Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B983
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA ROCHA
Descritores: DIREITO REAL DE HABITAÇÃO
Nº do Documento: SJ2008041709832
Data do Acordão: 04/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :

A acção de reivindicação compreende dois pedidos concomitantes: o do reconhecimento de determinado direito e o de entrega da coisa objecto desse direito.
Se o autor demonstrar o seu direito, o possuidor só pode evitar a restituição da coisa se conseguir provar: que a coisa lhe pertence por qualquer dos títulos admitidos em direito; que tem sobre a coisa outro qualquer direito real que justifique a sua posse ou que detém a coisa por direito pessoal bastante.
São elementos caracterizadores essenciais do arrendamento: a obrigação de uma das partes proporcionar ou conceder à outra o gozo de uma coisa imóvel; que esse gozo seja temporário e que o proporcionamento do gozo tenha, como contrapartida, uma retribuição, que não pode ser indeterminada.
A concessão de alojamento inserido, acessoriamente, num contrato de trabalho, por forma a cessar com a extinção laboral não constitui contrato de arrendamento, nem um contrato de comodato, mas um direito real de habitação, previsto no art. 1484º do C.Civil.
Este direito tem de se entender somente como abrangendo o morador usuário e tem de se pautar pelas suas necessidades pessoais, contrariamente ao usufruto em que a fruição e o uso são ilimitados.
Porque o direito de uso e habitação «são diminutivos do usufruto», aplicam-se-lhe as regras do usufruto que não se revelem incompatíveis com a natureza daqueles direitos, como é o caso da sua constituição e extinção, ou seja, os direitos de uso e habitação extinguem-se por morte do respectivo titular.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1.
AA, Construções, Lda.”, intentou, no Tribunal Judicial da Mealhada, acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra BB, pedindo que esta seja condenada a:
- reconhecer a autora como proprietária de todo o Lote 15, incluindo o imóvel – casa de habitação – onde reside a ré;
- restituir o imóvel – casa de habitação – à autora livre e devoluto;
- reconhecer que causou prejuízos à autora com a falta de entrega do imóvel, quando notificada, em quantia que não é possível definir ainda e, consequentemente, a indemnizar a autora, reparando esse prejuízo em quantia a liquidar em execução de sentença.

Alega, em síntese, que é dona e possuidora do prédio aludido, sendo certo que CC havia sido empregado da anterior proprietária, “DD SARL” e, nessa qualidade, que foi habitar a dita casa, tendo, quando cessou o contrato, adquirido o direito de habitação até à sua morte, após o que ali se manteve a habitar a casa a ora ré, esposa daquele, sem qualquer título.
Apesar de notificada para entregar o imóvel, a ré não o fez, causando prejuízos à autora, ainda não determináveis.

Regularmente citada, a ré contestou, alegando que a autora não tem direito a reivindicar a casa, existindo, ante a não demonstração, pela autora, de que tal casa lhe pertence, contradição entre causa de pedir e pedido.
A casa servia de morada de família ao seu falecido marido CC e à ré, os quais ali passaram a habitar há mais de 50 anos.
O seu falecido marido, na qualidade de trabalhador da “DD, SARL”, beneficiava de habitação, mas, por volta do ano de 1977, tal sociedade suspendeu a sua actividade e despediu-o, tendo este reivindicado os seus direitos, conforme resulta do teor da acta de conciliação exarada nas Comissões de Conciliação e Julgamento do Distrito de Aveiro, e, então, a dona da casa reivindicada, ou seja, a entidade patronal, proporcionou ao seu falecido marido o gozo temporário do mesmo bem, através da retribuição no montante de 38.834$14, transmitindo-se a posição de arrendatário à ré com a morte do marido.

Na réplica, a autora pronuncia-se pela inexistência da contradição entre pedido e causa de pedir e impugna a existência do alegado contrato de arrendamento.

Foi proferido despacho saneador, onde se julgou improcedente a excepção deduzida pela ré, seleccionando-se, de seguida, a factualidade relevante.

Ante reclamação apresentada por autora e ré, foi proferido, já em audiência de julgamento, o despacho que consta da acta de fls. 160 e segs., deferindo apenas, e parcialmente, a reclamação da autora e indeferindo a reclamação da ré.

Já após iniciada a audiência de julgamento, a ré veio, a fls. 192 e 201, interpor recurso dos despachos proferidos no sentido do indeferimento de pedido de realização de diligência probatória e do pedido de depoimento de parte exarados a fls. 170, 181 e 182.

Ambas as partes apresentaram alegação escrita sobre o aspecto jurídico da causa, após o que foi proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente e provada, sendo a ré condenada a reconhecer a autora como proprietária do Lote nº 15, integrado pela casa de habitação onde reside, restituir tal casa e reconhecer que causou prejuízos à autora, com a falta de entrega do imóvel a partir da data da sua citação para a acção, em quantia não concretamente determinada, devendo indemnizar aquela em quantia a liquidar em execução de sentença.

Não se conformou a ré com tal decisão, dela apelando, sem êxito, para o Tribunal da Relação de Coimbra.

Ainda irresignada, pede revista, tendo concluído a alegação de recurso pela seguinte forma:
A ré alegou factos que, uma vez provados, não podiam deixar de demonstrar o seu direito "a morrer" na habitação que sempre teve e onde sempre viveu, acompanhado do seu marido enquanto este viveu;
Alegou factos, que podiam demonstrar o seu direito, mas estes não foram levados ao questionário e, por isso, reclamou sobre tal omissão, mas esta foi ignorada, apenas se pretendeu "despejar" a ré, ou seja, parece que os "dados" estavam lançados desde o início, pelo que as decisões enfermam de nulidade, prevista nas als. b) e d) do n° 1 do art. 668º do Código Processo Civil;
A Mma. Juiz a quo, por despacho de 15/07/2005, indeferiu a reclamação que não admitia recurso, mas podia e devia ser analisada a questão no recurso da decisão final, com pleno fundamento;
E, de facto, a questão foi levantada no recurso, que devia ter sido apreciada, por força do nº 3 do art. 511º do Cód. Proc. Civil, no qual se devia ter dado provimento a tal indeferimento e anular o processado posterior;
Ao não se ter analisado o fundo desta questão, fez-se errada interpretação, o Supremo Tribunal pode emendar, nos termos do art. 722º do Cód. Proc. Civil;
Na verdade, a Mma. Jujz “a quo” não podia condenar a ré a entregar uma casa que é actualmente "clandestina" e, muito menos, a Relação podia passar "por cima" da questão, face às normas apontadas e este Supremo pode e deve censurar aquela atitude;
Violaram, assim, as instâncias, além do mais, o art. 122° do CIRC;
E o acórdão, ao omitir esta questão de fundo, não deixa de ser nulo, nos termos das als. d) e e) do nº1 do art. 668° do CPC, por força do art. 716° deste Código;
Pois, além do mais, ignorou-se o caso julgado, arguido nas referidas alegações de apresentadas pela recorrente, ofendendo-se o artigo 675° do Código de Processo Civil;
E, finalmente, fez-se, na decisão sub judice, errada interpretação das normas aplicadas ao arrendamento urbano, referidas pela ré;
E mesmo que se tratasse de uma concessão, esta jamais podia ser gratuita, face aos factos dados por provados e, por isso, não corresponde à verdade tal assertiva;
E se o falecido marido da recorrente tinha direito a habitar a casa até à sua morte, este direito estender-se-ia ao seu cônjuge, por aplicação do art. 1724° do Código Civil;
Assim, foi proclamada uma errada interpretação dos arts. 1476°, 1484° e 1485°, todos do Código Civil;
E estando a recorrente convencida que tinha direito, e estando a ocupar uma casa "clandestina", não podia ser condenada a pagar qualquer indemnização, tornando-se a mesma deveras injusta, senão mesmo, ilegal, por falta de nexo de causalidade;
Se outro motivo não houvesse, a decisão, ao "despejar" uma velhinha de mais de 86 anos, da casa onde sempre viveu e onde criou os filhos, não pode deixar de determinar um grande abuso de direito, plasmado no art. 334º do Código Civil, pelas razões acima apontadas, e que se arguíram.

Nas contra-alegações, a autora pronuncia-se pela manutenção da decisão recorrida.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2.
Estão provados os seguintes factos:
O prédio rústico sito em ...., composto por lote de terreno destinado a construção urbana denominado Lote nº 15, com a área de 835 m2, confrontando do norte e poente com M..., do sul com Lote nº 14, do nascente com estrada, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial da Mealhada sob o nº 02565/270199 da freguesia da Pampilhosa.
A aquisição deste prédio encontra-se registada a favor da autora, “AA, Construções, Lda.”, pelas inscrições G-1, por compra a “EE, Lda.”.
O referido prédio foi desanexado do prédio misto sito em Lagarteira, composto por fábrica de serração de madeiras, seus anexos, duas casas de habitação, terra de semeadura com oliveiras e vinha, e várias dependências, com os respectivos maquinismos aderentes ao solo, descrito na Conservatória do Registo Predial da Mealhada sob o nº 01373/030693 da freguesia da Pampilhosa e inscrito sob os arts. urbanos 290, 574, 575, e rústico 5309.
A aquisição deste prédio encontra-se registada a favor de “DD, SARL”, pela inscrição G-1, por compra a “DD, Lda.”.
A aquisição deste prédio encontra-se registada a favor de FF, c. c. GG, na comunhão geral, HH, c. c. II, na comunhão geral, e “JJ, Lda.”, pela inscrição G-2, por compra.
A aquisição deste prédio encontra-se registada a favor de “EE, Lda.”, pela inscrição G-3, por compra.
Encontra-se averbada à referida descrição n.º 01373/030693 da freguesia da Pampilhosa, pela inscrição F-2, a autorização de loteamento n.º 1/99.
A “DD, SARL”; FF, c. c. GG, na comunhão geral, HH, c. c. II, na comunhão geral, e “A. N. Silva, Lda.”; e “EE, Lda.”, utilizaram as casas de habitação, a fábrica de serração, o depósito de madeiras e máquinas situadas no prédio identificado.
Há trinta anos.
Com o conhecimento de todos.
Sem o exercício de violência.
Com a convicção de serem seus proprietários.
CC era assalariado da “DD, SARL”, na fábrica desta, sita em Lagarteira, Pampilhosa, Mealhada.
Esta sociedade fornecia ao CC, por ter categoria de “fogueiro de máquinas”, uma casa de habitação e a lenha de que o mesmo necessitasse.
Em 1977, aquela sociedade suspendeu a sua actividade e despediu o aludido CC.
Perante esta situação, aquele CC apresentou uma petição nas Comissões de Conciliação e Julgamento do Distrito de Aveiro.
Foi obtida, nesta Comissão, a conciliação nos termos do auto de tentativa de conciliação, cuja cópia constitui o documento nº 3 junto com a petição inicial, cujo teor se dá como integralmente reproduzido.
CC, bem como a ré, habitaram a casa fornecida pela “DD, SARL”.
A ré, presentemente, habita a referida casa.
No prédio identificado existe uma casa de habitação.
Esta casa é aquela a que anteriormente se faz referência.
A autora teve projectada uma construção/moradia para o prédio identificado, destinando-o à construção.
A autora tem visto a obra de edificação sobre a totalidade do lote 15 dificultada pela não entrega da casa pela ré.
A autora deixou para o final a edificação na zona da casa onde a ré habita.
Conforme conciliação referida em 17, e realizada em 02.05.1977, a então entidade patronal de CC acordou em pagar a este a quantia líquida de 35.000$00 e conceder-lhe habitação gratuita na casa que agora habita até ao seu falecimento.
A ré é viúva de CC, falecido em 04.10.1998.
Por carta datada de 26.04.1999, a autora solicitou à ré a entrega da casa livre de pessoas e bens.
A ré respondeu a tal carta, informando que pretendia continuar a habitar a casa.

3. O Direito.

Estando o objecto do recurso balizado pelas conclusões da alegação (arts. 684º, nº3 e 690º, nº1, do CPC), as questões a apreciar são as seguintes:

A ré alegou factos que podiam demonstrar o seu direito, mas estes não foram levados ao questionário?
O tribunal não se pronunciou sobre a violação do art. 122º do CIRC, o que torna o acórdão nulo, nos termos das als. d) e e) do nº1 do art. 668° do CPC, por força do art. 716° deste Código?
Foi ignorado o caso julgado, arguido nas referidas alegações de apresentadas pela recorrente, ofendendo-se o artigo 675° do Código de Processo Civil?
Fez-se errada interpretação das normas aplicadas ao arrendamento urbano?
E mesmo que se tratasse de uma concessão, esta jamais podia ser gratuita, face aos factos dados por provados?
Se o falecido marido da recorrente tinha direito a habitar a casa até à sua morte, este direito estender-se-ia ao seu cônjuge, por aplicação do art. 1724° do Código Civil?
E, assim, foi proclamada uma errada interpretação dos arts. 1476°, 1484° e 1485°, todos do Código Civil?
Estando a recorrente convencida que tinha direito, e estando a ocupar uma casa "clandestina", não podia ser condenada a pagar qualquer indemnização?
Se outro motivo não houvesse, a decisão, ao "despejar" a ré da casa onde sempre viveu e onde criou os filhos, não pode deixar de determinar abuso de direito, plasmado no art. 334º do Código Civil?

Vejamos, então, cada uma destas questões.

O Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, aplica definitivamente aos factos fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue aplicável (art. 729º, nº1, do CPC).
Consequentemente, não conhece de matéria de facto, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (arts. 729º, nº 2 e 722º, nº 2, do mesmo diploma).
É que, sem qualquer dúvida, cabe às instâncias apurar a factualidade relevante, sendo que, na definição da matéria fáctica necessária para a solução do litígio, a última palavra cabe à Relação.
Daí que, a tal propósito, a intervenção do Supremo Tribunal se apresente como residual e apenas destinada a averiguar da observância de regras de direito probatório material – art. 722º, nº 2 – ou a mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto – art. 729º, nº3. Aliás, não poderá esquecer-se que só à Relação compete censurar as respostas à base instrutória ou anular a decisão proferida na 1ª instância, através do exercício dos poderes conferidos pelos nºs 1 e 4 do art. 712º.
Pode, assim, afirmar-se que, no âmbito do julgamento da matéria de facto, se movem as instâncias, estando, em princípio, vedado ao Supremo Tribunal de Justiça proceder à respectiva sindicância.
Ora, no caso ajuizado, é patente que não estamos perante qualquer dos casos excepcionais previstos no nº 2 do art. 722º do CPC, como, por outro lado, o retorno do processo ao tribunal recorrido para ampliação da decisão de facto, nos termos do nº 3 do art. 729º, só deve ter lugar quando o Supremo se encontre impossibilitado de julgar de direito por insuficiência de elementos de facto, o que também não é o caso.

Sustenta, ainda, a ré que o acórdão é nulo porque não se pronunciou sobre a questão a violação do art. 122º do CIRC.

A nulidade da falta de pronúncia (art. 668, nº1, al. d), 1ª parte, do CPC), como é jurisprudência corrente, traduz-se no incumprimento, por parte do julgador, do dever prescrito no nº 2 do art. 660º do mesmo diploma legal, e que é o dever de resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão estiver prejudicada pela solução dada a outras.
No que para aqui interessa, o acórdão recorrido refere:

«…o direito de propriedade sobre imóvel não se constitui por efeito do registo ou sequer por efeito da inscrição matricial, mas sim pelos modos de aquisição indicados no art. 1316º do CC. A inscrição matricial do prédio apenas releva para efeitos fiscais e o registo predial visa a publicidade situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio (art. 1º do CRP). Assim sendo, salvo o devido respeito, não é correcto argumentar que a autora estava não só obrigada a demonstrar que a casa existia, mas também que a mesma estava inscrita na Repartição de Finanças ou mesmo chamar à colação o disposto no art. 122º do Código do Imposto sobre Rendimentos de Pessoas Colectivas».

Daqui já se vê que o acórdão da Relação, que está devida e correctamente fundamentado neste segmento decisório, não enferma da invocada nulidade.
Como não padece da nulidade da al. e), certo que não condenou em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.

Também não foi ignorado o caso julgado, invocado nas alegações apresentadas pela recorrente, já que, como se refere na decisão recorrida, inexiste qualquer caso julgado formal (art. 672º do CPC) pelo facto de o tribunal, após ter sido requerida a prestação de esclarecimentos por parte da gerência da autora, ter, numa primeira fase, convidado a ré a identificar os gerentes e, numa segunda fase, após identificação, ter indeferido tal diligência probatória. Na verdade, o despacho a convidar à identificação não entra em contradição com o segundo, não significando o primeiro a admissibilidade da requerida diligência.

Alega a recorrente que se fez errada interpretação das normas aplicadas ao arrendamento urbano.

A acção de reivindicação compreende dois pedidos concomitantes: o do reconhecimento de determinado direito e o de entrega da coisa objecto desse direito.
Como se deduz do nº1 do art. 1311º do C.Civil, esta acção é proposta contra quem possua ou detenha a coisa. A sua causa de pedir é o facto de que derive o direito real alegado.
Se o autor demonstrar o seu direito, o possuidor só pode evitar a restituição da coisa se conseguir provar:
- que a coisa lhe pertence por qualquer dos títulos admitidos em direito;
- que tem sobre a coisa outro qualquer direito real que justifique a sua posse ou
- que detém a coisa por direito pessoal bastante (cfr. Menezes Cordeiro, Direitos Reais, pags. 846 a 848).

A autora logrou provar o seu direito, só que a ré, para obstar à restituição da coisa, invoca a existência de uma relação jurídica de arrendamento, surgida na sua esfera jurídica, por transmissão, por morte, do primitivo arrendatário – o seu falecido marido -, ocorrida em 4.10.98.

Será assim?

Está provado que CC era assalariado da “DD, SARL”, na fábrica desta, sita em Lagarteira, Pampilhosa, Mealhada.
Esta sociedade fornecia ao CC, por ter categoria de “fogueiro de máquinas”, uma casa de habitação e a lenha de que o mesmo necessitasse.

A concessão de alojamento ao falecido marido da ré fazia parte da sua retribuição, não configurando, como, com todo o acerto, refere o acórdão impugnado, um contrato de arrendamento, apenas atribuindo um direito pessoal de gozo inserido, acessoriamente, num contrato de trabalho, por forma a cessar com a extinção laboral.

Porém, em 1977, aquela sociedade suspendeu a sua actividade e despediu o aludido CC.

Perante esta situação, aquele CC apresentou uma petição, nas Comissões de Conciliação e Julgamento do Distrito de Aveiro, tendo sido obtida a conciliação nos termos da qual a dita entidade patronal pagaria àquele a quantia líquida de 35.000$00; conceder-lhe-ia habitação gratuita na casa até ao seu falecimento; dar-lhe-ia 320 kg de lenha por mês, também até ao seu falecimento e permitir-lhe-ia, vitaliciamente, o cultivo de quintal anexo à casa de habitação.

A transacção vem definida no art. 1248º do C.Civil como o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões.

No nosso caso, as partes puseram termo ao litígio mediante uma transacção judicial, só que, contrariamente ao que sustenta a ré, o acervo dos factos provados não apontam para a existência da referia relação jurídica de arrendamento.

A noção de contrato de locação do art. 1º do RAU é decalcada da noção geral constante do art. 1022º do C.Civil.
Da sua articulação com o art. 1023º, resulta serem elementos caracterizadores essenciais do arrendamento: a obrigação de uma das partes proporcionar ou conceder à outra o gozo de uma coisa imóvel; que esse gozo seja temporário e que o proporcionamento do gozo tenha, como contrapartida, uma retribuição, que não pode ser indeterminada. Se o for, não pode qualificar-se o contrato como de arrendamento.
Trata-se, pois, de um contrato bilateral ou sinalagmático, na medida em que às obrigações do locador de entregar ao locatário a coisa locada e de lhe assegurar o gozo desta para os fins a que se destina – art. 1031º do C.Civil – corresponde a obrigação primeira de o locatário pagar a renda – art. 1038º, al. a).

Ora, esta obrigação do locatário está de todo ausente da referida transacção.

Mas se não é contrato de locação, como qualificar a “concessão” de habitação gratuita na casa que CC habitava e até ao seu falecimento?

A Relação, contrariamente à 1ª instância, que entendeu tratar-se de um contrato visando a constituição do direito real de habitação, previsto no art. 1484º do C.Civil, sustenta que estamos perante um contrato de comodato (art. 1129º do C.Civil).

Cremos que a razão está do lado da 1ª instância.

Efectivamente, o comodato é um contrato gratuito, onde não há, por conseguinte, a cargo do comodatário, prestações que constituam o equivalente ou o correspectivo da obrigação efectuada pelo comodante, ainda que a gratuidade não negue a possibilidade de o comodante impor ao comodatário certos encargos (cláusulas modais), como o de pagar a contribuição predial ou outros impostos relativos ao prédio cedido.
Como é, ainda, um contrato feito no interesse do comodatário.
Ora, no nosso caso, a transacção a que aludimos, e que envolvia a concessão à habitação gratuita da casa, foi, naturalmente, feita no interesse de CC, mas também da sua, então, entidade patronal, tendo em vista pôr termo ao litígio entre ambos.
Ademais, não se pode dizer, em bom rigor, que a casa tenha sido concedida ao marido da ré a título gratuito, pois que essa “concessão” faz parte integrante do conjunto das prestações da sua entidade patronal, tendo em vista pôr termo ao litígio com o seu trabalhador.

Assentemos, pois, que estamos perante um direito de habitação, cuja natureza é, no fundo, a afectação de satisfação de necessidades pessoais (Mota Pinto, Direitos Reais, pag. 420).
O direito de habitação abrange o “usus” e o “fructus”, mas apenas na medida das necessidades pessoais do seu titular e da sua família.
Este direito tem de se entender somente como abrangendo o morador usuário, tem de se pautar pelas suas necessidades pessoais, contrariamente ao usufruto em que a fruição e o uso são ilimitados. Daí que se compreenda a diversidade de regimes. No usufruto, este direito pode ser trespassado, arrendado, penhorado, etc. No direito de habitação não pode existir idêntica possibilidade (art. 1488º do C.Civil).
O usufruto é, quanto ao gozo da coisa e a despeito da sua raiz pessoal, o espelho fiel da propriedade; o seu titular, desde que respeite o destino económico da coisa, pode comportar-se exactamente como um proprietário. O direito de uso, mais adstrito à pessoa do titular, absorve apenas algumas das faculdades de gozo (as ligadas à utilização imediata da coisa), compreendidas na propriedade plena (v. Pires de Lima e Antunes Varela, C.C.Anotado, III, pag. 546).

Porque o direito de uso e habitação «são diminutivos do usufruto» (Mota Pinto, ob. cit. pag. 419), aplicam-se as regras do usufruto que não se revelem incompatíveis com a natureza daqueles direitos (art. 1490º).
É o caso da sua constituição e extinção (art. 1485º do C Civil).
O usufruto extingue-se pelas causas previstas no art. 1476º, designadamente “… por morte do usufrutuário, ou chegado o termo do prazo por que o direito foi conferido, quando não seja vitalício” (nº1, al. a)).
Daí que os direitos de uso e habitação também se extingam por morte do respectivo titular.

Deste modo, a morte do CC determinou a extinção do direito de habitação, pelo que do mesmo não pode beneficiar a ré.

Afirma, todavia, a recorrente que, convencida que está do seu direito, e ocupando uma casa "clandestina", não podia ser condenada a pagar qualquer indemnização.

A causa de pedir da autora é formulada no pressuposto da verificação do seu pretendido direito de propriedade, direito esse que torna ilegítima, por sem qualquer título bastante, a ocupação pela ora ré.
Invoca a autora a circunstância de, após a aquisição, ter pretendido entrar na posse do prédio, mas não o ter conseguido, pois que a ré o vem ocupando desde a data da venda, não o entregando/desocupando, nem mesmo depois de notificada para o efeito, o que lhe causa prejuízos na medida em que não pode ali executar a construção urbana projectada para o lote.

Neste âmbito, ficou provado que a ré, presentemente, habita a referida casa e que a autora teve projectada uma construção/moradia para o prédio identificado, destinando-o à construção. Porém, tem visto a obra de edificação sobre a totalidade do lote 15 dificultada pela não entrega da casa pela ré.
Provados os pressupostos do direito de indemnização da autora, queda sem razão a argumentação da recorrente.

Finalmente, alega a recorrente que constitui abuso de direito a decisão, de a "despejar", dada a sua idade avançada (nasceu no dia 04.10.1921 e o facto de sempre ter residido na casa reivindicada e aí ter criado os filhos.


O abuso de direito – art. 334º do Código Civil – traduz-se no exercício ilegítimo de um direito, resultando essa ilegitimidade do facto de o seu titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Não basta, porém, que o titular do direito exceda os limites referidos, sendo necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório daqueles valores.
Como não se exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo, isto é, não é necessário que tenha a consciência de que, ao exercer o direito, está a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo seu fim social ou económico, basta que, na realidade (objectivamente), esses limites tenham sido excedidos de forma nítida e clara, assim se acolhendo a concepção objectiva do abuso do direito (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pag. 217).
A complexa figura do abuso de direito, como é sublinhado no Acórdão do STJ, de 21.9.93 (C.J., III, pag. 21), citando Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 1958, pags. 63 e sgs.; Almeida Costa, Direito das Obrigações, pags. 60 e sgs.; Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pags. 298 e sgs. e Antunes Varela, RLJ, 114º-75, «é uma cláusula geral, uma válvula de segurança, uma janela por onde podem circular lufadas de ar fresco, para obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social, à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico inoperante em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito por lei conferido; existirá abuso de direito quando, admitido um certo direito como válido em tese geral, aparece, todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito; dito de outro modo, o abuso de direito pressupõe a existência e a titularidade do poder formal que constitui a verdadeira substância do direito subjectivo, mas este poder formal é exercido em aberta contradição, seja com o fim (económico e social) a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético-jurídico (boa fé e bons costumes) que, em cada época histórica, envolve o seu reconhecimento».

A Relação considerou que a autora não agiu com abuso de direito.

Cremos que julgou bem.

Dos factos assentes, podemos concluir que assistia à autora o direito de reclamar da ré a entrega da casa, o que fez pouco tempo depois da morte do seu marido, por carta datada de 26.04.1999, certo que, como se disse, não dispunha a recorrente de qualquer título que legitimasse a ocupação.
4.
Face ao exposto, decide-se negar a revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 17 de Abril de 2008

Oliveira Rocha ( relator)
Oliveira Vasconcelos
Serra Baptista