Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2568/13.2T2AVR.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: CLÁUSULA PENAL
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
CONCURSO PÚBLICO
INVALIDADE
MUNICÍPIO
BEM IMÓVEL
AUTONOMIA PRIVADA
LIBERDADE CONTRATUAL
INDEMNIZAÇÃO
NULIDADE DO CONTRATO
CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 09/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação:  RLJ, ANO 152, Nº 4037 (NOV.-DEZ. 2022), P.140-150. ANOT. ANTÓNIO PINTO MONTEIRO
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS.
DIREITO ADMINISTRATIVO - CONTRATAÇÃO PÚBLICA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / ADMISSIBILIDADE DO RECURSO.
Doutrina:
- ANTÓNIO PINTO MONTEIRO, Cláusula Penal e Indemnização, Almedina, 1990, 93, 95-96, 98.
- PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, “Código Civil” Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, 4.ª Edição, 1997, nota 4, 74.
- VAZ SERRA, «Pena Convencional», BMJ n.º 67, 1975, 187 e 191-192.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 405.º, 810.º, N.º 2.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 621.º, 671.º, N.º 3.
D.L 235/86, DE 18-8, HOJE SUBSTITUÍDO PELO D.L N.º 405/93, DE 10-12: - ARTIGOS 49.º, 50.º, 59.º E SS..
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 16/06/2016, PROCESSO N.º 551/13.7TVPRT.P1.S1, DE 28/05/2015, PROCESSO N.º 1340/08.6TBFIG.C1.S1, AMBOS EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
1. No âmbito de um contrato de compra e venda de imóvel celebrado entre um particular, na qualidade de comprador, e um município, como vendedor, precedido de concurso público, em que foi estipulado que o vendedor assume a obrigação de indemnizar o comprador, pelo valor do dobro do preço pago, em caso de ocorrência de facto, emergente do processo deliberativo do município ou outro de exclusiva responsabilidade deste, que seja determinativo da invalidade do contrato, tal estipulação reveste a natureza de uma cláusula penal indemnizatória independente da validade das obrigações típicas desse contrato.

2. Essa cláusula é admissível dentro da esfera do princípio de liberdade contratual proclamada no artigo 405.º do CC, contemplando uma espécie de responsabilidade pré-contratual, inerente à fase negocial preliminar, neste caso, sujeita às regras administrativas do prévio e necessário processo deliberativo do R. para a celebração do contrato em vista.

3. Tendo o referido contrato sido declarado judicialmente nulo na decorrência da anulação, em sede do contencioso administrativo, do ato deliberativo do município que precedeu aquele contrato, com fundamento na violação das formalidades do concurso, a pretensão indemnizatória, por parte do comprador, depende da alegação e prova de factos demonstrativos de que o vício fundante da nulidade é da exclusiva responsabilidade do município.

4. Provado que a preterição das formalidades do concurso, por parte do município, tiveram a sua génese numa proposta apresentada pelo particular concorrente manifestamente fora do quadro das condições iniciais anunciadas pelo município, e mesmo assim por este aceite, não é lícito, sem mais, concluir pela exclusiva responsabilidade do município vendedor, para efeitos de aplicação da cláusula penal em referência.

5. Para tais efeitos, recaía sobre o comprador o ónus de alegar e provar um factualismo que, a ter ocorrido, retratasse as circunstâncias concretas propiciadas pelo município vendedor que teriam levado aquele a apresentar uma proposta tão manifestamente desfasada do quadro de condições previamente anunciado.

6. Não tendo o comprador alegado, oportunamente em sede da causa de pedir, um tal factualismo, optando antes por uma estratégia processual diversa mas sem sucesso, a ação sucumbirá por manifesta improcedência.

Decisão Texto Integral:

     

Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

I – Relatório

1. AA (A.) intentou, em 09/12/2013, ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra o Município de BB (R.), alegando, no essencial, que:  

1.1. Na sequência de deliberação da Câmara Municipal de BB de 25/10/1991, precedida de autorização da assembleia municipal e de concurso, o A. e o R. Município de BB celebraram, em 05/11/1991, um contrato-promessa de compra e venda, nos termos do qual este Município prometeu vender ao A., pelo preço global de € 300.000.000$00 (equivalente a € 1.496.394,69), um terreno com a área de 10 ha onde se encontra instalado o Parque de Campismo da ... e uma faixa de terreno adjacente àquele com a área de 15 ha, ambos a desanexar do artigo rústico n.º 3.530 da freguesia de ...;

1.2. Nesse contrato foi clausulado que:

a) – o A. pagaria ao R. a quantia de 150.000.000$00 (equivalente a € 748.186,85) como princípio de pagamento e 1.ª prestação do preço, do que foi dada quitação, sendo o restante pago no ato de outorga da escritura;

b) – o R. investia, desde logo, o A. na posse plena do Parque de Campismo; 

1.3. Após deliberação camarária de 17/12/1993, foi outorgada a escritura pública reproduzida a fls. 22-27, em 22/12/1993, nos termos da qual o R. declarou vender ao A. pelo preço de 250.000.000$00 (equivalente a € 1.246.994,74), do que foi dada quitação, o referido Parque de Campismo de ... com a área de 10ha, inscrito sob o n.º 1.839 da matriz predial urbana da freguesia de ..., fazendo parte do descrito sob o n.º 757 na respetiva Conservatória do Registo Predial;

1.4. Ficou também ali estipulado que os restantes 15 ha de terreno adjacente seriam objeto de escritura autónoma;

1.5. Nessa escritura foi clausulado que:

a) - o R. indemnizaria o A. em valor correspondente ao dobro do preço por este pago no caso de ocorrer qualquer facto de terceiro, decisão judicial ou ato administrativo com eficácia executória externa que afetasse ou perturbasse de forma irremovível e definitiva a plena e desonerada propriedade do A. em relação ao Parque de Campismo objeto daquela escritura;

b) – o R. indemnizaria o A. em igual montante, se ocorresse, por facto emergente do seu processo deliberativo ou outro de sua exclusiva responsabilidade, qualquer situação que determinasse a invalidade da presente venda.

1.6. Assim, a indicada escritura contempla dois negócios em estádios diferentes, conforme o inicialmente previsto no contrato-promessa: uma compra e venda do Parque de Campismo; uma promessa de venda da faixa de terreno adjacente de 15ha;

1.7. Para cada uma delas foi prevista, autonomamente, uma cláusula penal do mesmo montante, de quinhentos milhões de escudos (equivalente a € 2.493.989,48);

1.8. A compra e venda do Parque de Campismo constante da sobredita escritura foi declarada nula por decisão do Tribunal Judicial de … proferida na processo n.º 376/99, confirmada pela Relação de …, na decorrência da anulação da deliberação camarária de 25/10/91 por decisão do TAC de … de 02/02/95, confirmada por acórdão do STA de 23/06/94; 

1.9. Em 15/02/1995, a Câmara Municipal de BB deliberou:

a) - anular a escritura de compra e venda do Parque de Campismo em referência em decorrência das mencionadas decisões do STA e do TAC;

b) - considerar igualmente nulo o contrato-promessa de compra e venda do Parque das Merendas;

c) – continuar a posse e exploração do Parque, a título precário, até à nova adjudicação do mesmo na sequência do próximo concurso público ou limitado a abrir no prazo de 3 meses; 

1.10. Subsequentemente, deliberou aquela Câmara, em 10/03/1997, não prosseguir tal concurso, não autorizando a adjudicação do Parque de Campismo da ...;

1.11. Todavia, em conformidade com o acórdão do STA n.º 048084, de 14/02/2002, ao R. seria lícito seguir uma de três vias: efetuar novo concurso público com respeito pelas condições impostas pelo STA; efetuar a venda sem qualquer concurso; não fazer a adjudicação do Parque a qualquer concorrente, sob a invocação do interesse público;

1.12. Podendo, pois, o R. adjudicar ao A. o Parque de Campismo e ainda concretizar a venda dos 15 hectares de terreno adjacente, sem passar pelo concurso, mesmo após a declaração de nulidade do contrato de compra e venda em referência, não o fez, deliberando antes, em 23/02/2007, adjudicá-lo à CC, pelo preço de € 2.000.000,00, em meados de janeiro de 2009;

1.13. Com tal procedimento, e após sucessivas interpelações do A., o R. incorreu em incumprimento definitivo do contrato-promessa celebrado em 05/11/1991 e referido em 1.1;                    

1.14. Consequentemente deve indemnizar o A. nos termos das cláusulas mencionadas em 1.6.

Concluiu o A. a pedir que o R. fosse condenado a pagar-lhe a quantia de € 2.493.989,48, a título de cláusula penal referente à anulação da venda do Parque de Campismo, e igual montante referente à promessa de venda da faixa de terreno adjacente de 15ha.  

2. O R. contestou, sustentando, no essencial, que:

2.1. As cláusulas penais estipuladas na escritura de compra e venda outorgada em 22/12/1993 não respeitam ao incumprimento do contrato-promessa celebrado 05/11/1991, circunscrevendo-se ao âmbito daquele contrato de compra e venda do Parque de Campismo, não incluindo, portanto, a promessa de venda da faixa de terreno adjacente de 15ha:

2.2. Tais cláusulas comportam duas variantes: uma, estipulando a indemnização no dobro do preço pago pelo A. na compra do Parque de Campismo, decorrente de facto de terceiro, decisão judicial ou ato administrativo; outra, estabelecendo o mesmo montante indemnizatório para a ocorrência de facto emergente do processo deliberativo ou outro da exclusiva responsabilidade do R., determinativos da invalidade dessa venda;

2.3. Porém, invalidados que foram judicialmente os negócios celebrados com o A., ficou o R. desobrigado de vender-lhe quer o Parque de Campismo quer a faixa de terreno adjacente, sendo também nula a própria cláusula penal, nos termos do artigo 810.º, n.º 2, do CC.

Concluiu o R. assim pela improcedência da ação.          

3. Findos os articulados, foi proferido saneador-sentença, em 29/12/ 2015 (fls. 329-337, em que se concluiu pela nulidade da cláusula penal em causa, julgando-se a ação improcedente com a consequente absolvição do R. do pedido.

4. Inconformado, o A. recorreu para o Tribunal da Relação do … que, conforme acórdão proferido a fls. 394-405, datado de 14/03/2017, aprovado por unanimidade, julgou improcedente a apelação e confirmou a sentença recorrida, ainda que por razões diferentes, considerando que, não obstante a validade da cláusula em apreço, de que emerge uma obrigação autónoma condicional, não foram invocados os pressupostos necessários, entre os quais que a invalidade a que a mesma se refere seja da exclusiva responsabilidade da R. e a ela imputável.

5. De novo inconformado, vem o A. pedir revista, sustentando a sua admissibilidade em função da fundamentação essencialmente diferente, e formulando as seguintes conclusões:

1.ª - O presente recurso de revista é admissível como revista-regra, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 671.º do CPC, “a contrario sensu”;

2.ª - Isto porque, não se verifica no caso a existência de dupla conforme, pois que apesar de o resultado prático da decisão da Relação em crise ser coincidente com o da primeira instância, a verdade é que a fundamentação aplicada em ambas as decisões é totalmente distinta;

3.ª - Disso nos dá conta o teor do próprio acórdão do Tribunal da Relação, pois termina do seguinte modo: “na improcedência das alegações do recurso, por razões diferentes, confirma-se a sentença recorrida.”

4.ª - Na verdade, com a alteração introduzida pela Lei n.º 41/ 2013, passou a ser admissível recurso de revista nos casos em que, ocorra idêntico resultado em ambas as decisões, sem voto de vencido, mas com fundamentação essencialmente diferente - n.º 3 do art.º 671.º do CPC;

5.ª - Assim, é entendimento sufragado pelo próprio STJ que, desde que o ter jurídico percorrido para alcançar determinada solução seja divergente, não se verifica o instituto da dupla conforme, o qual impede o recurso de revista ordinária;

6.ª - No caso dos autos, a fundamentação é clara e inequivocamente diversa, na medida em que, cm sede de sentença, a cláusula que determina a indemnização ao autor/recorrente pelo dobro do preço por este pago pela compra do parque de campismo, é entendida como cláusula penal, e em sede recursiva, afirma-se com toda a clareza que não se trata de uma cláusula penal;

7.ª - Trata-se antes de uma cláusula incluída na dinâmica do contrato, constituindo uma obrigação autónoma condicional subordinada aos efeitos de um evento futuro e incerto - cfr. artigo 275.º do CC, celebrada no âmbito do princípio da liberdade contratual, nos termos do artigo 405.º do CC e no quadro do princípio da boa  fé que rege os contratos - cfr art.º 227.º e 762.º do CC.”

8.ª - A qualificação jurídica da cláusula em causa é essencial para determinar o direito do A./recorrente a ser indemnizado pelo negócio, apesar da nulidade declarada da venda.

9.ª - Ora, estamos perante uma cláusula penal indemnizatória, a qual escapa excecionalmente ao regime da dependência a acessoriedade das cláusulas penais em relação à obrigação principal;

10.ª - Ou seja, estamos perante uma cláusula penal nos termos do n.º 1 do art.º 810.º do CC, à qual não é aplicável o n.º 2 do mesmo artigo.

11.ª - Isto porque de trata de uma situação em que as partes prefixaram uma indemnização, tendo em vista a invalidade do negócio, que viria a verificar-se;

12.ª - Assim defende António Pinto Monteiro, na sua tese "Cláusula Penal e Indemnização", em nota supra citada;

13.ª - Por outro lado, o acórdão do Tribunal da Relação em crise, aponta para uma solução jurídica distinta desta aventada pelo A./recorrente;

14.ª - De acordo com a fundamentação nele vertida, estamos “in casu”, não perante uma cláusula penal, a qual entende estar sujeita à mesma nulidade invocada e verificada para o negócio jurídico da compra e venda, mas perante uma cláusula condicional resolutiva, a qual segue o regime aposto nos artigos 270.º e seguintes do CC;

15.ª - Tal cláusula mantém a sua eficácia independentemente do fim dado ao contrato. Só assim se justifica uma interpretação conforme com as regras da teoria da impressão do destinatário, com correspondência na letra do clausulado respetivo - artigos 236.º e 238.º do CC;

16.ª - Assim sendo, quer num caso quer noutro, estamos sempre e incontestavelmente perante um valor previamente fixado pelas partes, dentro dos ditames da boa-fé, ao qual o A./recorrente tem direito diretamente resultante da invalidade do próprio negócio e nesse mesmo pressuposto que veio a verificar-se;

17.ª - Foi precisamente por via da previsão dessa cláusula indemnizatória que o recorrente aceitou outorgar o contrato de compra e venda em causa, pois na realidade à data do mesmo existia já litígio entre o R. Município e a CC, a quem viria depois, em violação dos ditames da boa-fé, a vender o Parque, objeto do contrato;

18.ª - Ora, não admitindo a existência de cláusula penal cuja eficácia perdura além da ineficácia da compra e venda (obrigação principal), como exceção ao disposto no n.º 2 do art.º 810.º do CC, a decisão da Relação, violou frontalmente o disposto nos artigos 810.º, 236.º e 238.º, todos do CC, devendo por isso, em consequência, ser o mesmo revogado e substituído por outro que julgue o recurso procedente, reconhecendo ao A./recorrente o direito a uma indemnização pelo dobro do valor por ele pago na compra do Parque de Campismo, o que se afigura como correspondendo à vontade das partes e conforme com os ditames da boa-fé e da mais elementar.

6. O R. apresentou contra-alegações, em que:

a) - Começa por suscitar a questão prévia da inadmissibilidade da revista, por considerar verificada uma situação de dupla conforme;

b) - Quanto ao mérito, sustenta a tese da nulidade da cláusula penal em apreço, nos termos do artigo 810.º, n.º 2, do CC, e, nessa base, a improcedência da ação;

c) - Subsidiariamente, pede que, a proceder a revista, se reduza aquela cláusula de acordo com os princípios da proporcionalidade e da equidade, considerando, em especial, que o valor pago pelo A. foi-lhe integralmente devolvido e que o mesmo explorou o Parque de Campismo durante 10 anos a título gratuito. 

7. A revista foi admitida pela Exm.ª Relatora da Relação com base na verificação de fundamentação essencialmente diferente, conforme despacho exarado a fls. 459.  

 

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                                   

II – Quanto à questão prévia da admissibilidade da revista

O R./Recorrido, ao invés do sustentado pelo A./Recorrente quanto à admissibilidade da revista, no sentido da verificação de fundamentação essencialmente diferente, contrapõe, em síntese, as seguintes razões:

i) - quer a fundamentação da decisão da 1.ª instância quer a do acórdão recorrido coincidiram na caracterização de uma e não de duas cláusulas penais, como defendia o A;                          

ii) – também coincidiram as instâncias ao considerar que a cláusula penal não possui autonomia em relação ao contrato em que é inserida, pelo que a nulidade deste importa, por consequência, a nulidade daquela;

iii) – sobre essas duas “questões” ocorre assim dupla conforme;

iv) – a divergência de fundamentação circunscreve-se à qualificação da cláusula em apreço como cláusula penal, por parte da 1.ª instância, ou como cláusula autónoma condicional, por banda da Relação;   

v) – porém, o A./Recorrente apenas pretende que se reconheça que uma cláusula penal subsiste à nulidade do contrato onde está inserida, questão esta que foi abordada na mesma linha de entendimento por ambas as instâncias.

Prescreve o n.º 3 do artigo 671.º do CPC que:

Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.

Sobre o alcance da locução fundamentação essencialmente diferente tem vindo a ser entendimento constante do STJ não bastar que a decisão da 1.ª instância e o acórdão da Relação confirmativo daquela, sem vencimento, apresentem fundamentação diferente, exigindo-se que tal diferença se revele essencial.

Para esse efeito, no acórdão do STJ, de 16/06/2016, proferido no processo n.º 551/13.7TVPRT.P1.S1[1], foi entendido que não se verifica tal obstáculo se o efeito do caso julgado material formado é relevantemente diverso.

E, segundo o acórdão deste mesmo Tribunal, de 28/05/2015, proferido no processo n.º 1340/08.6TBFIG.C1.S1[2]:

«Só pode considerar-se existente – no âmbito da apreciação da figura da dupla conforme no NCPC (2013 – uma fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1.ª instância.»

Nesta linha de entendimento, não se mostra lícito aferir a “dupla conforme” apenas em função da cindibilidade deste ou daquele fundamento parcelar, tanto mais que a delimitação de um segmento decisório requer a sua conexação com a respetiva fundamentação, ficando, nessa medida, alcançado pela eficácia do caso julgado, nos termos do artigo 621.º do CPC.

No caso vertente, a apreciação feita pelas instâncias no que respeita à unicidade da cláusula em apreço e à definição e regime de uma cláusula penal acessória não constituem questões autónomas no sentido acima indicado, como sustenta o Recorrido, traduzindo-se antes em elementos parcelares, de qualificação e enquadramento jurídico, que se integram no quadro complexo da fundamentação do julgado.

Nesse quadro, a divergência essencial entre a fundamentação da 1.ª instância e a do acórdão recorrido incide sobre a caracterização da cláusula em apreço, respetivamente, como cláusula penal acessória ou como cláusula autónoma estipulativa de responsabilidade civil.

Dessa divergência decorre também a conclusão divergente em considerar aquela cláusula como nula ou como validamente subsistente, o que, não obstante a coincidência do juízo de improcedência da ação, se repercute no alcance do caso julgado material.

Sendo esse o problema fulcral a resolver, não se poderá, ainda assim, deixar de equacionar, na medida do que se mostre necessário, a caracterização de base daquela cláusula em termos da sua individualização estipulativa, como factor integrante daquele problema.      

Em suma, conclui-se pela ocorrência de fundamentação essencialmente diferente, o que, nos termos do artigo 671.º, n.º 3, do CPC, justifica a admissibilidade da revista.

           

III - Delimitação do objeto do recurso        

Como é sabido, o objeto do recurso é definido em função das conclusões formuladas pelo recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do CPC.

Das conclusões do Recorrente resulta que o objeto da revista consiste em ajuizar sobre a validade e eficácia da cláusula estipulativa de indemnização a favor do A., por parte do R., inserida na escritura de compra de venda reproduzida a fls. 22-27, outorgada em 22/12/1993, e mormente saber se, em face dela, assiste ao mesmo A. o direito à indemnização peticionada.  

IV – Fundamentação   

1. Factualidade provada

Conforme o consignado pelas instâncias e o teor dos documentos ali referidos, considera-se assente a seguinte factualidade:

1.1. Precedida da deliberação da Câmara Municipal de 25/10/1991 (e respetiva autorização da assembleia municipal e após concurso), A. e R. celebraram, a 05/11/1991, um contrato-promessa de compra e venda, nos termos do qual o R. se vinculava a alienar ao A., pelo preço de 300.000.000$00 (equivalente a € 1.496.394,69), o Parque de Campismo da ..., com a área de cem mil metros quadrados, a confrontar do norte, sul e nascente com a Câmara Municipal de BB e do poente com Estrada ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o n.º 1.839 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 757, conforme cláusula 1.ª do escrito junto como doc. n.º 1 a fls. 16-20.

1.2. Do estipulado nesse mesmo contrato-promessa constam, conforme doc. de fls. 16-20, as seguintes cláusulas:

«Cláusula 2.ª

O pagamento do acordado preço será efectuado da seguinte forma:

a) - Na data da outorga do presente contrato, o 2.º outorgante paga à 1.ª, como princípio de pagamento e primeira prestação do preço, a quantia de Esc. 150.000.000$00 (cento e cinquenta milhões de escudos), de que esta dá quitação;

b) - O restante do preço será pago no acto da outorga da escritura;

c) – No caso de as partes assim o acordarem, poderá a escritura pública referente ao Parque de Campismo, ser celebrado dentro dos 24 meses subsequentes à assinatura deste contrato, não podendo no entanto exceder tal período, pagando o 2.º outorgante à 1.ª outorgante no acto da referida escritura a quantia de 100.000.000$00 (cem milhões de escudos), contra a integral quitação do preço do Parque de Campismo.

& único – Sendo a escritura celebrada nos termos da alínea c), o remanescente do preço global proposto da cl:ª 1.ª do presente contrato será reportado ao pagamento dos 15 ha do terreno adjacente e liquidado no acto da escritura deste terreno.

Cláusula 3.ª

a) – Após a desafectação da área do terreno de 15 ha e com a salvaguarda do que dispõe o anúncio público de alienação bem como a acta da sessão da Câmara de vinte e sete de Setembro do corrente ano, a 1.ª outorgante obriga-se a promover a aprovação de desenvolvimento da área, designadamente, o seu plano de pormenor de acordo com o estudo de implantação a apresentar até 30 dias da data da escritura, a marcar pela 1.ª outorgante.

b) – Por sua vez, o 2.º outorgante compromete-se a respeitar os usos de utilização do Parque das Merendas e coordenadamente como a 1.ª outorgante estudar os melhores fins de utilização para a referida área, de modo a garantir o bom uso público, sendo as benfeitorias que na mesma se executem, objecto de estudo, análise e implantação, coordenadas e autorizadas caso a caso pela 1.ª outorgante.

c) (…)

Clausula 4.ª

A 1.ª outorgante obriga-se a aceitar e autorizar que, sendo as escrituras do Parque de Campismo e dos 15 ha adjacentes, celebradas num só ou dois instrumentos, o 2.º outorgante ou um terceiro por este indicado neles ou neles outorgue desde que faça comunicação com a antecedência mínima de quinze dias.

Clausula 5.ª

Para além das obrigações anteriormente enunciadas, obriga-se o 2.º outorgante a implantar, ou a quem ele indicar, no terreno dos 15 ha, um empreendimento complementar ao Parque de Campismo, vocacionado para a promoção turística da Zona, comprometendo-se para tanto a:

1 – Elaborar todos os projectos técnicos necessários à urbanização da área definida dos 15 ha, de acordo com o Plano de Pormenor.

2 – Executar as infra-estruturas básicas necessárias ao empreendimento, designadamente redes de distribuição de água, electricidade e respectivas P.T., com rede colectora de esgotos, estação de tratamento de águas residuais, arruamentos internos, equipamentos de lazer e desportivos de utilidade pública.

3 – Não utilizar o terreno para fins diferentes dos ora estabelecidos.

4 – Proporcionar às Associações Mútuas e Instalações de Beneficientes do Concelho a utilização das referidas áreas com benefícios especiais e que constarão de protocolo a elaborar com a Câmara.

5 – Os trabalhos de infra-estruturas referidos poderão ser faseados.

Cláusula 5.ª

A 1.ª outorgante, Câmara Municipal de BB, para além das obrigações já referidas, obriga-se ainda a:

1 – Aprovar todos os projectos apresentados pelo 2.º outorgante, ou a quem este indicar, e autorizar todas as construções e passar as respectivas licenças que sejam da sua competência, que se mostrem conformes com a lei, com vista à efectivação pelo 2.º outorgante do empreendimento nos termos da cl:ª anterior.

2 – Efectuar perante organismos ou entidades públicas competentes todas as diligências necessárias para a consumação do empreendimento referido na cláusula anterior, designadamente promover a sua viabilização e dar o seu apoio técnico.

3 – Negociar por sua conta e riscos exclusivos, e a ela proceder, a reversão da exploração concessionada do Parque de Campismo com a CC, nos precisos termos e prazo fixado no contrato de concessão.

4 - (…) 

5. Investir desde já, o 2.º outorgante na posse plena do Parque de Campismo, com todos os direitos e obrigações de que a 1.ª outorgante é titular, e, salvas as limitações inerentes ao contrato de concessão em vigor.

Cláusula 7.ª

O não cumprimento do presente contrato, por facto imputável a qualquer dos outorgantes, investe o outorgante não faltoso no direito de reclamar judicialmente o cumprimento específico do contrato, que se traduzirá no que toca à 1.ª outorgante, na celebração das escrituras a que se obrigou e, quanto ao 2.º outorgante, no pagamento integral do preço proposto, sem prejuízo de lhe acrescer indemnização pelos danos emergentes e lucros cessantes que se vierem a apurar.    

1.3. A. e R., a 22/12/1993, outorgaram uma escritura pública de compra e venda, conforme documento reproduzido a fls. 22-27, na qual o R. declarou que:

«A Câmara Municipal de BB, em reunião ordinária de vinte e cinco de Outubro de mil novecentos e noventa e um e em seguimento do deliberado em reuniões ordinárias de vinte e sete de Setembro de mil novecentos e noventa e um e onze de Outubro de mil novecentos e noventa e um que teve a concordância da Assembleia Municipal em sessão de vinte e sete de Setembro de mil novecentos e noventa e um deliberou vender ao segundo outorgante o Parque de Campismo da ... e mais quinze hectares de terreno que lhe são adjacentes para permitir a expansão complementar de aproveitamento turístico pelo preço de 250.000.000$00.

A Câmara Municipal de BB, em seguimento do deliberado nas reuniões acima enunciadas, em reunião extraordinária de dezassete de Dezembro de mil novecentos e noventa e três, deliberou celebrar a presente escritura referente ao parque de Campismo da ..., com a área de cem mil metros quadrados, a confrontar do norte, sul e nascente com a Câmara Municipal de BB e do poente com Estrada ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o n.º 1.839, fazendo parte do descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 757.

Que pela presente é dada quitação ao respectivo preço de duzentos e cinquenta milhões de escudos, já liquidado (…).

Que os restantes quinze hectares de terreno adjacentes para permitir a expansão complementar de aproveitamento turístico serão objecto de escritura autónoma.»

1.4. Estabeleceram ainda as partes, naquela escritura, o seguinte: 

“Que a primeira outorgante se obriga a haver por boa, forme e de paz a todo o tempo esta venda, aceitando indemnizar o segundo outorgante pelo valor correspondente ao dobro do preço por ele pago, por qualquer facto de terceiro, decisão judicial ou acto administrativo com eficácia executória externa que afecte ou perturbe de forma irremovível e definitiva a plena e desonerada propriedade do segundo outorgante em relação ao Parque de Campismo, objecto da presente escritura.

Que a primeira outorgante aceita indemnizar em igual montante o segundo outorgante, se ocorrer, por facto emergente do seu processo deliberativo ou outro de sua exclusiva responsabilidade qualquer situação que determine a invalidade da presente venda.

1.5. Por fim, estipularam na sobredita escritura o seguinte:

«Que relativamente aos quinze hectares de terreno adjacentes (…) a escritura seja celebrada após a desafectação do terreno, a qual deverá no entanto consumar-se num prazo não superior a doze meses.

Que findo o referido prazo de doze meses e não se tendo a mesma efectivado, se considera com direito a uma indemnização pelos prejuízos que resultarem da impossibilidade de execução do projecto, do qual está naturalmente excluída a área afecta ao Parque das Merendas.»

1.6. Da deliberação da Câmara Municipal de BB, datada de 25/10/ 1991, de vender o Parque de Campismo da ... e de 15 ha de terreno adjacente, referida em 1.1, foi interposto recurso contencioso junto do Tribunal Administrativo de Círculo de …, pela sociedade CC, S.A., que correu termos sob o n.º 291/1991, tendo ali sido proferida a sentença reproduzida a fls. 229-256, datada de 25/06/93, a declarar anulado o ato recorrido com fundamento em violação dos princípios da boa fé e da confiança, considerando, além do mais, que a proposta apresentada por AA, ali recorrido e ora R., que esteve na base daquela deliberação, no tocante à utilização a dar ao terreno adjacente de 15 ha, nada tinha a ver com as condições a que todos os concorrentes estavam limitados ante a proposta daquela Câmara Municipal de alienar o Parque de Campismo da ... e dos 15 ha do terreno adjacente, aprovada em reunião de 27/09/91;    

1.7. Tendo a Câmara Municipal de BB interposto recurso dessa decisão para o Supremo Tribunal Administrativo, que correu termos sob o n.º 34.246, foi proferido o acórdão reproduzido a fls. 262-275, de 23/06/ 1994, a negar provimento ao recurso, no qual se considerou ainda que, não tendo optado por concurso limitado mas por um modelo híbrido, que na prática significou concurso público sem cumprimento das formalidades previstas no artigo 59.º e seg. do Dec.-Lei n.º 235/86, de 18-08 (necessidade de projeto, caderno de encargos e programa de concurso), aquela Câmara incorreu em vício de violação de lei – vide fls. 274-275.  

1.8. Por sentença proferida em 17/11/2006, transitada em julgado, proferida nos autos de processo ordinário que correu termos sob o n.º 376/ 1999, do extinto Tribunal Judicial de …, confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação de …, de 12/02/2008, foi declarada a nulidade do contrato de compra e venda do parque de Campismo da ..., celebrado pela escritura publica de 22/01/1993 entre o Presidente da Câmara Municipal de BB e o R. AA, condenando-se o réu a restituir ao autor o Parque de Campismo da ..., contra o pagamento da quantia total de € 1.307.633,78, e determinando-se o cancelamento do registo predial do referido Parque de Campismo existente a favor do réu na Conservatória do Registo Predial de ....

1.9. O A. interpelou o R. por diversas vezes, ao cumprimento da promessa de venda.

1.10. E fê-lo, pelos seguintes meios:

a) - Por carta registada datada de 23-11-2009 e entregue nos Serviços da Câmara Municipal de BB em 14-12-2009 - cópia junta como documento 6 - e na qual o A. dava ao R. o prazo de trinta dias para marcação da escritura de compra e venda.

b) - Na sequência do envio do documento referido no ponto anterior, o R. respondeu por ofício n.º 11425, tendo o A. entregue em 12-01-2010 nova missiva com os esclarecimentos tidos por oportunos e dando o prazo adicional de 15 dias para a marcação da escritura, conforme documento 7.

c) - Por carta registada remetida pela Mandatária do A. em 14-01-2011 e entregue em mãos nos serviços da Câmara em 17-01-2011, conforme documentos 8 e 9, o Autor concede ao R. um prazo de 60 dias para que lhe seja dada uma resposta à situação sob pena de accionar as cláusulas penais previstas na escritura de 22-12-1993.

1.11. O R. ainda respondeu a esta última missiva, por ofício datado de 27-05-2011,

1.12. A Câmara Municipal de BB devolveu ao A. tudo quanto dele recebera, tendo-lhe este devolvido o parque de Campismo.

Consigna-se ainda, como extensão dos pontos 1.6 e 1.7, ao abrigo do 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável por via sucessiva dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC, que, na sentença do TAC de … e no acórdão do STA, referidos, foi dado como provado, no que aqui releva e respeitante ao ato ali recorrido, o seguinte circunstancialismo:

1.13. B) - Em reunião de 27.9.91, a CMBB aprovou a seguinte proposta do seu Presidente:

«Proponho à Câmara Municipal a alienação do Parque de Campismo da ... e 15 ha de terreno que lhe são adjacentes sem necessidade de concurso público, obedecendo a escolha dos concorrentes a:

1.ª Condição - Maior valor de oferta e melhor prazo e forma de pagamento;

2.ª Condição - Em igualdade de circunstâncias reserva-se à Câmara Municipal o direito de escolha atendendo ao projecto a executar para o desenvolvimento, expansão e incremente turístico de Parque de Campismo e respectivo terreno para proceder à implantação de um projecto de ampliação complementar, estando destinado à instalação de piscinas com áreas de apoio, lazer e fixação de turistas.

O referido terreno engloba a zona designada por Parque de Merendas, a qual deve ser afectada ao uso público sem outras restrições que não as determinadas pela necessidade de manutenção, defesa e asseio do referido Parque, comprometendo-se a não dar destino diferente daquele para que vem sendo utilizado, além de acordar com a Câmara melhor forma de utilização pública da referida área.

As propostas deverão ser entregues até às 15h30 do dia 10 de Outubro próximo, em envelope fechado e devidamente lacrado, na Secretaria da Câmara Municipal.

O preço base da proposta é de 240.000.000$00, não podendo ser alienado por preço inferior.

C) - A proposta do recorrido particular AA era do seguinte teor:

   "1. Valor global da aquisição - 300.000.000$00.

2. Condições de pagamento:

a) - 150.000 contos, no acto da assinatura do contrato de promessa de compra e venda;

b) - O restante no acto da escritura, sem prejuízo de o proponente se disponibilizar, dentro das suas possibilidades, a amortizar, escalonadamente, o preço por sucessivos reforços ao sinal.

3. Execução de um plano de pormenor para os 15ha adjacentes com o seguinte programa:

a) - Zona de moradias unifamiliares ou em banda (com o máximo de 2 pisos) com a finalidade de criação de espaços destinados a 2.ª residência, privada ou de ocupação turística, salvaguardando o coberto florestal, de forma a minimizar o abate de árvores.

b) - Zona de equipamento destinado à construção de uma unidade hoteleira ou similar (aparthortel) com apoio de comércio e serviços.

c) - Zona de lazer e recreio de apoio aos utentes.

d) - O Parque de Merendas em funcionamento será executado por nós noutra área disponível a fornecer pela Câmara Municipal.

e) - Salvaguarda de todos os compromissos da CMBB com outras entidades, principalmente nas facilidades operadas na época balnear.

f) - Apoio, em colaboração com a CMBB, de programas culturais e desportivos de animação no concelho.”

D) – Em reunião de 25/10/91 a CMBB aprovou a seguinte proposta do seu Presidente:

“Presente o parecer técnico do consultor jurídico do Sr. Presidente da Câmara Municipal, Dr. DD, (que se transcreve no final da presente deliberação) e após análise das propostas, proponho que seja adjudicada a venda do Parque de Campismo e 15 ha de terreno que lhe são adjacentes ao Sr. AA pelos seguintes fundamentos:

De entre as propostas apresentadas pelos concorrentes é esta que incorpora um maior preço - 300.000.000$0O - sendo as outras  de 260.000.000$00, 250.000.000$00 e 245.000.000$00, e ainda a que define um prazo de pagamento com o objectivo definido na deliberação da Câmara Municipal de 11 do corrente mês.

Sendo portanto a proposta de melhor preço e melhor prazo de pagamento, deliberou-a Câmara Municipal, por maioria, com 4 votos a favor, do Sr. Presidente e dos Srs. Vereadores EE, FF e GG, 2 votos contra, dos Srs. Vereadores Dr. HH e II, e uma abstenção, do Sr. Vereador JJ, aprovar o parecer técnico apresentado pelo Sr. Residente, que servira de fundamento à presente deliberação, e proceder à venda ao Sr. AA pelo preço de 300.000.000$00, e nas condições de pagamento definidas na proposta, ficando estabelecido também que o contrato a celebrar respeitará escrupulosamente o quadro da deliberação da Câmara Municipal de 11-10-91, designadamente no que toca à afectação e destino do Parque de Merendas.”

E) - Em 5-11-91, a CMBB prometeu vender e o recorrido particular prometeu comprar os terrenos mencionados na alínea B), tendo-se obrigado 1.ª – à reversão da exploração do Parque de Campismo concessionado à recorrente e a ceder ao 2.º o crédito das retribuições pagas pela CC por aquela exploração, investindo-o na posse do Parque, com as limitações inerentes ao contrato de concessão.

    

2. Do mérito do recurso

2.1. Dos termos do litígio no devir da causa

2.1.1. Da fase dos articulados à sentença da 1.ª instância

. Na presente ação, o A. começou por pedir a condenação do R. no pagamento da dupla indemnização de € 2.493.989,48, com base nas cláusulas transcritas no ponto 1.4 da factualidade provada constante da escritura pública de compra e venda, outorgada em 22/12/1993, reproduzida a fls. 22-27.

Para tanto, alegou, em resumo, que:

- Aquela escritura contempla dois negócios em estádios diferentes, conforme o inicialmente previsto no contrato-promessa referido em 1.1 dos factos provados: uma compra e venda do Parque de Campismo; uma promessa de venda da faixa de terreno adjacente de 15ha;

- Para cada uma delas foi prevista, autonomamente, uma cláusula penal do mesmo montante, de quinhentos milhões de escudos, equivalente a € 2.493.989,48;

- Tendo a referida escritura de compra e venda do Parque de Campismo sido declarada nula pela decisão do Tribunal Judicial de …, confirmada pela Relação de …, na decorrência das decisões proferidas, em recurso contencioso, pelo TAC de … e pelo STA, seria lícito ao R. seguir uma de três vias: efetuar novo concurso público com respeito pelas condições impostas pelo STA; efetuar a venda sem qualquer concurso; não fazer a adjudicação do Parque a qualquer concorrente, sob a invocação do interesse público;

- Podendo assim o R. adjudicar ao A. o Parque de Campismo e ainda concretizar a venda dos 15 ha de terreno adjacente, sem passar pelo concurso, mesmo após a declaração de nulidade do contrato de compra e venda em referência, não o fez, deliberando antes, em 23/02/2007, adjudicá-lo à CC, pelo preço de € 2.000.000,00, em meados de janeiro de 2009;

- Com tal procedimento, e após sucessivas interpelações do A., o R. incorreu em incumprimento definitivo do contrato-promessa celebrado em 05/11/1991 e referido em 1.1.                           

Significa isto que o A. delineou a causa de pedir na perspetiva do dito incumprimento definitivo do contrato-promessa referido em 1.1, considerando que as invocadas cláusulas penais estipuladas na subsequente escritura de compra e venda àquele diziam respeito, muito embora situando esse incumprimento na decorrência da declaração judicial de nulidade desta escritura.

. Por sua vez, o R. sustentou, em sede de contestação, que:

- Tal clausulado se circunscreve ao âmbito do contrato de compra e venda do Parque de Campismo, não respeitando portanto ao referido contrato-promessa, nem incluindo sequer a promessa de venda da faixa de terreno adjacente de 15 hectares;

- Porém, invalidados que foram judicialmente os negócios celebrados com o A., ficou o R. desobrigado de vender-lhe quer o Parque de Campismo quer a faixa de terreno adjacente, sendo também nula a própria cláusula penal, nos termos do artigo 810.º, n.º 2, do CC.

. A 1.ª instância julgou a ação improcedente, considerando que:

- da interpretação do referido clausulado não resultava que a cláusula penal em apreço respeitasse ao sobredito contrato-promessa;

- a declaração de nulidade da escritura de compra e venda importava também a nulidade da própria cláusula penal invocada.

           

2.1.2. Em sede de apelação

. No recurso de apelação interposto pelo A., veio este sustentar:

a) – Em primeira linha, que:

- a cláusula penal relativa à venda do Parque de Campismo não pode ser afetada pela declaração de nulidade do contrato de compra e venda outorgado em 22/12/1993, já que aquela cláusula assume autonomia como cláusula penal indemnizatória reportada a facto emergente do processo deliberativo da CMBB ou de outro de sua exclusiva responsabilidade de que decorresse qualquer situação determinativa de invalidade da venda;

- a declarada nulidade do referido contrato de compra e ven-da emerge do processo deliberativo do R., a este imputável e a que o A. é completamente alheio;

- assim, tal declaração de nulidade, radicada em ato administrativo ilícito de todo imputável ao R., é geradora da obrigação civil extra-contratual de este indemnizar o A. nos termos do art.º 172.º, n.º 1, do CPTA;

- existe uma diferença manifestamente desmesurada entre o prejuízo adveniente ao A. dessa nulidade e o benefício do R.;

- assim, a cláusula penal indemnizatória em apreço não se encontra afetada de nulidade, já que escapa à regra geral da cláusula penal acessória;

b) – Num segundo plano, que:

- a declaração de nulidade do contrato de compra e venda em referência faz renascer o precedente contrato-promessa, que como tal deverá ser convertido com todos os direitos e obrigações dele decorrentes;

- nessa base, verifica-se o incumprimento definitivo desse contrato-promessa, em relação ao qual será de aplicar a invocada cláusula penal indemnizatória.

Concluiu, pedindo a revogação da sentença da 1.ª instância e a sua substituição por decisão que condenasse o R. no pagamento do valor peticionado.

. Nas respetivas contra-alegações, veio o Recorrido sustentar a nulidade da cláusula penal em referência, na linha do decidido em 1.ª instância, pedindo, a título subsidiário, a redução da mesma, já que foi devolvido ao A. o preço pago e que ele explorou o sobredito Parque de Campismo, gratuitamente, durante 10 anos.       

. O Tribunal da Relação considerou que:

- o clausulado em referência não foi estabelecido no contrato-promessa, tendo as partes estabelecido uma só cláusula no âmbito do próprio contrato de compra e venda, ainda que prevendo várias situações;

- essa cláusula não se configura com uma cláusula penal que pressuponha a validade e o incumprimento desse contrato de compra e venda, tratando-se antes de uma “cláusula incluída da dinâmica do contrato, mas constituindo uma obrigação autónoma condicional subordinada aos efeitos de um evento futuro e incerto”, celebrado no âmbito do princípio da liberdade contratual e no quadro dos princípios da boa fé;  

- todavia, devendo o R., como pessoa coletiva, obedecer a determinados pressupostos administrativos para a sua vinculação, seria necessário que o A. tivesse invocado os necessários pressupostos daquela obrigação, como causa de pedir, para além da eficácia do contrato, entre os quais que a invalidade era da exclusiva responsabilidade da R. e a ela imputável;

- esta causa de pedir extravasa a causa de pedir invocada na ação.

Nessa base, o Tribunal da Relação confirmou a sentença recorrida, embora por razões diferentes.            

             

2.1.3. Em sede de revista            

           

Em sede de revista, o A./Recorrente persiste na tese de que estamos perante uma cláusula penal autónoma com função indemnizatória, que mantém a sua validade e eficácia independentemente da validade do contrato de compra e venda, cujos pressupostos se encontram verificados, em face da declaração de nulidade desta compra e venda.

Pede assim que se revogue o acórdão recorrido e que se substitua por decisão que condene o R. a pagar-lhe o dobro do valor pago pela compra do Parque de Campismo.                    

Por seu lado, o R./Recorrido continua a sustentar a nulidade da sobredita cláusula penal, salientando que o Presidente da Câmara Municipal de BB não tinha poderes legais e estatutários para proceder à adjudicação e posterior venda do referido Parque de Campismo, nem do Parque de Merendas, tendo, por esse motivo, de solicitar autorização à Assembleia Municipal. E acrescenta que a anulação da deliberação de adjudicação contamina os atos subsequentes, ferindo-os também de nulidade.

Subsidiariamente, mantém o pedido de redução daquela cláusula.      

           

2.2. Apreciação crítica

Do acima exposto decorre que, na presente revista, o A./Recorrente acaba por delimitar a sua pretensão à questão da validade e eficácia da cláusula penal em referência, como cláusula com função indemnizatória autónoma, reportando-a agora apenas ao pressuposto da declaração de nulidade do contrato de compra e venda do Parque de Campismo constante da escritura pública outorgada em a 22/12/1993 e reproduzida a fls. 22-27.

Nessa medida, deixou cair a tese inicial do incumprimento do contrato-promessa, bem como a peticionada indemnização respeitante à promessa de venda do terreno adjacente de 15ha, não havendo assim que nos ocupar aqui dessa matéria.

Ora, na linha do entendimento adotado pela Relação, afigura-se que o clausulado transcrito no ponto 1.6 da factualidade provada, inserido na escritura de compra e venda outorgada em 22/12/1993, contém uma estipulação com função indemnizatória, circunscrita à compra e venda do Parque de Campismo da ..., não alcançando, pois, a promessa de venda do terreno adjacente com a área de 15ha, cujo contrato definitivo fora ali relegado para ulterior escritura.

De resto, o referido contrato-promessa, celebrado em 05/11/1991, contém, na sua cláusula 7.ª, transcrita no ponto 1.2 dos factos provados, estipulação própria para sancionar o respetivo incumprimento.

Sucede que a referida estipulação se desdobra em duas variantes:

i) – uma, pressupondo qualquer facto de terceiro, decisão judicial ou ato administrativo com eficácia executória externa que afetasse ou perturbasse de forma irremovível e definitiva a plena e desonerada propriedade do A. em relação ao Parque de Campismo, objeto daquela escritura;

ii) - outra, para o caso de ocorrer facto emergente do processo deliberativo do R. ou outro de sua exclusiva responsabilidade que importasse qualquer situação determinativa da invalidade da referida venda.

           

No caso presente, só interessa esta segunda variante e a questão que se discute consiste em saber se estamos perante uma típica cláusula penal acessória colimada ao incumprimento definitivo da obrigação principal de entrega da coisa emergente do contrato de compra e venda, pressupondo portanto a validade deste contrato, nos termos e para os efeitos do artigo 810.º, n.º 2, do CC, ou se tal estipulação consubstancia uma cláusula com função indemnizatória, autónoma, independente da validade desse contrato, ainda que inserida no respetivo quadro negocial.

Desde logo, o pressuposto fáctico dessa cláusula mostra-se desenhado na previsão de facto emergente do processo deliberativo do R. ou outro de sua exclusiva responsabilidade que importe qualquer situação determinativa da invalidade da referida venda, o que parece excluir, naqueles exatos termos, a sua dependência da validade desta venda e, nessa medida, o seu carácter acessório em relação à mencionada obrigação típica emergente desse contrato.

Mas será então legalmente admissível uma tal cláusula penal?

Nas palavras de ANTÓNIO PINTO MONTEIRO[3] parece ser de admitir “a chamada pena independente, isto é, a promessa de uma pena para uma acção ou uma omissão que não são devidas – por isso, uma pena independente, não acessória de uma obrigação.”

Segundo aquele ilustre civilista, essa é “a principal forma por que aparecia a cláusula penal e a que corresponde à fase inicial do direito romano”, só mais tarde aparecendo a cláusula penal acessória de uma obrigação e que hoje assume papel principal.[4]    

Refere o mesmo Autor que o BGB não deixa de fazer alusão à pena independente, quando “alguém promete uma pena para o caso em que pratique ou omita uma ação”, podendo o beneficiário da promessa exigir o pagamento dela, se não for satisfeito o comportamento que a condiciona[5].

Nessa linha, considera o citado Autor o seguinte[6]:

«O que acaba de dizer-se não significa, contudo, que a pena independente não mantenha afinidades várias com a cláusula penal (acessória). Essa, precisamente, a razão por que o BGB a prevê (…), submetendo-a, igualmente, ao poder de revisão judicial. Além disso, a doutrina e jurisprudência têm afirmado a aplicabilidade, por analogia, de outros aspectos do regime da cláusula penal, como o de não ser devida a pena (independente) quando o promitente não tiver realizado o acto por causa que não lhe é imputável. E o disposto no § 344 DO BGB – que não permite a estipulação de uma pena para o caso de não cumprimento de uma promessa que a lei considere ineficaz, ainda que as partes tivessem conhecimento da ineficácia da promessa -, o disposto nesta norma (…) vale igualmente, ou até sobretudo, para a pena independente, uma vez que pressuposto da validade da cláusula penal acessória de uma obrigação é a validade desta, sendo dispensável, por isso, a relação a si, qualquer norma específica a afirmá-lo. Parece-nos que estes princípios devem valer também entre nós.»    

E anota[7] que:

«A pena independente ganhará, assim, especial significado perante actos que podiam ser objecto de um verdadeiro dever jurídico (…), preferindo o promitente, todavia, não assumir esse compromisso jurídico, se bem que garantindo o promissário com o pagamento de uma pena, a qual, neste caso, já poderá vir a ser-lhe judicialmente exigida. O mesmo valerá tratando-se de simples gentlemens’s agreements.»            

Também a propósito da chamada cláusula penal independente, VAZ SERRA escreve[8] que:

«(….) a obrigação principal pode ser uma obrigação contratual (é-o em regra), mas pode ser uma obrigação de outra natureza (uma obrigação derivada de acto ilícito ou de enriquecimento sem causa, por exemplo).

-------------------------------------------------------------------------

Se as partes conheciam a nulidade da obrigação principal e, todavia, estipularam a pena convencional, poderia julgar-se aplicável a teoria normal das obrigações condicionais. Com efeito, esta deve ter lugar na hipótese da chamada pena independente ou imprópria, isto é da pena para o caso de acção ou omissão que não são devidas, como se alguém promete uma pena de não aceitar uma oferta ou de se vender uma coisa (não estando obrigado a estes actos): aqui, não há verdadeiramente pena convencional (pois não era devida a acção ou omissão em causa), não se tratando, portanto, de assegurar uma obrigação já existente, mas a realização ou omissão de um acto que pela primeira vez e directamente se asseguram com a pena.

Mas, se, no caso da pena convencional para uma obrigação nula, conhecendo as partes a nulidade, se aplicasse a teoria das obrigações condicionais, isto é, se julgasse válida a pena como obrigação condicional, frustrar-se-ia o fim que a lei tem a vista com a nulidade da obrigação principal. Por conseguinte, deve, mesmo no caso de as partes conhecerem a nulidade da obrigação principal, decidir-se que é nula a pena convencional.» 

E nas palavras de PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA[9]:

Apesar do carácter acessório que normalmente reveste, nada obsta a que a cláusula penal seja assumida como penalidade para a não realização de determinado acto, sem que a parte se obrigue propriamente à realização desse acto.  

             

No caso vertente, não sofre dúvida que a cláusula indemnizatória em apreço foi prevista para o caso de ocorrência de facto emergente do processo deliberativo do R. ou outro de sua exclusiva responsabilidade de que resultasse invalidade do contrato de compra e venda do Parque de Campismo da ..., celebrado pela escritura pública outorgada em 22/12/1993.

Trata-se, portanto, de uma cláusula penal indemnizatória independente da validade do efeito translativo da propriedade da coisa e da obrigação típica da sua entrega emergentes desse contrato, mas fundada em eventual ocorrência de facto ilícito da exclusiva responsabilidade do R., nomeadamente emergente do processo deliberativo necessário à celebração do contrato.

Nestes termos, afigura-se que tal estipulação é admissível dentro da esfera do princípio de liberdade contratual proclamada no artigo 405.º do CC, contemplando uma espécie de responsabilidade pré-contratual, inerente à fase negocial preliminar, neste caso, sujeita às regras administrativas do prévio e necessário processo deliberativo do R. para a celebração do contrato em vista.

Não se trata, portanto, de uma cláusula penal indemnizatória acessória, substitutiva ou sucedânea dos efeitos típicos do projetado contrato de compra e venda, mormente do efeito translativo da propriedade da coisa ou da obrigação da sua entrega.

Sucede que o referido contrato de compra e venda foi objeto de declaração judicial de nulidade por decorrência da anulação, em sede do contencioso administrativo, da deliberação municipal que o precedeu, com fundamento em vício de violação de lei, consistente em preterição das formalidades previstas no artigo 59.º e seg. do Dec.-Lei n.º 235/86, de 18-08 - necessidade de projeto, caderno de encargos e programa de concurso.

Ora, atento o quadro factual em que se inscreveu a anulação daquela deliberação, dele decorre que tal violação teve a sua génese no facto de ter sido apresentada pelo ora A., então concorrente, uma proposta de compra do Parque de Campismo da ... e do terreno adjacente de 15 ha, que exorbitava manifestamente, no que toca a este terreno, o quadro de condições iniciais publicitadas pelo R., e que, todavia, foi aceite por este, com a opção de “um modelo híbrido, que na prática significou concurso público sem cumprimento das formalidades previstas nos artigos 59.º e seg. do Dec.-Lei n.º 235/86, de 18/08 – necessidade de projeto, caderno de encargos e programa de concurso -, como se refere no acórdão do STA referido no ponto 1.7 dos factos assentes.

E a este propósito, convém reter as considerações então feitas naquele aresto, ao observar o seguinte:

«A deficiente redacção da deliberação que estamos analisando acabou por tornar possível uma deliberação impugnada manifestamente violadora da lei do concurso.

Estabelecia esta que o Parque das Merendas ficaria incluído no terreno de 15 ha.

Os concorrentes teriam de apresentar propostas nessa base.

Afinal o recorrido particular [o aqui R.] propôs que o Parque das Merendas ficasse noutro terreno que a CMBB forneceria.

Seria de esperar que tal proposta fosse rejeitada, por exorbitar das condições estabelecidas.

Afinal foi a proposta aceite, porque considerada a que apresentou melhor preço.

Quem pode garantir que os outros concorrentes não ofereceriam melhor preço se tivessem partido do princípio de que afinal o Parque das Merendas iria para um outro terreno, pertença da Câmara, obviamente se esta entretanto de tal não desistisse?

E como podiam eles partir dessa base, face ao teor do regulamento do concurso?

             ------------------------------------------------------------------------

É inaceitável a posição da CMBB de considerar que “ganho” o concurso pela oferta de melhor preço (1.ª condição), tudo o resto estava à mercê do seu poder discricionário, este aliás, também ele, não isento de controlos.

            -------------------------------------------------------------------------

Ora face ao texto da deliberação, a interpretação mais razoável, que simultaneamente protege a confiança dos concorrentes, e reflexamente o interesse público, porque propiciadora de melhores propostas (…)

Sabendo os concorrentes (e deviam ter sido informados disso) que afinal o Parque das Merendas podia sair do terreno dos 15 ha, ficariam em condições de apresentar melhores ofertas.

Só um deles tendo “ousado” ir além dos termos da deliberação, tendo os outros ficado pelo respeito do regulamento do concurso, é óbvio que se criou uma situação de desigualdade para os concorrentes e de provável prejuízo para o interesse público, o que não pode ser admitido.

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Estamos agora em condições de concluir a apreciação da deliberação de 27/09/91.          

Muito dificilmente ela poderia deixar de produzir maus frutos.

Diz-se prescindir de concurso público.

Mas não se optou por concurso limitado (ver sobre uns e outros os artigos 49.º e 50.º do D.L 235/86, de 18-8, hoje substituído pelo D.L n.º 405/93, de 10-12.

Foi-se para um modelo híbrido, que na prática significou concurso público sem cumprimento das formalidades previstas no arit.º 59.º e seg. do diploma citado (necessidade de projecto, caderno de encargos e programa de concurso).

É inaceitável que se abra um concurso público para os fins que a CMBB se propunha, oferecendo-se aos candidatos apenas a deliberação camarária, supra transcrita, como suporte.

Nada mais consta do processo.

É de admirar que mesmo assim tenha havido quem se aventurou a apresentar propostas.»

Em tais considerações, na parte em que se referem à dita “ousadia” do proponente – o ora A. -, perpassa a ideia de que o vício de violação de lei imputado ao R. teve na sua génese uma proposta “ousada” daquele A. que exorbitava manifestamente o sobredito quadro de condições iniciais apresentadas pela CMBB, não se podendo, por isso, considerar, sem mais, o mesmo A. alheio ao vício cometido.

Seja como for, o certo é que o A., na presente ação, não alegou factos essenciais tendentes a demonstrar que o vício de violação de lei em referência radique em facto - emergente do processo deliberativo do R. ou outro - da exclusiva responsabilidade do mesmo R., nem tão pouco delineou a causa de pedir nessa perspetiva.      

Optou antes por convocar a aplicação da cláusula penal em sede dum alegado incumprimento do contrato-promessa celebrado em 05/11/1991, que equacionou como subsequente à declaração de nulidade do contrato de compra e venda celebrado em a 22/12/1993, por sua vez, decorrente da anulação da antecedente deliberação do R..

Embora o A./Recorrente tenha deixado cair tal fundamento, sempre se dirá que este fundamento não podia deixar de sucumbir, como sucumbiu, já que se revela manifesto, como acima foi dito, porquanto a cláusula penal em apreço não foi estipulada para sancionar o incumprimento do contrato-promessa, mas sim confinada ao âmbito do contrato de compra e venda do Parque de Campismo da ....     

Ao seguir essa estratégia processual, parece pois não ter o A. confiado sequer em associar a cláusula penal em apreço diretamente ao vício de nulidade imputável ao R., centrando então o seu fundamento nuclear no facto de, não obstante a nulidade da compra e venda, o R. não ter seguido uma de três vias ainda possíveis, a saber: efetuar novo concurso público com respeito pelas condições impostas pelo STA; efetuar a venda sem qualquer concurso; não fazer a adjudicação do Parque a qualquer concorrente, sob a invocação do interesse público. E assim ter, após diversas interpelações do A., incumprido definitivamente o contrato-promessa.

Na mesma linha, não se pode deixar de estranhar que, já no âmbito da ação instaurada pelo ora R. contra o A. junto do Tribunal Judicial de …, referida no ponto 1.8 da factualidade provada, em que se pedia a declaração de nulidade de compra e venda do Parque de Campismo de ..., o mesmo R. não tenha, em sede da reconvenção ali deduzida, incluído pretensão indemnizatória fundada na cláusula penal ora em causa como efeito direto dessa nulidade.        

Foi só em sede do recurso de apelação, na presente ação, que o A. veio sustentar, em primeira linha, a nulidade do contrato de compra e venda imputável ao R., como fundamento exclusivo da cláusula penal invocada, para o que não alegara, a montante, os necessários factos essenciais que permitissem preencher o pressuposto fáctico dessa cláusula.

Em suma, o A. não alegou, oportunamente, um factualismo que, a ter ocorrido, retratasse as circunstâncias concretas propiciadas pelo R. que teriam levado aquele a apresentar uma proposta tão arrojada como a acima referida, por manifestamente desfasada do quadro de condições previamente anunciado. 

Só ante a alegação e prova de um tal factualismo é que seria lícito ajuizar sobre a imputação do vício gerador da nulidade do contrato à exclusiva responsabilidade do R., de modo a fazer operar a cláusula penal invocada.

Posto isto, não resta senão concluir pela manifesta improcedência da pretensão deduzida e confirmar a decisão recorrida. 

V - Decisão


Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido
As custas do recurso ficam a cargo do A./Recorrente.


Lisboa, 14 de Setembro de 2017


Tomé Gomes - Relator


Maria da Graça Trigo

                                    
João Bernardo

 

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[1] Relatado por Maria dos Prazeres Beleza, disponível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj
[2] Relatado por Lopes do Rego, disponível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj
[3] In Cláusula Penal e Indemnização, Almedina, 1990, p. 93.
[4] Ob. cit., p. 95.
[5] Ob. cit., pp. 95-96.
[6] Ob. cit., p. 98
[7] Ob. cit. p. 98.
[8] In Estudo intitulado Pena Convencional, BMJ n.º 67, 1975, pp. 187 e 191-192.
[9] In Código Civil Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, 4.ª Edição, 1997, nota 4 p. 74.