Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
126/20.4T8OAZ-A.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: SEGREDO PROFISSIONAL
ADVOGADO
TERCEIRO
VIOLAÇÃO DE SEGREDO
NEGOCIAÇÕES PRELIMINARES
DEPOIMENTO
TESTEMUNHA
PROVA PROIBIDA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
RECONHECIMENTO DO DIREITO
Data do Acordão: 05/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. O advogado está sujeito a sigilo profissional, relativamente a factos de que representante da parte contrária lhe tenha dado conhecimento durante negociações malogradas para acordo que visava pôr termo a litígio.

II. Uma das consequências da violação deste dever de sigilo do advogado é a de que as provas que desrespeitem esse dever de segredo não são idóneas a fundamentar a demonstração daqueles factos, o que abrange não só o depoimento testemunhal do advogado ou dos seus colaboradores, como a junção de documentos que se relacionem direta ou indiretamente com a revelação de factos naquelas circunstâncias, e ainda o depoimento de terceiros cuja fonte de conhecimento dos factos relatados (razão de ciência) seja o ocorrido nesse momento negocial, por a elas terem assistido, por lhes ter sido relatado ou ainda por terem consultado documentação relativa às negociações, designadamente atas, relatos, resumos ou simples notas das mesmas (testemunhos indiretos).

III. Daí que não possa ser objeto de apreciação de prova o depoimento de uma testemunha que, embora não sendo advogado, nem tendo participado nas negociações entre advogados, invoque como razão de ciência para o conteúdo do seu depoimento a consulta de um apontamento escrito das negociações entre advogados com vista a solucionarem um determinado litígio.

IV. Estamos perante uma proibição de valoração da prova, tendo essa proibição um tratamento autónomo do que se encontra previsto para as nulidades processuais, podendo, designadamente, tal infração ser conhecida em recurso, sem que a nulidade da produção do respetivo meio de prova tenha que ser arguida nos termos previstos no artigo 199.º do Código de Processo Civil.

V. A proibição de prova não incide aqui sobre o seu tema, uma vez que os factos poderão ser sempre provados por outros meios que não hajam recolhido o seu conhecimento nas negociações ocorridas com vista à autocomposição do litígio, recaindo sim sobre as circunstâncias em que foi obtido esse conhecimento.

VI. A referência a “factos” nas alíneas e) e f), do artigo 92.º, do Estatuto da Ordem dos Advogados, é feita com um sentido amplo, não abrangendo exclusivamente os que correspondem a declarações de ciência, estando também cobertos pelo dever de sigilo as denominadas declarações de vontade emitidas naquele ambiente conciliatório.

VII. Assim, se numa negociação, o advogado de uma das partes reconhece que a sua cliente é devedora de uma determinada quantia e propõe o seu pagamento faseado, quer o reconhecimento da dívida, enquanto declaração de ciência, quer os termos da proposta de pagamento da mesma, enquanto declaração de vontade, estão sujeitos a sigilo, não podendo a sua revelação fundamentar a prova desses factos.

Decisão Texto Integral:

I - Relatório

Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que a Exequente moveu a CC e aos Executados Embargantes, estes dois últimos, enquanto fiadores do primeiro, vieram deduzir embargos à execução, peticionando, a final, a sua extinção, com fundamento, além do mais, na prescrição da obrigação exequenda, nos termos do preceituado no artigo 310.º, alíneas d) e e), do Código de Processo Civil.

A Exequente contestou os embargos, alegando, além do mais, que os Executados apresentaram propostas para liquidação da dívida exequenda desde há três anos a esta parte, pelo que o alegado prazo de prescrição mostra-se interrompido com o reconhecimento da dívida por parte dos Executados.

Concluiu pela improcedência dos embargos.

Os Embargantes responderam à oposição, mantendo a posição assumida nos embargos.

Realizou-se audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença que decidiu o seguinte:

Face ao exposto, julgo parcialmente procedentes os presentes embargos de executado, por verificação da exceção de prescrição das prestações vencidas dos contratos de mútuo correspondentes aos meses anteriores aos cinco anos que antecederam a citação – períodos entre 22.06.2011 e 13.01.2015 e 22.07.2012 a 13.01.2015, em relação aos 1º e 2º contratos, respetivamente -, só estando os executados/embargantes obrigados a liquidar as (prestações) de Fevereiro de 2015 e seguintes, até à data da instauração da execução, acrescida dos respetivos juros desde essa data, determinando-se, nesta sequência, o prosseguimento da instância executiva para cobrança do restante valor, a liquidar pelo exequente.

A Exequente interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação que, por acórdão proferido em 24.01.2022, julgou parcialmente procedente a apelação, revogando parcialmente a sentença proferida e declarando que os executados/embargantes AA e BB, enquanto fiadores, estão obrigados a pagar à exequente as prestações vencidas e não pagas pelo mutuário CC desde 22.06.2011 quanto ao primeiro contrato de mútuo e desde 22.07.2012 quanto ao segundo, ambas até à data da instauração da presente execução (8.01.2020), acrescidas, ainda, dos juros de mora vencidos desde essas datas e até integral e efetivo pagamento, prosseguindo, assim, a instância executiva para cobrança destes valores, a liquidar pela exequente Caixa Geral de Depósitos.

Os Executados Embargantes interpuseram recurso deste acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:

1.ª A testemunha DD, funcionário da Exequente, depôs sobre factos a coberto do sigilo profissional de advogado e do dever de segredo bancário, sem que para tanto, nesse último caso, estivesse autorizado a fazê-lo;

2.ª A violação do sigilo ocorre a montante das declarações da testemunha.

3.ª A violação do sigilo profissional ocorre no momento em que a Ilustre Mandatária da Exequente “carrega” para a plataforma interna do banco a existência de mesmas propostas e o seu conteúdo, matéria a coberto do sigilo profissional, permitindo que se faça “entrar pela janela o que não se conseguiu fazer entrar pela porta” no que diz respeito à possibilidade da testemunha DD, funcionário bancário, na hipótese de não ser alcançado um acordo, poder discorrer livremente em juízo sobre matéria sigilosa, com a desculpa de que «está no dossier bancário»;

4.ª Devem ser excluídos os Pontos 11 e 12 do elenco dos factos provados, este último aditado pela Douta Decisão recorrida, por violação do sigilo profissional de advogado e do dever de segredo bancário5.ª Atenta a matéria provada na 1.ª instância, com exceção da aditada pela Douta Decisão recorrida como Ponto 12, que não aceita e deverá ser excluída, não existe ou está demonstrado qualquer reconhecimento da dívida por parte da ora Recorrente BB;

6.ª A ora Recorrente co-executada e fiadora BB aproveita assim a prescrição de cada uma das prestações vencidas e não pagas desde 20/06/2011 e 22/07/2012 até, pelo menos, 13/01/2015, sendo-lhe somente exigíveis as vencidas desde esta data até à instauração da execução em 08/01/2020;

7.ª Mesmo considerando, como raciocínio, a factualidade aditada pela Douta Decisão recorrida sob o Ponto 12 dos factos provados, então os ora Recorrentes, por referência ao ano de 2019, data em que terão reconhecido a dívida, aproveitam a prescrição de cada uma das prestações vencidas e não pagas desde 20/06/2011 e 22/07/2012 até, pelo menos ao ano de 2014;

8.ª O reconhecimento que terá ocorrido no ano de 2019 só interrompe a prescrição das prestações que se venceram desde 2014 em diante e não aquelas cujo prazo se iniciou anteriormente pois que o prazo da prescrição começa a contar-se da exigibilidade de cada prestação individualmente considerada;

9.ª Mesmo que se considere ser de manter o Ponto 11 do elenco dos factos provados, dos mesmos não resulta qualquer reconhecimento da dívida por parte do Recorrente AA;

10.ª Do teor da factualidade provada parece sim resultar não o reconhecimento da dívida reclamada na presente execução, entendida pela Exequente como totalmente antecipada e exigível, circunstância já afastada por ambas as instâncias relativamente aos Recorrentes, mas somente de prestações atrasadas em datas que se desconhecem;

11.ª Atenta a peticionada exclusão do Ponto 12, este último aditado pela Douta Decisão recorrida, a responsabilidade de pagamento do Recorrente AA é igual à da Co-recorrente BB;

12.ª Violaram-se, na Douta Decisão, de entre outros, os artigos 92.º do EOA, 306.º, 323.º e 325.º do CC e artigos 78.º e 79.º do DL 298/92 de 31/12;

13.ª Deve ser revogado o Douto Acórdão ora recorrido em conformidade com o que ora se conclui.

A Exequente respondeu, sustentando a manutenção do acórdão recorrido.

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II – O objeto do recurso

Tendo em consideração as conclusões das alegações de recurso e o conteúdo do acórdão recorrido, cumpre apreciar as seguintes questões:

- o depoimento da testemunha DD não podia ser valorado, uma vez que o mesmo violou o sigilo profissional imposto no Estatuto da Ordem dos Advogados?

- os prazos de prescrição das prestações que se venceram entre 22.06.2011 e 13.01.2015 (1.º contrato) e 22.07.2012 a 13.01.2015 (2.º contrato) não foram interrompidos, tendo-se completado?

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III – Os factos

Neste processo foram considerados provados os seguintes factos:

1. A 08.01.2020, a Exequente Caixa Geral de Depósitos, SA intentou a ação executiva, a que estes autos são apensos, contra AA, BB e CC, apresentando como título executivo os documentos denominados “contrato de empréstimo” e “compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança”, juntos a fls. 12 e ss dos autos principais e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

2. No primeiro acordo denominado “contrato de empréstimo”, celebrado a 22.03.2001, a Exequente concedeu a CC um empréstimo no montante de € 11.472,35 (Operação n.º PT ...85), com o prazo de amortização de 30 anos

3. No segundo acordo denominado “mútuo com hipoteca e fiança”, também celebrado a 22.03.2001, a Exequente concedeu-lhe um empréstimo no montante de € 64. 853, 73 (Operação n.º PT ...85) com o prazo de amortização de 30 anos.

4. Estipularam os aqui embargantes AA e BB, nos mencionados escritos, que se responsabilizam como fiadores e principais pagadores por tudo quanto venha a ser devido à Caixa credora em consequência de cada um dos empréstimos, dando, desde já, o seu acordo a quaisquer modificações da taxa de juro e bem assim às alterações de prazo ou moratórias que venham a ser convencionadas entre a credora e a parte devedora, aceitando que a estipulação relativa ao extrato da conta e aos documentos de débito seja também aplicável à fiança.

5. Nos termos da cláusula 12ª do primeiro acordo e da cláusula 16ª do documento complementar do segundo acordo clausulou-se que: à credora fica reconhecido o direito de (…) d) considerar o empréstimo vencido se a parte devedora deixar de cumprir alguma das obrigações resultantes deste contrato.

6. O Executado-mutuário não pagou na data do respetivo vencimento as prestações a que se obrigou a realizar para reembolso do capital e juros, desde 22/06/2011 no primeiro acordo e 22/07/2012 no segundo acordo. (cfr. Arts. 9º e 10º do requerimento executivo).

7. A Ilustre Mandatária do banco Exequente remeteu carta aos Embargantes, datada de 29/05/2019, e rececionada por estes, declarando que: foi contactada pelo banco “para, na qualidade de advogada, intentar ação judicial para cobrança de dívida proveniente dos contratos de empréstimo”; “o mutuário […] incumpriu as obrigações contratuais que sobre ele impendia e em virtude desse incumprimento, são devidas determinadas quantias, sendo que, das diligências já efetuadas para regularizar a situação, não se logrou obter na íntegra a satisfação do montante total em dívida.”; que a carta se destina a  saber da disponibilidade dos fiadores “para proceder à liquidação da dívida e assim evitar o recurso aos tribunais.”; findo o prazo de 10 dias concedido para o efeito, seria intentada “a competente ação judicial para cobrança do montante em dívida acrescido do valor dos juros já vencidos e os que se vencerem até efetivo e integral pagamento.”; “O valor em dívida perfazia à data de 23 de Maio do corrente ano, a quantia de € 31.489,80 (Trinta e Um mil, Quatrocentos e Oitenta e Nove Euros e Oitenta Cêntimos) referente aos empréstimos supra citados.”.

8. Os Embargantes foram citados na ação executiva a 27.01.2020.

9. Em 2009 a operação PT ...85 foi objeto de restruturação, porque já havia incumprimento, tendo os aqui Embargantes dado consentimento à atualização de condições. – cfr. documento de fls. 45 e ss cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

10. Constam dos autos as cartas de 2013.09.05, 2014.01.29, 2014.05.23 e 2014.06.25, juntas a fls. 48 a 56 dos presentes autos e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

11. Em circunstâncias não concretamente apuradas, o Executado CC e o aqui Embargante, pai do mutuário, contactaram a agência da Embargada, comprometendo-se a retomar os depósitos no sentido de se estudar uma nova restruturação, o que não se veio a concretizar.

12. Durante o ano de 2019 os Executados/fiadores apresentaram à exequente Caixa Geral de Depósitos propostas de pagamento dos valores em dívida nos dois contratos de mútuo ora em causa, propostas estas que, no entanto, não vieram a ser aprovadas.

                                               *

IV – O direito aplicável

1. Da violação do sigilo profissional

A Caixa Geral de Depósitos pretendia, através da Execução embargada, que os Executados lhe pagassem o valor total das prestações acordadas, relativas a dois contratos de mútuo celebrados entre o Exequente e CC, tendo os Executados Embargantes outorgado esse contrato, na qualidade de fiadores das obrigações assumidas por CC.

Já se mostra definitivamente decidido pelas instâncias que a Exequente só pode exigir dos Executados Embargantes, enquanto fiadores do mutuário, o pagamento das prestações acordadas, cujo prazo de vencimento já tenha decorrido.

A sentença da 1.ª instância, no entanto, considerou que as prestações vencidas entre 22.06.2011 e 13.01.2015 e 22.07.2012 a 13.01.2015, em relação aos 1º e 2º contratos, respetivamente, já tinham prescrito, uma vez que à data da citação dos Executados já tinha decorrido o prazo de cinco anos previsto no artigo 310.º, e), do Código Civil.

O Tribunal da Relação, apreciando recurso interposto pela Exequente, alterou a decisão sobre a matéria de facto, aditando mais um facto à lista dos factos provados, tendo desse facto retirado a conclusão que aqueles prazos de prescrição tinham sido objeto de interrupção quando em 2019 se verificou um reconhecimento pelos Executados da dívida exequenda, pelo que o pagamento daquelas prestações era exigível.

O facto aditado foi o que acima consta da lista dos factos provados sob o n.º 12 - durante o ano de 2019 os executados/fiadores apresentaram à exequente Caixa Geral de Depósitos propostas de pagamento dos valores em dívida nos dois contratos de mútuo ora em causa, propostas estas que, no entanto, não vieram a ser aprovadas

Foi a seguinte a justificação dada pelo acórdão recorrido, para se considerar provado este facto:

Compulsada a motivação da decisão de facto nesta parte (e ainda que o dito facto não tenha sido feito constar do elenco dos factos não provados da sentença),  a mesma foi julgada como não provada pelo Tribunal de 1ª instância, em primeiro lugar por ser tratar de matéria abrangida pelo segredo profissional dos Srs. Advogados que intervieram em representação das partes (executados e exequente) nos contactos em referência e, em segundo lugar, por o depoimento da testemunha DD ter sido considerado, neste conspecto, como insuficiente para a demonstração de tal factualidade, sendo certo, ainda, que a exequente não suscitou o levantamento do sigilo profissional ora em causa e para aquele efeito.

Segundo julgamos, a decisão do Tribunal de 1ª instância nesta matéria não merece a nossa adesão integral, nos termos que em seguida se expõem.

Este Tribunal procedeu à audição integral do depoimento da testemunha DD.

Esta testemunha referiu que é funcionário bancário da exequente e que exerce atualmente as funções de responsável pela área de particulares, acompanhando, nessa sua qualidade, as situações que envolvem os clientes particulares do banco, nomeadamente as vicissitudes atinentes aos respetivos negócios entre o banco e os dito clientes e as interações que, nesse contexto, ocorrem entre ambos, em especial quando existem, como é o caso, situações de incumprimento.

Referiu, no entanto, que, no caso dos executados (mutuário e fiadores), não teve nenhum contacto pessoal com os mesmos, não participando de qualquer reunião ou contacto com os mesmos, não os conhecendo, salvo quanto às questões que envolvem o presente litígio e por consulta dos elementos existentes no sistema informático do banco a eles atinentes como clientes.

Todavia, naquela sua sobredita qualidade de responsável pela área de particulares, acompanha e tem conhecimento dos contactos existentes entre o banco e o cliente (sejam os que são feitos diretamente, sejam os que são efetuados através de advogados) por consulta do respectivo «dossier» individualizado de cada operação e que faz parte do arquivo do banco em formato informático (base de dados).

Neste contexto, referiu que, em face da situação de incumprimento dos contratos de empréstimo ora em causa (com prestações vencidas e não pagas desde 22.06.2011, quanto ao primeiro contrato e com prestações vencidas e não pagas desde 22.07.201, quanto ao segundo contrato – vide factos provados em 6 do elenco dos factos provados e não impugnado), teve conhecimento, por via da consulta de tal «dossier» (base de dados), que existiram contactos entre o Mandatário da CGD e o Mandatário dos executados/fiadores e que, nesses contactos, existiram, da parte do mutuário e dos fiadores, durante o ano de 2019 (o ano que antecedeu a propositura da presente execução) propostas para pagamento dos valores em dívida, propostas estas que não vieram, todavia, a merecer a aprovação da Caixa.

A testemunha referiu, ainda, nesta matéria, que é procedimento habitual da Caixa organizar, em relação a cada cliente, o dito «dossier» individualizado e dele fazer constar os contactos mantidos com os clientes, além do mais, em caso de situações de incumprimento, assim como o resultado desses contactos, sendo que, se existirem propostas de pagamento (v.g., com reestruturação ou reescalonamento das prestações), o resultado da avaliação dessas propostas, ou seja, se as mesmas mereceram aprovação ou não por parte do respetivo responsável da área em causa.

Dito isto, também não sofre dúvidas, em nosso ver, que, para efeitos de prova das ditas propostas de pagamento efetuadas pelos fiadores junto da CGD, não podia o Tribunal de 1ª instância considerar o teor da correspondência que foi trocada entre o Mandatário dos executados/fiadores, pois que uma tal correspondência só poderia ser levada em consideração se, como se refere na sentença, tivesse sido requerido o levantamento do sigilo profissional a ela atinente e, nessa sequência, se essa correspondência tivesse sido junta aos autos, o que não sucedeu.

Digamos, pois, que não nos merece dissenso o facto de o Tribunal de 1ª instância ter suscitado o segredo profissional que cobria a correspondência que, no âmbito das negociações extrajudiciais entre os Mandatários das partes, foi trocada entre ambos.

Aliás, como resulta dos autos, a embargada Caixa nem sequer juntou aos autos essa correspondência, precisamente por não ignorar o sigilo profissional que sobre a mesma incidia e por não desconhecer que não tinha suscitado o incidente de levantamento de tal sigilo, sendo certo que esse levantamento era indispensável para o aproveitamento em termos probatórios dessa mesma correspondência

No entanto, aqui ao contrário do que sustenta o Tribunal de 1ª instância, não cremos que o depoimento da testemunha DD, já acima referido, possa ser totalmente desconsiderado nesta matéria, não só porque o seu depoimento se nos afigurou seguro, credível e objetivo – baseado em elementos escritos que constam do arquivo do banco (bases de dados/dossier do cliente) e que, em última instância, a parte contrária e o próprio Tribunal poderia ter requisitado para ultrapassar qualquer dúvida que lhe surgisse quanto a tal matéria -, como, ainda, porque temos, à luz das regras da experiência, como razoável e credível que, numa situação de protelado incumprimento dos contratos em causa (desde os anos de 2011 e 2012), por um lado, existissem contactos da exequente no sentido da cobrança de tal dívida junto do mutuário e dos fiadores (pais do mutuário) e, por outro, que na iminência da cobrança coerciva da dívida por via da consequente execução (que veio a ser instaurada em Janeiro de 2020), os executados, nomeadamente, os fiadores (pais do mutuário) procurassem evitar este desfecho mais radical e, com tal fito, apresentassem propostas de pagamento em moldes mais favoráveis, propostas estas que, porém, não vieram a merecer acolhimento por parte da Caixa, ora exequente.

Note-se que, nesta sede, não está em causa a revelação da correspondência trocada entre os Mandatários das partes e do seu preciso conteúdo (abrangido pelo segredo profissional), pois que o depoimento da testemunha não incide sobre tal matéria e ademais essa correspondência nem sequer foi junta aos autos, mas a existência no «dossier» bancário atinente aos aqui executados de propostas de pagamento por si efetuadas no ano de 2019 e que, tendo chegado ao conhecimento da Advogada da Caixa no exercício do seu mandato, esta, por sua vez, naturalmente, teve que reportar ao seu cliente (a Caixa) e que o mesmo faz registar nos seus arquivos acompanhada da decisão que recaiu sobre tal proposta.

Os Executados Embargantes, no recurso de revista, vêm retomar o raciocínio da sentença da 1.ª instância, alegando que a inclusão do facto n.º 12 na lista dos factos provados viola o dever de sigilo que abrange as negociações extrajudiciais entre advogados.

O Supremo Tribunal de Justiça está impedido, na apreciação do recurso de revista, de se pronunciar sobre a existência de erros na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (artigo 674.º, n.º 3, do Código de Processo Civil). Está também incluída, nesta ressalva à proibição de controle sobre a fixação da matéria de facto pertinente, a verificação de violações às limitações probatórias legais, pois, também aqui estamos perante “erros de direito” que se traduzem em infrações às regras de direito probatório material, designadamente a prova de factos cobertos por sigilo profissional.

Atenta a fundamentação da decisão do recurso de apelação sobre a impugnação da decisão sobre a matéria de facto acima transcrita, resulta que o Tribunal da Relação decidiu aditar mais um facto à matéria de facto provada, exclusivamente com fundamento no depoimento da testemunha DD, funcionário da Exequente, o qual na qualidade de responsável pela área de particulares, acompanha e tem conhecimento dos contactos existentes entre o banco e o cliente (sejam os que são feitos diretamente, sejam os que são efetuados através de advogados) por consulta do respetivo «dossier» individualizado de cada operação e que faz parte do arquivo do banco em formato informático (base de dados), tendo, neste contexto, referido que, em face da situação de incumprimento dos contratos de empréstimo ora em causa ... teve conhecimento, por via da consulta de tal «dossier» (base de dados), que existiram contactos entre o Mandatário da CGD e o Mandatário dos executados/fiadores e que, nesses contactos, existiram, da parte do mutuário e dos fiadores, durante o ano de 2019 propostas para pagamento dos valores em dívida, propostas estas que não vieram, todavia, a merecer a aprovação da Caixa.

A razão de ciência do único depoimento testemunhal que fundamentou a prova do facto em questão foi a consulta de um dossier da Exequente, em formato informático, onde se encontram registados os contactos entre esta e os Executados Embargantes, tendo a testemunha, nessa consulta da base de dados, verificado que existiram contactos entre o Mandatário da CGD e o Mandatário dos executados/fiadores e que, nesses contactos, existiram, da parte do mutuário e dos fiadores, durante o ano de 2019 propostas para pagamento dos valores em dívida, propostas estas que não vieram, todavia, a merecer a aprovação da Caixa.

Da fundamentação do acórdão recorrido podemos, pois, concluir, que a prova do facto n.º 12 resultou única e exclusivamente do depoimento testemunhal de DD e que este apenas confirmou a existência dessa factualidade, por ter constatado que na base de dados da Exequente se encontrava registado que durante o ano de 2019 existiram contactos entre o Mandatário da CGD e o Mandatário dos Executados Embargantes, nos quais este efetuou propostas para pagamento dos valores em dívida, as quais não vieram a ser aprovadas pela Exequente.

Dispõe o artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro:

1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;

c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;

d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;

e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.

3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.

4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.

5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.

6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.

7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.

8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever.

Da transcrita alínea e), do n.º 1, e do n.º 3.º, do artigo 92.º, do Estatuto da Ordem dos Advogados, resulta que o advogado está sujeito a sigilo profissional, relativamente a factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio, estendendo-se esse dever de segredo a documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo. E, na alínea f) do mesmo artigo especifica-se que esse segredo abrange os factos de que (o advogado) tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

Esta imposição de sigilo não é absoluta, podendo obter-se dispensa do mesmo mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento (n.º 4, do artigo 92.º, do Estatuto da Ordem dos Advogados).

O n.º 5, do mesmo artigo 92.º, estabelece como consequência da violação do sigilo profissional do advogado, que as provas que desrespeitem o dever de segredo não são idóneas a fundamentar a demonstração dos factos revelados nas negociações, o que abrange não só o depoimento testemunhal do advogado ou dos seus colaboradores, como a junção de documentos que se relacionem direta ou indiretamente com a revelação de factos naquelas circunstâncias. Note-se que, com esta cominação específica, a produção dos meios de prova com esta incidência não constitui uma simples nulidade inominada secundária, a ser arguida, nos termos dos artigos 195.º e 199.º do Código de Processo Civil, como se tem sustentado, relativamente à violação de outros deveres de sigilo [1], revelando-se antes uma violação de uma proibição de produção de prova, cuja consequência é a proibição da sua valoração, tendo essa violação um tratamento autónomo do que se encontra previsto para as nulidades processuais, podendo, designadamente, tal infração ser conhecida em recurso, sem que a nulidade da produção do respetivo meio de prova tenha que ser arguida nos termos previstos no artigo 199.º do Código de Processo Civil [2].

A proibição de prova não incide aqui sobre o seu tema, uma vez que os factos poderão ser sempre provados por outros meios que não hajam recolhido o seu conhecimento nas negociações ocorridas com vista à autocomposição do litígio, recaindo sim sobre as circunstâncias em que foi obtido esse conhecimento. Resultando esse conhecimento da participação de advogado em negociações para acordo que vise pôr termo a diferendo ou litígio e estando o conteúdo dessas negociações sujeito a sigilo, não pode o mesmo ser utilizado, independentemente do meio de prova que o exprima, para fundamentar a prova dos factos revelados nessas negociações. Estamos, pois, perante a proibição de meios de prova, face à razão de ciência dos factos probandos.

A imposição deste sigilo profissional é um instrumento de proteção de três grandes objetivos:

- garantir a relação de confiança entre o advogado e o cliente;

- dignificar a função do advogado enquanto agente ativo na administração da justiça;

- promover o papel essencial do advogado na composição extrajudicial dos conflitos.

Relativamente a este último objetivo (aquele que mais releva no aspeto do segredo profissional do advogado aqui em causa), a desejável autocomposição das partes exige que os seus representantes ajam com uma certa dose de confiança e lealdade que deve ser salvaguardada. É que na fase transacional é indispensável criar uma relação recíproca de confiança. Muitos elementos desconhecidos ressaltam, muitos “trunfos” se jogam. Frequentemente, se é que não sempre, as partes estão dispostas a abdicar de direitos de que, não fora apostarem em que “mais vale um mau acordo que uma boa demanda”, nunca prescindiriam. Deste modo, o simples conhecimento narrativo destas atitudes, não espelha a verdade de que cada uma se julga de facto possuída, nem dá notícia exata dos “direitos” almejados em demanda com boa-fé; ou antes, dá uma imagem distorcida da “realidade” litigiosa. Seria, pois, um péssimo serviço à justiça dar a conhecer ao julgador o que se passou no ínterim e nos bastidores [3].

Daí que, não se obtendo dispensa do sigilo, é proibido não só o depoimento testemunhal do advogado participante nessas negociações e dos seus colaboradores sobre os factos neles revelados, como é proibida a apresentação da documentação que exiba o conteúdo dessas negociações ou ainda o depoimento de terceiros cuja fonte de conhecimento dos factos relatados (razão de ciência) seja o ocorrido nesse momento negocial, por a elas terem assistido, por lhes ter sido relatado ou por terem consultado documentação relativa às negociações, designadamente atas, relatos, resumos ou simples notas das mesmas (testemunhos indiretos).

Se é verdade que sobre os terceiros não recai um dever de sigilo, o manto do segredo que recai sobre as operações de negociação deve “fechar a sete chaves” a revelação de factos que nessas especiais circunstâncias poderá ter ocorrido, pelo que, mesmo de forma indireta, qualquer meio de prova, cuja razão de ciência tenha origem no acesso ao conteúdo dessas negociações, não deve poder ser produzido e sendo-o, não pode ser valorado. Apesar do dever de sigilo recair apenas sobre os advogados participantes nas negociações, não pode ser valorada prova indireta, cuja razão de ciência resida no conhecimento do conteúdo das negociações. Se assim não fosse, estava descoberto um meio de contornar a confidencialidade daquelas conversações, o que colocaria em causa a disponibilidade das partes e dos seus advogados para procurarem uma solução autocompositiva dos seus litígios.  

É por estas razões que não pode ser objeto de apreciação o depoimento de uma testemunha que, embora não sendo advogado, nem tendo participado nas negociações entre advogados, invoque como razão de ciência para o conteúdo do seu depoimento a consulta de um apontamento escrito das negociações entre advogados com vista a solucionarem um determinado litígio.

Foi esta precisamente a razão de ciência do depoimento de DD que, segundo a fundamentação do acórdão recorrido, teve conhecimento, por via da consulta de tal «dossier» (base de dados), que existiram contactos entre o Mandatário da CGD e o Mandatário dos executados/fiadores e que, nesses contactos, existiram, da parte do mutuário e dos fiadores, durante o ano de 2019 propostas para pagamento dos valores em dívida, propostas estas que não vieram, todavia, a merecer a aprovação da Caixa.

Resta, pois, saber se os factos narrados por essa testemunha, relativos às negociações ocorridas entre os advogados das partes, se encontravam cobertos pelo dever de sigilo, uma vez que nem tudo o que se passa num processo negocial autocompositivo se encontra coberto pelo sigilo imposto no artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados.

Os factos revelados e que foram dados como provados nos presentes embargos, com base nesse depoimento, respeitam à apresentação de propostas de pagamento do crédito exequendo pelo mandatário dos Executados Embargantes ao mandatário da Exequente e ao malogro dessas negociações.

Até aos Estatutos da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de janeiro, o dever de não invocar perante os tribunais quaisquer negociações transacionais malogradas com a participação de advogados, encontrava-se previsto, entre outros deveres deontológicos, quer nos sucessivos Estatutos Judiciários, quer mais tarde no Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pelo Decreto-Lei n.º 84/84, de 16 de março, de forma autónoma do dever de sigilo, tratando-se de deveres deontológicos distintos, com objetivos não inteiramente coincidentes. No Estatuto da Ordem dos Advogados de 1984, enquanto no artigo 81.º, relativo ao segredo profissional, exemplificativamente se dispunha que o advogado estava obrigado a segredo profissional relativamente a factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo amigável e que sejam relativos à pendência, era no artigo 86.º, e) em matéria de deveres recíprocos dos advogados que se impunha o dever de não invocar publicamente, em especial perante tribunais, quaisquer negociações transacionais malogradas, quer verbais, quer escritas, em que tenha intervindo advogado.

A partir da aprovação dos Estatutos pela Lei n.º 15/2005, de 26 de janeiro, o dever de não invocação em juízo da existência anterior de negociações malogradas deixou de figurar no catálogo dos deveres deontológicos dos advogados, tendo-se acrescentado, na definição exemplificativa do âmbito do dever de sigilo que o mesmo abrange os factos que o advogado tivesse conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, mas não a própria existência dessas negociações.

Esta evolução legislativa revela que o dever de sigilo nunca abrangeu as próprias negociações, mas apenas os factos que nela sejam revelados pelos intervenientes. A invocação da existência de negociações malogradas e das declarações de vontade nelas proferidas encontrou-se expressamente proibida, até aos Estatutos da Ordem dos Advogados de 2005, por norma expressa estranha ao sigilo profissional, tendo, contudo, essa invocação deixado de ser proibida desde essa altura [4], passando apenas a estar cobertos pelo sigilo profissional os factos cuja revelação resulte da participação de advogado em quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas.

A referência a “factos” nas alíneas e) e f), do artigo 92.º, do Estatuto da Ordem dos Advogados é feita com um sentido amplo. Não abrange exclusivamente os que correspondem a declarações de ciência, estando também cobertos pelo dever de sigilo as denominadas declarações de vontade emitidas naquele ambiente conciliatório [5].

Na verdade, umas negociações com vista a autocomposição de um litígio compreendem a apresentação de propostas, de contrapropostas e das respetivas respostas, enquanto declarações negociais, nas quais podem coexistir, na classificação tradicional, declarações de vontade e declarações de ciência. Pelas razões acima referidas que justificam a confidencialidade do conteúdo destas negociações, o dever de sigilo aplica-se indistintamente aos dois tipos de declarações. Assim, se numa negociação, o advogado de uma das partes reconhece que a sua cliente é devedora de uma determinada quantia e propõe o seu pagamento faseado, quer o reconhecimento da dívida, enquanto declaração de ciência [6], quer os termos da proposta de pagamento da mesma, enquanto declaração de vontade, estão sujeitos a sigilo.

Daí que a factualidade constante do ponto 12, atento o modo como foi obtido o seu conhecimento pela testemunha, cujo depoimento fundamentou a prova desse facto, não possa figurar nos factos provados, uma vez que tal depoimento estava sujeito a uma proibição de valoração, devendo ser excluído da lista dos factos provados o seu ponto 12.

2. Da interrupção dos prazos de prescrição

A sentença proferida na 1.ª instância, tendo aplicado o prazo de prescrição de 5 anos, previsto no artigo 310.º, e), do Código Civil, considerou prescritas todas as prestações vencidas dos contratos de mútuo, em que os Executados Embargantes intervieram como fiadores do mutuário, correspondentes aos períodos entre 22.06.2011 e 13.01.2015 e 22.07.2012 a 13.01.2015, em relação aos 1.º e 2.º contratos, respetivamente, tendo em consideração que, com a instauração da execução, em 13.1.2020 (5 dias após a sua propositura) se interromperam os prazos de prescrição relativo às prestações seguintes.

O acórdão do Tribunal da Relação, contudo, considerou que face ao conteúdo dos factos constantes dos pontos n.º 11 e 12 da matéria de facto provada, os prazos de prescrição das prestações vencidas nos períodos entre 22.06.2011 e 13.01.2015 (1.º contrato) e 22.07.2012 a 13.01.2015 (2.º contrato) mostravam-se interrompidos pela apresentação de propostas pelos Executados Embargantes à Exequente para pagamento dos valores em dívida, que tinham o significado do reconhecimento dessa dívida, pelo que, nos termos do artigo 325.º do Código Civil não se tinha verificado a prescrição dos créditos correspondentes àquelas prestações.

No artigo 325.º do Código Civil reconhece-se efeito interruptivo do prazo prescricional ao reconhecimento do direito, efetuado perante o respetivo titular, por aquele contra quem o direito pode ser exercido. Com o reconhecimento pelo devedor do direito, no decurso do prazo de prescrição, os múltiplos interesses que justificam a sua extinção perante um determinado período de inação do titular deixam de subsistir, pelo que se justifica que se inutilize o período já decorrido, iniciando-se a contagem de novo prazo prescricional.

Esse reconhecimento, corresponde a uma declaração de ciência, a que a lei atribui efeitos jurídicos, sendo-lhe aplicável o regime dos atos jurídicos. Além de expressa, essa declaração também pode ser tácita, exigindo, no entanto, o disposto no artigo 325.º, n.º 2, do Código Civil, um grau de concludência mais robusto do que aquele que é exigido para a generalidade dos atos tácitos, uma vez que dispõe que o reconhecimento tácito só é relevante quando resulte de factos que inequivocamente o exprimam [7], enquanto o artigo 217.º do mesmo diploma se satisfaz com um juízo de probabilidade.

Na matéria de facto julgada provada consta no ponto n.º 11 que, em circunstâncias não concretamente apuradas, o Executado CC e o aqui Embargante, pai do mutuário, contactaram a agência da Embargada, comprometendo-se a retomar os depósitos no sentido de se estudar uma nova restruturação, o que não se veio a concretizar. Apesar desta atitude, relativamente ao Executado Embargante AA, ser suscetível, eventualmente, de configurar uma situação de reconhecimento tácito dos direitos de crédito invocados pela Exequente [8], ao não se ter provado em que circunstâncias concretas é que ocorreu esse comprometimento, (o qual, aliás, encerra um conteúdo algo equívoco - retoma dos depósitos no sentido (!) de se estudar uma nova restruturação), designadamente em que data é que ocorreu esse ato, não é possível dele extrair qualquer consequência.

Quanto à factualidade constante do ponto 12 da matéria de facto considerada provada pelo acórdão recorrido, a mesma foi excluída da lista dos factos provados pelas razões explicadas no ponto anterior deste acórdão, pelo que não pode ser considerada para dela se extrair um reconhecimento tácito dos direitos de crédito, cujas prestações foram consideradas prescritas pela sentença da 1.ª instância, com efeitos interruptivos desses prazos.

Refira-se, no entanto, que, em todo o caso, nunca dessa factualidade poderia resultar a interrupção dos prazos de prescrição cujo decurso foi verificado pela sentença da 1.ª instância. Isto porque constava do excluído ponto 12 da matéria de facto que os pretensos factos interruptivos ocorreram durante o ano de 2019, sem especificação da data concreta desse ano em que os mesmos se verificaram. Recaindo o ónus da prova sobre esses factos sobre a Exequente, nos termos do artigo 342.º do Código Civil, deveria considerar-se o dia 31.12.2019 como a data possível mais desfavorável para a parte onerada com esse ónus, pelo que, relativamente às prestações vencidas entre 22.06.2011 e 30.12.2014 (1.º contrato), e 22.07.2012 a 30.12.2014 (2.º contrato), nessa data já se haviam completado os prazos de prescrição de 5 anos, não sendo, por isso, já possível ocorrer uma interrupção de tais prazos. E, como as prestações deveriam ser pagas, nos termos dos dois contratos celebrados, no dia 23 de cada mês, conclui-se que não se venceu nenhuma prestação entre o dia 30.12.2014 e o dia 13.01.2015, pelo que o facto constante do ponto 12 da matéria de facto provada, mesmo se, por hipótese de raciocínio pudesse constar da lista dos factos provados, nunca seria suscetível de determinar a interrupção de qualquer prazo de prescrição, para além daqueles que já foram julgados interrompidos pela propositura da ação executiva, tendo em consideração a data de 13.01.2020 (cinco diais após a entrada da ação), na sentença proferida na 1.ª instância.

Não tem fundamento, pois, a conclusão retirada pelo acórdão recorrido de que os prazos de prescrição das prestações vencidas entre 22.06.2011 e 13.01.2015 (1.º contrato) e 22.07.2012 a 13.01.2015 (2.º contrato), também sofreram uma interrupção.

Deve, assim, o recurso ser julgado procedente, revogando-se o acórdão recorrido, repondo-se integralmente a sentença proferida na 1.ª instância.

                                               *

Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a revista, revogando-se o acórdão recorrido e repondo-se integralmente a sentença proferida na 1.ª instância.

                                               *

Custas dos recursos de apelação e revista pela Exequente.

                                               *

Notifique.

                                               *

Lisboa 5 de Maio de 2022

                                                          

João Cura Mariano (relator)

Fernando Baptista

Vieira e Cunha

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[1] ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, Coimbra Editora, 1987, pág. 355,  LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, Almedina, 2017, pág. 360, ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, 2018, pág. 497, LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, Prova Testemunhal, Almedina, 2014, pág. 246, e o Acórdão da Relação do Porto de13.09.2011, Proc. 2055/09 (Rel. Vieira e Cunha).
[2]  Sobre as proibições de valoração da prova e a sua relação com as proibições de produção de prova em processo civil, ISABEL ALEXANDRE, Provas Ilícitas em Processo Civil, Almedina, 1998, pág. 46 e seg., PAULA COSTA e SILVA E NUNO TRIGO DOS REIS, Efeitos Lícitos da Prova Ilícita em Processo Estadual e Arbitral, AAFDL, 2019, pág. 25 e seg., e CARLOS CASTELO BRANCO, A Prova Ilícita. Verdade ou Lealdade, Almedina, 2019, pág. 121-124.
[3] AUGUSTO LOPES CARDOSO, Do Segredo Profissional na Advocacia, Centro Editorial Livreiro da Ordem dos Advogados, 1998, pág. 46.
[4] Não nos parece que esse dever ainda hoje possa decorrer de outros deveres deontológicos genéricos dos advogados, como o dever de solidariedade profissional, pelo que não está vedada, nem pelo âmbito do sigilo, nem por qualquer norma expressa, a alegação da mera existência de negociações, a qual poderá adquirir relevância para a demonstração de uma interpelação para cumprimento ou justificar um período de inação no exercício de um direito.
[5] Na classificação adotada por CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, em Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, vol. I, Almedina, 1992, pág. 286-287, estamos perante enunciados assertivos e performativos.
[6] VAZ SERRA, Prescrição Extintiva e Caducidade, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 45, pág. 221, JÚLIO GOMES, Comentário ao Código Civil. Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, pág. 774, ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Prescrição e Caducidade, Coimbra Editora, 2.ª ed., 2008, pág. 267, e MENEZES CORDEIRO, Código Civil Comentado. I Parte Geral, Almedina, 2020, pág. 912.
   DIAS MARQUES, Prescrição extintiva, Coimbra Editora, 1953, pág. 160, entendia tratar-se de uma declaração de vontade.
[7] Falando neste caso de uma concludência absoluta, PAULO MOTA PINTO, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, Almedina, 1995, pág. 774.
[8] Consideram que tem o valor de um reconhecimento tácito:
 - as propostas conciliatórias feitas pelo devedor e não aceites pelo credor – CUNHA GONÇALVES, Tratado de Direito Civil em Comentário ao Código Civil Português, Coimbra Editora, 1930, pág. 778;
- o pedido de espera de pagamento – DIAS MARQUES, Ob. cit., pág. 166;
- a proposta conciliatória feita pelo devedor – VAZ SERRA, ob. cit., pág. 227.
- o pedido de prorrogação do prazo – PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., pág. 292;
- o pedido de dilação – RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código Civil, vol. II, ed. do autor, 1988, pág. 92.
- o pedido de prorrogação do prazo de pagamento ou de remissão – ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, ob. cit., pág. 271;
- o pedido de uma dilação – JÚLIO GOMES, ob. cit., pág. 775.
- o pedido de prorrogação do prazo – RITA CANAS DA SILVA, Código Civil Anotado, vol. I, Almedina, 2017, pág. 397.