Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08P3775
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARMÉNIO SOTTOMAYOR
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
CULPA
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
IMPUTABILIDADE DIMINUIDA
ANOMALIA PSÍQUICA
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA DUPLA VALORAÇÃO
REGIME PENAL ESPECIAL PARA JOVENS
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
CUMPRIMENTO DE PENA
INTERNAMENTO
LIBERDADE CONDICIONAL
Nº do Documento: SJ200902180037755
Data do Acordão: 02/18/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário :
I - Os exemplos-padrão do art. 132.º, n.º 2, do CP prendem-se essencialmente com a questão da culpa, pois mesmo quando se referem a um maior desvalor da conduta não é essa circunstância que, por si, determina a qualificação do crime, mas a especial censurabilidade ou perversidade do agente, isto é, o especial tipo de culpa.

II - A densificação dos conceitos de especial censurabilidade ou perversidade obtém-se através de circunstâncias que denunciam uma culpa agravada e que são descritas como exemplo-padrão; a ocorrência destes exemplos não determina, todavia, por si só e automaticamente, a qualificação do crime: assim como a sua não verificação não impede que outros elementos possam ser julgados como qualificadores da culpa, desde que sejam substancialmente análogos aos legalmente descritos.

III -Pressupondo o homicídio qualificado um tipo especial de culpa e sendo a culpa a censurabilidade do facto ao agente, não parece possível, sob pena de grave contradição, que o agente do homicídio qualificado possa agir com uma imputabilidade substancialmente diminuída, designadamente por virtude de doença do foro psiquiátrico.

IV -A especial censurabilidade, a que o crime de homicídio qualificado se reporta, exige um completo domínio do agente para se determinar de acordo com a norma e para avaliar cabalmente a ilicitude do facto, pelo que, só deste modo a culpa poderá ser tida por especialmente censurável, ou seja, este tipo de crime não pode ser cometido num estado de imputabilidade diminuída, pois, neste caso, a culpa não excede o grau da mera censurabilidade – cf. Ac. deste Supremo Tribunal de 18-10-2006, Proc. n.º 2679/06.

V - Não é congruente considerar-se a existência de um homicídio qualificado em razão de uma especial censura ao agente por ter agido com uso de meio insidioso e com reflexão sobre os meios empregados e, depois, atenuar-se extraordinariamente a pena por ter uma imputabilidade diminuída e não se lhe poder censurar inteiramente os seus actos.

VI -Considerando-se agora que o homicídio não é qualificado face ao menor grau de imputabilidade do recorrente, não deve esta mesma circunstância ser valorada outra vez, ainda que positivamente, para se atenuar especialmente a pena.

VII - A aplicação do regime penal relativo a jovens entre os 16 e os 21 anos – regime-regra de sancionamento penal aplicável a esta categoria etária – não constitui uma faculdade do juiz, mas antes um poder-dever vinculado que o juiz deve (tem de) usar sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos.

VIII - O recorrente “é um adolescente com bom desenvolvimento estato-ponderal e quociente de inteligência de tipo superior”, “do certificado de registo criminal relativo ao arguido, nada consta”, “confessou os factos e indicou às autoridades policiais como os praticou”, “o seu crescimento processou-se, nos primeiros anos, sem indícios de desorganização pessoal, mantendo aparentemente um nível de envolvimento adequado com a família bem como razoável ligação e empenho à escola e, mais recentemente, a existência de aspirações educacionais”, “completou, no passado ano lectivo, o 11.º ano, mantendo em atraso a disciplina de matemática do 10.º ano de escolaridade. Encontrava-se inscrito no 12.º ano de escolaridade em Escola Secundária de Leiria, tendo como objectivo o ingresso no ensino superior” e “não obstante o temperamento reservado que o caracterizava, mantinha no meio social e na escola um convívio e integração adequados, tendo constituído no estabelecimento de ensino relações de amizade”, pelo que existem fortes razões para crer que da atenuação especial da pena vai resultar uma apreciável vantagem para a reintegração social do recorrente.

IX -Já ao tempo do crime o recorrente sofria e continua a sofrer de anomalia psíquica [“o arguido é portador de Síndrome de Asperger, o qual é uma forma leve de autismo onde relevam, entre outras características: o prejuízo qualitativamente acentuado na interacção social; a incapacidade de estimar a vida cognitiva, perceptiva e afectiva dos outros, bem como a de si próprio; a combinação de traços temperamentais, como a adaptação lenta ou mesmo inadaptação a situações novas, o baixo nível de actividade, o retraimento perante estímulos estranhos, a fraca intensidade das reacções emocionais e o elevado grau de humor negativo; a evitação de relacionamentos afectuosos e significativos, o afastamento do mundo real para a fantasia, a possibilidade de ocorrência de explosões de impulsos agressivos ou destrutivos”], pelo que o regime próprio dos estabelecimentos prisionais comuns ser-lhe-á prejudicial, pois tenderá a isolar-se, a não se adaptar à nova situação, a não se estimar, podendo vir a ter impulsos agressivos e destrutivos, isto é, a agravar o seu estado de saúde mental.

X - Será do interesse da sociedade, do próprio recorrente e dos seus pais que o tribunal ordene o seu internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena (art. 104.º do CP), pois aí, estando vigiado por profissionais de saúde mental – médicos, enfermeiros e auxiliares –, sujeito à prescrição de medicamentos adequados, correrá menos risco de ter nova atitude tão agressiva como a demonstrada nos autos e poderá vir a obter uma melhor reinserção social.

XI -E nada impede que lhe venha a ser concedida pelo TEP a liberdade condicional nos termos do art. 61.º do CP, nem a colocação em estabelecimento comum, pelo tempo de privação da liberdade que lhe faltar cumprir, se vier a cessar a causa determinante do internamento, o que será avaliado no decurso da execução da pena.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
1. AA foi submetido a julgamento em tribunal colectivo, no âmbito do processo n.º 426/07.9GCLRA do 1º Juízo Criminal de Leiria, tendo sido condenado, por acórdão de 29/04/2008, na pena de 12 anos de prisão, pela prática dum crime de homicídio qualificado, p. e p. nos art.ºs 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2 alíneas h) e i), do Código Penal, beneficiando o arguido de atenuação especial da pena.

Inconformado, recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra e aí, por acórdão de 17/09/2008, foi concedido provimento parcial ao recurso, tendo sido decidido:

a) Quanto à matéria de facto:
1) Alterar o 39) dos factos provados para o seguinte – «Ao agir da forma descrita nas alíneas 1) a 27) o arguido sabia que o que estava a fazer era um acto proibido e punível por lei. Fê-lo ainda voluntariamente pois tinha capacidade de optar por não actuar dessa forma, embora a sua capacidade de auto-determinação se encontrasse fortemente condicionada face ao Síndrome de Asperger de que era portador».
2) E aditar uma outra alínea com o n.º 39-A) aos factos provados, com a seguinte redacção – «Este condicionamento da sua capacidade volitiva fazia com que a sua imputabilidade ficasse sensivelmente diminuída».
b) Quanto à medida da pena: fixar em nove anos de prisão a pena em que o arguido fica condenado (mantendo-se a mesma qualificação jurídica e atenuando-se extraordinariamente a pena).

Desse acórdão da Relação recorre o arguido, ainda inconformado, para o Supremo Tribunal de Justiça e, da sua fundamentação, concluiu o seguinte:

1. O dissídio do recorrente manifesta-se, tão só, no que tange à subsunção jurídica preconizada no acórdão em recurso.

2. Desde logo o Tribunal ignora as repercussões oriundas da consideração do homicídio qualificado como um tipo de culpa construído através técnica legislativa dos "exemplos-padrão".

3. Com efeito, atenta a elaboração típica referenciada, as condições enumeradas no art. 132°/2 do CP não funcionam automaticamente, antes assumindo um papel de índices semióticos da existência de uma especial perversidade ou censurabilidade do agente.

4. O mesmo é dizer que só uma imagem global do facto agravada (para usar a terminologia de FIG. DIAS) que traduza um mais acentuado desvalor de atitude se pode subsumir ao tipo em causa.

5. Ora uma personalidade como a da recorrente é incompatível com esse juízo de culpa agravado; trata-se de uma pessoa mergulhada num estado depressivo, potenciado pela caracteriologia imanente à sua específica personalidade, como tal com a sua liberdade de agir claramente limitada.

6. Neste conspecto é evidente a violação do artigo 132/1 do CP, na medita em que se não levou em conta a verdadeira essência desta figura típica.

7. Violadas se mostram ainda as als. h) e i) do n.º 2 do mencionado artigo 132.º do CP.

8. Na realidade, os autos não traduzem a existência de um "meio particularmente “perigoso"/"insidioso" ou "frieza de ânimo".

9. Relativamente a esta última dir-se-á que o condicionalismo endógeno referido na conclusão 5ª, é incompatível com tal estado de espírito.

10. Já no que tange à existência de "meio insidioso" não se tem por adequado que o efeito surpresa possa alcandorar-se, só por si, a revelar o carácter sub-reptício exigido pela expressão normativa em causa.

Sem prescindir,

11. Finalmente - independentemente do destino das anteriores conclusões - quer o recorrente dar nota do seu dissídio relativamente à pena que lhe foi aplicada.

12. Efectivamente a medida concreta da pena aplicada surge claramente desfasada dos preceitos normativos reitores deste segmento da juridicidade.

13. Designadamente mostram-se violados os art.ºs 71°/1 e 40/2, ambos do CP.

14. Os sobreditos incisos plasmam os critérios determinantes da fixação da medida da pena elegendo, a esse propósito, uma teleologia essencialmente preventiva, todavia temperada pela ideia da culpa.

15. Nomeadamente o n.º 2 do citado artigo 40° estabelece que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa o que é a repristinação do velho brocardo nulla poena sine culpa.

16. Ora é manifesto que a punição que se verbera não levou em conta que a liberdade da agente de agir de acordo com o direito se encontrava diminuída pela patologia que o afligia - Síndroma de Asperger.

17. Razão pela qual a pena aplicada surge como draconiana e em distonia com os preceitos invocados,

18. Impondo a predita normatividade que a pena se fixe num patamar sensivelmente menor.

19. Até porque a moldura penal aplicável oscilava entre um mínimo de dois anos, quatro meses e vinte e quatro dias e um máximo de dezasseis anos e oito meses de prisão,

20. sendo certo que o arguido/recorrente confessou os factos, manifestou pungente arrependimento e não tem qualquer espécie de antecedentes criminais.

21. Condicionalismo que sopesado por um prisma que atenda á prevenção especial - iluminada por uma ideia propedêutica de ressocialização - corroboram a necessidade de fixar a pena num valor numérico inferior.

22. Consigna-se, nos termos do artigo 411°, 5 do CP Penal, que o recorrente pretende a realização de audiência para discutir as questões conexas à qualificação do homicídio e da determinação da pena.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, extraídos os corolários dimanados das “conclusões” tecidas.

O Ministério Público na Relação de Coimbra respondeu, pronunciando-se no sentido da manutenção do julgado.

No visto inicial, o Ministério Público neste Supremo Tribunal promoveu a realização da audiência, a qual fora requerida pelo recorrente.

Foram colhidos os vistos e realizada a audiência com o formalismo legal, tendo o relator, na introdução, suscitado, para além das questões da qualificação jurídica e da medida da pena, a da possibilidade de o arguido, dada a sua anomalia psíquica, ser internado em estabelecimento destinado a inimputáveis.

Pelo defensor do arguido foi desenvolvida a argumentação que, partindo da tese de que o art. 132º do Código Penal é uma forma agravada do homicídio simples previsto no art. 131º por verificação de um tipo de culpa agravado, considera que não deve o arguido ser condenado pelo referido crime, em virtude de a sua culpa se encontrar diminuída devido à doença de que padece, devendo mesmo a pena ser especialmente atenuada perante a moldura do crime de homicídio do art. 131º do Código Penal. Relativamente à possibilidade de o arguido cumprir a pena em estabelecimento destinado a inimputáveis, considera que tal deve depender do resultado da observação clínica que vier a ser feita ao arguido e da conclusão sobre se o regime dos estabelecimentos comuns lhe será prejudicial.

O Ministério Público, por seu turno, sustentou que devem ser mantidas a qualificação jurídica dos factos, bem como a pena aplicada na decisão recorrida, com a consequente improcedência do recurso. Relativamente ao local do cumprimento da pena, manifestou a sua concordância com o internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis, referindo que, desse modo, são observadas os aconselhamentos constantes dos relatórios médicos juntos aos autos, que sugerem que o arguido seja sujeito a adequado tratamento para que a doença não degenere em esquizofrenia e para que não pratique actos semelhantes.

Cumpre decidir.

2. Os factos considerados provados pelas instâncias são os seguintes:

1) Em data não apurada, o arguido tomou a decisão de esfaquear o seu irmão BB, nascido a 29 de Julho de 1995, e por essa forma tirar-lhe a vida.

2) Além disso, pensou em levar à prática esse propósito em circunstâncias tais que posteriormente não fosse possível identificar o autor da prática de tal facto.
3) Com vista a alcançar tal desiderato, o arguido urdiu um plano segundo o qual iria atrair o seu irmão para um local ermo, a cerca de dois quilómetros da casa de habitação onde residia, alegando que havia encontrado uma ninhada de cães recém-nascidos e aí, com uma faca de cozinha, levaria à prática o seu projectado intento de lhe tirar a vida.
4) O arguido projectou ainda desfazer-se da faca utilizada no cometimento daquele acto logo após o ter realizado, e telefonar para os seus pais e para a emergência médica pedindo auxílio para o seu irmão, fazendo crer que este havia sido vítima de um ataque perpetrado por desconhecidos.
5) No dia 25 de Julho de 2007, por volta das 17.05 horas, o arguido encontrava-se na casa de habitação sita na Rua da ..., n.º ..., Vale da ...., Caranguejeira, Leiria, juntamente com o seu irmão BB.
6) Por volta das 17.15 horas, em execução do que havia planeado, o arguido disse ao BB que havia descoberto no pinhal sito nas proximidades da casa onde se encontravam uma ninhada de cães recém-nascidos, e convidou-o a ir lá para lhos mostrar, convite que o BB aceitou, tendo ficado combinado entre ambos que o arguido iria a pé e, quando chegasse aos pretensos cachorros, enviaria uma mensagem escrita por telemóvel para o BB, que então se deslocaria para o local de bicicleta.
7) Entretanto, antes de sair de casa, o arguido muniu-se com uma faca de cozinha (apreendida nos autos) com 23,5 centímetros de comprimento, sendo 12 centímetros de lâmina, a qual estava na cozinha daquela habitação, e que colocou à cintura, entre as calções e as cuecas, tendo-se ainda munido de um par de luvas que colocou nos bolsos dos calções que na ocasião trajava.
8) De seguida, o arguido tomou o caminho do pinhal que confina com a Rua ..., situado a cerca de 1.000 metros da sua residência.
9) Chegado à aludida rua, antes de entrar no pinhal, o arguido enviou uma mensagem escrita pelo telemóvel ao BB, dizendo-lhe para que fosse andando para o pinhal.
10) O BB recebeu a aludida mensagem e colocou-se ao caminho, fazendo-se transportar na sua bicicleta.
11) Entretanto, o arguido, após ter percorrido diversos caminhos no interior do aludido pinhal, chegou às imediações de uma linha de água situada num local conhecido por Vale da Janeca.
12) Aí, o arguido recebeu uma chamada no seu telemóvel realizada pelo BB, o qual pretendia saber ao certo onde aquele se encontrava.
13) Então, o arguido deu-lhe indicações precisas sobre a sua localização e, no seguimento dessas indicações, o BB chegou junto do arguido cerca de 1 minuto depois.
14) Mal aí chegou, o BB largou a bicicleta e encaminhou-se em direcção do arguido que, de imediato, apontou na direcção da mencionada linha de água e disse que estavam ali os cães.
15) Face a tal indicação, o BB deu alguns passos na direcção onde alegadamente estariam os cães, passando para a frente do arguido e ficando com as suas costas viradas para este.
16) Aproveitando tal situação, o arguido colocou então a sua mão esquerda sobre o ombro esquerdo do BB e, após ter retirado a faca que trazia à cintura, empunhou-a e deferiu um golpe nas costas do BB.
17) Ao sofrer tal golpe, o BB gritou e procurou virar-se para ficar face a face com o arguido mas, ao efectuar o indicado movimento de rotação, entrou em desequilíbrio e caiu no solo, ficando então deitado de costas no chão.
18) Aproveitando essa situação, o arguido acercou-se mais do BB e desferiu-lhe 15 facadas que atingiram o BB na cabeça, tronco e membros superiores pese embora, aquando das primeiras facadas, o BB tenha procurado defender-se tentando afastar o arguido com os seus membros superiores e inferiores.
19) Quando o BB perdeu as forças e deixou de esboçar qualquer reacção às facadas, o arguido calçou as luvas com que vinha munido e limpou nelas a faca que tinha ficado ensanguentada.
20) Posteriormente, o arguido telefonou primeiro para o pai e depois para a mãe, informando-os que o BB tinha sido esfaqueado e que estava morto.
21) Após, o arguido telefonou para o 112 pedindo auxílio e dando como ponto de referência a Rua ... com o intuito de orientar o pessoal da emergência médica na identificação do local da ocorrência.
22) Entretanto, o arguido começou a fazer o percurso inverso àquele que inicialmente havia realizado até à Rua .... .
23) Após ter percorrido cerca de 200 metros, o arguido encontrou dois indivíduos que andavam à lenha e a quem comunicou que tinham matado o seu irmão à facada.
24) Depois de ter percorrido mais alguns metros, o arguido saiu do caminho principal em que seguia, entrou cerca de 20 metros para dentro da vegetação e, no meio de uns arbustos de pequeno porte, lançou as aludidas faca e luvas.
25) Em consequência das indicadas facadas perpetradas pelo arguido, o BB sofreu as seguintes lesões físicas:
- No hábito externo:
Na cabeça: uma ferida cortante a nível médio, no lábio superior direito, oblíqua da direita para a esquerda, com 1,5 centímetro de comprimento;
No pescoço: uma ferida perfurante, horizontal, a 0,5 centímetro para a esquerda da proeminência laríngea, com 16 milímetros de comprimento por 4 milímetros de afastamento de bordos; uma ferida perfurante, com 11 centímetros de comprimento por 5 milímetros de afastamento de bordos (que designaremos por “ferida A”), situada para baixo e para a esquerda da ferida perfurante anteriormente referida (sendo que ambas as feridas tinham uma das pontas aguda e a outra romba); e quatro feridas incisas, superficiais, lineares, na face anterior esquerda do pescoço, entrecruzando-se, medindo a maior 7 centímetros de comprimento;
No tronco: ao nível da face posterior: ferida perfurante de orientação parasagital, vertical, na região dorsal a nível da base da omoplata esquerda e para dentro da mesma, medindo cerca de 11 milímetros de comprimento e com uma das pontas aguda e outra romba; ao nível da face anterior: uma ferida perfurante, elíptica, de bordos regulares, com 37 milímetros de comprimento por 14 milímetros de afastamento de bordos, superiormente colocada a 6 centímetros do mamilo esquerdo (que designaremos por “ferida B”); uma ferida perfurante mais pequena, adjacente a esta, ligeiramente abaixo e à esquerda desta, com cauda para cima e para a esquerda; uma ferida perfurante à esquerda, a 1 centímetro da linha média, medindo 2 centímetros de comprimento por 16 milímetros de afastamento de bordos, oblíqua para baixo e para a esquerda (que designaremos por “ferida C”); a 1 centímetro desta, e mais acima, uma ferida cortante e superficial, curvilínea de concavidade ascendente, para fora e para a esquerda, com 8 milímetros de comprimento; 7 centímetros para baixo e para fora da linha mamilar esquerda sobre o rebordo costal do mesmo lado, outra ferida perfurante, oblíqua para baixo e para dentro medindo 2 centímetros de comprimento por 6 milímetros de afastamento de bordos (que designaremos por “ferida D”);
No abdómen: complexo de três feridas cortantes, superficiais, medindo a maior e mais medial (que distava do umbigo, para baixo e para fora, quatro centímetros) 16 milímetros de comprimento por 6 milímetros de afastamento de bordos, com a forma de feijão;
Nos membros superiores: uma ferida perfurante na face anterior do terço superior do braço direito, com trajecto horizontal para a esquerda, estendendo-se da região deltoideia à clavicular direita, medindo 2 centímetros de comprimento por 6 milímetros de afastamento e com cerca de 6 centímetros de profundidade; outra ferida, distando 4 centímetros, para baixo e para fora, com 7 milímetros de comprimento (superficial); uma ferida cortante superficial com 3 centímetros de comprimento no terço médio do bordo medial do antebraço direito; uma ferida cortante superficial com 9 milímetros de comprimento na face posterior do terço inferior do antebraço direito; uma ferida perfurante no terço inferior do braço esquerdo com 0,5 centímetro de comprimento; uma ferida perfurante na face posterior do cotovelo esquerdo com 18 milímetros de comprimento; uma ferida perfurante, com 18 milímetros de comprimento, na face anterior do terço superior do antebraço esquerdo; uma ferida perfurante na face palmar da mão esquerda com 4 milímetros de comprimento; uma ferida cortante no dorso da mão esquerda com 16 milímetros;
Nos membros inferiores: uma ferida cortante com 13 milímetros de comprimento, vertical de dentro para fora, no terço médio da face externa da perna esquerda;
- No hábito interno:
No pescoço:
Ao nível do tecido celular subcutâneo e músculos: uma ferida perfurante do esternocleidomastoideu esquerdo em correspondência com a lesão perfurante referida acima como “ferida A”;
Ao nível dos vasos: uma ferida transfixiva da veia jugular esquerda com infiltração sanguínea ao longo da bainha carótida, mas sem perfurar a artéria carótida vizinha, em relação com a “ferida A”;
No tórax:
Ao nível das paredes: uma perfuração do grande peitoral esquerdo, com 3,5 centímetros de comprimento por 1,5 centímetros, no 2.º espaço intercostal esquerdo a 2,5 centímetros do bordo esquerdo do esterno, com orientação oblíqua para fora e para baixo (“ferida B”); uma perfuração a 4 centímetros da linha média, com 2,5 centímetros de comprimento, perfurando o músculo oblíquo externo esquerdo acima da 6.º costela, cortando o bordo superior desta, oblíqua para baixo e para dentro (“ferida D”);
Ao nível do esterno: uma ferida perfurante junto ao bordo direito, a nível do 4.º espaço intercostal, com 2 centímetros de comprimento, com orientação de cima para baixo e para dentro (“ferida C”);
Ao nível das costelas cartilagem e clavícula esquerda: uma ferida no bordo do arco posterior da 6.ª costela em relação à ferida perfurante dorsal;
Ao nível do pericárdio e cavidade pericárdica: hemopericardio e uma ferida perfurante da face esquerda do saco pericárdico, com cerca de 1 centímetro de comprimento;
Ao nível da aorta: perfuração da porção ascendente por ferida transfixiva medindo na parte anterior 13 milímetros e, na parte posterior, 5 milímetros (“ferida B”), situada a uma profundidade aproximada de 10 centímetros;
Ao nível do pulmão esquerdo e pleura visceral: uma ferida transfixiva na parte média do lobo superior medindo 1 centímetro de comprimento na face anterior e 8 milímetros na parte posterior (“ferida B”) a uma profundidade de cerca de 10 centímetros da superfície do corpo; uma ferida perfurante interessando a língula pulmonar e correspondente à “ferida D”;
Ao nível do timo: uma ferida perfurante superficial do lado esquerdo do timo (“ferida B”);
No abdómen:
Ao nível das paredes: uma ferida perfurante ao nível do músculo recto esquerdo do abdómen, perfurando o peritoneu parietal, com 1,5 centímetro, em relação com a maior das 3 feridas do complexo lesional abdominal descrito no hábito externo, sem infiltração sanguínea;
Ao nível do peritoneu e cavidade peritoneal: uma pequena perfuração do peritoneu parietal atrás referida;
Na coluna vertebral: uma ferida dos músculos paravertebrais em relação com a ferida perfurante descrita no dorso, atingindo o espaço inter-vertebral D6/D7 e apófise transversa direita de D7, com perfuração da dura e sem aparente lesão medular;
Nos membros:
Ao nível dos superiores: uma ferida perfurante do ombro direito de fora para dentro e da direita para a esquerda, horizontal, com aproximadamente 6 centímetros de profundidade, atingindo a região infra-clavicular direita;
Ao nível dos inferiores: uma infiltração sanguínea resultante das lesões neles verificadas no hábito externo.
26) Em consequência directa e necessária das descritas lesões torácicas, o Ricardo Alexandre perdeu a vida.
27) Ao agir da forma descrita, o arguido visou tirar a vida ao Ricardo Alexandre, como conseguiu.
28) Nos últimos tempos da sua vida, o arguido vinha percepcionando que o seu pai o tratava de forma desigual relativamente ao seu irmão BB, afigurando-se ao arguido que o BB era favorecido pelo seu pai em relação ao arguido. Uma das últimas situações que o arguido entendeu como sendo um favorecimento do BB em relação ao arguido foi a oferta de uma mota pequena ao BB por parte do pai de ambos, sem que ao arguido tivesse sido dada oferta similar.
29) Tais circunstâncias e crença por parte do arguido, conjugadas com as características da sua personalidade e a sua condição mental, contribuíram para que este tomasse a decisão de tirar a vida ao seu irmão e a executasse.
30) O arguido é um adolescente com bom desenvolvimento estato-ponderal e quociente de inteligência de tipo superior (Valor 129).
31) A nível da personalidade, apresenta exacerbados traços de egocentrismo, fantasia e ambição, aspirações intelectuais, com sentimentos de narcisismo e imaturidade afectiva, carácter obstinado e de posição, agressividade e impulsos de poder físico, controle racional com expressão de arrogância e de desdém. Projecta pouca capacidade representacional e de ressonância interna tanto a nível cognitivo como afectivo consequente ou anterior aos seus próprios comportamentos.
32) O arguido tem uma personalidade com traços psicopáticos e problemas de adaptação, podendo vir a desenvolver uma perturbação da personalidade consequente.
33) O seu perfil retrata uma personalidade pautada por acentuada imaturidade afectiva, com comportamentos manifestamente regressivos face ao seu grupo etário e extremamente dependente das figuras parentais. As pessoas com este tipo de personalidade tendem e denotar grande insegurança, com défices marcados ao nível da sua autonomização, e revelam por isso elevados níveis de ansiedade nos processos de tomada de decisão e de resolução de problemas. A tolerância à frustração é baixa e mostram um padrão de resposta marcado pela impulsividade e pela facilidade na passagem ao acto.
34) O perfil do arguido regista também uma personalidade instável, com tendência para a manifestação de actos que poderão resultar num elevado risco para o próprio ou para terceiros.
35) No plano relacional, revela atitude extremamente egocêntrica, denotando pouco interesse pelos direitos dos outros e pelas consequências das suas atitudes; revela postura reservada, com dificuldades na exteriorização dos seus afectos e no estabelecimento de relações afectivas próximas. Apresenta baixa ressonância afectiva, com uma certa incapacidade em estabelecer relações empáticas e afectivas. Mostra-se desconfiado e interpretativo, ficando excessivamente ofendido perante as mais pequenas críticas ou repreensões. Denota uma postura rígida, com um pensamento pragmático e muitas vezes dicotómico, não permeável à opinião de terceiros ou às experiências desconfirmatórias das suas crenças.
36) Tem tendência para um carácter metódico e perfeccionista, com emergência de eventuais comportamentos obsessivos e ritualizados.
37) O arguido é portador de Síndrome de Asperger, o qual é uma forma leve de autismo onde relevam, entre outras características:
- o prejuízo qualitativamente acentuado na interacção social e os padrões restritos, repetitivos e estereotipados de comportamento, interesses e actividades, sem que, em simultâneo, se percepcione um atraso geral clinicamente significativo na linguagem, no desenvolvimento cognitivo ou no desenvolvimento de um comportamento adaptativo (excepto para as áreas de funcionamento/interacção social ou ocupacional, que surgem fortemente afectadas);
- a incapacidade de estimar a vida cognitiva, perceptiva e afectiva dos outros, bem como a de si próprio, onde a falta de ressonância afectiva intersubjectiva pode comprometer seriamente o experienciar sentimentos de vergonha, remorso ou arrependimento; egocentrismo, incapacidade de compreender as indicações sociais e aparente dificuldade para perceber o que os outros estão sentindo. O paciente pode ter compreensão técnica de que as outras pessoas têm sentimentos, mas é caracteristicamente incapaz de responder a elas adequadamente. Em decorrência disso, tende a basear-se em regras rígidas e formais do comportamento, para poder lidar com as situações sociais;
- a combinação de traços temperamentais, como a adaptação lenta ou mesmo inadaptação a situações novas, o baixo nível de actividade, o retraimento perante estímulos estranhos, a fraca intensidade das reacções emocionais e o elevado grau de humor negativo, que tendem a contribuir para o evidenciar de comportamentos pouco assertivos, particularmente em épocas de stress;
- a evitação de relacionamentos afectuosos e significativos, o afastamento do mundo real para a fantasia, as preocupações com devaneios ou com assuntos esotéricos e as dificuldades de conferirem as suas experiências com a realidade externa não deixam de contribuir para desvios no processo de pensamento, que se torna idiossincrático, permitindo que a realidade se confunda com a ficção, ainda que para o exterior apenas trespasse o quadro de indiferença, apatia, falta de iniciativa e humor inconstante;
- a possibilidade de ocorrência de explosões de impulsos agressivos ou destrutivos, enquanto resposta desfocada da realidade, por incapacidade de manusear intra-psiquicamente a agressão e a hostilidade.
38) O Síndrome de Asperger assume a condição de doença de carácter heredo-constitucional (neuro-psiquiátrico desenvolvimental), que determina forte condicionalismo em termos de personalidade e da capacidade volitiva do arguido. O seu tratamento deve ser feito por haver tendência para a esquizofrenia. Na ausência de tratamento, existe o perigo de repetição do tipo de actos como o descrito nas als. 1) a 27). O tratamento do doente com medicação e psicoterapia pode levar à sua estabilização, sendo que, porém, a cura não é possível.
39) Ao agir da forma descrita nas alíneas 1) a 27) o arguido sabia que o que estava a fazer era um acto proibido e punível por lei. Fê-lo ainda voluntariamente pois tinha capacidade de optar por não actuar dessa forma, embora a sua capacidade de auto-determinação se encontrasse fortemente condicionada face ao Síndrome de Asperger de que era portador.
39-A) Este condicionamento da sua capacidade volitiva fazia com que a sua imputabilidade ficasse sensivelmente diminuída.
40) Do certificado de registo criminal relativo ao arguido, nada consta.
41) O arguido confessou os factos e indicou às autoridades policiais como os praticou, bem como onde colocara a faca e luvas supra referidas.
42) O arguido pertence a uma família com favoráveis condições sócio-económicas, sendo o mais velho de dois irmãos. O seu crescimento processou-se, nos primeiros anos, sem indícios de desorganização pessoal, mantendo aparentemente um nível de envolvimento adequado com a família bem como razoável ligação e empenho à escola e, mais recentemente, a existência de aspirações educacionais.
43) Na sua plataforma familiar, verificou-se porém um crescente nível de conflito entre os pais e dificuldade na gestão dos papéis parentais, evidenciando o arguido sinais manifestos de ansiedade, hostilidade e retraimento comunicacional.
44) Nesse contexto, e por solicitação da sua mãe, o arguido iniciou em Junho de 2005 acompanhamento psicológico, apresentando sentimentos de forte intensidade emocional, frustração, zanga e raiva, expressos essencialmente ao nível familiar. A dificuldade na gestão dos afectos e na capacidade de exprimir as suas emoções e sentimentos levou a uma proposta de intervenção assente em sessões regulares e de periodicidade quinzenal de psicoterapia. Em 2 de Maio de 2006, o arguido, não obstante a positiva adesão ao acompanhamento, decidiu afastar-se do processo terapêutico, não tendo este, no entanto, sido considerado concluído pelo respectivo terapeuta.
45) A separação dos pais do arguido, ocorrida em Dezembro de 2006, levou ao confronto do arguido com um conjunto de rupturas no quadro familiar onde a dissociação ao nível afectivo parece ter sido marcante.
46) Após a separação dos pais, o arguido, por sua iniciativa – e por resistência à mudança –, manteve-se a viver com o pai, passando a mãe – a quem, por decisão judicial, fora confiado o filho mais novo – a residir num apartamento arrendado em Pousos, Leiria. A mãe do arguido continuou, porém, a ser um elemento fundamental e participativo no quotidiano do arguido.
47) O arguido estabelecia com o pai um relacionamento reservado ao nível comunicacional, mantendo com a mãe uma relação mais próxima.
48) O arguido completou, no passado ano lectivo, o 11.º ano, mantendo em atraso a disciplina de matemática do 10.º ano de escolaridade. Encontrava-se inscrito no 12.º ano de escolaridade em Escola Secundária de Leiria, tendo como objectivo o ingresso no ensino superior.
49) Não obstante o temperamento reservado que o caracterizava, mantinha no meio social e na escola um convívio e integração adequados, tendo constituído no estabelecimento de ensino relações de amizade.
50) O arguido deu entrada no Estabelecimento Prisional Regional de Leiria em 27 de Julho de 2007. Fortemente descompensado, reiniciou naquele Estabelecimento Prisional, por solicitação própria e com aceitação dos pais, um programa de acompanhamento psicológico com o seu Psicólogo. Os pais manifestam disponibilidade para prestarem apoio ao arguido, continuando porém a existir uma latente instabilidade no meio familiar, agravada pelos factos acima referidos, que se repercute negativamente na interacção entre os diversos elementos.
51) Em 16 de Junho de 2005, o arguido apresentava problemas ao nível da auto-imagem e funcionamento afectivo, nomeadamente: dificuldade de modelação das suas descargas emocionais; dificuldade em lidar com situações emocionalmente mais complexas; tendência para ser mais negativista e oposicionista; auto-imagem desvalorizada; tendência para intelectualizar a sua auto-imagem; tendência para manifestar comportamentos de dependência; presença de interferências emocionais nas suas actividades de mediação; dificuldades ao nível da organização de pensamento.
52) Observado novamente em 17 de Janeiro de 2008, o arguido apresentou problemas ao nível da auto-imagem, dos seus relacionamentos interpessoais e funcionamento afectivo. Devido às suas dificuldades no âmbito relacional, o arguido tende a sentir com frequência episódios depressivos. As suas dificuldades relacionais parecem dever-se não só a uma certa inaptidão para as relações mas também devido a uma auto-estima bastante desvalorizada. Para fazer face à situação, o arguido tende a recorrer, principalmente, ao evitamento e à fantasia, aumentando o seu isolamento social e consequente compensação de necessidades e, por outro lado, torna o seu pensamento menos convencional e distorcido, facilitando os episódios em que não controla a sua ideação. Este evitamento, tanto das situações emocionais como das situações relacionais, tem impedido que o arguido desenvolva novos recursos mais adaptativos para fazer face às diversas exigências das situações. Como reacção à situação actual, o arguido tem vindo a sentir um aumento do seu mal-estar que se faz sentir tanto a nível ideativo como emocional.

3. As principais questões a decidir são:

1 – Qualificação do crime de homicídio;

2 – Medida da pena;

3 – Utilidade do internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena, nos termos do art.º 104.º do C. Penal.

4. As instâncias foram unânimes em caracterizar o crime cometido pelo recorrente como de homicídio qualificado, p. e p. nos art.ºs 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2 alíneas h) e i), do Código Penal.

E, apesar do arguido ter colocado à Relação de Coimbra a questão de não dever o homicídio ser qualificado, por estar provado que agiu sob uma imputabilidade diminuída, a Relação não aceitou os seus argumentos, justificando o seu entendimento nos seguintes termos:
«A perícia não afirma que o arguido não seja imputável; embora saibamos que afirma a sua imputabilidade como sensivelmente diminuída. Nem do artigo 20º/2 do Código Penal resulta que a inimputabilidade seja uma inevitabilidade em todos os casos de sensível diminuição da capacidade volitiva. Também da decisão de facto não resulta expresso que o arguido não se deixe influenciar positivamente pelo cumprimento da pena.
E o facto do arguido ter a sua capacidade de se auto-determinar diminuída nos termos supra referidos não será, a nosso ver, óbice à integração da conduta no tipo de homicídio qualificado.
Efectivamente, a anomalia psíquica do agente não o afectava ao nível da consciência, da compreensão da gravidade dos factos e da sua valoração, mas tão só ao nível do controlo da vontade.
O arguido possuía uma capacidade normal para compreender o desvalor da sua conduta. E o desvalor desta pode variar em função da espécie e modos de execução do facto, constituindo uma base de graduação da ilicitude que se repercute na medida da pena.
O elemento subjectivo geral do tipo, o dolo, é uma entidade complexa portadora de sentidos diversos consoante a sua valoração é objecto da ilicitude ou da culpa: em sede de tipo de ilícito, enquanto determinante da direcção do comportamento, o dolo entende-se como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo; como forma de culpa, enquanto modo de formação da vontade que conduz ao facto, o dolo é portador do desvalor da atitude pessoal contrária ao direito (1).
O conhecimento compreensivo que o arguido tinha da carga da ilicitude decorrente do modo da sua acção não deixa de acarretar maior censurabilidade a esta, censurabilidade que só posteriormente deve ser atenuada [atenuação extraordinária da pena] face à presença de alguma limitação do agente ao nível do auto-domínio.
O art.º 132º trata duma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi consumada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. Nesta medida pode afirmar-se que a especial censurabilidade se refere às componentes da culpa relativas ao facto, ou seja, funda-se naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa (2) como consequência de um maior grau de ilicitude do facto.
Como refere Teresa Serra (ob. cit., pp. 65/66), “Uma análise, ainda que breve, das mencionadas circunstâncias, evidencia, pelo menos no que a parte delas respeita, um mais acentuado desvalor da conduta que implica um maior grau de ilicitude (…). No caso do homicídio consumado, o aumento da ilicitude resulta do maior desvalor da conduta e pode estar relacionado (…) com os modos de execução do facto (…). Desta maneira, parece evidente que as circunstâncias do n.º2 do art.º 132º traduzem tanto um aumento da ilicitude e, logo em regra, um aumento correlativo do grau de culpa, como um maior desvalor da culpa decorrente da intervenção de elementos autónomos, não relacionados com a ilicitude (…). Embora se compreendam as razões que levam à afirmação de que as referidas circunstâncias constituem elementos da culpa, dela retirando as devidas consequências designadamente para a problemática da participação, não parece que se mostre necessário recorrer a tais meios para alcançar os fins sistemáticos desejados”.
O referido parece-nos justificar que o tribunal parta da moldura penal do tipo qualificado atenta a maior ilicitude do facto decorrente do modo da sua execução e só depois se pondere a imputabilidade diminuída do agente decorrente duma menor capacidade de auto-domínio.
3.3.2- O tribunal recorrido afirma uma actuação insidiosa «pois atraiu a vítima sob falso pretexto para um local ermo e, após, estando esta de costas, desferiu o primeiro golpe com uma faca. A actuação do arguido revela assim que procurou surpreender a vítima, agindo de forma dissimulada, retirando praticamente toda a capacidade de reacção da vítima».
Estas considerações parecem-nos correctas já que o meio é insidioso quando torna especialmente difícil a defesa da vítima. Será insidioso o meio cuja forma assuma características enganadoras, sub-reptícias ou ocultas. Na insídia o agente aproveita a distracção da vítima para actuar; age enganando-a; cria uma situação que a coloca em posição de não poder resistir como em circunstâncias normais sucederia. Trata-se dum conceito que abarca os meios aleivosos, traiçoeiros e desleais. Ora, a actuação do arguido foi quanto à vítima totalmente inesperada e traiçoeira.
Também concordamos com o tribunal ao ponderar que «houve reflexão sobre os meios empregues»: a escolha dum sítio distante de casa e ermo –, facilitador da sua actuação e que, na sua óptica, também impediria a sua descoberta como agente do crime; a invenção da história do ninho de cachorrinhos –, de modo a atrair o irmão ao local convidando-o a ir ter com ele de bicicleta sem lhe revelar previamente o sítio; o preparar-se para o acto que projectou com uma faca de cozinha e um par de luvas, todas estas circunstâncias revelam essa reflexão.
Há apenas a clarificar que a qualificação do crime por uma destas circunstâncias faz com que a outra seja tomada como circunstância agravante geral na concreta determinação da pena (cfr. Teresa Serra, ob. cit., pág. 102).»

O tipo legal fundamental dos crimes contra a vida encontra-se descrito no art. 131º do Código Penal, sendo desse preceito que a lei parte para, nos artigos seguintes, prever as formas agravada e privilegiada, fazendo para tanto acrescer, ao tipo-base, circunstâncias que o qualificam por revelarem especial censurabilidade ou perversidade ou que o privilegiam por constituírem manifestação de uma diminuição da exigibilidade.
A Relação de Coimbra julgou verificada a existência de um homicídio qualificado por entender que o modo de execução do crime revela uma maior ilicitude da conduta do agente, tendo adiado para o momento em que analisasse a possibilidade de atenuação extraordinária da pena a ponderação da imputabilidade diminuída do arguido decorrente de uma menor capacidade de autodeterminação.

Embora dividida, a doutrina vem entendendo que os exemplos-padrão definidos no art.º 132.º do Código Penal se prendem essencialmente com a questão da culpa, pois mesmo quando que se referem a um maior desvalor da conduta (por exemplo, no caso de homicídio cometido na pessoa do pai ou do filho), não é essa circunstância que, por si, determina a qualificação do crime, mas a especial censurabilidade ou perversidade do agente, isto é, o especial tipo de culpa.
Refere o Prof. Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, pág. 26) que “a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a «especial censurabilidade ou perversidade» do agente.” E esclarece que a lei pretendeu imputar “à «especial censurabilidade» aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas e à «especial perversidade» aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas”.
Acerca dos conceitos de censurabilidade e perversidade, escreve Teresa Serra (Homicídio Qualificado – Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 63): “Dominantemente, entende-se que só se pode decidir que a morte foi causada em circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade do agente através de uma ponderação global das circunstâncias externas e internas presentes no facto concreto.
A ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No art. 132º, trata-se duma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. Nesta medida, pode afirmar-se que a especial censurabilidade se refere às componentes da culpa relativas ao facto, ou seja, funda-se naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude.
Importa salientar – continua ainda esta autora – que a qualificação de especial se refere tanto à censurabilidade como à perversidade. A razão da qualificação do homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada. Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete. No homicídio qualificado o que está em causa é uma diferença essencial de grau que permite ao juiz concluir pela aplicação do art. 132º ao caso concreto, após a ponderação da circunstância indiciadora presente ou de outra circunstância susceptível de preencher o chamado Leitbild dos exemplo-padrão.”
Isto é, a densificação dos conceitos de especial censurabilidade ou perversidade obtém-se através de circunstâncias que denunciam uma culpa agravada e que são descritas como exemplos-padrão. A ocorrência destes exemplos não determina, todavia, por si só e automaticamente, a qualificação do crime; assim como a sua não verificação não impede que outros elementos possam ser julgados como qualificadores da culpa, desde que sejam substancialmente análogos aos legalmente descritos. Conforme se afirmou em acórdão deste Supremo Tribunal, relatado pelo Conselheiro Rodrigues da Costa (ac. de 07-07-2005, proc. 1670/05 – 5ª secção): “é preciso que, autonomamente, o intérprete se certifique de que, da ocorrência de qualquer daquelas circunstâncias resultou em concreto a especial censurabilidade ou perversidade. Como inversamente, não será um maior desvalor da acção do agente ou um aspecto especialmente desvalioso da sua personalidade documentado no facto que dará origem ao preenchimento do tipo de culpa agravado, sendo necessário que essa atitude se concretize em qualquer dos exemplos-padrão ou em qualquer circunstância substancialmente análoga. É que estes são elementos típicos, embora atinentes ao tipo de culpa e não ao tipo de ilícito e daí que, mesmo no caso de ocorrência de outra circunstância que não a exactamente prevista, esta tenha de assentar numa estrutura valorativa correspondente à do respectivo exemplo-padrão.”
Insere-se esta decisão na jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça segundo a qual “a qualificação do crime de homicídio qualificado não é consequência irrevogável da existência de qualquer das circunstâncias constantes do n.º 2 do artigo 132.º do CP. Essencial, é que, as circunstâncias em que o agente comete o crime revelem uma especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, uma censurabilidade ou perversidade distintas (pela sua anormal gravidade) daquelas que, em maior ou menor grau, se revelem na autoria de um homicídio simples” (ac. de 21-05-1997 - proc. n.º 188/97). Não considera, portanto, o Supremo a qualificação do crime de homicídio como uma consequência automática do preenchimento de algum dos exemplos-padrão, entendendo que as circunstâncias ali enunciadas se reportam à culpa. Conforme se decidiu no ac. 14-07-2006 - proc. 1926/06, “o que vem a conferir ao tipo qualificado características de tipo de culpa é o facto de ser sempre decisivo que da actuação do arguido, preenchendo uma qualquer circunstância coincidente com a do exemplo-padrão ou circunstância de estrutura análoga, resulte uma especial censurabilidade ou perversidade, pois se, não obstante ocorrer uma circunstância do tipo aludido, se não verificar aquela, a realização do tipo qualificado tem-se por excluída.”

Do que ficou exposto resulta, assim, que o homicídio qualificado pressupõe um tipo especial de culpa e sendo culpa a “censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito” (Teresa Serra, ibidem), então não parece possível, sob pena de grave contradição, que o agente do homicídio qualificado possa agir com uma imputabilidade substancialmente diminuída, designadamente por virtude de doença do foro psiquiátrico.
Efectivamente, constituindo a imputabilidade a capacidade de, no momento da prática do facto, avaliar a sua ilicitude e de se determinar de acordo com essa avaliação (art.º 20.º, n.º 1, do CP, a contrario), a diminuição sensível dessa capacidade de avaliação ou de determinação por causa de uma determinada anomalia psíquica pode não fazer cair o agente no campo da inimputabilidade (conforme se decidiu no acórdão recorrido, entendendo que não se verificavam os pressupostos do n.º 2 do art. 20º), mas impede, seguramente, a formulação de um juízo de especial censura acerca da culpa do agente. Dito de outra forma: a especial censurabilidade a que se reporta o crime de homicídio qualificado exige um completo domínio do agente para se determinar de acordo com a norma e para avaliar cabalmente a ilicitude do facto, pelo que, só deste modo a culpa poderá ser tida por especialmente censurável; ou seja: este tipo de crime não pode ser cometido num estado de imputabilidade diminuída, pois, neste caso, a culpa não excede o grau da mera censurabilidade. Neste sentido, decidiu o STJ no ac. de 18-10-2006 – proc. 2679/06.

A decisão recorrida deve, portanto, ser corrigida quanto à qualificação jurídica do crime praticado pelo recorrente, que é o de homicídio simples, p. e p. no art.º 131.º do C. Penal.
Aliás, não seria congruente considerar a existência de um homicídio qualificado em razão de uma especial censura ao agente por ter agido com uso de meio insidioso e com reflexão sobre os meios empregados e, depois, atenuar-se extraordinariamente a pena por ter uma imputabilidade diminuída e não se lhe poder censurar inteiramente os seus actos…

5. O tribunal recorrido considerou que, num quadro de homicídio qualificado, havia sérias razões para atenuar especialmente a pena, enunciando as seguintes razões:
Quanto à pena, entendemos que esta deverá ser especialmente atenuada face ao menor grau de imputabilidade do arguido. (3) .
Na óptica pericial, da anomalia do arguido poderá decorrer “uma eventual perigosidade difícil de avaliar desde já”, pelo que carece antes do mais de «adequada reabilitação sócio/terapêutica». (4)
Neste caso especial dum jovem psiquicamente afectado mas motivado para a vida, a pena deve quedar-se na medida do necessário à sua recuperação social. E atenta a sua idade (17 anos) uma pena excessivamente prolongada que lhe coarcte todos os sonhos e perspectivas do futuro por si idealizado, só trará efeitos nefastos à finalidade de recuperação.
Parece-nos, pois, que a pena deve ser reduzida face à menor imputabilidade do arguido e às finalidades das penas. Com efeito as razões de diminuição da culpa são, em princípio, também comunitariamente compreensíveis e aceitáveis e determinam que, no caso concreto, as exigências de tutela dos bens jurídicos e de estabilização das normas sejam menores. (5)
Perante as especiais características do caso assume especial relevo a prevenção especial positiva. E já vimos que, face à anomalia psíquica de que é portador, o que mais sobreleva no caso não é a pena mas o tratamento psicoterapêutico do arguido.
No especial contexto em que um jovem mata o irmão apenas por “ciúme” dos carinhos paternos a este dispensados em medida superior, a finalidade de prevenção geral deverá ceder perante a prevenção especial positiva [recuperação social do arguido] dando-se pouco relevo à prevenção especial negativa.(6)
A pena abstracta, ou seja, a penalidade do tipo qualificado especialmente atenuada vai de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses de prisão.
Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo depuseram a favor e contra o agente.
O arguido confessou os factos para os quais não tem uma explicação pessoal; manifesta arrependimento e não tem quaisquer antecedentes. Será, a nosso ver, ainda um jovem socialmente promissor desde que sujeito a adequada reabilitação sócio/terapêutica e a pena a aplicar lhe não coarcte de vez qualquer reinserção social.
Ponderados todos os factores e o mais que ficou dito, temos por equilibrada uma pena que se fixe próxima da média da penalidade abstracta. Fixa-se, assim, a pena em nove anos de prisão.»

Considerando-se agora que o homicídio não é qualificado face ao menor grau de imputabilidade do recorrente, não deve esta mesma circunstância ser valorada outra vez, ainda que positivamente, para se atenuar especialmente a pena.
A pena aplicável ao arguido seria, assim, a prevista no art.º 131.º do Código Penal – 8 a 16 anos de prisão.
Contudo, a 1ª instância não havia aplicado ao recorrente o regime especial para jovens adultos, decorrente do art.º 4.º do Dec.-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro, apesar de aquele ter, à data dos factos, 17 anos de idade (nascido em 11/12/1989), essencialmente, por considerar que não seria legalmente possível uma dupla atenuação especial da pena e, ainda que assim não fosse, por existirem razões de prevenção especial – a necessidade de fazer sentir ao recorrente o desvalor da conduta – que desaconselhariam tal dupla atenuação.
Agora, portanto, há que reponderar a aplicação do regime para jovens adultos, pois, no caso afirmativo, já não se estará perante uma dupla atenuação especial da pena.

Coloca-se, portanto, o problema de saber se não deve ser aplicado o disposto no Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro, que prevê um regime especial para jovens delinquentes, com idades compreendidas entre os 16 e os 21 anos de idade, designadamente, a atenuação especial da pena de prisão, quando da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado (art.º 4.º).
Sobre esta questão, o art.º 9.º do Código Penal indica que aos maiores de 16 anos e menores de 21 são aplicáveis normas fixadas em legislação especial. Tal legislação especial foi organizada pelo Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro, cujo n.º 2 do art. 1.º esclarece que é considerado jovem para os seus efeitos o agente que, à data do crime, tiver completado 16 anos sem ter ainda atingido os 21 anos.
O que é caso do recorrente.
Ora, uma corrente deste Supremo Tribunal, a que temos aderido, tem vindo entender que “a aplicação do regime penal relativo a jovens entre os 16 e os 21 anos – regime-regra de sancionamento penal aplicável a esta categoria etária – não constitui uma faculdade do juiz, mas antes um poder-dever vinculado que o juiz deve (tem de) usar sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos. … A oficiosidade da aplicação e do conhecimento de todas as questões que lhe pertinem resulta da natureza dos interesses que se visam proteger, na realização de uma irrecusável (...) opção fundamental de política criminal, e da própria letra da lei ao usar a expressão “deve” com significado literal de injunção”. (ac. de 11-06-2003, recurso 1657/03-3).
«A atenuação especial da pena prevista no art. 4.° do DL 401/82 não se funda nem exige “uma diminuição acentuada da ilicitude e da culpa do agente” nem, contra ela, poderá invocar-se “a gravidade do crime praticado e/ou a defesa da sociedade e/ou a prevenção da criminalidade”. Pois, por um lado, a lei não exige - para que possa operar – a «demonstração de» (mas a simples «crença em») «sérias razões» de que «da atenuação resultem vantagens para a [sua] reinserção social» (cfr. STJ 27-02-2003, recurso 149/03-5). E, por outro, «a atenuação especial da pena a favor do jovem delinquente não pressupõe, em relação ao seu comportamento futuro, um “bom prognóstico”, mas, simplesmente, um “sério” prognóstico de que dela possam resultar “vantagens” para uma (melhor) reinserção social do jovem condenado» (ibidem).
Tanto mais que, «tratando-se de jovens delinquentes, são redobradas as exigências legais de afeiçoamento da medida da pena à finalidade ressocializadora das penas em geral». Efectivamente, se, quanto a adultos não jovens, a reintegração do agente apenas intervém para lhe individualizar a pena entre o limite mínimo da prevenção geral e o limite máximo da culpa, já quanto a jovens adultos essa finalidade da pena, sobrepondo-se então à da protecção dos bens jurídicos e de defesa social, poderá inclusivamente - bastando que “sérias razões” levem a crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado” - impor, independentemente da sua (menor) culpa, o recurso à atenuação especial da pena» (ac. STJ de 29-01-2004 – proc. 3767/03-5): «O que o art. 9.º do CP trouxe de novo aos chamados jovens adultos foi, além do mais, a imperativa atenuação especial (“deve o juiz atenuar”), mesmo que o princípio da culpa o não exija, quando “haja razões sérias para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado” (art. 4.º do DL 401/82)» (ibidem). «A atenuação especial dos art.ºs 72.º e 73.º do CP, uma das principais manifestações do princípio da culpa (ou seja, o de que a pena, ainda que fique aquém do limite mínimo da moldura de prevenção, “em caso algum pode ultrapassar a medida da culpa” - art. 40.º, n.º 2), beneficia, evidentemente, tanto adultos como jovens adultos. Mas, relativamente aos jovens adultos (art. 2.º do DL 401/82) - e, aí, a diferença -, essa atenuação especial pode fundar-se não só no princípio da culpa (caso em que essa atenuação especial recorrerá aos art.ºs 72.º e 73.º do CP) como, também ou simplesmente, em razões de prevenção especial (ou seja, de reintegração do agente na sociedade)» (ibidem). Nem poderá invocar-se, contra a atenuação especial da pena, o perigo de reincidência (a menos, claro, que esse perigo só possa concretamente debelar-se mediante um dissuasor reforço da pena de prisão).
Como se afirma no Ac. deste STJ de 21-09-2006, proc. 3062-06 (relator Cons. Carmona da Mota), de onde respigámos esta jurisprudência, «Relativamente a jovens adultos, em suma, a atenuação especial da pena de prisão - quando (concretamente) aplicável – apenas será de afastar se contra-indicada por uma manifesta ausência de «sérias razões» para se crer que, dela, possam resultar vantagens para a reinserção social do jovem condenado

Ora, para além do problema psiquiátrico relatado nos factos provados e de que falaremos adiante, provado ficou que o recorrente “é um adolescente com bom desenvolvimento estato-ponderal e quociente de inteligência de tipo superior”, “do certificado de registo criminal relativo ao arguido, nada consta”, “confessou os factos e indicou às autoridades policiais como os praticou”, “o seu crescimento processou-se, nos primeiros anos, sem indícios de desorganização pessoal, mantendo aparentemente um nível de envolvimento adequado com a família bem como razoável ligação e empenho à escola e, mais recentemente, a existência de aspirações educacionais”, “completou, no passado ano lectivo, o 11.º ano, mantendo em atraso a disciplina de matemática do 10.º ano de escolaridade. Encontrava-se inscrito no 12.º ano de escolaridade em Escola Secundária de Leiria, tendo como objectivo o ingresso no ensino superior” e “não obstante o temperamento reservado que o caracterizava, mantinha no meio social e na escola um convívio e integração adequados, tendo constituído no estabelecimento de ensino relações de amizade.
Há, assim, fortes razões para crer que da atenuação especial da pena, ao abrigo do disposto no art.º 4.º do Dec.-Lei n.º 40/82, de 23 de Setembro, vai resultar uma apreciável vantagem para a sua reintegração social.
Deste modo, nos termos dos art.ºs 131.º e 73.º, n.º 1, als. a) e b), do C. Penal, a pena aplicável ao recorrente variará entre 1 ano, 7 meses e 6 dias a 10 anos e 8 meses de prisão.
Atendendo às fortes necessidades de prevenção geral, resultantes de homicídio praticado com um grau de ilicitude muito elevado, a pena deve fixar-se em 7 (sete) anos de prisão.

6. O art. 104º do Código Penal permite que:
1 - Quando o agente não for declarado inimputável e for condenado em prisão, mas se mostrar que, por virtude de anomalia psíquica de que sofria já ao tempo do crime, o regime dos estabelecimentos comuns lhe será prejudicial, ou que ele perturbará seriamente esse regime, o tribunal ordena o seu internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena.
2 - O internamento previsto no número anterior não impede a concessão de liberdade condicional nos termos do artigo 61.º, nem a colocação do delinquente em estabelecimento comum, pelo tempo de privação da liberdade que lhe faltar cumprir, logo que cessar a causa determinante do internamento.

Ficou provado que:
37) O arguido é portador de Síndrome de Asperger, o qual é uma forma leve de autismo onde relevam, entre outras características:
- o prejuízo qualitativamente acentuado na interacção social e os padrões restritos, repetitivos e estereotipados de comportamento, interesses e actividades, sem que, em simultâneo, se percepcione um atraso geral clinicamente significativo na linguagem, no desenvolvimento cognitivo ou no desenvolvimento de um comportamento adaptativo (excepto para as áreas de funcionamento/interacção social ou ocupacional, que surgem fortemente afectadas);
- a incapacidade de estimar a vida cognitiva, perceptiva e afectiva dos outros, bem como a de si próprio, onde a falta de ressonância afectiva intersubjectiva pode comprometer seriamente o experienciar sentimentos de vergonha, remorso ou arrependimento; egocentrismo, incapacidade de compreender as indicações sociais e aparente dificuldade para perceber o que os outros estão sentindo. O paciente pode ter compreensão técnica de que as outras pessoas têm sentimentos, mas é caracteristicamente incapaz de responder a elas adequadamente. Em decorrência disso, tende a basear-se em regras rígidas e formais do comportamento, para poder lidar com as situações sociais;
- a combinação de traços temperamentais, como a adaptação lenta ou mesmo inadaptação a situações novas, o baixo nível de actividade, o retraimento perante estímulos estranhos, a fraca intensidade das reacções emocionais e o elevado grau de humor negativo, que tendem a contribuir para o evidenciar de comportamentos pouco assertivos, particularmente em épocas de stress;
- a evitação de relacionamentos afectuosos e significativos, o afastamento do mundo real para a fantasia, as preocupações com devaneios ou com assuntos esotéricos e as dificuldades de conferirem as suas experiências com a realidade externa não deixam de contribuir para desvios no processo de pensamento, que se torna idiossincrático, permitindo que a realidade se confunda com a ficção, ainda que para o exterior apenas trespasse o quadro de indiferença, apatia, falta de iniciativa e humor inconstante;
- a possibilidade de ocorrência de explosões de impulsos agressivos ou destrutivos, enquanto resposta desfocada da realidade, por incapacidade de manusear intra-psiquicamente a agressão e a hostilidade.
38) O Síndrome de Asperger assume a condição de doença de carácter heredo-constitucional (neuro-psiquiátrico desenvolvimental), que determina forte condicionalismo em termos de personalidade e da capacidade volitiva do arguido. O seu tratamento deve ser feito por haver tendência para a esquizofrenia. Na ausência de tratamento, existe o perigo de repetição do tipo de actos como o descrito nas als. 1) a 27). O tratamento do doente com medicação e psicoterapia pode levar à sua estabilização, sendo que, porém, a cura não é possível.
Resulta, assim, que o recorrente, não tendo sido declarado inimputável e estando agora condenado numa pena de prisão, já ao tempo do crime sofria e continua a sofrer de anomalia psíquica. Mais resulta que o regime próprio dos estabelecimentos comuns lhe será prejudicial, pois tenderá a isolar-se, a não se adaptar à nova situação, a não se estimar, podendo vir a ter impulsos agressivos e destrutivos, isto é, a agravar o seu estado de saúde mental. Sendo certo que, o perito médico Dr. C... L..., que procedeu à perícia psiquiátrica médico-legal a solicitação do tribunal, termina o seu relatório afirmando: “Parece-nos igualmente imprescindível, visando sobretudo a prevenção de uma eventual perigosidade difícil de avaliar desde já, que seria fundamental desenvolver uma adequada reabilitação sócio-terapêutica para o AA . Assim, torna-se imperioso o seu acompanhamento psicoterapêutico.”
É certo que na cadeia, onde se encontra desde 27 de Julho de 2007, o recorrente “reiniciou…, por solicitação própria e com aceitação dos pais, um programa de acompanhamento psicológico com o seu Psicólgo.” Mas tal acompanhamento não evitou que, «Observado novamente em 17 de Janeiro de 2008, o arguido apresentou problemas ao nível da auto-imagem, dos seus relacionamentos interpessoais e funcionamento afectivo. Devido às suas dificuldades no âmbito relacional, o arguido tende a sentir com frequência episódios depressivos. As suas dificuldades relacionais parecem dever-se não só a uma certa inaptidão para as relações mas também devido a uma auto-estima bastante desvalorizada. Para fazer face à situação, o arguido tende a recorrer, principalmente, ao evitamento e à fantasia, aumentando o seu isolamento social e consequente compensação de necessidades e, por outro lado, torna o seu pensamento menos convencional e distorcido, facilitando os episódios em que não controla a sua ideação. Este evitamento, tanto das situações emocionais como das situações relacionais, tem impedido que o arguido desenvolva novos recursos mais adaptativos para fazer face às diversas exigências das situações. Como reacção à situação actual, o arguido tem vindo a sentir um aumento do seu mal-estar que se faz sentir tanto a nível ideativo como emocional.»
Finalmente, o Parecer Psiquiátrico Médico-Legal subscrito pelo médico especialista em psiquiatria e em medicina legal, Mestre F... S... C..., apresenta como conclusão 3ª: “É recomendável que se garantam (preferencialmente em estabelecimento de saúde adequado a este tipo de casos) medidas de acompanhamento clínico-psiquiátrico (na sua tríplice vertente, psicofarmacológica, psicoterapêutica e psicossocial). Visando promover o suporte e a orientação comportamental compatíveis com a sua reabilitação futura, o que, pese embora as reservas que se colocam em termos de prognose, admitimos, ainda assim. não só desejável, como possível.

Será, pois, do interesse da sociedade, do próprio recorrente e dos seus pais que o tribunal ordene o seu internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena, nos termos do referido art.º 104.º do C. Penal, pois aí, estando vigiado por profissionais de saúde mental - médicos, enfermeiros e auxiliares - sujeito à prescrição de medicamentos adequados, correrá menos risco de ter nova atitude tão agressiva como a demonstrada nos autos e poderá vir a obter uma melhor reinserção social.
E nada impede que lhe venha a ser concedida pelo Tribunal de Execução de Penas a liberdade condicional nos termos do artigo 61.º do Código Penal, nem a colocação em estabelecimento comum, pelo tempo de privação da liberdade que lhe faltar cumprir, se vier a cessar a causa determinante do internamento, o que será avaliado no decurso da execução da pena.

DECISÃO

Termos em que, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento ao recurso e em condenar o arguido AA na pena de 7 (sete) anos de prisão, pela prática dum crime de homicídio simples, p. e p. no art.º 131.º do Código Penal, beneficiando de atenuação especial da pena nos termos do art.º 4.º do Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro, e em ordenar o seu internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena, nos termos do disposto no art.º 104.º do Código Penal, internamento que não impede a concessão de liberdade condicional nos termos do artigo 61.ºdo Código Penal, nem a colocação do delinquente em estabelecimento comum, pelo tempo de privação da liberdade que lhe faltar cumprir, logo que cessar a causa determinante do internamento.

Sem custas.

Lisboa, 18 de Fevereiro de 2009

Arménio Sottomayor (Relator)
Souto Moura

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1- Teresa Serra, ob. cit. p. 32.
2- A culpa consiste num juízo de censura dirigido ao agente que, tendo podido actuar segundo o dever, optou por agir ilicitamente, evidenciando uma atitude contrária ao direito [Teresa Serra, ob. cit., p. 35].
3- Não se ignora a jurisprudência que afirma que nem sempre uma imputabilidade diminuída leva à diminuição da pena, como acontece quando qualidades pessoais do agente que fundamentam o facto se revelam, apesar da diminuição da imputabilidade, particularmente desvaliosas e censuráveis (v. g. casos de especial brutalidade ou crueldade) – Ac STJ, CJ 2007,3, 220.
4- Neste domínio da perigosidade a análise pericial manifesta-se num mero juízo de probabilidade [«eventual perigosidade difícil de avaliar desde já»], pelo que carece do valor vinculativo referido no art.º 163º/1 do CPP quanto aos juízos científicos.
5- Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal , p. 110.
6- Quanto à prevenção geral positiva pela medida da pena faz apelo à consciencialização geral da importância social do bem jurídico tutelado pela norma e ao restabelecimento ou revigoramento da confiança da comunidade na efectiva tutela penal dos bens jurídicos fundamentais à vida colectiva e individual.
Pela prevenção especial pretende-se obter a ressocialização do delinquente (prevenção especial positiva) e a dissuasão da prática de futuros crimes (prevenção especial negativa). Nos infractores ocasionais, a ter de aplicar-se uma pena, é este o sentido único da prevenção especial.
A prevenção especial não é um valor absoluto, mas duplamente limitado pela culpa e pela prevenção geral. Pela culpa, pois o limite máximo da pena não pode ser superior à medida da culpa. Pela prevenção geral que dita o limite mínimo correspondente à garantia da manutenção da confiança da comunidade na efectiva tutela dos bens jurídicos violados e à dissuasão dos eventuais prevaricadores.
Uma pena excessivamente longa poderá conduzir à quebra da inserção social do agente. Quebrada a inserção social do agente pelo encarceramento, muito dificilmente o agente será reintegrado na sociedade após o cumprimento da pena, o que pode frustrar as finalidades da pena criminal.
A culpabilidade estabelece o limite máximo da pena, mas razões de prevenção especial podem levar o juiz a fixar uma pena abaixo do limite determinado pela culpabilidade, evitando-se o efeito dessocializador que pode resultar da pena justa em função da culpabilidade.
(…) até agora, continuam a ser insondáveis os mecanismos de eficácia da prevenção tanto geral como especial, em virtude da sua extraordinária complexidade. Daí que não existam critérios que possibilitem a determinação da pena preventivamente correcta, tanto mais que é óbvia a dificuldade de medir a própria necessidade de prevenção geral (…) [Teresa Serra, ob., cit., p. 46]