,(1984), então vigente, ao tempo da entrada em vigor do CVM (1991).
Se o fizesse, para além de representar uma inaceitável incoerência sistémica, poderia ainda, representar uma repartição de jurisdições, em rota de colisão com a partilha constitucional de jurisdições (jurisdição administrativa/jurisdição comum) prevista pelos artigos 209° a 214° da CR.
De resto, e sem forçar muito o argumento, e independentemente do que acaba de expor-se, sempre se poderia dizer que, o disposto no referido artigo 51.°, n.° 1, alínea h) do ETAF de 1984, e os preceitos do CVM de 1991, ora transcritos, sempre prevaleceriam sobre o previsto no artigo 46° do DL n° 260/76, de 8 de Abril, por serem "lei posterior" (artigo 7.° do Código Civil), não podendo ser atribuído ao artigo 11° do CVM qualquer sentido repristinatório, perante a ausência nele, de indicação expressa do legislador nessa direcção.
A mesma solução também já resultaria da constitucionalização da jurisdição administrativa operada com a revisão constitucional de 1989, quando a CR passou a dizer, no artigo 212.º-1 (actual n.°3) que «Compete aos tribunais administrativos dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas"!
E já vimos que a actuação da CMVM, segundo a descrição do Autor, dirigida ao tribunal comum, configura uma relação administrativa!
III
DECISÃO
11. Termos em que, considerando tudo quanto ficou exposto, se concede provimento ao agravo, declarando-se incompetente em razão da matéria, o tribunal cível de Lisboa, para conhecer da acção tal como lhe foi formulada pelo Autor. Custas pelo agravado.
Lisboa, 11 de Outubro de 2005.

Neves Ribeiro (relator)
Araújo Barros
Oliveira Barros


___________________________________
(1) Não se sugeriu a intervenção do plenário das secções cíveis, prevista pelo artigo 732°-A -1 e 2, do CPC, por se considerar que um acórdão anterior, isolado, não representa "jurisprudência anteriormente firmada no domínio da mesma matéria e sobre a mesma questão fundamental de direito». (Firmada: no sentido de consolidada, tornada firme). Tendo isto em consideração, tentou-se aprofundar o assunto, o melhor possível, como se diz no texto - e se tenta fazer com o seu desenvolvimento. Dissemos, em princípio sob a égide da mesma legislação, porque a legislação aplicável, não é rigorosamente a mesma, como veremos a final no texto, ao analisarmos o artigo 46°-3, do DL 260/76, que fundamentou o acórdão do Supremo, em questão. Este acórdão foi proferido no agravo n.° 429/7/01, de 28 de Fevereiro de 2002.
(2) "O controlo contencioso da actividade de entidades de regulação económica" – trabalho publicado na obra colectiva, coordenada pelos Professores, Ruy Albuquerque e Menezes Cordeiro: "Regulação e Concorrência - Perspectivas e limites da defesa da concorrência", da autoria (o trabalho) dos Professores, Alexandre de Albuquerque e Pedro de Albuquerque, páginas 249/250 - Almedina, 2005.

(3) Professor Nogueira Leite, Conferência proferida na lição inaugural do Curso de Regulação Pública, de Pós -graduação, na Faculdade de Direito de Coimbra,
(4) Ainda há pouco tempo foram definidas as grandes opções do Plano para 2005-2009, que se inserem na estratégia de desenvolvimento da sociedade e da economia portuguesa para esse período temporal, através da Lei n.° 52/05, de 31 de Agosto (Veja-se, em especial, o artigo 2º -enquadramento estratégico).

(5) Direito Económico, páginas 73/74, de Carlos Santos, Eduarda Gonçalves, Maria Manuel Leitão Marques.
(6) Foi criada a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) pelo DL n.°309/2003, de 10 de Dezembro que, no artigo 3º diz «A ERS tem por objecto a regulação, a supervisão e o acompanhamento da actividade dos estabelecimentos, instituições e serviços prestadores de cuidados de saúde».

(7) Sobre a história e evolução das teorias económicas - Soares Martinez, Economia Política, páginas 132 e seguintes, Almedina, edição de 1995.
(8) No sentido de estarmos perante um direito novo - Professor Saldanha Sanches, ROA, Ano 60-2000, páginas 5/22. Dá como exemplo expressivo (nota 15, páginas 11) a regulação do uso da INTERNET, interrogando-se sobre se devemos estar perante uma regulação estatal, ou uma auto-regulação, ou até, uma simples desregulação. E, mais recentemente, Professor Paz Ferreira, O Direito da Economia, páginas, entre outras, particularmente, 393 a 398.

(9) Se a economia sempre intimidou o magistrado administrativo, que deixava de bom grado ao judicial ( como os seus direitos de propriedade e os seus contratos), o intervencionismo estadual modificou necessariamente a sua forma de intervenção, exigindo cada vez mais. Estudos de Regulação Pública, I , do Centro de Estudos de Direito Público e de Regulação, da Faculdade de Direito de Coimbra, Coimbra Editora, 2004, organização do Professor Vital Moreira, página 389 e 394.

(10) O planeamento da economia pelo Estado, implicando a atribuição de mais largos poderes ao Estado e maiores restrições das esferas individuais, era melhor suportado no rescaldo de uma economia de guerra que habituara os espíritos mais ciosos de liberdade a fortes limitações e cerceamentos. (Soares Martinez - Obra citada, páginas 876).
(11) O texto seguiu de perto o Professor Silva Lopes, A Economia Portuguesa desde 1960, edição Gradiva, páginas 267 e segs. (capítulo 7 - Enquadramento institucional e regulação económica até 1973, e capitulo 8 – Enquadramento institucional e regulação económica a partir de 1974 – o intervencionismo económico depois do 25 de Abril.
(12) Maria Manuel Marques e Vital Moreira "A mão visível, Mercado e Regulação" Almedina 2003.

(13) Adelino Maltez - Formação e controlo dos preços, edição da Direcção Geral do Comércio Alimentar, 1978.

(14)Sobre as origens americanas destes aspectos (Direito Administrativo Norte-Americano e Agências Administrativas), consultámos a obra organizada pelo professor Vital Moreira: Estudos de Regulação Pública, Coimbra Editora, 2004, páginas 593- 625, do Centro de Estudos de Direito Público e Regulação, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - CEDIPRE.

(15) Professor Vital Moreira, Autoridades Reguladoras Independentes, páginas 5/6, Coimbra Editora, 2003.

(16) Segundo o Semanário EXPRESSO, edição de 17 de Setembro, página 28, 1° Caderno, a proposta de lei instituidora da AACS, como Entidade Reguladora Autónoma da Comunicação Social, foi aprovada na generalidade, em 15 de Setembro, vindo a ser aprovada na especialidade em 22, seguinte.

(17) Idem, Prof. Vital Moreira, páginas 17, Ponto 1.3.
(18) Ainda, o mesmo Professor, mas agora na sua Dissertação de Doutoramento Auto-Regulação Profissional, páginas 34/45.

(19) Professor Vital Moreira - Autoridades Reguladoras Independentes, páginas 43.
(20) Direito Económico, citado, páginas 223/224.

(21) «Sendo, como são, autoridades administrativas, cujas atribuições se integram na prossecução do interesse geral que aos órgãos de soberania compete prosseguir, afigura-se-nos pouco sustentável admitir a existência de organismos administrativos absolutamente independentes que desenvolvam actividades administrativas totalmente à margem da política geral do país, ou que possam ser subtraídas a uma visão minimamente integrada da acção pública, já que cometendo a CR ao Conselho de Ministros a definição das linhas gerais da política governamental e ao Primeiro Ministro a direcção da política geral do governo (artigos 200°, 1, a); e 201°, l,a), não se concebe uma política geral que não interaja com políticas sectoriais, o que exige um mínimo de coordenação global». - Professor Vital Moreira, Autoridades Reguladoras Independentes, páginas 250.


(22) Sobre o conteúdos deste poder, Professor Pedro Albuquerque e Dr.ª Maria de Lurdes Pereira, Regulação e Concorrência, citada já, páginas 210.
(23) Nesta passagem, seguimos de perto o trabalho de Maria Fernanda Maçãs, Luís Catarino e Cardoso da Costa, publicado em Estudos de Regulação Pública, páginas 319 e seguintes, edição da Coimbra Editora, 2004, obra já anteriormente citada. Seguimos também o trabalho do Professor Vital Moreira e Fernanda Maçãs - Autoridades Reguladoras Independentes, páginas 183 e seguintes (As autoridades de regulação nos domínios económico e financeiro, em Portugal), bem como o já citado trabalho - Regulação e Concorrência, coordenado pelos Professores Ruy de Albuquerque e Menezes Cordeiro, páginas 254 e seguintes.
(24) Há duas diferenças fundamentais entre a Autoridade da Concorrência e as demais autoridades citadas no texto. Os reguladores sectoriais são responsáveis pela supervisão das regras técnicas e pelo cumprimento de obrigações de serviço público, actuando normalmente ex ante. A AC tem responsabilidade na aplicação das regras da defesa da concorrência em qualquer sector da actividade económica, intervindo normalmente, ex post, depois de determinada prática concorrencial lesiva ter ocorrido.
(25) Estudos, citado3 páginas 345 e 347 (O Contencioso das decisões das entidades reguladoras do sector económico-financeiro - trabalho de Maria Fernanda Maçãs, Luís Catarino e Cardoso da Costa).

(26) As disposições citadas do Código dos Valores Mobiliários em vigor, a partir de 1 de Março de 2000, aprovado pelo DL n.° 486/99, de 13 de Novembro, têm preceitos correspondentes no Código do Mercado de Valores Mobiliários, aprovado pelo DL n.° 142-A/91, nomeadamente sobre os poderes de fiscalização e de regulamentação, emissão de normas e instruções. (artigos 75°, 76°, 96°, 101° etc.)

(27) De tal forma que no semanário Expresso de 16 de Julho de 2005, em artigo de opinião, se lhe chamava "a toda poderosa CMVM" 2° caderno, página 8.

(28) Vejam-se, todavia, as reservas colocadas na nota de rodapé n.º 21, bem como no segmento do texto que lhe corresponde.

(29) Professor Vital Moreira, Autoridades Reguladoras Independentes, páginas 244.
(30) Assim, Catherine Teitgen-Colly, "Les Instances de Régulation et la Constitution", in Revue de Droit Public, 106/1990, p. 191 e ss.
Ainda no mesmo sentido, e entre nós, Professor Vital Moreira e Fernanda Maçãs — Autoridades Reguladoras Independentes, — estudo e projecto de Lei-Quadro, página 42.

(31) As palavras (na citação do Professor Canotilho) pertencem a um ilustre publicista francês Roland Drago. Vide Xavier Trétot, "Le pouvoir de Sanction des Autorités Admínistratives Indépendentess répond-il aux exigences de la CEDH?, in Revue du Droit Public, 6/2002, p. 1607 e ss.
(32) Neste capítulo, seguimos de perto o que escrevemos, relatando, o acórdão proferido pelo Tribunal de Conflitos, no processo n.° 2/03, de 18 de Dezembro de 2003, votado por unanimidade.

(33) Seguimos de perto um alinhamento de pensamento que, a este propósito, foi usado no acórdão proferido no agravo n.° 1484/03, em 27 de Maio de 2003, e no agravo n.°3445/03, em 27 de Novembro de 2003, ambos decididos pelo STJ, da autoria dos aqui subscritores do presente acórdão.

(34) No sentido corrente - vulgar, comum ou civil - do ensinamento que Miguel Real chama ao Código Civil (ao novo Código Civil brasileiro, em vigor desde o princípio do ano 2003), a "Constituição do Povo".
(35) A redacção do preceito da alínea g), transcrita no texto, na redacção introduzida pela Lei n.° 107/03, de 31 de Dezembro, ficaria mais clara, expressando inequivocamente a vontade de um legislador razoável (artigo 9.°-3 do CC), se o texto formulado, contivesse na parte final, um segmento do seguinte teor: «... independentemente da natureza pública ou privada da relação jurídica posta em causa no litigio».
(36) Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, Professor Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, páginas 31 e 32. ( Sobre as inovações da reforma). No mesmo sentido: Mário Aroso de Almeida. O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos (4ª edição) páginas 99, ponto 4.3.1, no fim; e Professor João Caupers, Introdução ao Direito Administrativo 7ª edição, páginas 265. Sobre a Reforma, no aspecto em consideração, pode ver-se, também, Estudos, citado, do Professor Vital Moreira, páginas 360/363.
(37) As fontes doutrinais portuguesas consultadas e que, sobre esta distinção, nos pareceram mais didácticas, são O Manual de Direito Administrativo, Edição brasileira, Páginas 1131 e seguintes, do Professor Marcello Caetano; A RLJ Ano 110°, páginas 315 e seguintes, um estudo do Professor Vaz Serra.
Também o acórdão deste Tribunal, de 17 de Setembro de 1994, publicado na CJSTJ II; e de 19 de Março de 1998, proferido no agravo 800/97, contêm vários elementos de reflexão com interesse para a distinção da matéria: questão de direito público, questão de direito privado.
(38) Organizar os poderes do Estado (estatuto do poder) e as suas relações com o cidadão (Direito público); e disciplinar as relações entre estes (Direito privado).

(39) Por todos, pode conferir-se para maiores desenvolvimentos, o Professor Mota Pinto, na obra, Teoria Geral do Direito Civil, páginas 32 a 45, 3" edição, actualizada, 1996.

(40)Perspectivação que encontra dificuldades progressivas - de método e de objecto - à medida que, de uma Sociedade clássica e de relacionamento pessoal imediato, se vai mudando para uma Sociedade de Informação e de Conhecimento, de tipo relacional mediato, e à distância.
Acode, por isso, à análise, a lembrança do conceito actual de Sociedade de Informação: A Sociedade de Informação é uma sociedade onde a componente da informação e do conhecimento desempenham papel nuclear de todos os tipos de actividade humana, em consequência do desenvolvimento da tecnologia digital, e da INTERNET em particular, induzindo novas formas de organização da economia e da sociedade. No seu estágio final, a Sociedade de Informação é caracterizada pela capacidade dos seus membros ( cidadãos, empresas e Estado) de obterem e partilharem qualquer tipo de informação e de conhecimento instantaneamente, a partir de qualquer lugar e forma mais conveniente. ( Sobre esta matéria deve ter-se em conta, o Plano de acção para a Sociedade de Informação, em Portugal, e que pode ler-se, no D.R. I série - B, de 12 de Agosto de 2003).

(41) Nesta perspectiva, o conceito de Direito acaba por se identificar com o conceito de Estado, como expressão normativa deste.

(42)Aqui, o conceito excede o âmbito do Estado/Administração, para se rever na abrangência do próprio conceito Estado/Colectividade. (Sobre estes conceitos: O Estado nos Tribunais, 2ª edição, páginas 54 e seguintes; e 179 e seguintes).
(43) Neste sentido também, Professor Vital Moreira e Fernanda Maçãs, Autoridades Reguladoras Independentes, páginas 227.
(44) Neste mesmo sentido, diz Vital Moreira, Estudos... páginas 356: « Podem ser objecto de recurso contencioso, por exemplo, actos de recusa de registo de oferta pública ( artigos 109° e 119° do CVM); os actos de modificação, revogação, retirada e suspensão da oferta pública (artigos 129°a 133° do CVM); as ordens dirigidas pela CMVM à entidade gestora no sentido da suspensão ou exclusão de valores mobiliários da negociação ( artigo 208° do CVM); a recusa, cancelamento, ou suspensão de registos dos intermediários financeiros ( artigos 300° a 303° do CVM).
E o Professor Freitas do Amaral, no Direito Administrativo III volume, páginas 424, também refere que «os actos das autoridades reguladoras são de gestão pública, qualquer que seja o critério de repartição que se acolha. Eles desenvolvem-se subordinados ao direito público».