Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2041/13.9TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ROQUE NOGUEIRA
Descritores: CLÁUSULA PENAL
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
NULIDADE
Data do Acordão: 03/28/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / CLÁUSULA PENAL.
DIREITO DO CONSUMO - CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS.
Doutrina:
- Almeida Costa e Menezes Cordeiro, Cláusulas Contratuais Gerais,46, 47.
- Almeida Costa, Síntese do Regime Jurídico Vigente Das Cláusulas Contratuais Gerais, 2.ª ed.,19.
- Almeno de Sá, Cláusulas Contratuais Gerais e Directivas Sobre Cláusulas Abusivas, 2.ª ed., 97, 208 a 210.
- António Pinto Monteiro, «A pena e o dano», Estudos em homenagem ao Prof. Miguel Galvão Telles, vol. 2.º, Outubro/2012, 599 (nota 1419), 659 e ss..
- António Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, 593 e 594 (nota 1409), 599, 600.
- Araújo Barros, Cláusulas Contratuais Gerais, Coimbra Editora, 33-34.
- Calvão da Silva, Banca, Bolsa e Seguros, Tomo I, 2012, 3.ª ed., 191, 192; Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 1997, 247 e ss..
- Sousa Ribeiro, Responsabilidade e Garantia em Cláusulas Contratuais Gerais, 7 e ss., 48, 50, 51, 55.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 810.º, N.º 1, 811.º, N.º 2, 812.º, N.º 1.
D.L. N.º 446/85, DE 25-10, ALTERADO PELOS D.L. N.ºS 220/95, DE 31-8, E 249/99, DE 7-7: - ARTIGOS 1.º, N.ºS 1, 2 E 3, AL. C), 12.º, 19.º, AL. C).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DAS RELAÇÕES:

-RL, DE 1/3/2012, RC, DE 28/10/2014, E DA RG, DE 11/9/2012, DISPONÍVEIS IN WWW.DGSI.PT .

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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 10/10/13, IN WWW.DGSI.PT .
-DE 5/5/2016, C.J., ANO XXIV, TOMO II, 57, DE 31/5/2001, IN WWW.DGSI.PT, E DE 5/7/1994, C.J., ANO II, TOMO II, 170.
Sumário :
I – A cláusula penal tanto desempenha uma função ressarcidora como coercitiva.

II – Aquelas duas funções são essenciais à caracterização da cláusula penal, tal como ela é legalmente disciplinada.

III – São características essenciais do conceito de cláusula contratual geral a pré-formulação, generalidade e imodificabilidade.

IV – No caso dos autos, está assente que a cláusula em causa é uma cláusula penal e uma cláusula contratual geral, a implicar a sujeição da mesma à disciplina instituída pelo DL nº446/85, de 25/10.

V - O objectivo da al.c), do art.19º, do citado DL, é o de restringir a liberdade de conformação do predisponente, estabelecendo um limite de conteúdo para as cláusulas penais, que tem como critério a relação entre a pena e o montante dos danos a reparar.

VI - Nos contratos de fornecimento em massa de bens ou serviços, esses danos corresponderão, grosso modo, aos ganhos médios que o predisponente normalmente obtém com aquele tipo de transacções, cifrados numa certa percentagem do preço do objecto da prestação.

VII – Na fixação da indemnização deverão ser contabilizados os gastos que o predisponente poupou, o que a cláusula penal em causa não prevê, verificando-se uma desproporção notória e flagrante entre o montante da pena e o montante dos danos previsíveis a reparar, dentro do «quadro negocial padronizado».

VIII - Haverá, deste modo, que concluir que a cláusula nº4.5 do contrato em causa é uma cláusula relativamente proibida, nos termos do art.19º, al.c), do DL nº446/85, de 25/10, e, como tal, nula (art.12º, do mesmo DL).

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1 – Relatório.

Na 10ª Vara Cível de Lisboa, «Scc – Sociedade Central de Cervejas e Bebidas, S.A.» intentou acção declarativa, com processo comum, contra «Praia do Aquário – Estabelecimentos Balneares e Hoteleiros, Ld.ª», pedindo a condenação da ré a pagar à autora a quantia de € 131.721,00, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, contados desde 22/4/07, até integral pagamento.

Para o efeito, alega ter celebrado com a ré, em 23/4/02, um contrato nos termos do qual esta se obrigou a comprar ao distribuidor Comercialcer, Ld.ª, para revenda ao público e consumo no seu estabelecimento, produtos constantes do Anexo I, nas quantidades e prazos previstos na cláusula 3ª.

Mais alega que a autora, por seu turno, se obrigou a vender à ré aqueles produtos e, bem assim, a entregar-lhe, a título de contrapartida pela celebração do contrato e apoio à comercialização dos produtos acordados, a quantia de € 44.891,81.

Alega, também, que o contrato vigoraria até que a ré adquirisse 125.000 litros dos referidos produtos ou pelo prazo de 5 anos a contar da data da sua assinatura – 23/4/02 – consoante o que primeiro ocorresse.

Alega, ainda, que a ré apenas adquiriu 25.211 litros dos 125.000 litros a que se havia obrigado, pelo que, considerando o valor do preço de venda a retalho da cerveja de barril da autora, à data em que terminou o contrato – 22/4/07 – o valor da venda da litragem que ficou por consumir é de € 131.721,48.

Conclui, assim, que é essa a quantia que a ré tem de devolver à autora, por não ter adquirido o volume de litragem a que se obrigou.

Após contestação da ré e réplica da autora, foi proferido despacho saneador, com identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, julgando a acção improcedente.

Inconformada, a autora interpôs recurso de apelação daquela sentença, o qual foi julgado parcialmente procedente por acórdão da Relação de Lisboa, que, na parcial procedência da acção, condenou a ré a pagar à autora € 131.721,00, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.

Inconformada, a ré interpôs recurso de revista daquele acórdão.

Produzidas as alegações e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2 – Fundamentos.

2.1. No acórdão recorrido consideraram-se provados os seguintes factos:

“A – No exercício da sua actividade, a A. celebrou, em 23 de Abril de 2002, com a R. Praia do Aquário – Estabelecimentos Balneares e Hoteleiros, Lda., um contrato – doc. fls. 27.

B - O contrato respeitava ao estabelecimento denominado “Praia do Aquário”, sito na Avenida Montevideu, Praia do Aquário, Nevogilde, Porto, o qual era, nessa data, explorado pela R., que aí se dedicava, designadamente, à venda de bebidas ao público.

C - Por força desse contrato, a R. obrigou-se a “… comprar ao distribuidor Comercialcer, Lda., salvo se outro lhe for indicado (…) para revenda ao público e consumo no ESTABELECIMENTO, PRODUTOS constantes do Anexo I nas quantidades prazos previstos na cláusula terceira” (cfr. cláusula 1.1. do contrato).

D - Por força do mesmo contrato, obrigou-se ainda a R. a “… não vender e a não publicitar, no estabelecimento, produtos similares aos constantes do Anexo II, nem permitir que terceiros o façam” (cfr. cláusula 1.6. do contrato).

E - Ficou, também, estipulado que a R. não poderia ceder a terceiros a posição contratual decorrente do contrato, sem prévio consentimento por escrito da A., qualquer que fosse o negócio e forma que servisse de base à cessão, incluindo transmissão do estabelecimento comercial ou da sua exploração, sob pena de incorrerem em responsabilidade solidária pelo incumprimento (cfr. cláusula 1.8. do contrato).

G - Por seu turno, a A. obrigou-se a “… vender através dos seus Distribuidores…” os produtos objecto do contrato e constantes do Anexo I do contrato (citada cláusula 1.1. do contrato).

H - Pelo contrato a que se vem fazendo referência, a A. acordou, ainda, com a R. em entregar-lhe, a título de contrapartida pela celebração deste e apoio à comercialização dos produtos acordados, a quantia de €44.891,81 (quarenta e quatro mil e oitocentos e noventa e um euros e oitenta e um cêntimos), com IVA incluído à taxa legal em vigor (cfr. cláusula 2 do contrato).

I - Mais se tendo a A. obrigado a: prestar apoio anual às festas de S. João do Porto, com patrocínio da S.C.C. em produto e apoio logístico; organização de uma festa anual, com patrocínio da S.C.C. em produto; e colocação de 3 postes no ponto de venda pela S.C.C., para colocação de publicidade (cfr. contrato cláusula 2).

J - Contrapartidas essas que a A. efectivamente entregou à sociedade R.

K - Ficou estabelecido no contrato que este vigoraria até que a R. adquirisse 125.000 litros dos produtos constantes do Anexo I (cervejas) ou pelo prazo de 5 anos a contar da data da sua assinatura, 23 de Abril de 2002, consoante o que primeiro ocorresse (cfr. contrato, cláusula 3 e Anexo I, fls. 31).

L - Dos 125.000 litros dos produtos constantes do Anexo I (cervejas), até abril de 2010, a R. apenas adquiriu 25.211 litros, ficando, por adquirir 99.789 litros daqueles produtos para atingir aquela litragem.

M - O valor de preço de venda a retalho da cerveja de barril da A. era, a 22 de Abril de 2007, de €1,32/litro; o valor de venda da litragem que ficou por consumir é de €131.721,48.

N - Ficou estabelecido na cláusula 4.5. do contrato que “Se no termo do prazo referido na cláusula terceira o REVENDEDOR não tiver efectuado o volume de compras aí estabelecido, a CENTRAL DE CERVEJAS poderá exigir uma indemnização, pelo incumprimento, que por acordo, se estipula ser igual ao valor das bebidas não adquiridas, considerando-se, para o efeito, o P.V.R. praticado pela CENTRAL DE CERVEJAS à data do incumprimento para a cerveja Sagres de barril”.

O – A R decidiu interromper todas as relações que mantinha com a A; os fornecimentos cessaram em abril de 2010.

P – O contrato celebrado entre a A e a R integra cláusulas que são utilizadas pela A em contratos semelhantes celebrados com outros clientes da A (cláusula penal, entre outras), bem como cláusulas cujo teor é susceptível de ser negociado (relativas ao produto, litragens e período de vigência). (este ponto P foi suprimido pelo acórdão recorrido)

Q – A A disponibilizou apoios à R (produto e equipamentos) para a realização de outras festas e eventos, para além das referidas no contrato, nem sempre satisfazendo aquilo que era pretendido pela R.

R - A R tinha a ambição de comprar à A a litragem de 125.000 litros em 5 anos.

S – O estabelecimento da R consumia, em média, 930 l/mês, ao invés dos 2.000 litros contratados.

T – Desde 2002, a A forneceu à R 55.741,2 litros dos produtos que comercializa (cervejas, águas e refrigerantes) e, durante 8 anos, publicitou as marcas dos referidos produtos no estabelecimento da R.

U – Após o termo do prazo de vigência do contrato, a 22/04/2007, e até abril de 2010, a A continuou a fornecer à R, de forma regular, contínua e exclusiva, os produtos que comercializa.

V – Desde abril de 2010 e até citação para a presente ação, nunca a A reclamou da R o pagamento de quantia a título de consumos não atingidos.

W – O que a R tomou como aceitação da finalização do relacionamento entre as partes.”.

Julgando-se não provado que:

 “- para efeitos do cálculo da litragem que a R se obrigou a consumir, acordaram as partes considerar águas e refrigerantes;

- nunca a A participou, com produto ou capital, em outras festas e eventos organizados pela R (para além do S. João e de uma festa anual) em que se comprometeu a participar;

- o referido volume mínimo de vendas foi imposto pela A, e não sugerido ou garantido pela R;

- A e R acordaram que, mediante a continuação de aquisição dos produtos após abril de 2007 e com o único objetivo de atingir nível de facturação que compensasse o investimento inicial da A no valor de €44.891,81, a A se abstinha de interpelar a R para pagamento de indemnização por incumprimento das litragens acordadas no contrato;

- a A propôs a presente ação omitindo os litros consumidos de abril de 2007 a abril de 2010.”.

2.2. A recorrente remata as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. Os fundamentos do presente recurso prendem-se com o acionamento da cláusula penal ínsita na cláusula 4.5 do contrato em referência nestes autos, a qual, segundo se crê, em qualquer das modalidades previstas para esta figura, indemnizatória e/ou compulsória, se afigura como desproporcional face aos interesses em conflito, gerando assimetrias excessivas nas obrigações assumidas pelas partes contratantes.

2. Pelo que o Venerando Tribunal recorrido, tal como o fez oVenerando Tribunal de 1.ª Instância, à luz dos artigos 12.° e 19.°, al c) do Decreto-lei 446/85, de 25 de Outubro, sempre deveria tê-la declarado nula.

3. Sendo que, mesmo que assim não se entendesse, sem conceder, sempre deveria ter procedido à redução da mesma cláusula, nos termos do artigo 812.° do Código Civil, em pelo menos 75 % do seu valor, o que mais uma vez não fez, em violação da referida disposição legal.

4. Com efeito, se é certo que é lícito às partes convencionarem as consequências jurídicas do incumprimento do contrato, estabelecendo previamente critérios indemnizatórios a considerar nessa eventualidade, no entanto essa possibilidade tem limites que decorrem, desde logo, da proibição do estabelecimento de sanções manifestamente excessivas (artigo 810.° do C.C.), ou de cláusulas penais desproporcionadas aos danos a ressarcir (artigo 19.°, al. c) do Decreto-Lei n.° 446/85 de 25/10).

5. Sendo que este juízo sempre deverá ser feito à luz do contexto específico e global deste tipo de contrato, tendo em conta a natureza da actividade da proponente, as especificidades do negócio, os valores sancionatórios nela previstos em directo confronto com os valores previsíveis que o não acatamento do acordado, pelo aderente, poderá provocar.

6. Fatores esses que, com referência ao contrato sub judice, se prenderiam, designadamente, com a ausência de culpa da Recorrente e a sua boa-fé na execução do contrato, a diminuta gravidade da infração, o interesse comum de ambas as partes no atingimento das litragens estabelecidas, as vantagens que resultam para a Recorrida do incumprimento e os prejuízos que resultam para a Recorrente do acionamento da cláusula penal.

7. Juízos esses que, com referência à situação sub judice, podem ser retirados das seguintes circunstâncias:

- Conforme o ponto K dos factos dados como provados, ficou estabelecido que o contrato sub judice vigoraria pelo prazo de 5 anos.

- Porém, o mesmo durou exactamente 8 anos, período durante o qual a Recorrente esteve sujeita a vender os produtos da Recorrida em exclusivo, e bem assim a publicitá-los em todo o seu estabelecimento, tendo vendido um total de 55.741,2 litros (incluindo cerveja e outras bebidas) - conforme os pontos D e T dos factos provados.

- Se no contrato se previam consumos na ordem dos 125.000 litros em 5 anos, a verdade é que a Recorrente apenas conseguiu adquirir à Ré cerca de um 1/5 dessa litragem, isto é, 25.211 litros - tudo conforme os pontos K e L dos factos dados como provados, não se tendo por qualquer forma dado como provado que esse facto se deveu a culpa da Recorrente, sendo que, em boa verdade, era do interesse comum de ambas as partes o atingimento das litragens estabelecidas.

- Sendo que, se a Recorrente pretendesse cumprir a litragem especificamente determinada no contrato, isto é, 125.000 litros, ao ritmo pelo qual a execução do contrato se vinha fazendo, a execução do contrato teria de prolongar-se por 40 anos, o que sempre configuraria uma vinculação ao contrato por parte da Recorrente, por demais ilícita, seja à luz do direito nacional, seja à luz do direito comunitário.

- Se é certo que, nos termos do ponto H dos factos dados como provados, a Recorrida concedeu ab initio à Recorrente um incentivo para a contratação no valor de € 44.891,81, que é legítimo que esta recupere, a verdade é que a condenação da Recorrente em razão do acionamento da cláusula penal, de € 131.721,00 ultrapassa em quase três vezes o referido valor.

- Isto sem considerar que o contrato já havia sido parcialmente cumprido, durante 8 anos, e o valor investido pela Recorrida já havia sido parcialmente amortizado, pelo menos em € 9.075,96.

- O valor resultante do acionamento da cláusula penal é calculado tem por base as litragens não consumidas pela Recorrente, mas não é aí descontado o custo da prestação da Recorrida no fornecimento de 99.789 litros de cervejas, correspondentes a 4/5 da litragem acordada no contrato.

- Se o valor global do presente contrato se calcula pela multiplicação do valor total das litragens (125.000 litros) pelo valor de venta a retalho da cerveja de barril (€ 1,32/litro), temos que o mesmo corresponde a € 165.000(125.000x1,32).

- Ora, pelo acionamento da cláusula penal sub judice, a Recorrida receberá 4/5 desse valor, sem contrapartidas, a acrescer ao valor já faturado entre a Recorrida e a Recorrente durante a execução do contrato, isto é, € 33.278,52 (25.211 litros x € 1,32/1).

- Ou seja, pelo acionamento da cláusula penal sub judice, no final de contas, em razão deste contrato a Recorrida obteve a totalidade dos rendimentos a que se predispôs, isto é, € 165.000,00 (€ 33.278,52 + € 131.721.48), sem que no entanto tivesse tido que fornecer 4/5 do volume de cerveja que se previa fornecer.

- Cerveja essa que agora poderá vender a terceiros, gerando rendimentos precisamente de € 131.721.

8. Conforme vemos, portanto, em termos de repartição dos riscos do contrato sub judice, é possível verificar que a referida cláusula importa que a Recorrida não apenas não corra qualquer risco resultante da exploração do contrato, pois, conforme acima explicitamos, receberá o total do valor global do contratado (€ 165.000,00), como também logre não ter de cumprir 4/5 da sua prestação a que se obrigou, equivalente ao fornecimento de 99.789 litros de cerveja.

9. Por seu turno, o acionamento da referida cláusula importa para a Recorrente que a mesma corra não apenas todos os riscos inerentes ao contrato, como também fique gravemente te prejudicada pelo seu incumprimento, sendo obrigada não só a pagar todo o valor dos fornecimentos previstos mas também a não receber a contraprestação a cargo da Recorrida.

10. Na ponderação da desproporcionalidade que aqui se alega, sempre será importante atentar que os prejuízos suportados pela Recorrida apenas poderão corresponder, alternativamente, ou ao valor ainda não recuperado do incentivo monetário no termo da vigência do mesmo, ou ao lucro deixado de realizar relativamente às litragens não compradas ao revendedor.

11. Isto sendo certo que a recuperação do incentivo monetário concedido pela Recorrida à Recorrente sempre seria feita à custa dos lucros que a Recorrida viesse a realizar com a sua execução.

12. Dai que os prejuízos sofridos pela Recorrida não possam calcular-se pelo somatório das duas parcelas que refere o Douto Acórdão recorrido, mas, de forma exclusiva, ou pelo valor do incentivo pecuniário não recuperado ou pelo valor dos lucros cessantes que a Recorrida deixou de obter.

13. Ora, se atendermos ao valor do incentivo pecuniário não recuperado pela Recorrida, vemos que a indemnização a conceder à Recorrida sempre terá como limite os € 44.891,81 deduzidos da parcela já amortizada nos 8 anos do contrato, isto é € 8.978,36 (€ 44.891,81:5, uma vez que o contrato foi cumprido em 1/5), ou seja, € 35.913,45.

14. Por esta via, a indemnização a conceder à Recorrida seria 3,67 vezes inferior à que resultou da condenação de que ora se recorre.

15. Por sua vez, se atendermos ao valor dos lucros cessantes é possível verificar que o montante de € 131.721,48 em que a Recorrente foi condenada ultrapassa em grande medida o valor desses lucros cessantes sofridos por esta, sendo certo que a Requerida não terá de cumprir a prestação que lhe incumbia ao abrigo do contrato, ficando para si com os 99.789 litros de produto que nunca chegaram a ser fornecidos, isto é, não tendo de prestar 4/5 da prestação a que estava obrigada. 16.99.789 litros que a Recorrida poderá agora utilizar para vender a terceiros e realizar os lucros cessantes.

17. Assim, em boa verdade, em termos de rendimentos obtidos pela Recorrida com o acionamento da cláusula penal estabelecida nestes autos, os mesmos não são de apenas € 131.721,48 mas sim de € 263.442,96.

18. Por tudo o exposto, é possível verificar que a cláusula penal em referência inserida no contrato sub judice é manifestamente abusiva, exagerada e desproporcionada face ao equilíbrio da relação entre as partes, contendo em si uma desproporção sensível, evidente e substancial da pena relativamente ao dano a ressarcir, e que é ofensivo da justiça e do equilíbrio da relação entre as partes, sem que haja motivo justificável e atendível, e portanto, da equidade e do principio da Boa-fé.

19. Pelo que, entrecruzando a factualidade subjacente ao caso sub judice, com o regime das cláusulas contratuais gerais, em nosso modesto entendimento o Venerando Tribunal recorrido errou na subsunção da previsão do artigo 19.°, al c) do Decreto-lei n.° 446/85, de 25 de Outubro, ao caso sub judice, que o levariam a ter declarado nula a referida cláusula penal.

20. Sendo que, ainda que assim não se entendesse, sem conceder, o Venerando Tribunal recorrido sempre deveria ter procedido à sua redução nos termos da norma prevista no artigo 812.° do Código Civil, atento igualmente o excesso da cláusula penal em relação aos danos efetivamente causados.

21. Redução essa que sempre se imporia, no mínimo, na ordem dos 75%, reduzindo-se assim a condenação da Recorrente a 25%, atento o facto de, através da dita cláusula penal, a Recorrente ficar obrigada a cumprir o contrato a 100% e a Recorrida ficar apenas obrigada a cumprir o contrato em 20% das prestações que lhe incumbiam.

22.Termos em que se conclui que o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa procedeu a uma incorreta interpretação, aplicação e, portanto, violação das normas previstas nos artigos 12.° e 19.°, al c) do Decreto-lei n.° 446/85, de 25 de Outubro e 812 ° do Código Civil.

23. Interpretação, aplicação e violação essas que, em boa verdade, ofenderam de forma grave o princípio da proporcionalidade, constitucionalmente consagrado, previsto no artigo 18.° da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que, para todos os efeitos, desde já se invoca.

Conclui, assim, que deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se o Douto Acórdão Recorrido e confirmando-se a Douta Sentença Recorrida proferida em t.8 Instância, julgando-se os presentes autos totalmente improcedentes.

2.3. A recorrida contra-alegou, concluindo que deve a presente revista ser julgada totalmente improcedente.

2.4. A única questão que importa apreciar no presente recurso consiste em saber se estamos perante uma cláusula penal nula, nos termos dos arts.12º e 19º, al.c), do DL nº446/85, de 25/10, ou perante uma cláusula penal redutível, nos termos do art.812º, nº1, do C.Civil.

Não se discute, no caso, a natureza da cláusula em causa, tendo a mesma sido considerada pelas instâncias como cláusula penal e como cláusula contratual geral.

Assim como também não se discute a natureza jurídica do contrato em questão, sendo que, a nosso ver, estamos perante um contrato de concessão (como antecedente mais próximo deste contrato, costuma citar-se, precisamente, entre outros, o contrato de fornecimento de cerveja na Alemanha).

Mas recordemos, antes do mais, o teor da aludida cláusula, com o nº4.5:

“Se no termo do prazo referido na cláusula terceira o REVENDEDOR não tiver efectuado o volume de compras aí estabelecido, a CENTRAL DE CERVEJAS poderá exigir uma indemnização, pelo incumprimento, que por acordo, se estipula ser igual ao valor das bebidas não adquiridas, considerando-se, para o efeito, o P.V.R. praticado pela CENTRAL DE CERVEJAS à data do incumprimento para a cerveja Sagres de barril”.

Face a tal cláusula, na sentença da 1ª instância desenvolveu-se a seguinte argumentação:

«No caso que temos em mãos, a cláusula penal que a A vem aqui accionar, no montante de €131.721,48, confere-lhe o direito a obter da R o pagamento não só dos proventos que auferiria com o fornecimento da litragem de cerveja em falta mas antes o preço total que seria devido caso tivesse lugar o fornecimento do produto; sem que a A incorra nas despesas e custos atinentes a tais fornecimentos. Ou seja, tudo se passa como se a A, desonerada que está da realização da sua prestação de fornecimento, pudesse obter da R o pagamento da totalidade do preço da litragem prevista, sem ocorrer o seu fornecimento. Tal cláusula, analisada no âmbito dos negócios atinentes ao fornecimento de bebidas para revenda ao público em estabelecimento comercial, cria um desequilíbrio nas prestações contratuais, por comparação com o regime geral, sendo ficcionado para a A. um prejuízo fora do comum, o que não tem justificação e se apresenta como contrário ao princípio da boa-fé.

O que não resulta afastado pela circunstância de a A ter prestado à R incentivo comercial no valor de €44.891,81 no início da parceria comercial. Mediante a realização dele, a A obteve, durante 8 anos, a exclusividade de fornecimento dos seus produtos no ponto de venda da R, onde publicitou e divulgou a sua marca, permitindo-lhe marcar presença no mercado.

Ferida que está de nulidade a cláusula penal em apreço, não assiste à A o direito à pretendida indemnização».

Por seu turno, o acórdão recorrido contra-argumentou nos seguintes termos:

« (…) mais temos a considerar que nos termos da cláusula 1.1 “A Central de Cervejas obriga-se a vender através dos seus Distribuidores e o Revendedor obriga-se a comprar ao Distribuidor Comercialcer, Lda., salvo se outro lhe for indicado por aquela, para revenda ao público e consumo no Estabelecimento, Produtos constantes do Anexo I, nas quantidades e prazos previstos na cláusula terceira.”.

Sendo que, por outro lado, se dispõe na cláusula 2.:

“A título de contrapartida pela celebração do presente contrato, a Central de Cervejas presta apoio à actividade de comercialização do Revendedor mediante a entrega a este de um incentivo pecuniário de Euros 44.891,81 (…) acrescidos de IVA à taxa de 17%, de que este dá recibo;

- Apoio anual às festas de S. João do Porto, com patrocínio da SCC em produto e apoio logístico;

- Organização de uma festa anual, com patrocínio da SCC em produto;

- Colocação de 3 postes no ponto de venda pela SCC, para colocação de publicidade;”.

Tendo-se consignado, na aludida cláusula 3, que “O presente contrato vigorará até que o Revendedor compre 125.000 litros de produtos constantes do Anexo I ou pelo prazo de 5 anos a contar da data da sua assinatura, consoante o que primeiro ocorrer, salvo se as partes acordarem por escrito na sua prorrogação.”.

Resultando assim incontornável que o incentivo pecuniário – a que acresceu o IVA, in casu, no montante global, de € 7.631,60 – é função da litragem que o Revendedor se obriga a comprar a SCC, no prazo máximo acordado.

Representando, na ponderação do preço de venda a retalho da cerveja de barril, à data do termo do contrato – e sem contabilizar o montante correspondente ao IVA – cerca de 27,3% do valor da litragem total acordada.

Da qual a Ré apenas comprou à A., no período acordado, cerca de 20.1%...

É certo que, por via de tal contrato, lograva a A. a venda e publicitação em exclusivo dos seus produtos – constantes do Anexo II – no estabelecimento do Revendedor.

O que representa um ganho em termos de afirmação no mercado respetivo…sobretudo quando o Revendedor corresponda às litragens acordadas…

Sem que, em qualquer caso, tal exclusivo e publicidade obnubilem ou subalternizem a manifesta relação entre o montante do incentivo pecuniário concedido e o volume total da litragem acordada.

Sendo mesmo de presumir – de acordo com o senso comum – que a “recuperação” de incentivo financeiro de tal montante – concedido necessariamente na perspetiva de negócio lucrativo – e ainda que ponderados efeitos publicitários decorrentes da contratualização, apenas se lograria quando, no prazo máximo estabelecido no contrato, se alcançasse, pelo menos, o volume de “litragem” estipulado.

De resto, recorda-se, outros incentivos/contrapartidas, não pecuniárias foram consignados na cláusula 2.

As quais – refere-se apenas marginalmente – “a A. efectivamente entregou à sociedade R.”, como provado está.

Por outro lado, e finalmente, que da cláusula penal em consideração decorra que relativamente à litragem não atingida, a A. possa obter da R. o pagamento, sem ocorrer o correspondente fornecimento, é argumento que não impressiona.

A cláusula penal – e na linha do já referido supra em 3 – não tem que corresponder ao montante do dano efetivo, do mesmo modo que – à parte as situações de “manifesto excesso” contempladas no artigo 812º do Código Civil – não tem que ser reduzida até ao montante exato daquele dano.

“E isto porque, sendo ela estipulada a título de liquidação antecipada do dano, aquela solução apresentar-se-ia contrária à sua índole de indemnização forfetaire, ne varietur; sendo acordada a fim de pressionar o devedor, a referida solução impediria que esta finalidade actuasse.”.

Tal sorte de cláusula extravasa, enquanto estímulo do devedor ao cumprimento “do prosaico pensamento de reparação ou retribuição que anima o instituto da responsabilidade civil, para se aproximar da zona cominatória, repressiva ou punitiva, onde pontifica o direito criminal.”.[1]

Por isso o desproporcionado da cláusula penal, não se assimila, reitera-se, à mera eventual superioridade do montante das arras relativamente ao dos prejuízos a ressarcir.

Nem se quedando necessariamente, tais prejuízos, pelo montante do concedido “incentivo financeiro”.

Na economia do clausulado, aqueles corresponderão ao valor ainda não recuperado do incentivo monetário, no termo do prazo de vigência do contrato, e ao lucro deixado de realizar relativamente às litragens não compradas pelo Revendedor.

Sendo ainda de considerar que os maiores riscos são suportados pela A./utilizadora, que logo à partida se vê desembolsada do avultado montante do incentivo monetário, cujo retorno poderá resultar absolutamente frustrado, por ato ou omissão do Revendedor.

Não se trata pois, a cláusula 4.5., de cláusula relativamente proibida, nos quadros do artigo 19º, alínea c), da LCCG».

De seguida, o acórdão recorrido apreciou a questão da redução da cláusula penal, concluindo que a mesma não pode ter lugar, com base na seguinte argumentação:

«Reitera a Ré, nas suas contra-alegações, a pretensão no sentido da redução da cláusula penal “sub judice de acordo com a equidade, nos termos do n.º 1 do artigo 812º do Código Civil, tomando por base o valor investido pela Recorrente no estabelecimento da Recorrida (€44.891,81) reduzido na parte proporcional dos fornecimentos realizados, de 55.741,20 litros.”.

Movimentando-nos agora fora do regime das cláusulas contratuais gerais, e nos quadros do artigo 812º do Código Civil, caberá observar que, como assinala João Calvão da Silva,[2] “é claro que o juiz tem o poder de reduzir, mas não de invalidar ou de suprimir, a cláusula penal manifestamente excessiva, e que só tem o poder de reduzir a cláusula manifestamente excessiva e não já a cláusula excessiva. Uma cláusula penal de montante superior (mesmo excessivo) ao dano efectivo não é proibida por lei, não tendo o juiz poder para a reduzir.

(…)

Exige-se, como pressuposto e condição da intervenção judicial, que haja uma desproporção substancial e manifesta, patente e evidente, entre o dano causado e a pena estipulada. O objectivo da intervenção moderadora judicial é proteger o devedor contra efeitos exorbitantes e abusivos da cláusula penal e recolocar esta no seu lugar de legítimo e salutar meio coercitivo sobre o devedor (eliminando-a apenas na parte abusiva e, por isso mesmo, ilegítima), sem lesar o direito do credor (na parte não abusiva) de recorrer à cláusula penal como meio de compelir o devedor ao cumprimento da prestação que lhe é devida.”.

De quanto se considerou já supra relativamente ao caráter não desproporcional da cláusula em questão, para efeitos do disposto no artigo 19º, alínea c), da LCCG, decorre a rejeição da natureza “manifestamente excessiva” da mesma, ainda que por reporte a danos efetivos, que, nos termos decorrentes do que se vem de expor, supra, em II-2-, serão de conceder, perante a factualidade apurada.

Apenas mais se assinalando que dos produtos constantes do Anexo I (cervejas) e até Abril de 2010, a Ré apenas adquiriu 25.211 litros à A.

Correspondendo os 55.741,20 litros, ao adquirido pela Ré à A., com inclusão de águas e refrigerantes, até Abril de 2010.

Extravasando tais produtos os fornecimentos contemplados no contrato dos autos, que apenas a cervejas respeita.

Também por isso nenhum sentido fazendo a consideração, para efeitos de redução da cláusula penal, desse maior volume de litragens».

Segundo a recorrente, a cláusula penal em questão deveria ter sido declarada nula, como o fez a 1ª instância, ou então, assim não se entendendo, deveria ter-se procedido à sua redução em, pelo menos, 75% do seu valor.

Vejamos.

No que respeita à cláusula penal.

Nos termos do disposto no art.810º, nº1, do C.Civil, «As partes podem, porém, fixar por acordo o montante da indemnização exigível: é o que se chama cláusula penal».

Segundo Calvão da Silva, in Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 1997, págs.247 e segs., que seguiremos muito de perto na exposição subsequente, a cláusula penal pode ser definida como a estipulação negocial segundo a qual o devedor, se não cumprir a obrigação ou não cumprir exactamente nos termos devidos, será obrigado, a título de indemnização sancionatória, ao pagamento ao credor de uma quantia pecuniária, embora nada impeça que a prestação possa revestir outras modalidades.

No caso de ter sido estipulada para o não cumprimento, a cláusula penal é compensatória, sendo moratória no caso de ter sido estipulada para o atraso no cumprimento.

Em qualquer caso, a cláusula penal tanto desempenha uma função ressarcidora como coercitiva.

Na verdade, através dela as partes pré-avaliam o dano e liquidam-no de uma maneira invariável e preventiva.

 O que significa que o devedor não está obrigado a ressarcir o dano efectivamente causado ao credor, a não ser que tenha sido pactuada a ressarcibilidade do dano excedente, nos termos do art.811º, nº2, do C.Civil.

Daí que a pena negocial seja devida ainda que o devedor prove não ter resultado nenhum dano para o credor.

Por outro lado, na medida em que o montante da pena seja fixado num montante elevado relativamente ao dano efectivo, a cláusula penal funciona como poderoso meio de pressão de que o credor se serve para constranger indirectamente o devedor a cumprir as suas obrigações.

Aquelas duas funções – ressarcidora e coercitiva – são essenciais à caracterização da cláusula penal, tal como ela é legalmente disciplinada (cfr. os arts.810º a 812º, do C.Civil).

Mas, precisamente, por se tratar de um poderoso meio de pressão é que pode conduzir a abusos e a pretensões exorbitantes, principalmente quando o credor está em posição de força negocial, ditando as condições contratuais, nomeadamente no caso dos contratos de adesão, possibilitando, assim, o desenvolvimento imoderado e excessivo da sua função coercitiva.

Por isso que se veio permitir o controlo judicial da cláusula penal, embora limitado à correcção de abusos.

Assim, nos termos do disposto no art.812º, nº1, do C.Civil, «A cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente; é nula qualquer estipulação em contrário».

Não basta, pois, uma cláusula excessiva, cuja pena seja superior ao dano. Para que o tribunal possa intervir, reduzindo-a, a cláusula deverá ser manifestamente excessiva, isto é, de excesso extraordinário, «enorme», que «salte aos olhos».

No que respeita às cláusulas contratuais gerais.

Como é sabido, no domínio da contratação baseada em condições negociais gerais, ocorre normalmente uma perturbação do equilíbrio negociatório, já que as cláusulas aparecem unilateralmente predispostas para uma série de contratos, sem que a contraparte tenha qualquer possibilidade de influir nos respectivos termos.

O que permite que o utilizador tenha o caminho aberto para fazer valer a sua posição e os seus interesses, sem ter em conta os legítimos interesses do seu parceiro negocial.

Por isso que a ordem jurídica se preocupou em tutelar a contraparte do utilizador, através de uma intervenção fiscalizadora do contrato, pretendendo, desse modo, impedir o abuso de liberdade de conformação do contrato por parte do utilizador.

Ora, foi neste contexto que surgiu, no nosso ordenamento jurídico, a Lei das Cláusulas Contratuais Gerais – DL nº446/85, de 25/10, alterado pelos DLs nºs220/95, de 31/8 e 249/99, de 7/7 (cfr. Almeno de Sá, Cláusulas Contratuais Gerais e Directivas Sobre Cláusulas Abusivas, 2ª ed., págs.208 a 210).

Segundo este último autor, as cláusulas contratuais gerais surgem-nos como estipulações predispostas em vista de uma pluralidade de contratos ou de uma generalidade de pessoas, para serem aceites em bloco, sem negociação individualizada ou possibilidade de alterações singulares, sendo, pois, características essenciais do conceito a pré-formulação, generalidade e imodificabilidade. Ou, pré-elaboração, rigidez e indeterminação, no dizer de Almeida Costa, in Síntese do Regime Jurídico Vigente Das Cláusulas Contratuais Gerais, 2ª ed., pág.19.

Como refere Almeno de Sá, ob. cit., pág.97, a ideia de ausência de negociação individual não é um puro dado acidental, antes é co-constitutivo da essência do fenómeno das cláusulas contratuais gerais (cfr. o art.1º, nº1, do DL nº446/85).

Sendo que, nos termos do nº3, daquele artigo, o ónus da prova de que uma cláusula resultou de negociação prévia entre as partes recai sobre quem pretende prevalecer-se do seu conteúdo, ou seja, sobre o utilizador.

O que significa que, se permanecer a dúvida, após a produção da prova, sobre se as cláusulas constituíram ou não objecto de negociação prévia, o tribunal deverá decidir como se não tivesse existido negociação.

Basta que uma ou mais cláusulas não sejam susceptíveis de negociação para que, em relação a elas, seja admitido invocar a disciplina das cláusulas contratuais gerais.

Como salienta Araújo Barros, in Cláusulas Contratuais Gerais, Coimbra Editora, págs.33-34, do que se trata é de cláusulas e não de contratos.

O citado DL indica uma série de cláusulas que considera proibidas, tutelando o aderente do ponto de vista do controlo do conteúdo das cláusulas incluídas nos negócios singulares.

Assim, começa por autonomizar as disposições comuns por natureza (arts.15º e 16º), depois as relações entre empresários ou entidades equiparados (arts.17º a 19º) e finalmente as relações com os consumidores finais (arts.20º a 23º).

Os princípios gerais dos arts.15ºe 16º centram-se na boa fé, determinando o 1º a proibição das cláusulas contratuais gerais contrárias à boa fé e procedendo o 2º a uma concretização da norma anterior.

No que respeita às relações entre empresários ou entidades equiparadas (art.17º), estabelecem-se, a título exemplificativo, cláusulas absolutamente proibidas (art.18º), que não podem incluir-se, a nenhum pretexto, nos contratos celebrados por adesão, e cláusulas relativamente proibidas (art.19º), que podem ser válidas para certos contratos e não para outros, dependendo de um juízo valorativo suplementar realizado em face das próprias cláusulas, encaradas no seu conjunto e de acordo com os padrões considerados.

No que concerne às relações com os consumidores finais e, genericamente, em todas as não abrangidas pelo art.17º (cfr. o art.20º), consagrou-se uma tutela de maior amplitude. Assim, às proibições já indicadas, acrescentam-se mais algumas, quer absolutamente proibidas (art.21º), quer relativamente proibidas (art.22º).

O caso dos autos.

No caso dos autos, uma vez que estamos no domínio das relações entre empresários, têm aplicação as proibições, designadamente, previstas no art.19º.

Este último artigo, na sua alínea c), estabelece que: «São proibidas, consoante o quadro negocial padronizado, designadamente, as cláusulas contratuais gerais que consagrem cláusulas gerais desproporcionadas aos danos a ressarcir».

Dúvidas não restam que a cláusula nº4.5 do contrato em questão prevê uma verdadeira cláusula penal, tendo a autora formulado o pedido de indemnização por danos, exclusivamente, ao abrigo da referida cláusula.

Por outro lado, estamos perante uma cláusula inserida num contrato individualizado, mas cujo conteúdo, previamente elaborado pela autora, a ré não pôde influenciar.

A implicar a sujeição dessa cláusula à disciplina instituída pelo DL nº446/85, atento o disposto no art.1º, nº2, deste diploma legal.

O que significa que a questão da validade ou não de tal cláusula terá que ser analisada à luz da problemática especial dos contratos de adesão e não como o seria se integrada num contrato avulso entre dois particulares, concluído após negociação.

Como refere Sousa Ribeiro, in Responsabilidade e Garantia em Cláusulas Contratuais Gerais, págs. 7 e segs., que seguiremos muito de perto, sendo a boa fé um princípio fundante de todas as proibições, quer absolutas, quer relativas, fornece também, simultaneamente, neste último caso, o critério de apreciação da conduta do predisponente, ajudando a traçar a linha de fronteira, aqui muito fluida, entre exercício legítimo e exercício abusivo da liberdade contratual.

A fórmula «quadro negocial padronizado», que se encontra no corpo do art.19º, sintetiza o conjunto de elementos que importa ter em conta para a formulação do juízo de validade, inferindo-se daí que não deve relevar a fisionomia concreto-individual do caso e o seu contexto singularizado, mas sim as suas características típicas, ou seja, o seu figurino padronizado.

Segundo António Pinto Monteiro, in Cláusula Penal e Indemnização, págs.593 e 594 (nota 1409), «Esta fórmula, utilizada pelo legislador sempre que enumera cláusulas relativamente proibidas, ou seja, mediante valoração prévia das mesmas (…), pretenderá significar, a nosso ver, que o juízo a emitir sobre elas não depende do circunstancialismo concreto que as rodeia, antes da sua compatibilidade e adequação ao ramo ou sector de actividade negocial a que pertencem as cláusulas contratuais gerais. Quer dizer, trata-se de preservar um critério ou padrão de referência a ter em conta pelo juiz, o qual é de índole objectiva, prescinde das especificidades do caso concreto».

Segundo Almeida Costa e Menezes Cordeiro, in Cláusulas Contratuais Gerais, pág.46, «o juízo valorativo não se realiza tomando como referência os vários contratos uti singuli, mas a partir das cláusulas – em si próprias e encaradas no respectivo conjunto – para eles abstractamente predispostas. É esse o sentido da referência ao «quadro negocial padronizado» que se encontra no corpo do artigo. Exclui-se uma pura justiça do caso concreto, próxima da equidade e geradora de insegurança, mantendo o teor objectivo e controlável da proibição».

Deste modo, os interesses a contrapor não são os interesses particulares das partes concretamente actuantes, mas os interesses típicos do círculo de contraentes que habitualmente participam naquela espécie de negócio.

Para o efeito, haverá que ter em consideração vários factores, designadamente o tipo de contrato, a que cabe um peso decisivo, a natureza do bem a prestar, a situação do mercado na área em que o negócio se integra, a qualidade de comerciante ou de consumidor, quanto às proibições relativas de aplicação geral (art.19º).

No que respeita à cláusula penal a que alude a al.c), do art.19º, é incontroversa a sua utilidade, quer para o predisponente, quer para o aderente.

No entanto, a mesma também comporta consideráveis riscos para este, já que aquele é facilmente tentado a exigir, a título de pena convencional, uma prestação de valor arbitrariamente excessivo, sem qualquer relação com o dever violado e as suas consequências danosas.

Ora, o objectivo da al.c), do art.19º, é, precisamente, o de restringir a liberdade de conformação do predisponente, estabelecendo um limite de conteúdo para as cláusulas penais, que tem como critério a relação entre a pena e o montante dos danos a reparar.

No cômputo destes danos deverão seguir-se critérios objectivos, numa avaliação prospectiva guiada por cálculos de probabilidade e por valores médios e usuais, tendo em conta os factores que, em casos do mesmo género, habitualmente relevam na produção e na medida dos prejuízos (cfr. Sousa Ribeiro, ob. cit., pág.48).

Segundo este autor, ob. cit., págs.50 e 51, nos contratos de fornecimento em massa de bens ou serviços, esses danos corresponderão, grosso modo, aos lucros cessantes, aos ganhos médios que o predisponente normalmente obtém com aquele tipo de transacções, cifrados numa certa percentagem do preço do objecto da prestação. É o valor assim obtido que, constituindo um limite do conteúdo da cláusula, deverá ser com ele cotejado, para nos permitir ajuizar da sua validade.

Por conseguinte, o valor a ter em conta é o dos danos que provavelmente, em face das circunstâncias típicas e segundo o normal desenrolar das coisas, o predisponente venha a sofrer, subentendendo-se aqui uma certa margem de variação contida dentro dos limites do previsível.

Sendo que, só é de afirmar a desproporção quando a pena atinge um montante que ultrapassa tudo o que ainda corresponde, minimamente, a um cálculo baseado em índices de tipicidade e normalidade.

Na fixação da indemnização deverão ser contabilizados os gastos que o predisponente poupou. De outro modo, como salienta Sousa Ribeiro, ob. cit., pág.55, o utilizador da cláusula poderia ficar, injustificadamente, em melhor situação do que a que se verificaria se o contrato fosse integralmente cumprido, e o aderente, por sua vez, veria o exercício da faculdade de revogação ou denúncia grandemente dificultado.

Ora, era o que aconteceria no caso dos autos. Na verdade, não se contabilizando os gastos que a autora poupa com o pretendido funcionamento da cláusula penal em causa, ficaria ela, injustificada e manifestamente, em melhor situação do que a que teria se o contrato fosse integralmente cumprido.

É certo que, tratando-se de uma cláusula penal, não será de admirar que a autora possa ficar em melhor situação, atenta a função coercitiva daquela cláusula.

Mas não pode deixar de se considerar que estamos perante uma desproporção sensível e flagrante entre o montante da pena e o montante dos danos previsíveis a reparar, tendo em conta que os ganhos médios se traduzem numa certa percentagem do preço do objecto da prestação, fazendo com que haja um notório abuso da posição dominante da recorrente exacerbado pelo forte desequilíbrio entre situações idênticas de incumprimento.

Note-se que, segundo António Pinto Monteiro, ob.cit., págs.599 e 600, e segundo Almeida Costa e Menezes Cordeiro, ob.cit., pág.47, o pressuposto da al.c) do art.19º só estará preenchido caso se detecte uma desproporção sensível, não bastando, pois, que a pena se mostre superior ao dano.

No mesmo sentido, Calvão da Silva, ob.cit., págs.191 e 192, quando afirma que a desproporção terá que se traduzir numa excessividade significativa, ainda que não manifesta ou exorbitante, relativamente ao dano real, não podendo, pois, considerar-se proibida toda e qualquer cláusula penal superior ao dano, ainda que ligeiramente, em nome da dupla função que a caracteriza (coercitiva e indemnizatória).

Tendo sérias dúvidas em subscrever esta opinião, pode ver-se Sousa Ribeiro, ob. e loc. cits..

Seja como for, não se nos afigura que, no caso dos autos, a sanção concretamente cominada seja representativa, ainda que aproximadamente, do prejuízo normal ou típico que advém da prestação a cargo da autora, tal qual esta se mostra equacionada no quadro contratual, antes apontando claramente no sentido de uma desproporcionalidade manifesta.

Na verdade, como já resulta do atrás exposto, os prejuízos a considerar não são os efectivamente suportados, no caso concreto, pelo contraente singular, mas sim os que normal e tipicamente resultam da insatisfação do credor, dentro do «quadro negocial padronizado».

Daí que haja que ter uma visão desligada do circunstancialismo específico do contrato sub judice e das resultantes concretas da sua inexecução.

Razão pela qual, a nosso ver, não tenha que se entrar em consideração com argumentos retirados da circunstância de, no caso dos autos, ter sido estipulado um incentivo pecuniário e outros apoios à actividade de comercialização do revendedor (cfr. a cláusula 2ª), de se ter fixado uma determinada litragem que o revendedor se obrigou a comprar em certo prazo (cfr. a cláusula 3ª) e de este, efectivamente, apenas ter comprado uma parte, incumprindo o acordado.

Refira-se, a este propósito, que o ponto P dos factos provados na 1ª instância foi suprimido pelo acórdão recorrido, o qual apenas considerou cláusula contratual geral a cláusula 4.5 do contrato celebrado entre a autora e a ré.

Perante cláusula semelhante, o Acórdão do STJ, de 10/10/13, in www.dgsi.pt, considerou-a manifestamente abusiva, na parte em que refere que a indemnização, pelo incumprimento, seja igual ao valor de bebidas não adquiridas, na medida em que se é certo que a autora não auferiu o lucro dessas vendas, não é menos certo que não suportou as despesas que ressaltariam desse fornecimento.

No sentido da nulidade de cláusulas que prevejam sanções cujo funcionamento proporcione ao predisponente maior proveito que o do cumprimento do contrato, podem ver-se, entre outros, os Acórdãos do STJ, de 5/5/16, C.J., Ano XXIV, tomo II, 57, de 31/5/01, in www.dgsi.pt, e de 5/7/94, C.J., Ano II, tomo II, 170, e, ainda, os Acórdãos da Relação de Lisboa, de 1/3/12, da Relação de Coimbra, de 28/10/14, e da Relação de Guimarães, de 11/9/12, disponíveis in www.dgsi.pt).

No citado Acórdão do STJ, de 5/7/94, não deixa de se salientar que a nulidade da cláusula não fecha as portas às possibilidades da recorrente se ressarcir de quaisquer prejuízos que, porventura, subsistam em consequência do inadimplemento por parte da recorrida.

Haverá, deste modo, que concluir que a cláusula nº4.5 do contrato em causa é uma cláusula relativamente proibida, nos termos do art.19º, al.c), do DL nº446/85, de 25/10, e, como tal, nula (art.12º, do mesmo DL).

Consequentemente, baseando-se o pedido da autora, exclusivamente, na validade de tal cláusula, o mesmo não podia deixar de ser, como foi, julgado improcedente na 1ª instância, não podendo, pois, manter-se o acórdão recorrido, que revogou a sentença apelada.

Não há, assim, lugar a redução equitativa da referida cláusula penal, uma vez que, em princípio, tal só será possível em relação à pena manifestamente excessiva inserida em cláusula negociada, nos termos do disposto no art.812º, nº1, do C.Civil (cfr. António Pinto Monteiro, ob.cit., pág.599, nota 1419, e Almeida Costa e Menezes Cordeiro, ob.cit., pág.47).

Segundo Calvão da Silva, in Banca, Bolsa e Seguros, Tomo I, 2012, 3ª ed., pág.191, ao considerar proibida (e nula) a cláusula contratual geral que consagre cláusula penal desproporcionada ao dano a ressarcir, a lei dos contratos de adesão afasta-se do regime comum, o qual só permite a redução equitativa da cláusula penal manifestamente excessiva. Isto é, as cláusulas penais desproporcionadas aos danos a ressarcir são nulas e não meramente redutíveis.

Caso se considerasse que a referida cláusula não era, em abstracto, desproporcionada e que, por isso, era válida, então é que poderia colocar-se a questão da sua redução, se, em concreto, se revelasse excessiva (neste sentido, pode ver-se António Pinto Monteiro, in «A pena e o dano», Estudos em homenagem ao Prof. Miguel Galvão Telles, vol.2º, Outubro/2012, págs.659 e segs.).

Haverá, pois, que concluir que estamos perante uma cláusula geral nula, nos termos dos arts.12º e 19º, al.c), do DL nº446/85, de 25/10.

3 – Decisão.

Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso de revista e revoga-se o acórdão recorrido, subsistindo a decisão da 1ª instância.

Custas pela autora, ora recorrida, a suportar integralmente no STJ e na Relação, mantendo-se igualmente inalterado o decidido na sentença quanto a custas.