Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A3804
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SILVA SALAZAR
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PERDA DE VEÍCULO
APARCAMENTO DE VEÍCULO
PEDIDOS INCOMPATÍVEIS
INADMISSIBILIDADE
Nº do Documento: SJ200611290038046
Data do Acordão: 11/29/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Sumário :
I - Não é admissível pedir, cumulativamente, o pagamento do valor do veículo sinistrado, e o custo, pelo menos total, do aparcamento. Trata-se de dois pedidos manifesta e substancialmente incompatíveis, o que provoca a ineptidão da petição inicial nos termos do art. 193.º, n.º 2, al. c), do CPC.
II - Ultrapassada, porém, a fase em que a consequente nulidade podia ser declarada (art. 206.º, n.º 2, do mesmo Código), não pode deixar de se retirar daí como consequência que o autor não podia ter direito às duas indemnizações cumuladas: ou optava pelo direito ao pagamento do valor do veículo, ou pelo pagamento da sua reparação, com inclusão do respectivo necessário aparcamento, não podendo pedir o pagamento do custo do aparcamento posterior à opção pelo pagamento daquele valor.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA intentou, em 20-4-04, no Tribunal Judicial da Comarca de St.ª Maria da Feira, acção declarativa, sob a forma ordinária, contra o G. P. DE C. V..
Pede a condenação do R. no pagamento da quantia de € 23.107,44, acrescida de juros de mora; e ainda no pagamento da quantia correspondente aos valores diários devidos à garagem onde o carro se encontra, que se vencerem desde a data da propositura da acção até à data em que o veículo automóvel seja retirado da mencionada oficina, a liquidar em execução de sentença.
Pretende, desta forma, ser indemnizado dos prejuízos decorrentes de um acidente de viação ocorrido em 3-2-03, na Rua Dr. ……., Mozelos, Santa Maria da Feira, no qual foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula …-…-…, sua propriedade e por ele conduzido, e o veículo pesado de mercadorias com a matrícula …-…-…, propriedade da sociedade M. M., S.L., e conduzido por BB, acidente que imputa a culpa deste condutor.
O R. contestou, por impugnação, nomeadamente imputando a culpa exclusiva na produção do acidente ao próprio autor.
Elaborado o despacho saneador, que decidiu não haver excepções nem nulidades secundárias, foi enumerada a matéria de facto desde logo dada por assente e elaborada a base instrutória, de que reclamou o autor, tendo a sua reclamação sido parcialmente deferida.
Oportunamente teve lugar audiência de discussão e julgamento, tendo sido proferida decisão sobre a matéria de facto sujeita a instrução, ao que se seguiu a sentença, que julgou a acção parcialmente procedente e condenou o R. a pagar ao A. a quantia de € 15.097,69, sendo € 14.597,69 de danos patrimoniais e € 500 de danos não patrimoniais, acrescidos de juros legais desde a citação até integral pagamento, assim como no montante que se liquidar em execução de sentença, correspondente ao valor diário de € 13 que sejam devidos pelo A. à oficina de CC, desde 3-2-03 até ao levantamento do dito veículo.
Inconformado, o R. interpôs recurso, sem êxito, uma vez que a Relação negou provimento à apelação e confirmou a sentença ali recorrida, por acórdão de que vem interposta a presente revista, de novo pelo réu, que, em alegações, formulou as seguintes conclusões:
1ª - O autor formulou o pedido de indemnização ao réu do valor venal do seu veículo automóvel, interveniente no acidente de viação em causa, no montante de 15.400,00 euros;
2ª - Acto claramente confirmativo de ele próprio ter aceite como desaconselhável a reparação do veículo automóvel …-…-…, propriedade do autor, quando este em 21/3/03, comprou outro veículo automóvel;
3ª - A partir daquela data, deixou de ter razão ou fundamento o aparcamento do …-…-…, porquanto o mesmo se destinava a garantir a consequente reparação;
4ª - Tal situação danosa extinguiu-se a partir do momento em que o autor adquiriu uma nova viatura, deixando de se verificar o aparcamento como consequência adequada do acidente de viação em causa;
5ª - Quando assim não se entender, o autor continuou a ser proprietário do …-…-…, e celebrou um contrato de empreitada com a oficina de reparações, pelo que só ele tinha legitimidade para o fazer, e nenhum interesse relevante em termos de ressarcimento do dano o impedia;
6ª - Ao assim não proceder, agindo com desleixo, incúria e inércia, o autor não teve um comportamento de um homem médio avisado, prudente e sensato;
7ª - O que, ao abrigo do disposto no art.º 570º do Cód. Civil, nos encontramos em presença de um comportamento censurável, que permite ao Tribunal excluir o direito à indemnização ao autor;
8ª - Finalmente, e considerando o factualismo referido, o exercício de tal direito excede os limites impostos pela boa fé, e ofende em termos clamorosos o sentido de justiça;
9ª - Foram violados, assim, entre outros, os art.ºs 483º, 562º, 563º, 570º e 334º, todos do Cód. Civil.
Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido e a sua absolvição do pedido de pagamento de indemnização pelo aparcamento a partir de 21/3/03.
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Em contra alegações, o autor pugnou pela confirmação daquele acórdão.
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Colhidos os vistos legais, cabe decidir, tendo em conta que os factos assentes são os como tais declarados, por remissão para a sentença da 1ª instância, no acórdão recorrido, para o qual nessa parte desde já se remete ao abrigo do disposto nos art.ºs 726º e 713º, n.º 6, do Cód. Proc. Civil, uma vez que não há impugnação da matéria de facto nem fundamento para a sua alteração.
Desses factos importa ter em conta os seguintes, que, uma vez que se encontra assente a culpa exclusiva do condutor do veículo seguro no réu pela produção do acidente e a obrigação do réu de indemnizar o autor pelos danos que deste lhe tenham resultado, são os que têm interesse para a decisão da única questão suscitada naquelas conclusões, e que é a de saber se o autor tem direito ou não a ser indemnizado pela despesa suportada com o aparcamento da sua viatura sinistrada a partir de 21/3/03:
1º - À data do acidente - 3/2/03 -, o autor utilizava o seu veículo, de matrícula …-…-…, para ir às compras, consultas médicas, passear e ir às termas em Chaves;
2º - O veículo do autor era de 1994 e tinha 61.932 Km;
3º - O autor fazia periodicamente a sua manutenção e não tinha qualquer intenção de adquirir outro veículo durante a sua vida;
4º - Em consequência do embate o veículo do autor ficou impossibilitado de circular;
5º - Da colisão resultaram danos no veículo do autor, cuja reparação ascende a 11.298,15 euros, acrescidos de IVA, podendo tal valor aumentar após a desmontagem;
6º - Por a seguradora ter considerado desaconselhável a sua reparação, o autor, em 21/2/03, comprou outro veículo;
7º - Desde a data do embate até 21/2/03 o autor não dispôs de automóvel para se deslocar;
8º - Desde a data do embate que o veículo do autor se encontra aparcado na oficina de CC, ocupando uma área de 4,5 m2;
9º - Para situações semelhantes à referida no n.º 8º, o custo do aparcamento importa em cerca de 13,00 euros por dia.
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Na petição inicial desdobrara o autor o montante que pretendia como indemnização nas seguintes parcelas:
15.400,00 euros pelo prejuízo resultante dos danos sofridos no seu veículo, por ser esse o valor que o mesmo veículo tinha para ele autor (art.º 33º);
570,00 euros pela privação de uso de veículo seu entre a data do acidente e 21/2/03;
5.887,44 euros pelo custo do aparcamento desde a data do acidente até à propositura da presente acção (20/4/04), à média de 13,32 euros por dia;
1.250,00 euros por danos não patrimoniais;
a quantia correspondente aos valores diários devidos à garagem onde o automóvel sinistrado se encontra, que se vencerem desde a propositura da acção até à data em que tal veículo seja retirado da mesma oficina, a liquidar em execução de sentença.
A sentença da 1ª instância fixou para aquela primeira parcela o montante de 14.122,69 euros (soma do custo da reparação, 11.298,15 euros, com o IVA, 2.824,54 euros); 475,00 euros pela invocada privação do uso; 500,00 euros pelos danos não patrimoniais; e, apesar de referir expressamente que “tal veículo não foi, nem pelos vistos vai ser reparado já que o autor procedeu à compra de um outro”, condenou o réu ainda no pagamento de indemnização pelo custo do aparcamento desde a data do acidente até àquela em que se verificar o levantamento do veículo, na base de 13,00 euros diários, em montante a determinar em execução de sentença.
É esta parte da condenação que está em causa no presente recurso, como já o esteve na apelação, sendo que a Relação optou pelo mesmo entendimento por considerar que o réu estava obrigado, antes de mais, a proceder à reparação do veículo (primazia da reconstituição natural nos termos do art.º 566º, n.º 1, do Cód. Civil), pelo que estava também obrigado a suportar as inerentes despesas com o respectivo aparcamento desde a data do acidente “até à sua reparação ou até ao seu levantamento caso o autor opte, agora, por não o reparar”, por se tratar de uma consequência adequada do mesmo acidente e em atenção ao princípio da causalidade adequada (art.º 563º do mesmo Código).
A este respeito deve desde já dizer-se que não é admissível pedir, cumulativamente, o pagamento do valor do veículo sinistrado, pretendido pelo autor conforme art.º 33º da petição inicial, e o custo, pelo menos total, do aparcamento: o pedido de pagamento do valor do veículo, destinando-se a substituí-lo permitindo a aquisição de um outro veículo que se encontrasse no estado em que o veículo sinistrado se encontrava imediatamente antes do acidente, implica necessariamente não se pretender ou deixar de se pretender a reparação do sinistrado, que é o objectivo do aparcamento, e o pedido de pagamento do custo deste implica necessariamente a pretensão de se proceder à reparação do veículo, o que exclui a pretensão de substituição e, portanto, o pagamento daquele valor.
Trata-se aqui, pois, de dois pedidos manifesta e substancialmente incompatíveis, o que provoca a ineptidão da petição inicial nos termos do art.º 193º, n.º 2, al. c), do Cód. Proc. Civil.
Ultrapassada, porém, a fase em que a consequente nulidade podia ser declarada (art.º 206º, n.º 2, do mesmo Código), não pode deixar de se retirar daí como consequência que o autor não podia ter direito às duas indemnizações cumuladas: ou optava pelo direito ao pagamento do valor do veículo, ou pelo pagamento da sua reparação, com inclusão do respectivo necessário aparcamento, não podendo pedir o pagamento do custo do aparcamento posterior à opção pelo pagamento daquele valor.
Assim, transitada como está a sentença da 1ª instância no que se refere ao pagamento da primeira parcela referida, por nessa parte não ter sido objecto de recurso (art.º 684º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil), sem embargo de o montante respectivo ser inferior em pouco mais de mil euros ao pedido pelo autor por este não ter logrado provar que o valor do veículo era o de 15.400,00 euros por ele indicado, a dita impossibilidade de cumulação não permite a condenação do réu no pagamento do custo do aparcamento a partir da propositura da presente acção, nessa medida tendo de se reconhecer razão ao ora recorrente.
Antes disso, porém, não se detecta motivo para excluir o direito do autor ao pagamento de tal custo, apesar de ter adquirido outro veículo em 21/2/03 por a seguradora lhe ter afirmado ser desaconselhável a reparação.
Com efeito, uma tal afirmação da seguradora, só por si, era insuficiente para determinar a convicção da impossibilidade ou excessiva onerosidade para ela da reparação integral dos danos, podendo criar na mente do autor apenas o receio de prolongamento do tempo necessário para a reparação, forçando-o a adquirir outro veículo para obviar ao risco e maior incómodo da demora, que é, aliás, o que ele invoca.
E nada obsta a que o autor, se quisesse, mudasse as suas intenções anteriores, e adquirisse outro veículo, quer para obstar àquele risco e incómodo, quer por ter então formado a intenção de aproveitar o sinistrado se fosse útil ou viável a sua reparação.
Por outro lado, ao contrário do entendimento expresso pelo recorrente, não resulta dos factos provados que tenha sido celebrado qualquer contrato de empreitada entre o autor e a oficina de reparações. E não se mostra também que o presumível acordo celebrado entre estes com vista ao aparcamento do veículo sinistrado não se justificasse pelo período que decorreu até à propositura da acção, precisamente por o autor poder, então, pretender a reparação apesar de entretanto ter adquirido outro veículo, coisa que só a ele diz respeito e ninguém lhe pode criticar.
Assim, e como podia não ter possibilidades económicas para providenciar, ele próprio, pela reparação, não se lhe pode imputar qualquer actuação que tenha concorrido para o agravamento dos danos, actuação essa que cabia ao réu demonstrar por se tratar de matéria de excepção peremptória por poder conduzir à modificação do efeito jurídico dos factos articulados pelo autor (art.ºs 493º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil, e 570º do Cód. Civil).
Também por isso se entende não se encontrar demonstrado o abuso de direito invocado pelo recorrente, uma vez que não se mostra que o autor, em relação ao período que decorreu desde a data do acidente até à da propositura da acção, tenha exercido o seu direito com qualquer excesso, muito menos manifesto, dos limites indicados no art.º 334º do Cód. Civil.
Conclui-se, pois, que o autor tem direito a que o réu suporte o custo do aparcamento desde a data do acidente até à da propositura da acção, já não lhe podendo ser reconhecido esse direito para o período posterior. E trata-se aqui de uma questão que pode ser agora conhecida, ao contrário do que sustenta o autor nas suas contra alegações: é que não se trata de questão nova, pois na contestação o réu invocou não ter obrigação de indemnizar o autor pelo total por este pedido, portanto com inclusão do custo do aparcamento.
Esse custo, tendo em conta que o número de dias que tal período durou foi de 442 e que o custo diário do aparcamento era de cerca de 13,00 euros, ascende a 5.746,00 euros.
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Pelo exposto, acorda-se em conceder em parte a revista, revogando-se o acórdão recorrido na parte em que confirmou a condenação do réu, proferida na sentença da 1ª instância, a pagar ao autor o montante, respeitante ao aparcamento, que se liquidar em execução de sentença, correspondente ao valor diário de 13,00 euros que sejam devidos pelo autor à oficina de CC desde 3/2/03 até ao levantamento do seu veículo sinistrado, condenando-se o réu a pagar ao autor, em vez desse montante ilíquido, a quantia de 5.746,00 euros, acrescida dos juros legais de mora respectivos nos termos determinados para os restantes montantes indemnizatórios, e absolvendo-se o réu do pedido na parte excedente a esse montante.
Custas, aqui e nas instâncias, por ambas as partes, na proporção de metade por cada uma.
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Lisboa, 29 de Novembro de 2006
Silva Salazar
Afonso Correia
Ribeiro Almeida