Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A1274
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AFONSO CORREIA
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
SOCIEDADE COMERCIAL
ACÇÕES
TRANSMISSÃO DE ESTABELECIMENTO
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
TRESPASSE
DEVER DE COMUNICAÇÃO
Nº do Documento: SJ200706270012741
Data do Acordão: 06/26/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Sumário :
I - A personalidade jurídica – art. 5.º - das sociedades comerciais - e das civis sob forma comercial - art. 1º, nº 4 CSC - significa que são uma individualidade jurídica que se não confunde com a dos sócios.
II - A sociedade mantém a sua individualidade jurídica, apesar das mutações de sócios ou património.
III - Por trás da desconsideração ou levantamento da personalidade colectiva está, sempre, a necessidade de corrigir comportamentos ilícitos, fraudulentos, de sócios que abusaram da personalidade colectiva da sociedade, seja actuando em abuso de direito, em fraude à lei ou, de forma mais geral, com violação das regras de boa fé e em prejuízo de terceiros.
IV - Logo, interessará sempre visualizar na conduta do agente (sócio) uma combinação de actos, ainda que formalmente lícitos, para atingir um fim ilegítimo, visível num resultado danoso: o desfavorecimento dos interesses de autonomia e suficiência económico-patrimonial da sociedade, que se actualiza no momento da insatisfação dos direitos creditícios, resultado da delapidação do património social, em prejuízo de outrem.
V - As acções de uma sociedade são legal e naturalmente transmissíveis. Quando os AA negociaram com a Ré sabiam – ou deviam saber – que a sociedade permaneceria a mesma, independentemente de quem fossem os titulares do seu capital e que em lado nenhum se encontra proibida a venda da totalidade de acções de uma sociedade.
VI - Nada impunha às Partes que trespassassem o Hotel, antes poderia ser censurável que os accionistas da Ré vendessem o (único?) activo da sociedade e ficassem com as acções que não valiam nem o papel em que estavam impressas.
VII - Não tendo havido trespasse ou cessão do direito ao arrendamento - que se manteve na esfera jurídica da sociedade - nada havia a notificar e não foram violadas as obrigações impostas ao arrendatário pelas al. f) e g) do art. 1038.º do CC.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA
BB e
CC

intentaram acção declarativa, de condenação, com processo comum e forma ordinária, contra

DD - Organizações Hoteleiras, S.A., com sede na Rua Castilho, nº ..., em Lisboa, pedindo seja decretada a resolução do contrato de arrendamento e a condenação da Ré a despejar imediatamente o prédio pertencente aos AA. e dado em arrendamento à Ré.

Alegaram para tanto - em resumo - que EE, já falecido, marido da autora, e os demais autores, deram de arrendamento à sociedade ré, o prédio urbano sito na Rua Castilho, ..., em Lisboa, para nele funcionar um hotel.
Porém, em Fevereiro de 2002, os accionistas da ré venderam as suas participações sociais (acções), representativas da totalidade do respectivo capital social, passando a ser accionista única a Sociedade Hoteleira do C... P..., Lda., consubstanciando a alienação nos termos efectuados um trespasse do estabelecimento comercial que, não tendo sido comunicada aos autores, confere a estes o direito de resolver o contrato.

Citada, a Ré contestou, referindo a inexistência de trespasse, impugnando a factualidade articulada e pedindo a condenação dos autores como litigantes de má fé.
Entende a Ré que, apesar de ter havido transmissão de acções, a persona-lidade jurídica da Ré não se modificou. Pelo que é a Ré que mantém a titularidade do estabelecimento “Hotel D...” e continua a ser a arrendatária.

Realizou-se audiência preliminar com saneador, selecção da matéria de facto relevante para a apreciação do pedido e decisão que julgou a acção impro-cedente.

Teve-se por assente, sem reparos, a seguinte factualidade:

1 - Por escritura pública de 12 de Março de 1969, exarada no 19º cartório Notarial de Lisboa, de folhas 8 a folhas 14 do livro n.º 62–B, EE que também usava o nome de EE, casado, natural da Moita e residente em Lisboa, e os seus filhos e ora Autores neste processo, acima identificados, BB e CC, declararam dar de arrendamento à sociedade Ré, o prédio urbano, situado em Lisboa, na Rua Castilho, n.º ..., implantado no terreno em que existira outro prédio urbano demolido, com os números de polícia 80 a 84, inscrito na matriz urbana da freguesia de São Mamede, sob o artigo 483, e descrito na 6.ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número 923, a folhas 118 do livro B-3;

2 - Convencionou-se ser o prazo do arrendamento de um ano, com início em 1 de Fevereiro de 1969, passando a renovar-se, findo tal prazo inicial, por sucessivos períodos de um ano, nos termos da lei;

3 - A renda mensal então estipulada foi de Esc. 210.000$00, sendo, actualmente, de seis mil e quinhentos e um Euros e quarenta cêntimos;

4 - Foi convencionado destinar-se o prédio arrendado a nele ser explorado um hotel, podendo ser exercidas, dentro deste, quaisquer das actividades normal-mente tidas como complementares da indústria hoteleira;

5 - Os senhorios asseguram à inquilina estar o prédio identificado em A) construído de modo a poder funcionar nele um hotel considerado de utilidade turística prévia com classificação de primeira;

6 - Relativamente ao prédio dito em A), já então identificado por Hotel D..., foi declarada e concedida a título prévio a utilidade turística, de hotel de 1.ª A, mediante despacho do Secretário de Estado da Informação e Turismo de 15 de Abril de 1967, publicado no Diário do Governo n.º 112, 2.ª Série de 11 de Maio de 1967;

7 - A utilidade turística foi posteriormente confirmada por despacho do referido Secretário de Estado de 9 de Março de 1970, publicado no Diário do Governo n.º 73, 2.ª Série, de 27 de Março de 1970;

8 - Do anexo à escritura de arrendamento, como documento complementar da mesma, ficou a constar a relação de todas as coisas que, não constituindo parte integrante do imóvel, são seus acessórios ou pertenças e passavam a ser utilizadas pela inquilina, para a referida finalidade de indústria hoteleira;

9 - Da relação agora aludida constam, fundamentalmente, equipamentos associados às necessidades de um hotel, tendo em consideração a dimensão e características daquele que está em causa: - a) torre de refrigeração da marca Baltimore Aircoil; - b) motor eléctrico de 15 cavalos e 1450 rpm (rotações por minuto); - c) um permutador; - d) duas bombas de circulação marca Allweiller AG e respectivos motores eléctricos; - e) central de ar primário marca Clipper e respectivo motor de accionamento marca Crompton Parkinson, e respectivas condutas de ligação; - f) aparelho de tratamento contra incrustações marca Aquastat; - g) duas caldeiras de 450 mil calorias cada marca Cerac em chapa de aço; - h) dois queimadores marca Thermex para as caldeiras; - i) dois depósitos de água quente; - j) aparelhos Aquastat, um para circuito do aquecimento de água, outro para o condicionamento de ar (refrigeração); - l) um permutador; - m) cinco motores eléctricos da marca Rabor para bombas de circulação nos circuitos de águas quentes e frias; - n) um quadro eléctrico para a sala das caldeiras; - o) dois depósitos de combustível cada um com cerca de 4.000 litros, e respectivos acessórios; - p) transformador de 250 quilovátios, sistema de contactos e acessórios; - q) quadro geral em blocos destinados a iluminação, aquecimento e força matriz; - r) condicionadores de ar para zonas públicas, com dois motores eléctricos para bombas de circuito de refrigeração, e acessórios; - s) motor eléctrico com bomba de elevador; - t) grupo de extracção de ar das casas de banho, com motor eléctrico e extractor; - u) no estacionamento, três extractores, servindo, respectivamente, sala de restaurante, sala de banquetes e zonas de serviços; - v) sistema electrónico nas copas para automatização do ar condicionado dos quentes;

10 - A Ré ficou obrigada a manter em bom estado de funcionamento todas as coisas e sistemas referidos no anexo mencionado;

11 - A Ré ficou igualmente obrigada a instalar e manter, no prédio arrendado, os seus serviços por forma a que foi confirmada a utilidade turística e a categoria do hotel como primeira A, já previamente reconhecidas;

12 - No dia 2 de Agosto de 1974, faleceu o senhorio EE, sem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, sucedendo-lhe como herdeiros os seus dois filhos, e ora Autores BB e CC;

13 - Por força da escritura pública outorgada em de 13 de Agosto de 1979, foi adjudicado, à Autora viúva AA o usufruto de uma quarta parte do prédio referido em A) e a respectiva nua propriedade adjudicada aos ora Autores BB e CC;

14 - Na sequência do contrato de arrendamento referido em A) a M), passou a funcionar no prédio dado de arrendamento o “Hotel D...”, cuja exploração tem constituído desde então até ao presente o objecto da actividade da sociedade Ré, que foi constituída em 1969;

15 - O Hotel D... está apetrechado com todos os equipamentos e meios, eficazes, para o exercício da sua actividade hoteleira;

16 - Está mobilado, em todas as suas componentes, com mobiliário de qualidade, decoração e motivos decorativos adequados a cada uma dessas componentes;
17 - Trata-se de um estabelecimento comercial com larga clientela, fornece-dores qualificados e pessoal bem preparado para as funções que exerce;
18 - Em 11 de Fevereiro de 2002, os accionistas da Ré venderam as suas participações sociais - acções - representativas da totalidade do respectivo capital social;
19 - Eram, então, accionistas da Ré, FF e familiares deste, incluindo filhos e filha e GG e familiares da mesma;

20 - Em 11 de Fevereiro de 2002 realizou-se uma Assembleia Geral da Ré;

21 - De harmonia com a respectiva acta, na Assembleia encontrava-se “a accionista única “Sociedade Hoteleira do C...P..., Ldª.”, devidamente representada pelos Senhores HH, Dr. II e JJ ...”;

22 - Nessa Assembleia, foram tidas em consideração “as cartas de renúncia dos membros da Assembleia Geral, Senhores Eng.º. LL e MM e dos membros do Conselho de Administração, Senhores FF, NN e OO“ cujos mandatos terminariam em 31 de Dezembro de 2002;

23 - E foi aprovada pela accionista única a designação dos novos membros dos referidos órgãos sociais para o triénio em curso, que terminava em 31 de Dezembro de 2002, nos seguintes termos:
a) Mesa da Assembleia Geral: - Presidente-PP, Secretária QQ
b) Conselho de Administração: - Presidente - HH, sendo vogais II e JJ.

Elegeu-se como questão a decidir a de saber, em primeiro lugar se, dos factos apurados resulta ter existido o trespasse invocado pelos autores e, só verificado este é que se passará à análise da falta de comunicação, como fundamento da resolução peticionada.

Entrando na apreciação do pedido, disse o Ex.mo Juiz:

Vêm os autores pedir a resolução do contrato de arrendamento e a condenação da ré a despejar o prédio arrendado, com fundamento no facto dos accionistas da ré terem vendido as suas participações sociais (acções), represen-tativas da totalidade do respectivo capital social, passando a ser accionista única a “Sociedade Hoteleira do C...P..., Lda.”, consubstanciando a alienação nos termos efectuados, um trespasse do estabelecimento comercial, pelo que, não tendo sido comunicado o referido trespasse aos autores, confere aos autores o direito de resolver o contrato, nos termos do artº. 1038º alíneas f) e g) do Código Civil e do artº 64º nº 1, alínea f), do R.A.U.

Serve de fundamento à acção, o facto dos accionistas da ré terem vendido a totalidade das suas participações sociais, representativas da totalidade do capital social à “Sociedade Hoteleira do C...P..., Lda.”, passando todo o capital social da ré “DD - Organizações Hoteleiras, S.A.” a ser detido por aquela sociedade.
Dispõe o artº 115º do R.A.U. que é permitida a transmissão por acto entre vivos da posição do arrendatário, sem dependência da autorização do senhorio, no caso de trespasse do estabelecimento comercial ou industrial.
O trespasse não foi durante muito tempo definido em termos uniformes, nem na legislação nem na doutrina comercialista. Hoje, porém, a doutrina dominante, mais esclarecida, identifica o trespasse como a transmissão definitiva, por acto entre vivos (seja a título oneroso ou gratuito), da titularidade do estabele-cimento comercial (Antunes Varela, Revista de Legislação e Jurisprudência, 115, 253).
Consistindo o trespasse na transmissão global do estabelecimento comer-cial, como universalidade, com ou sem correspectivo, mediante negócio entre vivos de uma para outra pessoa, é seu elemento nuclear a transferência integral e definitiva do estabelecimento para ser continuada a sua exploração pelo adquirente. Implica a transferência, em conjunto, das instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que integram o estabelecimento, nele continu-ando a exercer-se o mesmo ramo de comércio ou indústria.
E continuou:
Não nos parece que, na situação em apreço, tenha havido trespasse. O negócio efectuado não teve por base a transmissão do estabelecimento existente no locado, mas tão só, a transmissão do capital social da ré, locatária.
Ora, no que tange ao negócio em apreço nos autos, o que se passou foi que o capital social da ré passou de uma entidade para outra.
Tal negócio foi efectuado entre os titulares das sociedades em questão e é um negócio societário, que nada tem a ver com a transmissão do estabelecimento detido pela ré e que se encontra instalado no locado pertença dos autores.
Muito embora o estabelecimento comercial tenha mudado de adminis-tração, em função da transmissão social operada, não se pode confundir a transmissão da totalidade das participações sociais da ré, que antes eram detidas por pessoas singulares, com o trespasse.

Sendo a ré uma sociedade anónima, o seu capital social está titulado por acções (nominativas e ao portador), como dispõe o artº 271º do Código das Sociedades Comerciais, sendo irrelevante quem em concreto é a pessoa (singular ou colectiva) que é titular das acções, pois que, do contrato de sociedade, atenta a sua natureza, apenas constará o valor nominal e o número de acções, bem como o montante do capital realizado, entre outros elementos constantes do artº 272º do CSC.
Assim, o capital social das sociedades anónimas é transmitido por, por acto entre vivos, por declaração do transmitente lavrado no título e pelo pertence lavrado no mesmo e averbamento no livro de acções da sociedade (as acções nominativas) e pela simples entrega, no que toca às acções ao portador (artºs, 326º nº 1 e 327º do CSC).

É que as sociedades comerciais gozam de personalidade jurídica e existem como tais a partir do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem (artº 5º do CSC), o que significa que representam uma individualidade jurídica diferente da dos titulares do seu capital social, que apenas têm as obrigações e os direitos definidos pelos artºs 20º e seguintes do CSC, com as especialidades, nas sociedades anónimas, consignadas nos artºs. 285º e seguintes do CSC.
Ora, sendo assim, depois de constituída, é a sociedade que é sujeito de direitos e obrigações perante terceiros e perante os próprios sócios, que apenas são titulares de um direito complexo que consubstancia na titularidade ou posse de acções. E estas acções não têm de permanecer definitivamente na posse do seu primitivo titular e detentor, podendo ser transmitida nos termos da lei e do pacto social.
É por isso que a transmissão da titularidade do capital social de uma sociedade não tem de ser comunicada ao senhorio, mas apenas se deve efectuar com respeito no disposto nos artºs. 326º e 327º do CSC, o que, obviamente, apenas diz respeito à sociedade (Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 6ª Ed., Almedina, pág. 646 e segs. e Ac. da Relação do Porto, 18.04.1991).

A este propósito escreve Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Almedina, Colecção Teses, pág 253 e 254:
“É correntíssimo, na prática, que a transmissão de um estabelecimento comercial seja feita através da cessão da totalidade das quotas, ou da venda da totalidade das acções, da sociedade que é titular desse estabelecimento. A maior parte dos estabelecimentos de pequena dimensão pertence a sociedades por quotas e a generalidade das sociedades por quotas, no comércio, têm apenas um estabelecimento.
Esta circunstância permite que, para transmitir o estabelecimento, as partes se limitem a transmitir as quotas da sociedade a que pertence (...). a cessão de quotas (...) tem vantagens sobre o trespasse. Evita a ruptura de relações jurídicas característica do trespasse, com todos os problemas acarretados pela substituição do trespassante pelo trespassário na titularidade de direitos, obrigações e relações jurídicas, evita as questões atinentes à determinação concreta do âmbito material e jurídico do trespasse, evita o direito de preferência do senhorio, se as instalações forem arrendadas e é menos dispendioso em termos fiscais e emolumentares.

E concluiu:
Assim, não tendo existido qualquer trespasse, falece a pretensão dos autores, devendo, em consequência, a acção improceder.

Apelaram os AA, insistindo que a alienação de acções em causa teve lugar num contexto tão marcante que, de todos os pontos de vista, faz dela o caso mais paradigmático de “desconsideração” da personalidade jurídica de sociedades comerciais.

A Relação de Lisboa considerou que …
… da matéria dada como provada, extrai-se que foi efectuada pela ré DD, S.A., a venda da totalidade das participações sociais representativas do capital social, cuja actividade é a exploração do Hotel D..., a uma outra empresa - a Sociedade Hoteleira do C...P..., Lda. - cuja actividade é também a indústria hoteleira, ficando, deste modo, como única accionista.
Esta, logo no próprio dia da compra - 11/02/2002 - face à renúncia em bloco dos membros dos órgãos sociais da ré DD, S.A., designou novos membros para os mesmos órgãos, que não são nada mais nada menos que os compradores das participações sociais à ré DD, S.A., ou seja, as pessoas que fazem parte dos órgãos sociais da compradora e que estão ligadas entre si por laços familiares.
Ou seja, o que se extrai destas operações é que desde o dia 11/02/2002, a empresa Sociedade Hoteleira do C...P..., Lda. administra a sociedade DD, S.A.
Ora, se no próprio dia da compra das participações sociais da sociedade DD, S.A., a sociedade adquirente designa para membros dos órgãos sociais daquela, pessoas ligadas por laços familiares aos novos adquirentes das participações sociais, não há dúvidas de que do que se trata é de um verdadeiro caso de desconsideração da personalidade jurídica da ré sociedade DD, S.A., tendo-se camuflado a venda da empresa social da forma supra descrita, ou seja, com a compra de participações sociais da ré, o que se pretendeu verdadeiramente adquirir foi a própria empresa social. O que quer dizer que os adquirentes das participações sociais passaram a ter, desde o já referido dia 11/02/2002 e de um modo decisivo o poder de disposição da empresa DD, S.A.
Com efeito, neste caso concreto, aplica-se aqui inteiramente o decidido pelo Ac. TRP de 17/02/20009, ao afirmar que "É inquestionável, parece, perante estes elementos que os adquirentes não pretenderam apenas adquirir as participações sociais da empresa ré, mas a própria empresa explorada pela sociedade.
(...) é indubitável que, face àqueles elementos, não pretenderam transac-cionar apenas acções e o correspondente feixe de direitos sociais nelas corporizado, tendo pretendido adquirir o domínio da empresa ou a posição dominante nesta".
Assim sendo, o fundamento da desconsideração encontra-se no art° 334° do CC, o que permite a sua imediata aplicação «de jure condito», o que quer dizer que "a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade traduz-se no desrespeito pelo princípio da separação entre ela e os seus sócios e origina a responsabilidade directa e ilimitada dos sócios e dos membros sociais com base no abuso de direito".
Esta conclusão implica que consideremos que a alienação operada por todos os então sócios da ré, da totalidade das participações sociais da mesma, pela sociedade Hoteleira do C...P..., Lda. se traduza, de acordo com a orientação da Doutrina e Jurisprudência - de cuja amostra tentámos fazer uma súmula supra - num verdadeiro trespasse de estabelecimento comercial, entendido este como todo e qualquer negócio pelo qual seja transmitido definitiva-mente e inter-vivos um estabelecimento comercial, como unidade.

E concluiu:
Face ao resultado a que se chegou e em conjugação com a matéria fáctica fixada, não restam dúvidas de que a alienação das participações sociais, camuflando um trespasse, devia ter sido comunicada aos AA., no prazo de 15 dias, tal como prescreve o art° 1038° al. g) do CC.
Não tendo sido comunicada tal alienação, violou a ré o contrato de arrendamento em causa, de sorte a facultar aos AA. fundamento para a resolução do mesmo, nos termos do art° 64° n° 1 al. f) do RAU.

Em face do exposto e sem necessidade de mais amplas considerações, na procedência da apelação, revoga-se a sentença recorrida, decretando-se a resolução do contrato de arrendamento em causa e condenando-se a apelada a despejar imediatamente o prédio identificado no n° 1 da matéria factual provada e a entregá-lo aos apelantes inteiramente livre e desocupado.

Foi a vez de a Ré pedir revista para que se mande prevalecer o decidido em 1.ª Instância: não é caso de levantamento da personalidade colectiva, não foram demandados os accionistas da ré e não ocorreu qualquer transferência do estabelecimento a requerer notificação ao senhorio que, durante quase um ano e depois de conhecer a transmissão das acções da Ré, continuou a receber as rendas.
Como se vê da alegação que coroou com estas conclusões:

a) - O Tribunal “a quo” deu provimento à apelação dos Autores por ter entendido que a transmissão das acções representativas do capital social da Ré consubstanciou um trespasse de estabelecimento comercial;
b) - Considerou o Tribunal que não existiu uma separação entre a esfera jurídica da sociedade e dos seus sócios, o que leva à inevitável conclusão de estarmos perante um caso de desconsideração de personalidade colectiva;
c) - O fundamento do instituto da desconsideração da personalidade colectiva encontra-se inserto no art.º 334º do Código Civil;
d) - Não existiu desrespeito pelo princípio da separação entre a pessoa colectiva e os seus membros;
e) - Pese embora a existência de laços familiares entre os membros dos órgãos sociais da Ré e os titulares do capital social da sua accionista, não pode concluir-se que existe confusão entre a pessoa colectiva e os seus membros;
f) - Em cada uma dessas qualidades – detentores das acções ou membros dos órgãos sociais – existe agregado um conjunto de direitos e obrigações distintos;
g) - A sociedade comercial representa uma individualidade jurídica diferente da dos seus sócios, a qual, depois de regularmente constituída é sujeito de “direitos e obrigações perante terceiros e perante os próprios sócios, que apenas são titulares de um direito complexo que se consubstancia na propriedade da quota” ou acção;
h) - Considerando ter existido violação do princípio da separação entre a sociedade e os seus sócios, o Tribunal entendeu que há lugar a responsabilidade directa e ilimitada dos sócios e dos membros sociais com base no abuso de direito;
i) - Nessa circunstância, teremos de concluir que, verificado o abuso do direito, sem conceder, deveriam ser assacadas responsabilidades aos accionistas e aos membros dos órgãos sociais da Ré, deixando de parte a Ré que não possui qualquer dessas qualidades nem interveio no negócio em apreço nos autos;
j) - A presente acção não foi movida contra quaisquer accionistas: apenas contra a sociedade. Ora, a haver levantamento, os próprios accionistas ficariam obrigados. Só por aqui se vê que, estruturalmente, a acção não pode ter êxito;
k) - O abuso do direito é requisito constitutivo do levantamento ou desconsideração da personalidade jurídica das sociedades comerciais, ou seja, há-de verificar-se um uso abusivo da personalidade colectiva, logo, um uso contrário ao princípio da boa-fé do qual resulte um prejuízo para terceiros;
l) - O presente caso não é enquadrável no art.º 334º do Código Civil, porquanto não houve qualquer conduta reprovável por parte dos anteriores e da actual accionista da Ré;
m) - Para que haja abuso do direito tem que se exceder de forma manifesta os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito;
n) - No caso “sub judice”, não há nenhuma subversão das regras de boa-fé, pois bem fizeram os anteriores e a actual accionista da Ré ao optar por configurar o negócio da forma descrita, que, não trazendo qualquer prejuízo para os Recorridos, traz vantagens de várias ordens para os contraentes;
o) - Como ensina o Prof. António Pinto Monteiro: “(…) não pode dizer-se que transmitir acções é uma forma abusiva de utilização da personalidade jurídica de uma sociedade ou que constitui um expediente para se contornar o regime legal a que as empresas societárias estão sujeitas. Bem pelo contrário: a trans-missão das acções, como mecanismo de mobilização e de circulação da riqueza empresarial, constitui a função típica das sociedades anónimas. (…) Conceber, genericamente, a transmissão de acções como se de uma transmissão de património se tratasse é fazer regredir a ordem jurídica cerca de quatrocentos anos, para o tempo em que não existia o mecanismo jurídico societário, cuja importância económica é reconhecida por todos.”;
p) - Não se provou que os transmitentes das acções tivessem querido defraudar o regime legal do trespasse;
q) - Para efeitos de desconsideração da personalidade, exige-se também que o uso abusivo que se faz da sociedade tenha em vista prejudicar terceiros, como resultado de uma actuação em evidente fraude à lei;
r) - Nem os Autores nem qualquer outra pessoa foram prejudicados pelo negócio celebrado entre os anteriores e a actual accionista da Ré, pois o vínculo contratual que a esta mantém com aqueles não sofreu qualquer consequência, mantendo-se, como até então, todos os direitos e deveres emergentes do contrato de arrendamento do edifício onde está instalado o Hotel;
s) - Segundo o aresto em análise, adquirir um estabelecimento comercial ou adquirir a totalidade das acções da sociedade titular desse estabelecimento comercial é, no fim de contas, o mesmo;
t) - Porém, o gozo do locado, assim como, a titularidade do estabele-cimento, mantêm-se na esfera jurídica da ora Recorrente desde o início do seu funcionamento até à presente data;
u) - Visto que a transmissão do estabelecimento, por acto entre vivos, é o objecto do trespasse e considerando que o objecto do negócio em apreço nos autos foi a transmissão das acções da ora Recorrente, não se pode concluir, como conclui o Tribunal da Relação de Lisboa, tratar-se de um trespasse;
v) - Não haverá trespasse ainda que uma sociedade comercial transforme o seu tipo social, sem dissolução, mantendo, como tal, a personalidade jurídica primitiva, e não havendo, por isso, transmissão do estabelecimento (art.ºs 146º, n.º 2 e 160º C.S.Com.);
w) - É correntíssimo, na prática, que a transmissão de um estabelecimento comercial seja feita através da cessão da totalidade das quotas, ou da venda da totalidade das acções, da sociedade que é titular desse estabelecimento;
x) - O Tribunal “a quo”, para sustentar a aplicação a este caso do instituto da desconsideração da personalidade colectiva, cai no equívoco de alicerçar a sua decisão em Acórdãos e em doutrina nestes citada, que versam sobre situações que nada têm que ver com o caso dos autos;
y) - No Parecer do Prof. Ferrer Correia a que alude o Acórdão recorrido, o ilustre professor pronuncia-se especificamente sobre uma compra e venda de acções em que o transmitente informa incorrectamente o transmissário acerca da situação patrimonial da sociedade transmitida e sustenta que, neste caso, não pode deixar de se entender como se a coisa transmitida tivesse sido a própria empresa e não as acções;
z) - Porém, Ferrer Correia tem o cuidado de mencionar que esta posição – equiparar a venda das acções ao trespasse – é defendida “naquele contexto”, referindo-se, aqui, a responsabilidade por vícios da empresa, situação bem distinta daquela que agora analisamos;
aa) - Além disso, Ferrer Correia, pronunciando-se, em geral, sobre a questão se saber se alienação da totalidade das acções de uma sociedade corresponde a um trespasse, deu a seguinte resposta: “(…) A transferência para terceiros das quotas ou acções da sociedade, ainda que total e realizada uno actu, não equivale ao trepasse do estabelecimento, razão pela qual não serão de aplicar as várias disposições da lei relativas ao trespasse, como, por exemplo, as que regulamentam a forma externa (…) e as que conferem ao senhorio do prédio, em tal hipótese, determinados direitos (direitos de opção, direito à elevação da renda (…).”
bb) - Em parte alguma dos estudos dos ilustres juristas que os Autores e ora Recorridos invocam é propugnado que se deve equiparar o regime do trespasse e da alienação das acções em todo e qualquer caso;
cc) - A transmissão da titularidade do capital social de uma sociedade não tem que ser comunicada ao senhorio, mas apenas se deve efectuar com respeito pelo disposto nos art.ºs 326º e 327º do Código das Sociedades Comerciais, o que, obviamente, apenas diz respeito à sociedade;
dd) - A obrigação de comunicação imposta pela alínea g) do art.º 1038º do Código Civil só existe no caso de cessão do gozo do locado – designadamente a cessão da posição do arrendatário - quando seja autorizada pelo senhorio ou permitida por lei;
ee) - A “contrario sensu”, ocorrendo um trespasse, que não seja acompa-nhado do direito ao arrendamento, nada há a comunicar ao senhorio;
ff) - Para fazer operar o art.º 1038º, alínea g) do Código Civil no caso “sub judice” o que deveria ser demonstrado era que a alienação das participações sociais representativas do capital social da Ré equivalia a uma cessão da posição contratual nos contratos em que a sociedade fosse parte, e não demonstrar que se tratou de um trespasse, que, para efeitos do mesmo normativo, é irrelevante;
gg) - Ressalvadas as excepções legais, no trespasse é necessário o consentimento da contraparte para efeitos de cessão da posição contratual em todos os contratos que integrassem o estabelecimento (por exemplo, contrato de fornecimento de energia);
hh) - Devendo ser aplicado tal regime à alienação das participações sociais, como defende o douto Tribunal da Relação, teríamos de chegar à conclusão de que, na prática, ocorrendo cessão de acções ou de quotas, também seria exigível que todas as contrapartes nos contratos que a sociedade mantivesse, devessem autorizar a dita cessão, salvo nos casos em que a lei dispensa o consentimento da outra parte (como, por exemplo, nos casos de transmissão de contratos de trabalho), assim como devia a cessão de acções ser comunicada a todos os senhorios da sociedade cujo capital fora transmitido;
ii) - Porque tais consequências nos parecem incomportáveis, é quanto a nós ponto assente que não é possível estabelecer uma equiparação, em termos genéricos, entre trespasse e transmissão da totalidade das acções de uma sociedade;
jj) - Por outro lado, o Tribunal “a quo” não se preocupou em apurar se o regime estabelecido na alínea g) do art.º 1038º do Código Civil é, em concreto, aplicável ao caso em apreço, isto é, se a “ratio” da norma permite a sua aplicação neste caso;
kk) - O legislador, ao prever a obrigação de comunicar a cedência do gozo do locado, teve em vista conferir ao senhorio a possibilidade de verificar se o direito ao arrendamento que está a ser transferido foi por si autorizado ou decorria da própria lei;
ll) - Mas no caso que estudamos, como resulta óbvio, o senhorio não tem que autorizar a transmissão das acções;
mm) - Nessa circunstância e porque não se transfere nem o direito ao arrendamento, nem o estabelecimento comercial, não há lugar à aplicação do art.º 1038º, alínea g) do Código Civil;
nn) - A transmissão do direito ao arrendamento operada pela fusão das sociedades não cabe no âmbito da al. f) do art.º 1038º do Código Civil, isto é, não configura um caso de cessão onerosa ou gratuita da posição jurídica e como tal não está a sociedade obrigada a comunicar que o gozo da coisa locada se transferiu para pessoa distinta, conforme previsto na al. g) do mesmo artigo;
oo) - E se neste caso não há obrigação de comunicar ao senhorio que o gozo da coisa passa para outra pessoa, por não haver uma cessão onerosa ou gratuita da posição jurídica, como exige a al. f) do art.º 1038º do Código Civil, muito menos será de exigir a comunicação ao senhorio caso o capital da sociedade seja transferido para pessoa distinta, não havendo, aqui, uma nova pessoa jurídica, a quem passa a pertencer o direito ao arrendamento, como no caso anterior;
pp) - A transmissão da titularidade do capital social de uma sociedade não tem que ser comunicada ao senhorio, mas apenas se deve efectuar com respeito pelo disposto nos art.ºs 326º e 327º do Código das Sociedades Comerciais, o que, obviamente, apenas diz respeito à sociedade;
qq) - Na carta datada de 15 de Março de 2002, a DD comunica aos senhorios a transmissão das acções representativas do seu capital social, pelo que o Tribunal não poderia ter outra conclusão que não fosse a de que a comunicação a que alude o art.º 1038º, alínea g) do Código Civil, foi efectuada por via desta carta;
rr) - Nem o facto de a comunicação ter sido efectuada para além do prazo legal pode servir de argumento para indeferir a pretensão da Recorrente, visto que os Autores, na qualidade de senhorios, continuaram a receber rendas após terem tomado conhecimento da transmissão das acções, reconhecendo, dessa forma, o beneficiário da cedência;
ss) - É pacificamente aceite pela generalidade da doutrina que certos actos, designadamente o recebimento das rendas, implicam o reconhecimento do negócio e, consequentemente, do beneficiário da cedência como tal;
tt) - Ora tendo sido assim, nos termos do art.º 1049º do Código Civil, o direito que assiste ao senhorio de pedir a resolução do contrato, ficou precludido;
uu) - Devemos não perder de vista as consequências que poderiam advir da execução da decisão do douto Tribunal recorrido, as quais seriam para a Recorrente desastrosas;
vv) - A execução do despejo implicaria o encerramento do próprio estabelecimento, a extinção da empresa e, em consequência, o despedimento dos trinta e seis trabalhadores que com a Recorrente mantêm uma relação laboral;
ww) - O Acórdão da Relação de Lisboa deve ser revogado e o presente recurso de revista ser julgado procedente, porquanto o Tribunal “a quo”, não seguindo este entendimento e decidindo como decidiu, violou por erro de interpretação o disposto no art.º 1038º, alínea g), art.º 1049º ambos do Código Civil e art.º 64º, n.º 1, alínea f) do Regime do Arrendamento Urbano.

Os Recorridos responderam, coroando assim a sua contra-alegação:

- Os Autores ora recorridos deram de arrendamento à Sociedade Ré recorrente o seu prédio urbano situado em Lisboa, na Rua Castilho, n.º ..., em que funciona o Hotel D... (supra A I - 1 a 22, págs. 2 a 16).
- No dia 11 de Fevereiro de 2002, os então sócios da Sociedade Ré venderam a totalidade das participações – acções – no seu capital social à “Sociedade Hoteleira do C...P..., Ldª.” cujo objecto é o exercício da industria Hoteleira, e que já explorava um outro hotel (fls. 91, supra A-I – 18, 19, pág. 5), c).
- No dia 11 de Fevereiro de 2002, reuniu a Assembleia Geral da Ré, com a presença da sua única accionista – referida Sociedade Hoteleira do C...P..., Ldª”. - que constatou a renúncia das pessoas que ocupavam cargos nos órgãos sociais da Ré, e deliberou designar para os mesmos cargos HH, II, JJ, PP, HH (supra A-I-20 a 23, pág. 5 e 6).
- Estas pessoas já eram titulares das participações sociais na referida “Sociedade Hoteleira do C...P..., Ldª.”, além de também integrarem os órgãos sociais da mesma (supra A-II-3 a a c, pág. 7 a 9).
- Tais pessoas, e outras, todas ligadas por laços familiares, dedicam-se à indústria hoteleira, através de sociedades comerciais, podendo indicar-se, além da Ré e da referida “Sociedade Hoteleira do C...P..., Ldª.”, pelos menos as seguintes: B... – Empreendimentos Turísticos, Ldª.” (supra A-II-3-d), “Empreendimentos Hoteleiros da Q...do F..., Ldª.” (supra A-II-3-e), “Sociedade Hoteleira de C..., Ldª.” (supra A-II-3 - f), “I... – Investimentos imobiliários e Turísticos, S.A.” (supra A-II-3-g); hotel Vip (supra A-II-3-d a h, pág. 10 a 12).
- Todos os estabelecimentos hoteleiros explorados por essas entidades são indicados em prospectos informativo/publicitários, tornados públicos já há vários anos, sob a expressão ...HOTEIS/GRUPO/..., neles sendo também indicados “hotéis em projecto e/ou em fase de construção” – ... Sacávem, ... Maputo, ... Stª. Iria (supra A-II-3, i e j, págs. 12 e 13).
- As referidas pessoas são titulares das participações de capital nas referidas Sociedades e são também elas que integram os respectivos órgãos sociais (supra A II -3, págs. 10 a 13).
- É hoje entendimento pacífico que a personalidade jurídica das sociedades comerciais não é um absoluto, tem antes um valor instrumental, devendo, por isso, ser “desconsiderada” quando existem razões para afastar o seu “funcionamento” (supra B-I, págs. 14 a 18, e todas as citações que aí seguidamente são feitas).
- A referida venda (anterior 2º) pelos então sócios da (Ré) à referida “Sociedade Hoteleira do C...P..., Ldª.” da totalidade das participações sociais da Ré tem de ser vista à luz do instituto da “desconsideração” da personalidade jurídica das sociedades comerciais, instituto cuja admissibilidade no nosso sistema jurídico é aceite (supra B-I-5).
10º - A referida alienação da totalidade das acções representativas do capital social da Ré é SÓ POR SI – sem mais -, decisiva para que, no caso concreto, seja “desconsiderada” a personalidade colectiva da Ré, e, em consequência, se conclua que essa alienação se tenha traduziu no trespasse da própria empresa.
11º - Nesse sentido invoca-se toda a Jurisprudência e Doutrina indicadas supra em B-I-2, B-II-1 a 6, B-III, B-IV, B-V, B-VI, B-VII, B-VIII, B-IX.
12º - No caso “sub-judice” :- a) teve lugar a alienação de 100% do capital social da Ré ( supra BII-5); b) ainda que redundantemente, houve a manifesta intenção de alienar a empresa (B II – 4); - c) ocorreram graves violações de disposições legais, lesando os interesses dos ora Recorridos e do Estado (supra B II – 6).
13º - Independentemente disso existe um grande desequilíbrio de interesses em prejuízo dos ora Recorridos (supra B X, em particular págs. 40 e 41).
14º - A Recorrente faz acusações ao Acórdão recorrido sem qualquer espécie de fundamento (supra B XI).
15º - A ideia de aproximar o caso “sub-judice” de uma Opa é completa-mente descabido (Anexo B XII).
16º - a) Jurisprudência e Doutrina estão assentes no sentido de que o trespasse tem de ser comunicado ao senhorio (supra C I – 1); b) Tal comunicação não teve lugar no caso concreto e a adquirente das acções/trespasse nunca foi reconhecido como arrendatária pelos senhorios isolam (supra C I, 2.1 e 2.2).

Com a alegação da Recorrente foram juntos dois Pareceres, um subscrito pelo Ex.mo Senhor Professor Menezes Cordeiro, tratando mais do levantamento da personalidade colectiva, e outro da autoria do Ex.mo Senhor Professor Pinto Monteiro, versando mais desenvolvidamente os efeitos da transmissão das acções da Ré, o trespasse e o arrendamento.

O primeiro Parecer está assim resumido:

I. Os elementos coligidos permitem - ao que pensamos - um enquadra-mento tranquilo do caso da consulta.
Efectivamente, a lei aplicável obriga o arrendatário a comunicar ao senhorio a cedência do gozo da coisa a terceiros - artigo 1038°, g), do Código Civil. Se o não fizer, sujeita-se à resolução: artigo 1049°, do Código Civil, a contrario e artigo 64°/ 1, f ), do RAU.
II. A lei aplicável não obriga a tal comunicação, no caso de modificação da composição accionista da sociedade arrendatária: esta mantém-se como arrenda-tária, não havendo qualquer cedência de gozo.
Pergunta-se: porque não proceder ao levantamento da personalidade com a consequência de obrigar os accionistas, eles próprios, a fazer a comunicação da "cedência"?
III. A presente acção não foi movida contra quaisquer accionistas: apenas contra a sociedade. Ora, a haver levantamento, os próprios accionistas ficariam obrigados. Só por aqui se vê que, estruturalmente, a acção não pode ter êxito.
IV. Além disso, verifica-se que, por uma "falha" mínima, totalmente assente num ponto doutrinário controverso, se iria demolir uma empresa próspera de hotelaria. Haveria - aqui sim - um abuso do direito por desequilíbrio no exercício das posições jurídicas.
V. Finalmente: os autos não contêm, a nível de factos, nada que permita detectar uma atitude maliciosa por parte da ré. Não se diz, em parte alguma, que os senhorios tenham sido prejudicados ou que se tenha pretendido qualquer efeito contrário ao Direito.
Com factos tão magros, nem a mais objectiva concepção do abuso do direito poderia ser aplicada. De outro modo, qualquer exercício, só por si, já seria abuso, o que surge impensável.
Por qualquer destas razões, o presente recurso merece ser atendido, revogando-se o douto acórdão recorrido, por forma a deixar subsistir o decidido em 1.ª Instância.

O segundo Parecer apresenta estas conclusões:

- O Acórdão de 27 de Junho de 2006, do Tribunal da Relação de Lisboa, ordenou o despejo da sociedade arrendatária do Hotel D..., por esta sociedade não ter comunicado ao senhorio que as acções representativas da totalidade do respectivo capital social haviam sido transmitidas.
- A lei apenas impõe ao inquilino que comunique ao senhorio a cedência do gozo do imóvel. Mas o Tribunal a quo, partindo do pressuposto de que o inquilino tem a obrigação de comunicar o trespasse da empresa, ordenou o despejo por, no fundo, entender que trespasse é o mesmo que transmissão da totalidade das acções de uma sociedade anónima.
- Esta equiparação entre trespasse e transmissão da totalidade das acções foi justificada através da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, com o argumento de que ao adquirirem a totalidade das acções os sócios quiseram tomar o domínio da sociedade e da própria empresa.
- Porém, não se encontra provado nos autos nenhum facto respeitante à vontade das partes no negócio de transmissão das acções, negócio (ou negócios?) que o Tribunal não conheceu sequer.
- Ficcionando uma vontade negocial que não se encontra provada nos autos, o Tribunal a quo procedeu a uma equiparação entre trespasse e transmis-são da totalidade das acções que, todavia, não cuidou de circunscrever a quaisquer especificidades do caso concreto.
- Aliás, só assim se pode explicar que o Tribunal tenha invocado, em abono da sua tese, Autores que se pronunciaram sobre a equiparação de trespasse e transmissão da totalidade das acções a respeito de uma situação totalmente distinta daquela apreciada nos autos.
- Com efeito, a doutrina citada para sustentar a decisão não é, de forma nenhuma, aplicável ao caso sub judice: FERRER CORREIA, CALVÃO DA SILVA, HENRIQUE MESQUITA, ALMENO DE SÁ pronunciaram-se sobre a questão de saber se o comprador das acções pode invocar, perante o vendedor, que a sociedade não tem a situação patrimonial que este exibiu e deu a conhecer àquele.
- Ora, isto nada tem que ver com o caso dos autos, em que não se trata de as partes no negócio de transmissão das acções, com base na vontade subjacente ao negócio por si celebrado, invocarem a situação patrimonial da sociedade para daí extraírem consequências sobre a relação contratual em que elas próprias são partes.
- No caso dos autos, do que se trata é de permitir que um sujeito estranho ao negócio (o senhorio) invoque perante outro sujeito também estranho ao negócio (a sociedade inquilina) a transmissão das acções efectuada entre terceiros (os accionistas da sociedade), para sustentar que a sociedade tinha o dever de comunicar ao senhorio um acto (a transmissão das acções) em que aquela sociedade não fora parte e que até poderia não conhecer.
10ª - Aliás, a provar que o caso não é o mesmo está o facto de Ferrer Correia, citado no aresto recorrido a propósito da equiparação entre trespasse e transmissão da totalidade das acções no que toca às relações entre o comprador e o vendedor dos títulos, ter rejeitado, expressamente, a equiparação entre os dois negócios no âmbito da relação de arrendamento para comércio.
11ª - Para efeitos do dever de comunicação ao senhorio da cedência do gozo da coisa - e era apenas para estes efeitos que o Tribunal deveria ter averiguado se se justifica a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade inquilina - não existe nenhum motivo para proceder à desconsideração da personalidade jurídica.
12ª - Efectivamente, sendo a ratio da norma (o art. 1038°, al. f), CCiv) permitir ao senhorio conhecer a cedência do gozo do imóvel, para assim poder conferir que tal cedência preenche os pressupostos legais para a dispensa do seu consentimento, só faria sentido equiparar o trespasse à transmissão das acções se esta transmissão tivesse, em regra, de ser consentida pelo senhorio.
13ª - De facto, se a comunicação visa permitir ao senhorio conferir que a cedência do gozo do imóvel não estava, excepcionalmente, sujeita ao seu consentimento, então, para se equiparar o trespasse à transmissão das acções é necessário mostrar que o senhorio necessitava, no caso em apreço, da comunicação para que esta cumprisse a função que a lei lhe comete: permitir, no caso, controlar que a transmissão das acções não estava, excepcionalmente, sujeita ao consentimento do senhorio do imóvel.
14ª - Ora, é absolutamente inquestionável que não só o senhorio não tinha que consentir na transmissão das acções (acções ao portador, sublinhe-se) da sociedade inquilina, como não poderia sequer um contrato de sociedade anónima nem um contrato de arrendamento subordinar tal transmissão ao consentimento do senhorio (art. 328° CSC).
15ª - É absolutamente irrelevante no plano da relação contratual de arrendamento a transmissão das acções da sociedade inquilina, pois seria absurdo aceitar que o senhorio invocasse que, ao celebrar um contrato de arrendamento com uma sociedade anónima com acções ao portador, tinha em vista determinadas pessoas dos sócios e que, por isso, a alteração do corpo de accionistas lhe atribui direito ao despejo da sociedade inquilina, na falta de consentimento.
16ª - Por outro lado, não se vislumbra em que medida se poderia acusar os accionistas de se terem servido da personalidade jurídica da sociedade contra os fins para que a lei a consagra.
17ª - Com efeito, a transmissão de acções como forma de mobilização da riqueza empresarial é a função típica da sociedade anónima: este tipo societário existe exactamente para que, de modo fácil, seguro e expedito, possam circular no tráfico os valores empresarias, através da alienação de acções.
18ª - Acresce que não se provou nos autos que os transmitentes das acções tivessem querido defraudar qualquer aspecto do regime legal relativo ao trespasse do estabelecimento.
19ª - Aliás, nem parece que essa prova fosse sequer possível, pois convém não esquecer que, caso tivesse sido trespassado o estabelecimento, nem por isso seria necessário o consentimento do senhorio e nem por isso o senhorio poderia despejar a sociedade Ré. Em que medida, então, a transmissão das acções constituiria um defraudamento do regime legal do trespasse?
20ª - Acresce, no caso concreto, mesmo que fosse de seguir a posição do Tribunal "a quo" de assimilar trespasse e transmissão das acções, nem assim deveria ser ordenado o despejo.
21ª - De facto, a sociedade Ré comunicou ao senhorio a transmissão das acções, por carta datada de 15 de Março de 2002 (documento junto aos autos pelos próprios Autores), tendo o senhorio, após essa comunicação, continuado a receber as rendas da sociedade.
22ª - Ora, se a transmissão das acções corresponde a uma cessão da posição de arrendatário no âmbito de um trespasse, como pretende o Tribunal "a quo", então o senhorio recebeu, ao longo de mais de um ano, as rendas do "novo" inquilino e, portanto, nos termos do art. 1049° CCiv, "reconheceu-o como tal ", com o que deixou de existir fundamento para o despejo, mesmo que fosse de seguir a posição do douto Acórdão recorrido.
23ª - Em face de todo o exposto, deve a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa ser revogada, dando-se provimento ao recurso a interpor nos autos pela sociedade Ré e negando-se, concomitantemente, a pretensão do senhorio em que seja ordenado o despejo do imóvel onde se encontra instalado o Hotel D...: não só a sociedade Ré não tinha que comunicar a transmissão das acções, como, de facto, até procedeu a essa comunicação e o "novo inquilino " foi reconhecido como tal.

Colhidos os vistos de lei e nada obstando, cumpre decidir as questões sub-metidas à nossa apreciação, as de saber se

I – não tendo havido abuso de direito na transmissão das acções não havia lugar ao levantamento ou desconsideração da personalidade jurídica da Ré – conclusões a) a p);
II – a transmissão das acções não causou prejuízo a ninguém – al. q) a cc);
III – a ter havido trespasse, não houve cessão do direito ao arrendamento, pelo que nada havia a comunicar aos senhorios – conclusões dd) a pp);
IV – os senhorios receberam rendas da Ré, mesmo depois de esta lhes ter comunicado a transmissão das acções – conclusões qq) a tt);
V – o despejo implicaria o encerramento do hotel e o desemprego dos seus trabalhadores – conclusões uu) a vv).

Relendo, na parte interessante, os factos relevantes, temos que

1 - Por escritura pública de 12 de Março de 1969, exarada no 19º cartório Notarial de Lisboa, de folhas 8 a folhas 14 do livro n.º 62–B, EE que também usava o nome de EE, casado, natural da Moita e residente em Lisboa, e os seus filhos e ora Autores neste processo, acima identificados, BB e CC, declararam dar de arrendamento à sociedade Ré, o prédio urbano, situado em Lisboa, na Rua Castilho, n.º ..., implantado no terreno em que existira outro prédio urbano demolido, com os números de polícia 80 a 84, inscrito na matriz urbana da freguesia de São Mamede, sob o artigo 483, e descrito na 6.ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número 923, a folhas 118 do livro B-3;

14 - Na sequência do contrato de arrendamento referido em A) a M), passou a funcionar no prédio dado de arrendamento o “Hotel D...”, cuja exploração tem constituído, desde então até ao presente, o objecto da actividade da sociedade Ré, que foi constituída em 1969;

18 - Em 11 de Fevereiro de 2002, os accionistas da Ré venderam as suas participações sociais - acções - representativas da totalidade do respectivo capital social;

19 - Eram, então, accionistas da Ré, FF e familiares deste, incluindo filhos e filha e GG e familiares da mesma;
20 - Em 11 de Fevereiro de 2002 realizou-se uma Assembleia Geral da Ré;
21 - De harmonia com a respectiva acta, na Assembleia encontrava-se “a accionista única “Sociedade Hoteleira do C...P..., Ldª.”, devidamente representada pelos Senhores HH, Dr. II e JJ ...”;
22 - Nessa Assembleia, foram tidas em consideração “as cartas de renúncia dos membros da Assembleia Geral, Senhores Eng.º. LL e MM e dos membros do Conselho de Administração, Senhores FF, NN e OO“ cujos mandatos terminariam em 31 de Dezembro de 2002;
23 - E foi aprovada pela accionista única a designação dos novos membros dos referidos órgãos sociais para o triénio em curso, que terminava em 31 de Dezembro de 2002, nos seguintes termos:
a) Mesa da Assembleia Geral: - Presidente-PP, Secretária QQ
b) Conselho de Administração: - Presidente - HH, sendo vogais II e JJ.

Com base nestes factos decidiu a 1.ª Instância, com aplauso da Ré, que a venda das acções representativas de todo o capital da sociedade não influiu na personalidade jurídica da Ré que continuava a ser a arrendatária; não tendo havido qualquer negócio do estabelecimento, nada havia que comunicar aos Senhorios.
A Relação de Lisboa, não podendo deixar de entender que a arrendatária era a mesma sociedade cuja personalidade jurídica se mantinha, recorreu à figura jurídica da desconsideração ou levantamento da personalidade colectiva para concluir que os adquirentes não pretenderam apenas adquirir as participações sociais da empresa ré, mas a própria empresa explorada pela sociedade.
(...) é indubitável que, face àqueles elementos, não pretenderam transac-cionar apenas acções e o correspondente feixe de direitos sociais nelas corporizado, tendo pretendido adquirir o domínio da empresa ou a posição dominante nesta".

Esta conclusão implica que consideremos que a alienação operada por todos os então sócios da ré, da totalidade das participações sociais da mesma, pela sociedade Hoteleira do C...P..., Lda. se traduza … num verdadeiro trespasse de estabelecimento comercial, entendido este como todo e qualquer negócio pelo qual seja transmitido definitivamente e inter-vivos um estabeleci-mento comercial, como unidade.

E concluiu:
Face ao resultado a que se chegou e em conjugação com a matéria fáctica fixada, não restam dúvidas de que a alienação das participações sociais, camuflando um trespasse, devia ter sido comunicada aos AA., no prazo de 15 dias, tal como prescreve o art° 1038° al. g) do CC.
Não tendo sido comunicada tal alienação, violou a ré o contrato de arrendamento em causa, de sorte a facultar aos AA. fundamento para a resolução do mesmo, nos termos do art° 64° n° 1 al. f) do RAU.

Analisando o aplicável Direito

Partindo da natureza obrigacional - O arrendamento tem natureza essencialmente pessoal, ainda que equiparado aos direitos reais para certos efeitos - 1037º, nº 2, 1276º e ss e 1285º ... o direito do locatário, por mais piruetas que os autores dêem à volta do seu regime e por mais rombos que o legislador vá abrindo no casco da sua couraça original, continua a ser um direito de raiz estruturalmente obrigacional, assente no dever que recai sobre o locador de proporcionar ao locatário o gozo (temporário) da coisa, para o fim a que ela se destina - RLJ, A. Varela, nº 3749, pág. 249, comentário a Ac. STJ, de 21.12.82, e BMJ 458-227, com indicação de muita doutrina e jurisprudência.
do arrendamento, o art. 1038.º do Código Civil impõe ao locatário, entre outras, as obrigações de
f) - Não proporcionar a outrem o gozo total ou parcial da coisa por meio de cessão onerosa ou gratuita da sua posição jurídica, sublocação ou comodato, excepto se a lei o permitir ou o locador o autorizar;
g) Comunicar ao locador, dentro de quinze dias, a cedência do gozo da coisa por algum dos referidos títulos, quando permitida ou autorizada.

É permitida a transmissão por acto entre vivos da posição do arrendatário, sem dependência da autorização do senhorio, no caso de trespasse do estabele-cimento comercial ou industrial – n.º 1 do art. 115.º do RAU.

Trespasse é o contrato pelo qual se transmite definitivamente para outrem, juntamente com o gozo do prédio, a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele instalado. Ou a transmissão definitiva, por acto entre vivos, a título oneroso ou gratuito, da titularidade do estabelecimento comercial - Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 7.ª ed., 674; Antunes Varela, RLJ 115, 253, nota 1, ali transcrita..

Nos termos da al. f) do n.º 1 do art. 64.º do RAU, o senhorio () pode resolver o contrato se o arrendatário … ceder a sua posição contratual, nos casos em que estes actos são ilícitos … ou ineficazes em relação ao senhorio, salvo o disposto no art. 1049.º.

Como dito neste art. 1049.º, o locador não tem direito à resolução do contrato com fundamento na violação do disposto nas alíneas f) e g) do artigo 1038º, se tiver reconhecido o beneficiário da cedência como tal, ou ainda, no caso da alínea g), se a comunicação lhe tiver sido feita por este.
Da conjugação do disposto nesta norma com o comando ínsito na al. g) do art. 1038.º resulta que a comunicação da cessão, por cedente ou pelo cessionário, há-de ser feita nos quinze dias seguintes à redução a escrito do trespasse.
A comunicação tem por finalidade dar conhecimento do facto ao senhorio para que este possa ajuizar da legalidade do negócio jurídico e extrair as necessárias consequências.
O prazo de 15 dias, que é de direito substantivo, conta-se a partir da celebração por escrito do trespasse e não a partir da data da posse material do estabelecimento, pouco importando que o senhorio venha a tomar conhecimento da comunicação para além do prazo, não estando sujeita a qualquer requisito especial de forma.
Não sendo comunicado o trespasse o senhorio pode resolver o contrato em acção proposta contra o arrendatário por ser ineficaz em relação a si a cedência do direito ao arrendamento, visto ser alheio à transmissão.
A dispensa da autorização do senhorio para o trespasse tem carácter imperativo, pelo que será nula qualquer cláusula contratual que a restrinja, como a que proíbe o trespasse ou o torne dependente de autorização daquele, a conceder posteriormente - Aragão Seia, op. cit., 679..

E se duas ou mais sociedades se fundirem, nos termos do art. 97.° do C. S. Comerciais ou se uma sociedade se cindir, em conformidade com o disposto no art. 118.° do mesmo Diploma?
… quer na fusão quer na cisão de sociedades, desde que haja transmissão ou transferência de estabelecimento comercial que englobe um direito de arrendamento, é sempre necessária a comunicação da al. g) do art. 1038 do CC ao senhorio … - Ibidem, 679 a 683. No sentido, Henrique Mesquita, RLJ 131, pág. 147 e ss, quanto à fusão de sociedades.

Não se pode confundir trespasse com cessão de quotas.
É que, as sociedades comerciais, gozam de personalidade jurídica e existem como tais a partir do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem - art. 5.° do Cód. das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Dec.-Lei n.° 262/86, de 2 de Setembro - o que significa que representam uma individualidade jurídica diferente da dos associados, que apenas têm as obrigações e direitos definidos no art. 20.° e segs. do mesmo Código, com as especialidades, nas sociedades por quotas, consignadas no art. 202.° e segs.
Ora, sendo assim, depois de constituída é a sociedade que é sujeita de direitos e obrigações perante terceiros e perante os próprios sócios, que apenas são titulares de um direito complexo que se consubstancia na propriedade da quota.
E, esta quota, não tem que permanecer indefinidamente na posse do seu primitivo titular, podendo ser transmitida nos termos da lei e do pacto social.
É, por isso, que a cessão de quotas não tem de ser comunicada ao senhorio, mas apenas à sociedade - n.° 3 do art. 228.° do Cód. das Sociedades Comerciais - Ibidem, 684, acrescentando em nota: Ac. da Relação do Porto de 18/4/1991, de que fomos relator, Proc. 779/80, da 5.° Secção; ver, também, os Acs. da Relação de Coimbra de 29/7/1986, Col. Jur. XI, 4, 77, e da Relação de Lisboa de 23/2/1989, Col. Jur., XIV, 1, 143.
Sobre o contrato de cessão de quotas, como contrato indirecto, e seu relacionamento com o fim do trespasse, vantagens e contrapartidas, ver o Prof. Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, 252.
.
O acima dito não suscita dúvidas de maior. Tanto assim que a Relação teve de recorrer à desconsideração da personalidade colectiva para concluir que a alienação das participações sociais, camuflando um trespasse, devia ter sido comunicada aos AA., no prazo de 15 dias, tal como prescreve o art° 1038° al. g) do CC. Ou seja, por baixo do negócio societário aparente escondia-se, camuflava-se, um trespasse.

«O CSC veio esclarecer indubitavelmente que todos os tipos de sociedades comerciais, regularmente constituídas, têm personalidade jurídica.
Na verdade, o art. 5.° diz expressamente que "as sociedades gozam de personalidade jurídica e existem como tais a partir da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem, sem prejuízo do disposto quanto à constituição de sociedades por fusão, cisão ou transformação de outras".
As sociedades comerciais são pessoas colectivas de tipo associativo. Mesmo as sociedades comerciais unipessoais são pessoas "colectivas" (pessoas jurídicas não singulares ou não físicas) de base pessoal, nessa medida se distinguindo das fundações, que têm base patrimonial.
2. A consideração das sociedades comerciais como pessoas jurídicas tem consequências jurídicas importantes, de que convêm destacar desde já as seguintes.
Consequência fundamental do reconhecimento da personalidade jurídica às sociedades comerciais é a existência de um novo sujeito de direitos e obrigações , distinto dos sócios e com um património separado dos patrimónios destes.

Por outro lado, os credores particulares dos sócios não podem, em regra, fazer executar os bens da sociedade.

Nas sociedades anónimas, os credores dos accionistas podem fazer penhorar as acções e vendê-las (inclusivamente na bolsa, se nela tiverem cotação - CPC art. 884.°, n.° 1), pagando-se com o produto da venda, ou obter a sua adjudicação, tomando a posição de accionistas (uma vez que as acções são valores mobiliários livremente negociáveis - CSC, arts. 326.°, n.° 7, 328.°, n.° 5).

Além disso, as entradas ou contribuições dos sócios para o capital da sociedade envolvem transmissão de bens ou direitos daqueles para esta (alienação e aquisição); e o inverso se dá no caso de liquidação da sociedade - donde resulta, designadamente, a transferência do risco da coisa ("res suo domino perit") e a incidência de sisa, quando se trate de bens imobiliários (C Sisa, art. 8.°, n.° 13.°).
A transmissão das participações sociais (partes, quotas ou acções) não envolve transmissão dos bens da sociedade, nomeadamente não envolve trespasse do estabelecimento comercial, nem está sujeita a sisa (C Sisa, art. 2.°, § 1.°, 6.°).
A sociedade permanece a mesma, apesar de sofrer alterações profundas nos seus elementos: se saírem ou entrarem sócios, se adquirir ou alienar bens, se alterar a sua organização, se se transformar numa sociedade de tipo diferente (por transformação com continuação, não por transformação novatória), etc.

Desconsideração da personalidade jurídica
1. O reconhecimento da personalidade jurídica da sociedade comercial vem estabelecer um princípio fundamental de separação entre a sociedade e os sócios, assim como entre a sociedade e os titulares dos seus órgãos. Tal separação é sobretudo importante do ponto de vista patrimonial. A sociedade torna-se, assim, um instrumento jurídico ao serviço da vida económica.
Todavia, nem sempre tal instrumento é utilizado para fins lícitos.
Perante certos tipos de utilização abusiva da personalidade jurídica, a doutrina e a jurisprudência têm vindo a construir uma solução que começa a ser conhecida em Portugal como desconsideração (ou superação) da personalidade jurídica - Corresponde ao "disregard of legal entity" ou "lifting the corporate veil", do direito anglo-americano, ao "Durchgriff", da doutrina alemã, ao "superamento della personalitá giuridica", da doutrina italiana, e à "desestimación de la personalidad jurídica", da doutrina espanhola..
Têm-se em vista casos como, por exemplo, os seguintes:
a) Um sócio mistura o seu património pessoal com o da sociedade (usando bens sociais para exclusivo proveito pessoal, usando a mesma conta bancária para negócios pessoais e sociais, etc.), defendendo-se depois perante os credores sociais com a limitação da sua responsabilidade na sociedade;
b) Os sócios mantêm a sociedade subcapitalizada, em relação ao volume de negócios em que a envolvem, transferindo assim para os credores os riscos da empresa; ou suprem a subcapitalização mediante empréstimos ("suprimentos"), apresentando-se, em caso de falência da sociedade, como credores da sociedade em posição de igualdade perante os autênticos credores sociais.
c) O sócio dominante provoca nos credores sociais a impressão de que responderá pessoalmente perante eles, opondo-lhes depois o princípio da separação patrimonial;
d) Um sócio contorna uma proibição pessoal de concorrência ou de exercício de certa actividade, utilizando uma sociedade que domina;
e) Um sócio impedido de votar, numa deliberação da sociedade (A), utiliza uma sociedade (B), que ele domina e a quem cede a sua participação naquela (A), para votar nessa deliberação, em prejuízo dos outros sócios ou dos credores sociais;
f) Um sócio diminui o património social através de gastos arbitrários, ou cobrando remunerações excessivas, ou realizando negócios ruinosos para a sociedade, em favor de outra sociedade por ele dominada (directamente ou através de familiares).
Neste género de casos, um elementar sentido de justiça leva a defender a responsabilização directa e ilimitada dos sócios (e algo de semelhante se pode dizer dos membros dos órgãos sociais) por actos formalmente imputáveis à sociedade e apesar do princípio da separação de patrimónios.
Como fundamentar, porém, tal responsabilidade directa e ilimitada, quando a lei não a preveja explicitamente e, pelo contrário, afirme a separação patrimonial da pessoa colectiva e a limitação da responsabilidade? O problema pode pôr-se em relação a qualquer tipo de pessoa colectiva e não apenas de sociedade comercial, mas apresenta, quanto a esta, alguns aspectos específicos, que interessa analisar aqui.
2. O tema da desconsideração surgiu, pela primeira vez, na jurisprudência norte-americana, com base na teoria do "disregard of legal entity".

3. Na doutrina, contrapõem-se fundamentalmente três teorias: a teoria subjectivista, a teoria da aplicação da norma e a teoria objectivista.
Todas entendem que a desconsideração significa uma derrogação do princípio legal da separação, que só pode admitir-se a título excepcional, para certos casos concretos. A desconsideração consiste, na verdade, numa correcção das consequências jurídicas da imputação à sociedade, segundo as regras gerais, de certos actos que, pelo seu carácter abusivo ou pela sua finalidade extra-societária, se entende que, excepcionalmente, devem obrigar outras pessoas (ou outros patrimónios).
As divergências surgem quanto à definição dos pressupostos ou requisitos da responsabilização dessas outras pessoas.

Não há dúvida que a lei portuguesa – mais claramente no CSC, do que ao tempo do CCom - prevê vários casos em que, por actos juridicamente imputáveis à sociedade-pessoa colectiva, respondem, não só esta, mas também os sócios ou/e os membros dos órgãos sociais.
É o que se passa, por exemplo, com os casos de responsabilidade civil dos administradores (como tais, por actos praticados em nome da sociedade) e de outros membros de órgãos sociais para com os credores sociais e para com os sócios e terceiros (CSC art. 78.° a 82.°); de responsabilidade solidária do sócio por actos de membros de órgãos sociais por ele designados (CSC art. 83.°); de responsabilidade do sócio único em caso de falência da sociedade (CSC art. 84.°); de responsabilidade da sociedade directora ou dominante para com os credores da sociedade subordinada ou dependente (CSC art. 501.° e 491.°) e por perdas da sociedade subordinada ou dependente (CSC art. 502.° e 491.°). Tais casos podem considerar-se abrangidos no conceito de desconsideração em sentido amplo.
Mas, além disso, parece dever admitir-se, embora só excepcionalmente, a responsabilidade dos sócios ou membros dos órgãos sociais perante os credores sociais, outros sócios ou até terceiros, quando aqueles tenham um comporta-mento, ainda que formalmente correcto, que se traduza na utilização da pessoa colectiva para um fim contrário ao direito.
Tal responsabilidade pode fundamentar-se no art. 334.° do CCiv., sobre o abuso de direito, entendendo que a generalidade das pessoas têm o direito de constituir pessoas colectivas e de exercer actividades por intermédio delas, mas que esse direito tem "limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito". Estes os casos de desconsideração em sentido estrito - Luís Brito Correia, Direito Comercial, 2.º vol. Sociedades Comerciais, 1989, edição da AAFDL, pág. 227, 230, 232, 233, e 237 a 245, maxime, 240 e 244.».

«As excepções legais (à limitação da responsabilidade dos sócios perante a sociedade e os credores desta) funcionam independentemente dos estatutos ou da vontade dos sócios e decorrem da lei, ou mesmo da jurisprudência ou da doutrina. Nestes casos, normalmente, está em causa um desvio funcional, um abuso ou uma conduta ilícita.

A "crise da personalidade jurídica" levou a doutrina e a juris­prudência, para além de casos directamente previstos na lei, a cria­rem a figura geral e abstracta da desconsideração da personalidade jurídica, através da qual é possível atingir os patrimónios individuais dos sócios em situações de abuso funcional do instituto, designadamente nas sociedades fictícias e nos casos em que não é res­peitado o princípio da separação de patrimónios. Trata-se de situa­ções de responsabilidade pessoal dos sócios, que, não estando previstas directamente na lei resultam de construções doutrinárias ou jurisprudenciais. São, por conseguinte, também excepções ao princípio da limitação da responsabilidade. - A. Pereira de Almeida, Sociedades Comerciais, 4.ª edição, Setembro de 2006, 21, 29, 31, 43.»

As acções, como valores mobiliários, constituem uma técnica jurídica para permitir a sua circulação com facilidade e segurança - Op. cit., 60 e ss.. A transmissão das acções faz-se de acordo com o disposto no Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo Dec-lei n.º 486/99, de 13 de Novembro, que revogou o regime constante dos art. 326.º e 327.º do CSC.
O art. 328.º do CSC estabelece a regra fundamental de que o contrato de sociedade não pode excluir a transmissibilidade das acções nem limitá-la além do que a lei permitir.

Como simples construção normativa para satisfação e tutela de interesses humanos, que são o fim último do direito e a sua única razão de ser – hominum causa omne ius constitutum est – não deixará, no entanto, de se assinalar que, sempre que com ela (personalidade colectiva) esses interesses sejam desvirtua-dos, estará ainda naturalmente sujeita ao que, na terminologia anglo-americana se chama disregard of legal entity, entre outras designações, e que, transposto para outras ordens jurídicas, veio a ser conhecido, na terminologia germânica, por Durchgrieftheorie e, na italiana, por superamento della personalità giuridica.
Entre nós, tem-se-lhe chamado superação, ou desconsideração da perso-nalidade jurídica. No fundo, trata-se de deixar de reconduzir à sociedade actos abusivos das pessoas singulares que agem como titulares dos seus órgãos. Em certos casos, a própria lei faz directamente essa transposição (arts. 78-82; 83; 84; 501 e 491; 502 e 491 CSC) - mas o tema ganha particular acuidade quando, não havendo disposição legal, o abuso da personalidade jurídica deva levar, para sancionar o abuso do direito perpetrado por detrás do véu da personalização, a imputar directamente o acto ao seu autor material, ou a responsabilizá-lo directamente por esse facto - Pinto Furtado, Curso de Direito das Sociedades, 4.ª ed., 2001, pág. 261/262.».

A personalidade jurídica – art. 5.º - das sociedades comerciais - e das civis sob forma comercial - art. 1º, nº 4 CSC - significa que são uma individualidade jurídica que se não confunde com a dos sócios.
As sociedades têm nome (firma - art. 10º), sede (domicílio judiciário - 3º e 12º do CSC e 82º, 86º, 236º, nº 1 e 237º CPC), órgãos que formam, manifestam e executam a vontade dela, um estatuto ou pacto que é a sua lei interna, um património próprio e afecto aos seus fins, personalidade e capacidade judiciária, activa e passiva (arts. 6°, d), 7° e 8° CPC).
Passam a ser donas dos bens com que os sócios realizam as suas entradas, podendo usar, alienar ou onerar esses bens.
A posição jurídica dos sócios perante a sociedade não envolve um direito sobre aqueles bens. É sempre um direito, um bem móvel - 204º CC - cuja transmissão não paga sisa, mesmo que a sociedade tenha bens imóveis.
A sociedade mantém a sua individualidade jurídica, apesar das mutações de sócios ou património.

«Entendemos por desconsideração o desrespeito pelo princípio da separa-ção entre a pessoa colectiva e os seus sócios ou, dito de outro modo, desconsiderar significa derrogar o princípio da separação entre a pessoa colectiva e aqueles que por detrás dela actuam.

Todas as instituições da criação humana estão sujeitas a abusos. A esta realidade, também o instituto jurídico sociedade comercial não se furta - Pedro Cordeiro, A Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais, em Novas Perspectivas do Direito Comercial, Almedina, 1988, 291 e ss.».

«Todas as instituições de criação humana estão sujeitas a abusos, como já se disse.

A desconsideração consiste, assim, na correcção de uma primeira imputação, ou, dito de outro modo, na correcção das consequências jurídicas decorrentes de um princípio jurídico de carácter geral.
Ponto de partida da desconsideração é, portanto, a constatação de que a pessoa colectiva, foi abusivamente utilizada pelos seus membros sendo, contudo, controverso os pressupostos a partir dos quais se deverá considerar abusiva certa utilização.
Frise-se, no entanto, desde já, que, significando a desconsideração uma derrogação do princípio da separação (legalmente consagrado), ela só será admissível a título excepcional e para o caso concreto - salvaguardando-se, assim, a sobrevivência do ente colectivo.

Eu chego, portanto, ao seguinte resultado: a desconsideração, cujo fundamento genérico se encontra no art. 334.° do C. C., deve ser consagrada enquanto instituto jurídico autónomo, através de uma regra geral - ainda que a sua aplicação só deva ser admitida de modo excepcional, já que, como se disse, derroga o princípio da separação consagrado pelo legislador.
Deve, pois, ser admitida «de jure condendo».

E «de jure condito»?
É um facto que a desconsideração não foi expressamente contemplada pelo legislador.
Porém, a sua admissibilidade resulta do ordenamento jurídico na sua globalidade e em particular das ideias contempladas no princípio do abuso de direito (que por sua vez remete para a boa-fé, os bons costumes e o fim social e económico de cada direito).
Face ao exposto estão, assim, reunidos os requisitos para o intérprete integrar a lacuna legal através do meio infra-sistemático ao seu alcance - a criação de uma regra nos termos do art. 10. °, n. ° 3 do C. C..

2. A desconsideração pode ser entendida sob dois prismas:
- Num, mais amplo, como desrespeito pelo princípio da separação entre a pessoa colectiva e os seus sócios ou os membros dos seus órgãos;
- Noutro, mais restrito, como a correcção a uma primeira imputação legal de direitos à pessoa colectiva ou aos seus membros, feita, imediatamente, com base num abuso de instituto.

Em qualquer caso a desconsideração tem carácter excepcional, já que derroga o princípio da separação consagrado pelo legislador.
3. Os seus pressupostos são, pois, o abuso objectivo de instituto e o domínio.
4. As consequências da desconsideração variam na razão directa do abuso cometido.
5. Aquele que comete o abuso de instituto nos termos expostos, prevalecendo-se da sua posição de domínio, deve indemnizar os restantes membros da pessoa colectiva que tenham sofrido prejuízos em virtude do seu comportamento.
6. O fundamento genérico da desconsideração - que deve ser consagrada «de jure condendo» através de uma regra geral própria - encontra-se no art. 334.° do C. C., o que permite a sua imediata aplicação «de jure condito».
7. Do que fica dito podemos, pois, concluir que a desconsideração é um meio genérico de combate ao abuso da pessoa colectiva, devendo como tal ser acolhida pela nossa ordem jurídica.
É o intuito de salvaguarda das próprias pessoas colectivas em geral (e das sociedades comerciais em particular), da manutenção do crédito e da limpidez que deve presidir à vida jurídica que assim o justificam e impõem - Ibidem, 309/311.».

Em Conferência proferida no Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, a 18 de Dezembro de 2003, publicada no Boletim da Ordem dos Advogados n.º 30, Janeiro/Fevereiro de 2004, ficou dito:

«Esta operação complexa não é de fácil interiorização no foro. A técnica não oferece em absoluto segurança a quem decide, desconfortável por não dispor de claros pressupostos de aplicação da medida. Por isso, compete ao interessado provar as manifestações de conduta societária reprovável. E estas estão hoje razoavelmente sistematizadas.

Entre elas, avultam as hipóteses de confusão ou promiscuidade entre as esferas jurídicas da sociedade e dos sócios. Se – quanto aos comportamentos – o sócio ou os sócios tratam e dispõem do património da sociedade como se fosse “coisa própria” (e vice-versa), se pagam débitos sociais por meio de contas bancárias pessoais, se recorrem sistematicamente à tesouraria da sociedade para extinguir as suas obrigações pessoais e familiares ou financiar os gastos desta órbita, se exercem em nome da sociedade, ou na veste de sócio, actos e negócios jurídicos respeitantes a bens da titularidade individual (ainda que acompanhados por outra pessoa: cônjuge, familiar ou amigo conluiado), se não separam da sua vida pessoal ou do funcionamento de outras sociedades que controlam os locais de trabalho e sedes, as linhas de comunicações, os assalariados, e – agora quanto à qualidade dos comportamentos – todas estas circunstâncias (isolada ou conjugadamente) transitam de um patamar de anormalidade ocasional para se figurarem como manifestações normais de utilização persistente e reiterada do nome e das estruturas formais de exteriorização da sociedade nas relações com terceiros, estaremos perante um caso sintomático de legitimidade “desconsi-derante”.

4. Sobra, no entanto, uma outra dificuldade. Qual a bitola do abuso (institucional) e a fronteira do não abuso? Quando podemos afirmar com segurança que o comportamento dos sócios foi abusivo?

Para ajudar a resolver esta indefinição, temos defendido que a relevância do abuso carece do requerimento de uma actuação em fraude à lei. Nesta estará abrangida a existência de um efeito prejudicial a terceiros. Logo, interessará sempre visualizar na conduta do agente (sócio) uma combinação de actos, ainda que formalmente lícitos, para atingir um fim ilegítimo, visível num resultado danoso: o desfavorecimento dos interesses de autonomia e suficiência económico-patrimonial da sociedade, que se actualiza no momento da insatis-fação dos direitos creditícios, resultado da delapidação do património social.

Um outro caso.
Carlos, Dora, Ernesto, Fernando e a sociedade por quotas X, sócios da sociedade anónima Y, que explora uma empresa têxtil, vendem a maioria (ou a totalidade, numa outra variante) das suas acções à sociedade por quotas Z. Apesar de se terem negociado as participações, o que substancial ou indirectamente a sociedade Z quis adquirir foi a empresa titulada pela sociedade Y, tendo em vista a continuidade da sua exploração. Estará aberta a possibilidade de equiparar a venda das acções à venda da empresa (a desconsideração está aqui: “atribuir ao sócio ou sócios vendedores a venda de um bem – a empresa social – que somente à sociedade competiria efectuar”) e tornar equivalente a condição de sócios da sociedade cujas participações foram alienadas à condição de trespassantes. Não só para estes estarem submetidos à obrigação implícita de não concorrência, como para convocar a disciplina do trespasse.

Nesta, será ajuizado atribuir o direito de preferência ao senhorio proprietário do imóvel onde se instala o estabelecimento da sociedade (nos termos do art. 116º, 1, do RAU). E, ainda que a sociedade permaneça arrendatária e só mude o seu substrato, também não se nos afigura irrazoável buscar a sindicância do art. 115º do mesmo RAU. Ora, (i) sabendo que hoje praticamente não se trespassam empresas, antes se transmitem participações de domínio ou de controlo das sociedades que as exploram; (ii) sendo aquela última prescrição a norma decisiva para o senhorio fiscalizar a existência de simulação no trespasse (o negócio real pode ser sobre o imóvel onde funciona a empresa, assim, a cessão da posição do arrendatário – trespassante simulador – será ilícita por falta de consentimento do senhorio e motivadora de resolução do contrato de arrendamento), não será defensável levantar a cortina da sociedade arrendatária e qualificar a venda das participações como trespasse do estabelecimento social entre sócios vendedores e sócios adquirentes das participações (pelo menos quando estejam em causa todas elas) e aplicar o art. 115.º a estas hipóteses?»

«A figura clássica do trespasse tem vindo a perder algum relevo em razão de específicas operações societárias. Estas, na larga maioria dos casos, envolvem a transferência definitiva de um estabelecimento comercial (ou até de vários).

Confronte-se seguidamente a transmissão das participações sociais (conjunto de direitos - v. g., o direito de quinhoar nos lucros - e de deveres - v. g., a obrigação de entrada - dos sócios) com o trespasse.
Em primeiro lugar, deve afirmar-se que tais actos não são confundíveis. Tomemos como exemplo uma sociedade por quotas, um dos quatro tipos de sociedades comerciais permitidos por lei. Os sócios (ou, se for o caso, o sócio único) daquela são titulares de um direito complexo que se concretiza no facto de serem titulares da quota que lhes corresponde.
Ora, esta participação social - o que de resto vale para qualquer outra (v. g., uma acção) - não tem que permanecer necessariamente na esfera jurídica do sócio durante o período de vida da sociedade. O que vale por dizer que a quota pode ser transmitida, nos termos legais, a outrem que, por via desse negócio, adquire a posição do anterior sócio nessa sociedade.
Assim, a cessão da quota tem em vista, como o próprio nome indica, a transmissão da própria quota, o objecto desse negócio. Quanto ao estabele-cimento, que (eventualmente) integre o património da sociedade, perma-nece com a cessão na esfera jurídica desta. Os sócios não têm direitos sobre os bens que compõem o património daquela, mas apenas perante a sociedade. A realidade é, portanto, distinta do trespasse. Aqui o objecto do negócio é o próprio estabele-cimento e só ele. Estão, pois, em causa situações jurídicas diferentes, com conse-quências também elas diversas.

Cumpre, no entanto, questionar se a transferência de participações sociais pode fazer operar resultados práticos semelhantes ao trespasse (e, em caso afirmativo, em que termos), sendo certo que inexiste qualquer alteração ao nível da titularidade da pessoa jurídica, que permanece proprietária do(s) estabeleci-mento(s) que integram) o seu património, embora os sócios da sociedade sejam agora outros. Por isso, e incidindo apenas o nosso olhar nos problemas inerentes à transmissão da organização mercantil, deve referir-se que, apesar da cessão da(s) quota(s), v.g., os contratos ligados ao estabelecimento permanecem intocados, assim como não se pode falar de qualquer transmissão de créditos. Desta sorte, não cabe aludir à necessidade de consentimento do contraente cedido para que ocorra a cessão da posição contratual, nem à imposição de notificação dos devedores, dado que não foram transmitidos quaisquer créditos.

Tem sido, porém, defendido por alguma doutrina que a cessão de participações sociais, maxime em globo ou até na sua maioria, pode envolver uma "transmissão jurídica e indirecta" do estabelecimento, ou, dito de outro modo, uma "transmissão da propriedade indirecta ou mediata sobre o estabelecimento".
Propõe-se, por isso, a aplicação do regime do trespasse sempre que a equiparação se justifique. Vejamos três situações. Em caso de cessão total das participações sociais e coincidindo o património social com o património empresarial, ao senhorio do imóvel onde está instalado o estabelecimento assiste o direito de preferência na sua venda ou dação em cumprimento, ao abrigo do art. 116.° RAU. Por sua vez, o sócio ou os sócios cedentes da participação social encontram-se também vinculados a não concorrer com a sociedade comercial, titular do estabelecimento mercantil.
Por fim, a venda (da totalidade ou da maioria) das participações sociais deve ser vista juridicamente como alienação do estabelecimento, para efeito da aplicação do regime legal atinente à responsabilidade por vícios do bem transmitido.
Globalmente, esta orientação deve acompanhar-se, embora com uma ligeira observação. Não pondo em causa a possibilidade de existir uma transmissão (por via indirecta) do estabelecimento envolvida na cessão da participação social, ela porém deve restringir-se aos casos de transmissão total ou por larga maioria (ou como referem outros de uma "parte considerável") das participações.

A problemática que tratámos é distinta daquela outra em que ocorre uma situação de desconsideração da personalidade jurídica, pois se constata que a sociedade comercial foi usada de modo abusivo, como mera capa, para a realização de actos não permitidos ao(s) seus) sócio(s). Figure-se o caso em que o trespassante, comerciante em nome individual, constitui uma sociedade unipessoal por quota, exercendo através desta uma actividade concorrencial com o trespassário» - Fernando de Gravato Morais, Alienação de Estabelecimento Comercial, 122/124..

«O relacionamento entre o tipo de referência e o fim indirecto pode ser exemplificado com o contrato de cessão de quotas de sociedade comercial com o fim de trespasse do estabelecimento.
É correntíssimo, na prática, que a transmissão de um estabelecimento comercial seja feita através da cessão da totalidade das quotas, ou da venda da totalidade das acções, da sociedade que é titular desse estabelecimento.
A generalidade dos estabelecimentos comerciais com alguma importância económica pertence a sociedades comerciais e não a comerciantes individuais. A maior parte dos estabelecimentos de pequena dimensão pertence a sociedades por quotas e a generalidade das sociedades por quotas, no comércio, tem apenas um estabelecimento. Esta circunstância, que é corrente, permite que, para transmitir o estabelecimento, as partes se limitem a transmitir as quotas da sociedade a que pertence. Esta prática não levanta necessariamente problemas de unipessoalidade da sociedade; basta que os sócios anteriores transmitam a mais do que um sócio adquirente, com ou sem divisão das quotas. Em muitos casos sucede mesmo que tanto os alienantes como os adquirentes são marido e mulher, com quotas iguais, sendo suficiente a simples cessão das quotas.
A cessão das quotas, em casos como estes, tem vantagens sobre o trespasse. Evita a ruptura de relações jurídicas característica do trespasse, com todos os problemas acarretados pela substituição do trespassante pelo trespas-sário na titularidade de direitos, obrigações e relações jurídicas, evita as questões atinentes à determinação concreta do âmbito material e jurídico do trespasse, evita o direito de preferência do senhorio, se as instalações forem arrendadas, e é menos dispendiosa em termos fiscais e emolumentares.
Em contrapartida, envolve para o trespassário o risco de vir a ser surpre-endido por passivos ou responsabilidades com que não contava. No caso, que por vezes sucede, de o estabelecimento não ter certas características que foram determinantes do negócio, designadamente licenças ou alvarás de funcionamento ou de abertura ao público, os Tribunais admitem a anulação ou a modificação da cessão de quotas por erro sobre a base do negócio, nos termos do artigo 252.°/2 do Código Civil, desde que se alegue e prove que a cessão foi feita com o fim de transmissão do estabelecimento. Não se trata apenas da relevância dos simples motivos que conduziram as partes à celebração do contrato, mas sim da base negocial. O fim indirecto constitui a base do negócio e é relevante não só em termos de erro, mas também de alteração de circunstâncias» - Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, 253/254..

Ferrer Correia e Almeno de Sá - Parecer de Setembro de 1992, na Colect. de Jurisprudência, 1993, tomo IV, 15 a 32. recorreram à desconsideração da persona-lidade colectiva mas, sobretudo, à interpretação do contrato, para ver na compra e venda de acções (inteiramente livres, sem defeitos ou onus) a compra e venda de empresa defeituosa, onerada, a requerer aplicação do regime de venda de coisa defeituosa ou de bens onerados:

«De acordo com este ponto de vista, deverá equiparar-se a aquisição de participações sociais à aquisição da própria empresa e aplicar-se, em consequência, o regime atinente à responsabilidade por vícios quando o comprador, mesmo não tendo adquirido a totalidade das participações, consegue todavia uma posição dominante na empresa e a vontade dos intervenientes se dirige, realmente, à sua alienação, surgindo a venda das quotas ou acções tão só como meio ou instrumento para atingir esse escopo. Impõe-se responsabilizar o vendedor de participações sociais, explicita HOMMELHOFF, quando a partici-pação em causa proporciona ao seu detentor uma posição que equivale aproximadamente à posição de um "proprietário da empresa".
Vem, assim, a desempenhar aqui um papel fundamental a interpretação do contrato, no quadro da tentativa de descobrir a exacta vontade negocial dos intervenientes. Saber se se quis tão só a aquisição de direitos de participação ou se, para além disso, se pretendeu, através da compra de tais direitos, a compra da empresa e, portanto, a obtenção da "posição de empresário" - que ao vendedor compete então proporcionar na sua plenitude, são questões que só podem ser adequadamente decididas com base na interpretação do contrato.

Nesta posição de fundo, que se traduz em considerar juridicamente a venda de participações sociais como verdadeira venda da empresa, para efeitos de responsabilidade por vícios, é possível ver, como o faz alguma doutrina, um caso de aplicação da teoria do "Durchgriff' ou "desconsideração" da pessoa jurídica. Como que se afasta o "écran" da pessoa colectiva, para chegar à realidade material que está por detrás dele. Ou seja, "desconsidera-se" o artefacto que é sempre a personalidade colectiva, a fim de atingir o verdadeiro «objecto» da relação jurídica em causa. Na verdade, dir-se-á que, no caso de alienação de quotas ou acções, os deveres primários de conduta se restringem, em princípio, às participações sociais, pelo que a elevação da empresa a objecto jurídico do contrato "penetra" ou passa para lá da forma jurídica, acabando por alcançar o exacto objecto económico do acordo negocial.

A verdade, porém, é que, bem vistas as coisas, o verdadeiro fundamento da solução encontra-se no próprio contrato: é a interpretação deste que não só nos fornece o critério de delimitação das hipóteses, como igualmente constitui a base jurídica da "transformação" da compra e venda de acções em compra e venda da empresa. Sendo certo que, em tese geral, tanto as participações sociais como a empresa podem ser objecto de um contrato de compra e venda, aquilo que se tem, de facto, em vista, no caso singular, decidem-no as partes.
Deste modo, se chegarmos a um resultado hermenêutico que, não obstante o texto contratual assentar na venda de quotas ou acções, nos aponta a empresa como o verdadeiro objecto do contrato, então não será a autonomia da pessoa jurídica que poderá pôr em causa tal resultado. É, por conseguinte, irrelevante o facto formal de o titular da empresa continuar a ser, antes e depois das alienações, do ponto de vista técnico, a mesma sociedade. O resultado vale, em rigor, porque, de acordo com a interpretação do contrato, é aquilo que os sujeitos intervenientes verdadeiramente queriam.

A ideia da separação de personalidade e da autonomia da pessoa colectiva, salienta-se aí, "não pode ser levada ás últimas consequências. Tal ideia não pode ser invocada para legitimar soluções que sejam contrárias quer ao fim de uma disposição concreta da lei, quer a uma vontade contratual expressa ou tácita, quer ainda aos princípios gerais da boa fé, do abuso de direito e da fraude».

O mesmo concluiu Calvão da Silva - Compra e Venda de Empresas e A empresa como objecto de tráfico jurídico, em Estudos de Direito Comercial, 137 a 163 e 165 a 197. com recurso à interpretação negocial e aplicação do regime de compra e venda de bens onerados, erro sobre o objecto e cumprimento defeituoso, ensinando que no âmbito de aplicação do art. 905.º do CC cabem não só a compra de coisa mas toda a espécie de objectos de compra, focando a literatura alemã, a propósito do preceito paralelo (§ 434), expressa-mente, a compra de acções (…), a empresa (…) e títulos de valor.

Em qualquer destes casos – sobre a compra e venda de acções da Sociedade Financeira Portuguesa, acções sem defeito mas defeituosa a empresa adquirida com a compra de acções pronunciou-se, também, Henrique Mesquita - RLJ 127, pág. 217 e ss. - não estava em causa a transmissão de qualquer estabelecimento mas a própria empresa.
Nem podia esperar-se outro ensinamento do saudoso Professor Ferrer Correia que, a pág. 93 das suas lições policopiadas, de 1968, ensinou:

«Titular dos bens é a sociedade, não são os sócios: o direito destes, no que tenha de patrimonial, dirige-se tão somente à participação no dividendo dos lucros anuais e no activo de liquidação.
Esta qualificação serve de apoio a soluções práticas da importância das seguintes: aa) a transferência para terceiros das quotas ou acções da sociedade, ainda que total e realizada uno actu, não equivale ao trepasse do estabelecimento, razão pela qual não lhe serão de aplicar as várias disposições da lei relativas ao trespasse, como, por exemplo, as que lhe regulamentem a forma externa (Cód. do Notariado, art. 88º, al. k)) e as que conferem ao senhorio do prédio, em tal hipótese, determinados direitos (direito de opção, direito à elevação da renda);».

Dispõe o art. 334.º do CC que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Os factos, o Direito e o recurso

De posse destes ensinamentos, podemos concluir que por trás da descon-sideração ou levantamento da personalidade colectiva está, sempre, a necessi-dade de corrigir comportamentos ilícitos, fraudulentos, de sócios que abusaram da personalidade colectiva da sociedade, seja actuando em abuso de direito, em fraude à lei ou, de forma mais geral, com violação das regras de boa fé e em prejuízo de terceiros.
Logo, interessará sempre visualizar na conduta do agente (sócio) uma combinação de actos, ainda que formalmente lícitos, para atingir um fim ilegítimo, visível num resultado danoso: o desfavorecimento dos interesses de autonomia e suficiência económico-patrimonial da sociedade, que se actualiza no momento da insatisfação dos direitos creditícios, resultado da delapidação do património social, em prejuízo de outrem.

Voltando ao caso em apreço, não se vê na factualidade alegada e provada o mínimo sinal de fraude, de abuso ou de prejuízo para quem quer que seja.
Nem foi alegado algo que possa servir de suporte à afirmação da Relação de que a compra e venda de acções camuflava, escondia um trespasse, configu-rando uma simulação relativa (art. 241.º CC).

Vamos aceitar que as Partes quiseram, ao negociar as acções represen-tativas do capital da Ré, comprar e vender o Hotel D..., estabelecimento da Sociedade Ré que o instalara em prédio tomado de arrendamento aos AA. E daí? Onde a fraude à lei, o abuso do direito de negociar títulos mobiliários, o prejuízo ilegítimo dos AA? E que teve a sociedade a ver com a negociação das acções representativas do seu capital?

Dirão os AA: se tivesse sido efectuado o trespasse do Hotel teríamos direito de preferência (art. 116.º do RAU) com possível (de acordo com alguma doutrina) recuperação do imóvel e provável aumento da renda.
Pois sim. Mas as acções de uma sociedade são legal e naturalmente trans-missíveis, quando os AA negociaram com a Ré sabiam – ou deviam saber – que a sociedade permaneceria a mesma, independentemente de quem fossem os titulares do seu capital e que em lado nenhum se encontra proibida a venda da totalidade de acções de uma sociedade.
Não se alega nem ocorre abuso do direito ou fraude à lei.

Por outro lado, nada impunha às Partes que trespassassem o Hotel, antes poderia ser censurável que os accionistas da Ré vendessem o (único?) activo da sociedade e ficassem com as acções que não valiam nem o papel em que estavam impressas. Não poderia esse comportamento ser considerado violador da autonomia patrimonial da sociedade e fundamento, esse sim, de desconsideração da personalidade da Ré, com a inerente responsabilidade dos accionistas?

Em suma: não se verifica causa de desconsideração da personalidade da Ré nem outro motivo para transformar o negócio societário havido em trespasse que, nem de perto nem de longe, se mostra querido pelas Partes.

Não tendo havido trespasse ou cessão do direito ao arrendamento - que se manteve na esfera jurídica da sociedade – nada havia a notificar e não foram violadas as obrigações impostas ao arrendatário pelas al. f) e g) do art. 1038.º do CC.
Por ter concluído em sentido contrário ao agora dito, não pode subsistir o decidido pela Relação, antes prevalecerá a decisão comarcã.

Com o assim decidido fica prejudicado o conhecimento das demais questões postas no recurso, as III a V acima ditas, a que se referem as conclusões dd) a vv) – art. 660.º, n.º 2, do CPC.

Decisão

Termos em que, concedendo a revista, se decide
a) – revogar a decisão recorrida e
b) – mandar prevalecer o decidido em 1.ª Instância.

Custas pelos AA.


Lisboa, 26 de Junho de 2007

Afonso Correia (Relator)
Ribeiro de Almeida
Nuno Cameira