Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
974/19.8T8AVR.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE DIAS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
NEXO DE CAUSALIDADE
CULPA DO LESADO
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
CULPA EXCLUSIVA
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
CONHECIMENTO PREJUDICADO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 03/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - O art. 505º, do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objetiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

II - Um veículo automóvel em marcha contribui, devido à força cinética resultante da sua velocidade, o volume e a massa (tudo riscos próprios da circulação do veículo), para a violência da projeção decorrente do embate, tendo aptidão para provocar lesões potencialmente letais.

III - Dado que o art. 679º exclui a aplicação remissiva de todo o preceituado no art. 665º, ambos do CPC, tal significa que foi retirada a possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça se substituir de imediato à Relação. Daí que quando o acórdão da Relação não estiver afetado por uma nulidade, mas dele emergir apenas que não apreciou determinada questão, por considerá-la prejudicada pela solução então encontrada, uma vez revogado o acórdão, impõe-se a remessa dos autos à Relação para que nesta sejam apreciadas as questões omitidas.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, 1ª Secção.



AA e mulher BB, residentes em lugar do …, freguesia de …, concelho de …, instauraram a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, destinada a efetivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, demandando a ré, Ageas Portugal, Companhia de Seguros S. A., com sede em Rua …, n.º …, …, pedindo a condenação desta a pagar-lhes a quantia de €135.000,00 (cento e trinta e cinco mil euros) a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, calculados à taxa legal, desde a citação, até integral pagamento.

Em síntese, alegam ter ocorrido um acidente de viação, em que foram intervenientes, o filho dos autores, que conduzia um velocípede sem motor, e um veículo ligeiro de passageiros, matrícula ...-DS-..., conduzido por CC. Do acidente resultou uma vítima mortal, o filho dos autores, sendo estes os seus únicos herdeiros. Imputam a causa do sinistro à conduta culposa do condutor do veículo ligeiro de passageiros. Alegam os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos cujo ressarcimento peticionam.

Subsidiariamente, na eventualidade de não se apurar a culpa do condutor do veículo, pedem que a ré seja condenada a título de responsabilidade pelo risco.

A ré contestou, declinando a responsabilidade do condutor do veículo seu segurado e alegando uma outra versão do acidente, para concluir que o mesmo ocorreu por culpa da vítima.

Termina pedindo a improcedência da ação e sua absolvição do pedido.

Tramitada a causa, após audiência final, foi proferida sentença, que se reproduz na sua vertente dispositiva:

Decisão:

Pelo exposto, decide-se julgar totalmente improcedente a presente acção e absolver a ré do pedido nela formulado.

Custas pelos autores – artigo 527, ns.º 1 e 2 do CPC.”

Inconformados, os autores vieram recorrer desta decisão, sendo deliberado no acórdão da Relação:

“Pelo exposto, decide-se julgar totalmente improcedente o recurso em apreço confirmando-se integralmente a decisão proferida em primeira instância.

Custas pelos apelantes”.

Novamente inconformados vieram interpor recurso de Revista excecional, para este STJ, formulando as seguintes conclusões:

“A.

Entendem os recorrentes que cabe recurso de revista excepcional do acórdão ora proferido pelo Tribunal da Relação …, nos termos das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil.

B.

A doutrina e jurisprudência tradicionais têm entendido que em matéria de acidentes de viação, a verificação de qualquer das circunstâncias referidas no artigo 505.º do Código Civil, maxime, ser o acidente imputável a facto, culposo ou não, do lesado, exclui a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, não se admitindo o concurso do perigo especial do veículo com o facto da vítima, de modo a conduzir a uma repartição de responsabilidade: a responsabilidade pelo risco é afastada pelo facto do lesado.

C.

Ora, esta corrente doutrinal e jurisprudencial engloba as situações mais díspares e não distingue as condutas culposas das não culposas e dentro daquelas as de culpa mais grave das de culpa mais leve, conduzindo muitas vezes a resultados chocantes e injustos e mostra-se ainda insensível ao alargamento crescente, por influência do direito comunitário, do âmbito da responsabilidade pelo risco e da expressa consagração da hipótese da concorrência entre o risco da actividade do agente e um facto culposo do lesado, que tem tido tradução em recentes diplomas legais.

D.

No entanto, nestes últimos anos, tem vindo a surgir jurisprudência que privilegia uma interpretação progressista e actualista do artigo 505.º do Código Civil, no sentido de nele se acolher a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo.

E.

In casu, quer a 1.ª instância, quer o Colendo Tribunal da Relação … consideraram culposa a actuação do lesado, e que a culpa na produção do acidente coube na totalidade àquele, pelo que com base nesta conclusão a decisão de que ora se recorre arredou a possibilidade de aplicação da tese actualista i.é. a concorrência entre o risco e o facto do lesado.

F.

A decisão recorrida, partindo da conclusão de que o lesado teve culpa na produção do acidente, afastou logo a responsabilidade do condutor do veículo ligeiro de passageiros sem sequer ter apreciado a hipótese de este poder ser responsabilizado pelo risco.

G.

Ademais, o douto acórdão recorrido, ao não ter equacionado nem apreciado a responsabilidade do condutor do ligeiro com base no risco, mesmo havendo culpa do lesado, encontra-se em contradição com outro acórdão do STJ já transitado em julgado no domínio da mesma legislação - artigos 503.º, 505.º e 570.º do CC - e sobre a mesma questão fundamental de direito - concorrência de culpa e risco em acção emergente de acidente de viação, designadamente o acórdão proferido em 28-03-2019 no Processo n.º 954/13.7TBPMS.C1.S1 (cuja cópia se junta).

H.

Sendo certo que não foi proferido acórdão de uniformização de jurisprudência sobre a matéria em questão.

I.

Apesar da diversidade da matéria de fado, pois que, como é natural, não existem acidentes iguais, o acórdão-fundamento, numa situação de facto equiparável à dos autos, decidiu atribuir indemnização ao lesado com base na concorrência entre a culpa do lesado e o risco inerente à circulação do veículo automóvel, quando os tribunais a quo a tinham afastado, por concluírem ser o acidente imputável a título de culpa ao sinistrado, sem se ter demonstrado qualquer parcela de culpa do condutor do veículo envolvido.

J.

In casu, o Tribunal a quo concluiu pela culpa do condutor do velocípede – que efectuou o atravessamento da via prioritária sem ter imobilizado, previamente, o mesmo, no sinal de STOP; que trajava indumentária de cor escura e sem que o velocípede estivesse provido de dispositivos luminosos ou reflectores e sem ser portador de capacete (cfr. pontos 22.º, 23.º e 24.º da matéria de facto provada) – deixando de apreciar a possibilidade de responsabilidade objectiva do outro interveniente, o condutor do ligeiro de passageiros.

K.

Ademais, o douto acórdão recorrido, ao afastar a culpa do condutor do automóvel, apesar de este circular acima do limite máximo legal estabelecido para o local do acidente (circulava entre os 50 e 60km/hora), entra em contradição com outro acórdão do STJ já transitado em julgado, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2018, no processo 1685/15.9T8CBR.C1.S1 (cuja cópia se junta).

L.

Apesar de não estarmos também perante situações comparáveis (o que sempre será virtualmente impossível quando se trata de acidentes de viação) certo é que o Acórdão de que ora se recorre não teve em consideração que o ligeiro não circulava a uma velocidade adequada ao local da ocorrência, pelo que circulava em velocidade excessiva, violando as normas ínsitas no Código da Estrada, mormente os artigos 24.º e 25.º.

M.

Entendem os recorrentes que do quadro fáctico dos autos resulta que a culpa do lesado não é exclusiva e que o condutor do veículo ligeiro deve ser responsabilizado pelo risco, ou mesmo até a título de culpa.

N.

Deve entender-se que para o acidente concorreu também o risco do próprio veículo automóvel – como se lê num dos aresto citados “um veículo automóvel é dotado de maior capacidade lesiva activa” - cuja perigosidade, em abstracto, decorre da sua própria natureza.

O.

Acresce ainda que o condutor do velocípede (um utilizador vulnerável) se deslocar – de acordo com as regras da experiência – a uma velocidade reduzida face ao veículo que lhe embateu, o que não pode ser entendido como facto culposo.

P.

Deste modo, a condução do ligeiro está indiscutivelmente ligada à ocorrência do acidente, enquanto máquina de funcionamento complexo. Dentro dos riscos próprios do veículo, a que se refere o artigo 503.º do Código Civil cabem “além dos acidentes provenientes de máquinas de transporte, os ligados ao outro termo do binómio que assegura a circulação desse veículo (o condutor)” - A. Varela "Das Obrigações em Geral", vol. I, 7.ª edição, pág. 664.

Q.

Dos factos provados fica a noção de que o condutor do veículo automóvel podia, e devia, ter atuado de forma diferente, reduzindo significativamente a velocidade para responder de forma mais adequada às circunstâncias do local, isto é, um cruzamento normalmente atravessado por ciclistas e peões que se deslocam para uma padaria/pastelaria e para uma agência bancária. O que aliás era do conhecimento do condutor do ligeiro (cfr. ponto 27.º da matéria de facto provada).

R.

O que, de acordo com a interpretação actualista do preceituado no artigo 505.º do Código Civil reclama a subsunção desta situação concursal de causas de dano à norma da repartição do dano que é o artigo 570.º do Código Civil, repartição que deve ser efectuada em igual proporção de 50% para o lesado e 50% para o risco do veículo.

S.

Salvo o devido respeito, os recorrentes entendem que o acórdão recorrido violou por errada interpretação e aplicação o disposto nos artigos 503.º, 505.º e 570.º do Código Civil, bem ainda o disposto nos artigos 24 e 25.º do Código da Estrada.

T.

Pelo que deve proceder-se a repartição de responsabilidades de forma proporcional nos termos ora enunciados, ou noutra proporção que se entenda melhor adequada ao caso concreto,

U.

E deve ser atribuída aos Autores (pais do lesado, vítima mortal), a quantia €67.500,00 (sessenta e sete mil e quinhentos euros) para indemnização dos danos não patrimoniais sofridos por estes.

Termos em que,

Deve o presente Recurso ser considerado provido nos termos enunciados nas conclusões”.

Respondeu a ré seguradora concluindo que deverá ser mantida a decisão proferida nos autos, indeferindo-se o recurso interposto pelos autores.


*


Sendo interposto recurso de revista excecional, pela Formação foi deliberada a admissão.

No acórdão de admissão foi referido: “Pese embora as diretrizes da jurisprudência do STJ acima citada em torno da admissibilidade da concorrência entre o risco e a culpa à luz de uma interpretação atualista e conjugada dos artigos 505.° e 570.° do CC, em sintonia com as Diretivas da União Europeia, não se afigura que tais diretrizes se encontrem ainda inteiramente sedimentadas à escala da demais jurisprudência, como parece decorrer da posição assumida pelas instâncias, ao afastar, de forma automática, a aplicação da responsabilidade pelo risco em caso de culpa do lesado”.

Considerando como relevante: “i) - Está em causa um acidente ocorrido entre um veículo automóvel ligeiro e um velocípede, do qual resultou a morte do condutor deste,

ii) - A factualidade provada não se afigura de molde a tornar, de todo, inviável ou prejudicada a discutibilidade da questão da concorrência entre a culpa atribuída ao condutor do velocípede e o risco próprio do veículo DS, a qual foi suscitada pelos A.A. ao longo da ação;

iii) - Todavia, as instâncias não equacionaram essa questão por se considerar que o regime consagrado nos artigos 505.°, 506.° e 570.° do CC não admite a concorrência entre a culpa do lesado, tida por exclusiva, e o risco próprio do veículo colidente, com aparente alheamento do entendimento que tem vindo a ser seguido pela jurisprudência do STJ no sentido de que esse regime não afasta, automaticamente, a possibilidade dessa concorrência;

iv) - Tal questão envolve, segundo a tese dos Recorrentes, no contexto específico do caso, a consideração do condutor do velocípede como utilizador viário vulnerável e a ponderação da adequação causal entre a gravidade do dano sofrido por aquele ciclista e o seu grau de culpa na eclosão do acidente ou o risco próprio do veículo DS, aspetos estes cujos parâmetros não se encontram ainda inteiramente estabilizados ou consolidados na nossa jurisprudência”.

Concluindo que se tem “por verificado o invocado pressuposto da revista excecional previsto na alínea a) do n.° 1 do art.° 672.° do CPC com o alcance alargado a todo o objeto do recurso”.

Cumpre apreciar e decidir.


*


Temos como mero lapso de escrita a referência nos pontos 12 e 15 da matéria de facto, ao veículo BN quando o veículo segurado na ré é DS “matrícula ...-DS-...”.

Nas Instâncias foram julgados como provados os seguintes factos:

“1. No dia … de Março de 2016, cerca das 06h15m, ao Km … da Estrada Nacional 109, na freguesia de …, concelho de …, ocorreu um acidente de viação.

2.º Nesse dia faleceu DD, filho dos Autores, que são os seus únicos e universais herdeiros, tendo DD falecido no estado de solteiro e sem descendentes (habilitação de herdeiros de fls. 35 a 38)

3.º No dia referido em 1º, pelas 06h15m, DD conduzia um velocípede sem motor e atravessava o cruzamento da Estrada Nacional (EN) 109, ao Km …, na freguesia de …, concelho de …, vindo da Rua … em direção à Rua da …, ambas perpendiculares à mencionada estrada nacional.

4.ºÀ mesma hora e local, mas no sentido V…/M… da EN 109, circulava um veículo ligeiro de passageiros de cor preta, marca …, modelo …, matrícula ...-DS-..., conduzido por CC.

5.ºOs dois veículos intervenientes efetuavam as suas marchas de forma perpendicular entre si e vieram a colidir fronto/lateralmente, ocorrendo o ponto máximo de impacto (embate) em plena via da direita da EN 109, considerando o sentido de circulação do veículo ligeiro de passageiros.

6.º Após tal embate, o veículo ligeiro imobilizou-se a 18 metros do ponto de impacto;

7.º Tendo DD sido projetado sobre a sua zona lateral direita e caído no solo a 6 metros e meio da parte frontal do automóvel, em relação ao ponto em que este se imobilizou.

8.º O embate dá-se sensivelmente a 1m do lado direito da via, atento o sentido de marcha do DS.

9.º No local do sinistro, a via caracteriza-se por ser uma reta, com pelo menos 100 metros de comprimento, com sete metros de largura, 3,5m para cada lado, dois sentidos de trânsito e com traço misto (M3 – linha contínua adjacente a linha descontínua) permitindo o atravessamento do cruzamento supra referido;

10.ºÀ hora em que ocorreu o sinistro – 6h15m -, o dia estava a amanhecer, havia alguma claridade.

11.º O tráfego era ainda reduzido e não existiam quaisquer obstáculos na via que obstassem à normal circulação rodoviária ou que impedissem a visibilidade e o piso encontrava-se seco.

12.º DD já tinha atravessado a hemi faixa esquerda, atento o sentido de trânsito do BN e estava a atravessar a hemi-faixa direita, quando foi embatido lateralmente pelo veículo ligeiro:

13.º O DS vinha a uma velocidade compreendida entre os 50 a 60 Km/h;

14.º O condutor era o único ocupante do veículo ligeiro de passageiros, é … e nesse dia tinha terminado um turno de seis horas (das 23h45 às 05h45), - sentindo-se um pouco fatigado;

15.º O condutor do BN não se apercebeu da presença do ciclista, apenas o viu quando embateu nele;

16.º DD fazia aquele percurso regularmente, para ir tomar o pequeno-almoço à pastelaria “B…”;

17º A EN 109, no local em causa, era ladeada de habitações e espaços comerciais, situando-se dentro de uma localidade;

18.º No local do sinistro existe pelo menos um poste de iluminação noturna;

19.º Na EN 109, no local do sinistro, não existe qualquer tipo de sinalização, seja vertical, seja horizontal, seja semafórica;

20.º A Rua do …, para quem circule na mesma e pretendia passar a circular no interior da EN 109, tem um sinal de STOP;

21.º O DS circulava com as luzes na posição de “médios”.

22.º O condutor do velocípede efetuou o atravessamento da via prioritária sem ter imobilizado, previamente, o mesmo, no sinal de STOP que existe na Rua do … para o trânsito que pretende passar a circular na EN 109.

23.º O condutor do velocípede trajava indumentária de cor escura, não se encontrando o velocípede provido de dispositivos luminosos ou refletores que permitissem a sua referenciação quando visualizado de frente, traseira ou lateralmente.

24.º O condutor do velocípede não era portador de capacete.

25.º Como consequência direta e necessária do embate, DD sofreu as lesões melhor identificadas no relatório de autópsia médico-legal, designadamente lesões traumáticas meningo-encefálicas, torácica abdómino-pélvicas, raqui-meningo-medulares, cervico-dorso-lombares e de ambos os membros inferiores, tendo aquelas resultado na sua morte, ocorrida no dia … de Março de 2016, pelas 06h56, no local do acidente de viação. (fls. 75 a 84)

26.º O titular do seguro do veículo ligeiro de passageiros, de marca …, modelo Golf, matrícula ...-DS-..., conduzido por CC, havia transferido para a Ré a garantia da responsabilidade civil emergente da circulação do mesmo, através de contrato de seguro automóvel titulado pela apólice com o n. 0045…39 (fls. 131)

27.º O condutor do veículo segurado da Ré, reside na freguesia de …, conhecia o local do acidente, nomeadamente as características da via, os espaços envolventes e o facto de, naquele cruzamento em específico (o da B…), ser um local com muito tráfego.

28.º À data do acidente DD tinha cinquenta e cinco (55) anos de idade, tendo nascido do dia … de Maio de 1960. (fls. 38)

29.º Era um homem cheio de energia e bem disposto, que gostava de estar sempre ativo e vivia com os pais, sendo solteiro.

30.º Era conhecido e estimado pelos habitantes da freguesia, habituados a vê-lo circular de bicicleta;

31.º DD auferia uma pensão mensal por invalidez de €219,95 (duzentos e dezanove euros e noventa e cinco cêntimos) da Segurança Social (fls. 91).

32.º A morte de DD deixou para os Autores um vazio enorme nas suas vidas e nos seus corações, com desgosto, tristeza, solidão;

33.º O sinistrado não prestava alimentos a qualquer um dos Autores.


*


O tribunal considerou não provados designadamente os seguintes factos:

Petição:

13.º: sobre a visibilidade provou-se o que consta do artigo 10º.

17.º provado apenas o que consta do facto 12º;

36.º Provado apenas o que consta do artigo 27º”.


*


Conhecendo:

São as questões suscitadas pelos recorrentes e constantes das respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar – artigos 608, 635, nº 3 a 5 e 639, nº 1, do C.P.C.

No caso em análise, tendo em conta o decidido pela Formação, questiona-se:

- Concorrência entre a culpa atribuída ao condutor do velocípede e o risco próprio do veículo DS;

- Em função do que for decidido sobre esta questão, a eventual análise e decisão sobre os pedidos formulados na ação.


*


Concorrência entre culpa e risco dos intervenientes no acidente:

As instâncias entenderam verificar-se culpa exclusiva da vítima (filho dos autores), na ocorrência do acidente.

Importa averiguar se a culpa atribuída à vítima constitui óbice, ou não, à concorrência com o risco próprio do veículo segurado na ré, interveniente no acidente.

Da matéria de facto resulta que o acidente ocorreu num cruzamento de estradas e foram intervenientes, a vítima que seguia num velocípede sem motor e o condutor do veículo ligeiro de passageiros segurado da ré.

O condutor do velocípede atravessava o cruzamento da Estrada Nacional (EN) 109, vindo da Rua do … em direção à Rua da … ambas perpendiculares à mencionada estrada nacional.

O condutor do veículo ligeiro de passageiros de cor preta, segurado da ré circulava na EN 109, no sentido V…/M… .

Os dois veículos intervenientes efetuavam as suas marchas de forma perpendicular entre si e vieram a colidir fronto/lateralmente, ocorrendo o ponto máximo de impacto (embate) em plena via da direita da EN 109, considerando o sentido de circulação do veículo ligeiro de passageiros.

Após tal embate, o veículo ligeiro imobilizou-se a 18 metros do ponto de impacto,

tendo a vítima sido projetada sobre a sua zona lateral direita e caído no solo a 6 metros e meio da parte frontal do automóvel, em relação ao ponto em que este se imobilizou.

O embate dá-se sensivelmente a 1m do lado direito da via, atento o sentido de marcha do ligeiro de passageiros.

No local do sinistro, a via era em reta, com pelo menos 100 metros de comprimento, com sete metros de largura, 3,5m para cada lado, dois sentidos de trânsito e com traço misto (M3 – linha contínua adjacente a linha descontínua) permitindo o atravessamento do cruzamento suprarreferido.

À hora em que ocorreu o sinistro – 6h15m -, o dia estava a amanhecer, havia alguma claridade.

O tráfego era ainda reduzido e não existiam quaisquer obstáculos na via que obstassem à normal circulação rodoviária ou que impedissem a visibilidade e o piso encontrava-se seco.

A vítima já tinha atravessado a hemi faixa esquerda, atento o sentido de trânsito do BN (DS entendemos nós) e estava a atravessar a hemi-faixa direita, quando foi embatido lateralmente pelo veículo ligeiro.

O DS vinha a uma velocidade compreendida entre os 50 a 60 Km/h.

O condutor era o único ocupante do veículo ligeiro de passageiros, é guarda-noturno e nesse dia tinha terminado um turno de seis horas (das 23h45 às 05h45), - sentindo-se um pouco fatigado.

O condutor do BN (DS entendemos nós) não se apercebeu da presença do ciclista, apenas o viu quando embateu nele.

A vítima fazia aquele percurso regularmente.

A EN 109, no local em causa, era ladeada de habitações e espaços comerciais, situando-se dentro de uma localidade.

Na EN 109, no local do sinistro, não existe qualquer tipo de sinalização, seja vertical, seja horizontal, seja semafórica.

A Rua do …, para quem circule na mesma e pretendia passar a circular no interior da EN 109, tem um sinal de STOP;

O DS circulava com as luzes na posição de “médios”.

O condutor do velocípede efetuou o atravessamento da via prioritária sem ter imobilizado, previamente, o mesmo, no sinal de STOP que existe na Rua do … para o trânsito que pretende passar a circular na EN 109.

O condutor do velocípede trajava indumentária de cor escura, não se encontrando o velocípede provido de dispositivos luminosos ou refletores que permitissem a sua referenciação quando visualizado de frente, traseira ou lateralmente.

O condutor do velocípede não era portador de capacete.

Na fundamentação jurídica diz o acórdão recorrido: “Sabendo-se que “o condutor do velocípede efectuou o atravessamento da via prioritária sem ter imobilizado, previamente, o mesmo, no sinal de STOP que existe na Rua do … para o trânsito que pretende passar a circular na EN 109 e que trajava indumentária de cor escura, não se encontrando o velocípede provido de dispositivos luminosos ou refletores que permitissem a sua referenciação quando visualizado de frente, traseira ou lateralmente, não usando capacete” e apurando-se, por outro lado, que o condutor do veículo automóvel respeitava os limites de velocidade existentes no local e que travou o seu automóvel assim se apercebeu do inopinado, imprevisível aparecimento da vítima, teremos que concluir pela absolvição da demandada/seguradora”.

No entanto esta não é a orientação, numa interpretação atualista (mas já desde há alguns anos) da doutrina e da jurisprudência.

Veja-se o Ac. deste STJ de 04-10-2007, in RLJ ano 137º, nº 3946, pág. 35 e segs., anotado pro Calvão da Silva, com o título “Concorrência entre risco do veículo e facto do lesado: o virar da página?

Nesse acórdão, e no sentido de abandonar a doutrina e jurisprudência tradicionais inspiradas em A. Varela, que considerava que qualquer das circunstâncias referidas no art. 505º, do Cód. Civil excluía a responsabilidade objetiva do detentor do veículo, não se admitindo o concurso do perigo especial do veículo com o facto da vítima, de modo a conduzir a uma repartição da responsabilidade, pois essa orientação tradicional vinha no sentido de a responsabilidade pelo risco ser afastada pelo facto do lesado, escreveu-se: “O texto do art. 505º, do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo”. Entendendo-se que a interpretação tradicional do art. 505º do CC uniformizava as ausências de conduta, as condutas não culposas, as pouco culposas e as muito culposas dos lesados, conduzindo, por vezes a “resultados chocantes”.

E que para a mudança de paradigma influenciou o direito comunitário, com o alargamento do âmbito da responsabilidade pelo risco, consagrando expressamente a hipótese de concorrência entre o risco da atividade do agente e um facto culposo do lesado.

Calvão da silva pronunciava-se na RLJ, Ano 134º, a pág. 115 e sobre “o princípio da concorrência do risco da actividade do agente com a culpa do lesado e a interpretação do art. 505º do Código Civil”, dizendo: “no ensino que ministro na cadeira de «Direito das Obrigações», interpreto assim o preceito transcrito [art. 505º, do CC] :

Sem prejuízo do concurso da culpa do lesado, a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

Equivale isto a admitir o concurso da culpa da vítima com o risco próprio do veículo, sempre que ambos colaborem na produção do dano, sem quebra ou interrupção do nexo de causalidade entre este e o risco pela conduta da vítima como causa exclusiva do evento lesivo. Afora o caso de o facto do lesado (como o facto de terceiro) ter sido a causa única do dano, a responsabilidade fixada pelo nº 1 do art. 503º não é afastada, admitindo-se que a indemnização seja totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.

(…)

Não faz sentido interpretar a 1ª parte do art. 505º (“sem prejuízo do disposto no art. 570º”) como aplicável «havendo culpas de ambas as partes», pois a responsabilidade fixada pelo nº 1 do art. 503º não assenta na culpa do detentor do veículo e o concurso da conduta culposa do detentor/condutor como um facto culposo do lesado está previsto diretamente no art. 570º”.

E esta interpretação atualista venceu barreiras e é hoje sustentada na doutrina e jurisprudência

Conforme Ac. deste STJ e desta Secção, de 25-05-2021, proferido no Processo nº 3883/18.4T8FAR.E1.S1, “A jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça tem admitido que uma interpretação atualista das normas conjugadas dos artigos 505.º e 570.º, n.º 2, ambas do Código Civil, comporta a possibilidade de, em determinados quadros fácticos, se aceitar um concurso entre responsabilidade pelo risco do veículo e culpa do lesado. Esta solução é também imposta pelo princípio de interpretação conforme ao Direito Comunitário, como decorre do Acórdão 2007-10-04 (Processo n.º 07B1710), em cujo sumário se concluiu que «5. O texto do art. 505º do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo. 6. Ao concurso é aplicável o disposto no art. 570º do CC. 7. A este resultado conduz uma interpretação progressista ou actualista do art. 505º, que tenha em conta a unidade do sistema jurídico e as condições do tempo em que tal norma é aplicada, em que a responsabilidade pelo risco é enfocada a uma nova luz, iluminada por novas concepções, de solidariedade e justiça. 8. Ademais, na interpretação do direito nacional, devem ser tidas em conta as soluções decorrentes das directivas comunitárias no domínio do seguro obrigatório automóvel e no direito da responsabilidade civil, já que as jurisdições nacionais estão sujeitas à chamada obrigação de interpretação conforme, devendo interpretar o respectivo direito nacional à luz das directivas comunitárias no caso aplicáveis, mesmo que não transpostas ou incorrectamente transpostas»”.

No mesmo sentido, o Ac. do STJ de 22-06-2021, proferido no Proc. nº 2992/18.4T8AVR.P1.S1 ao referir: “I - A jurisprudência do STJ vem-se firmando actualmente no sentido da admissibilidade da concorrência entre a responsabilidade pelos riscos próprios do veículo e a culpa do lesado (ou imputação do acidente ao lesado), devendo interpretar-se o art. 505º do CC no sentido de que a responsabilidade pelo risco só deve ser afastada quando o acidente for imputável exclusivamente ao próprio lesado ou a terceiro ou resultar exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

II - Ocorrendo um acidente que consistiu num embate entre um veículo pesado de mercadorias e um velocípede sem motor – em que este se atravessou à frente daquele, não permitindo evitar a colisão; que tal ocorreu depois de o velocípede ter entrado na faixa de rodagem, de forma desgovernada, em ziguezague, em direcção ao eixo da via, em consequência de desequilíbrio anterior da tripulante, provocado por razões não apuradas; que não houve culpa do condutor do veículo pesado – deve considerar-se que, nessas circunstâncias, apesar da acentuada relevância causal da conduta da tripulante do velocípede, a gravidade da sua culpa é reduzida, concorrendo com os riscos próprios da circulação do veículo pesado para a eclosão do acidente”.     

Na doutrina e para além do já referido, também Ana Prata in “Responsabilidade civil: duas ou três dúvidas sobre ela”, in Estudos em comemoração dos cinco anos da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2001, pp. 345 e segs., Raul Guichard, em anotação ao artigo 505º do Código Civil, publicada no Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, 2018, p. 416.

E Brandão Proença que defende desde 1997, na sua tese de doutoramento “A conduta do lesado como pressuposto e critério de imputação do dano extracontratual”, Almedina, págs. 275-276, que “a posição tradicional, porventura justificada em certo momento, esquece, hoje, que, por exemplo, o peão e o ciclista (esse «proletariado do tráfego» de que alguém falava) são vítimas de danos, resultantes, muitas vezes, de reacções defeituosas ou pequenos descuidos, inerentes ao seu contacto permanente e habitual com os perigos da circulação, de comportamentos reflexivos ou necessitados (face aos inúmeros obstáculos colocados nas «suas» vias) ou de «condutas» sem consciência do perigo (maxime de crianças) e a cuja danosidade não é alheio o próprio risco da condução”, de tal modo que bem pode dizer-se “que esse risco da condução compreende ainda esses outros «riscos-comportamentos» ou que estes não lhe são, em princípio, estranhos”.

Dos factos provados dúvidas não restam que a infeliz vítima, com a sua conduta, o modo como entrou no cruzamento para atravessar uma estrada prioritária, teve culpa, pois contribuiu de forma determinante, na produção do acidente.

Desconhece-se a causa de a vítima não ter parado no sinal de stop que se lhe deparava pela frente (facto 22), pois aí passava com frequência para ir tomar o pequeno-almoço à pastelaria (facto 16).

Assim como se desconhece a causa motivadora da invalidez da vítima, que recebia pensão de invalidez da segurança social (facto 31), tinha 55 anos e vivia com os pais (factos 28 e 29), mas não lhes prestava alimentos (facto 33).

E era habitual andar de bicicleta (facto 30).

Por outro lado, temos o risco da circulação estradal de um veículo ligeiro de passageiros (risco comum a qualquer veículo automóvel).

Refere Graça Trigo, in “Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade civil por acidente de viação”, in Estudos de homenagem ao Professor Doutor Bernardo da Gama Lobo Xavier, vol. II, UCP, 2015, pág. 486-487 que, “sempre que o veículo se encontre em circulação, a respectiva força cinética faz com que seja causa adequada dos danos ocorridos, mesmo que a conduta do lesado, culposa ou não, tenha sido concausal em relação ao acidente de que resultaram os danos”.

Embora não resulte dos factos provados matéria, da qual possa ser feita a imputação ao condutor do veículo segurado da ré a violação de qualquer norma estradal (conduta ilícita), temos que não é irrelevante na ocorrência do acidente a dinâmica própria da circulação do veículo.

Ao veículo automóvel em marcha se fica a dever, devido à força cinética resultante da sua velocidade (ainda dentro do limite máximo permitido para a circulação dentro da localidade), o volume e a massa (tudo riscos próprios da circulação do veículo), a violência da projeção decorrente do embate e a sua aptidão para provocar lesões potencialmente letais.

Apesar da ausência de luz na bicicleta e a roupa escura da vítima a hora do acidente era o dealbar do dia, pois o nascer do sol no dia do acidente ocorreria cerca de um quarto de hora depois. À hora em que ocorreu o sinistro – 6h15m -, o dia estava a amanhecer, havia alguma claridade (facto10).

O condutor do segurado conhecia o local do acidente, as características da via, os espaços envolventes e o facto de, naquele cruzamento em específico (o da B…), ser um local com muito tráfego (facto 27).

O veículo segurado só foi imobilizado a 18 metros do ponto de impacto (facto 6), tendo a vítima sido projetada sobre a sua zona lateral direita e caído no solo a 6 metros e meio da parte frontal do automóvel, em relação ao ponto em que este se imobilizou (facto7).

O embate dá-se quando a vítima já havia entrado no cruzamento e percorrido quase toda a largura da estrada que pretendia atravessar, com sete metros de largura, 3,5m para cada lado e o embate dá-se sensivelmente a 1m do lado direito da via, atento o sentido de marcha do DS (factos 8 e 9).

No local do sinistro, no sentido do segurado, a via caracteriza-se por ser uma reta, com pelo menos 100 metros de comprimento (facto 9).

Ponderado todo o exposto, temos por adequado fixar a responsabilidade pelo acidente em causa na proporção de 70% para a infeliz vítima e 30% para o veículo automóvel.

Sendo, consequentemente, a ré seguradora responsável por 30% dos danos resultantes do acidente, em virtude do contrato de seguro que vigorava.

No acórdão recorrido, a ação foi julgada improcedente por se ter entendido que o acidente foi causado por culpa exclusiva da vítima.

Tendo-se, agora, concluído pela repartição da responsabilidade, nos termos referidos, a revista deve proceder, com a revogação do acórdão recorrido.

Considerando, porém, o disposto no art. 679º do CPC, que exclui expressamente a aplicação ao recurso de revista do art. 665º do mesmo diploma, o Supremo não pode substituir-se à Relação na fixação da indemnização (questão que ficou prejudicada naturalmente pela solução acolhida no acórdão recorrido), devendo o processo ser remetido à Relação para esse efeito (cfr., neste sentido, o AUJ do STJ nº 11/2015).

Do art. 679º decorre que, como refere Abrantes Geraldes (Recursos no Novo CPC; 2018, págs. 425/426) - uma vez que o atual art. 679º exclui a aplicação remissiva de todo o preceituado no art. 665º, incluindo o nº 2 que trata das aludidas situações que no CPC anterior constavam do nº 2 do art. 715º, tal significa que foi retirada a possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça se substituir de imediato à Relação. Daí que quando o acórdão da Relação não estiver afetado por uma nulidade, mas dele emergir apenas que não apreciou determinada questão, por considerá-la prejudicada pela solução então encontrada, uma vez revogado o acórdão, em lugar da imediata substituição que anteriormente era viável, impõe-se agora a remessa dos autos à Relação para que nesta sejam apreciadas as questões omitidas.

Assim que há-de ser julgado parcialmente procedente o recurso de revista, devendo os autos voltar ao tribunal recorrido, para aí ser fixada a indemnização.


*


Sumário elaborado nos termos do art. 663 nº 7 do CPC:

I - O art. 505º, do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objetiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

II - Um veículo automóvel em marcha contribui, devido à força cinética resultante da sua velocidade, o volume e a massa (tudo riscos próprios da circulação do veículo), para a violência da projeção decorrente do embate, tendo aptidão para provocar lesões potencialmente letais.

III - Dado que o art. 679º exclui a aplicação remissiva de todo o preceituado no art. 665º, ambos do CPC, tal significa que foi retirada a possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça se substituir de imediato à Relação. Daí que quando o acórdão da Relação não estiver afetado por uma nulidade, mas dele emergir apenas que não apreciou determinada questão, por considerá-la prejudicada pela solução então encontrada, uma vez revogado o acórdão, impõe-se a remessa dos autos à Relação para que nesta sejam apreciadas as questões omitidas.


*


Decisão:

Em face do exposto, acordam no STJ e 1ª Secção, em julgar o recurso parcialmente procedente, conceder em parte a revista, revogando-se o acórdão recorrido e, determinando-se a remessa dos autos ao Tribunal da Relação, para que seja fixada a indemnização em função da responsabilidade, que acima ficou definida, do detentor do veículo ligeiro de passageiros (transferida para a ré) e da vítima.

Custas pelos recorrentes e recorrida, na proporção a fixar a final.


Lisboa, 09-03-2022


Fernando Jorge Dias – Juiz Conselheiro relator

Jorge Arcanjo – Juiz Conselheiro 1º adjunto

Isaías Pádua – Juiz Conselheiro 2º adjunto