Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
25307/17.4T8PRT.P2.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: PRAZO DE PRESCRIÇÃO
INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
CITAÇÃO
INEFICÁCIA
LIQUIDAÇÃO
MASSA FALIDA
COOPERATIVA DE HABITAÇÃO
Data do Acordão: 04/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - O prazo prescricional interrompe-se pela citação, notificação judicial, ou qualquer outro meio judicial pelo qual se dê conhecimento do acto que exprima, directa ou indirectamente a intenção de exercer o direito contra quem este possa ser exercido;

II - A citação feita em quem não tem qualquer direito que possa opor ao exercido pelo autor é inócua, ineficaz, para efeitos de interrupção do prazo de prescrição.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



O Ministério Público intentou ação declarativa com processo comum contra incertos, pedindo que seja “declarado vago e reverter para o Estado Português o saldo resultante da liquidação do ativo da falência da Cooperativa de Habitação Económica Novo Rumo, depositado na conta nº ……30 da Caixa Geral de Depósitos (ressalvadoodestinodovalor de€374,10referidonos artigos 7º a 9º da petição inicial) –montante que, aquando da propositura da ação se computou em€789.850,96 (€790.225,06–374,10)”.

A fundamentar aquele pedido, alegou no essencial:

No Proc. nº 12794/…. (atualmente, nº 13783/17….., Juiz …, do Juízo Local Cível ….), foi declarada, em 27.4.1987, a falência da Cooperativa de Habitação Económica Novo Rumo, CRL, que foi sediada no Porto, havendo sido fixada a data da falência em 9 de março de 1987.

O processo decorreu ao abrigo do disposto nos artigos 1135º a 1325º do C.P.C. de 1961 e, após a prestação de contas, os autos do processo principal foram mandados arquivar em 9 de maio de 2006, o apenso daquela prestação de contas foi mandado arquivar em 13 de junho de 2006 e, em junho de 2006, foi aposto o visto em correição na verificação do passivo.

Mas, tendo sido liquidado o ativo e sido pagos os créditos graduados, verifica-se que subsiste um saldo, que é, atualmente, de€790.225,06, depositadonacontanº ……30. da Caixa Geral de Depósitos (agência …., no Porto), conta essa referente à mencionada falência e aberta no âmbito da extinta Câmara de Falências.

Cotejado o extracto que constitui o doc. 1, a não movimentação da importância de de€374,10quecoubeaocredor AA, a favor de quem foi emitido o cheque nº ……61, datado de 11.2.2003, cujo montante, não tendo sido apresentado a pagamento, prescreveu a favor do Cofre Geral dos Tribunais.

O demais saldo depositado na conta nº …30 da Caixa Geral de Depósitos é um valor sobrante da liquidação, ao qual haverá que ser dado destino.

Nas situações de dissolução das cooperativas de habitação por efeito de falência – em que a liquidação existiu, inclusivamente em benefício dos credores, como é típico do processo falimentar, sendo a massa falida um património autónomo –não há lugar a rateio do remanescente pelos cooperadores, não se tratando tal remanescente de um excedente acrescentado pela participação destes.

Nenhum particular é titular de qualquer direito sobre o referido montante ou quota-parte dele.

O aludido remanescente constitui um património sem titular e que necessita de ser encabeçado, afigurando-se que deverá ser declarado vago para o Estado.

Fenache – Federação Nacional de Cooperativas de Habitação apresentou contestação, alegando, em síntese, que todos os valores sempre deveriam permanecer no setor cooperativo, não de forma arbitrária, mas com base na rede legal.

De facto, todos os resultados de exercícios devem, no caso destas cooperativas, reverter ou para a reserva legal (artigo 9º, nº 2, do DL nº 218/82, de 2 de junho) ou ser aplicados nas reservas que a cooperativa deva constituir nos termos da lei ou dos estatutos (artigo 10º).

Devendo a quantia em causa ser integrada nalguma reserva constituída pela Cooperativa (reserva legal ou quaisquer outras, constituídas ao abrigo do disposto no artigo 69º do Código Cooperativo de 1980, o seu destino deverá ser fixado pela aplicação do artigo 77º, nº 3, desse mesmo diploma, diretamente ou por força da remissão constante do nº 4 do mesmo artigo 77º.

Uma vez que não lhe sucedeu nenhuma entidade cooperativa nova, a aplicação do montante será determinada pela união, federação ou confederação: a) Do ramo do setor cooperativo, na qual a cooperativa em liquidação estiver agrupada; b) Que, atendendo à identidade do ramo do sector cooperativo ou de âmbito, mais próxima estiver da cooperativa, caso esta não esteja agrupada em nenhuma cooperativa de grau superior.

Pelo que, deverá o valor em causa reverter para a aqui interveniente, sendo que a sua apropriação pelo Estado sempre seria abusiva e não fundamentada.


///


Após os articulados, foi proferida sentença a declarar abandonado a favor do Estado, a quem se adjudica, o saldo da conta nº …. aberta na Caixa Geral de Depósitos, S.A., (sem prejuízo da quantia já declarada prescrita a favor do Estado referida no artigo 9º da petição inicial).

Inconformada a interveniente Fenache – Federação Nacional de Cooperativas de Habitação recorreu de apelação.

A Relação … negou provimento ao recurso e confirmou a sentença, embora com diferente fundamentação.

Inconformada, a interveniente Fenache interpôs recurso de revista excepcional, com vista à revogação do acórdão, e a improcedência da acção, para ser proferida decisão que lhe atribua o valor em causa nos autos, €790.352,37.

Remata a sua alegação com as seguintes conclusões (eliminam-se as que respeitam à admissibilidade da revista excepcional):

A a J (…).

K. Genericamente e do ponto de vista constitucional, as cooperativas constituem uma forma de exercício colectivo, ou associado, da liberdade de iniciativa económica, sujeita aos princípios cooperativos (artigo 61º, n.ºs 2 a 4) e integram um sector específico de propriedade dos meios de produção (artigo 82º, n.º 4);

L. Tais princípios, a que o texto constitucional se limitou a fazer referência, sem os explicitar, têm vindo a ser enumerados nos sucessivos Códigos Cooperativos, por via do acolhimento dos princípios definidos pela Aliança Cooperativa Internacional (ACI);

M. As cooperativas não são sociedades, antes constituem formas colectivas de prossecução de interesses económicos, sociais e culturais transindividuais, com algumas características específicas, quer ao nível dos fins prosseguidos, quer do respectivo regime jurídico;

N. A abordagem constitucional do sector cooperativo revela uma específica intenção

de lhe dispensar um tratamento algo privilegiado, o que parece corresponder a uma valoração positiva do interesse económico e social das cooperativas;

O. Esse privilégio de tratamento detecta-se, por exemplo, nas vertentes de: a) Consagração da liberdade de constituição e de funcionamento de cooperativas (artigo 61º, n.ºs 2 e 3); b) Não exigência de que os meios de produção sejam propriedade do sector cooperativo, aceitando que os mesmos sejam apenas geridos e possuídos pelo sector cooperativo [artigo 82º, n.º 4, alínea a)]; c) Incumbência ao Estado de estimular e apoiar a criação e a actividade de cooperativas (artigo 85º, n.º 1); d) Cometimentoà leidadefiniçãodebenefícios fiscais efinanceiros das cooperativas, bem como de condições mais favoráveis à obtenção de crédito e auxílio técnico (artigo 85º, n.º 2);

P. A propósito do tipo de relacionamento desenhado, pela lei constitucional, entre o Estado e as cooperativas, cabe salientar que o Estado não pode assumir uma postura de ingerência ou tutela, por força da vigente liberdade de constituição e funcionamento;

Q. O Estado também não pode assumir uma postura de passividade ou neutralidade, dados os imperativos constitucionais de estímulo e apoio à criação e à actividade de cooperativas, que também enquadram a intervenção estadual – a denominada via de cooperativismo estimulado;

R. Outro aspecto de relevo tem a ver com a insusceptibilidade, salvo razões excepcionais, de apropriação pelo Estado de bens pertencentes às cooperativas;

S. A espinha dorsal do regime cooperativo, no que aos bens ali integrados diz respeito, assenta no vector essencial de não ser admissível que o Estado se aproprie de bens que integram, ou integraram, o sector cooperativo, pela simples razão de que os bens ou valores das cooperativas integram um acervo insusceptível de ser abandonado – no limite, esse acervo está sempre sob a tutela das entidades integrantes do sector;

T. Essa conclusão resulta ainda mais evidente quando se consideram as regulações específicas de determinados ramos cooperativos, como seja o caso das cooperativas de habitação e construção, cujo regime manifesta uma evidente preocupação de manter todo o activo patrimonial na esfera cooperativa, mesmo em caso de liquidação resultante de decisão administrativa ou de processo insolvencial;

U. A questão supra enunciada, é essencial para o desenvolvimento e discussão do Direito, tem relevância técnico-jurídica, e exige, sobretudo, que sejam estabelecidos procedimentos certos para estes valores/remanescentes que, à falta de uma aplicação concreta da rede legal existente, acabam por esvair-se do sector cooperativo;

V. Prevenindo-se que haja uma destinação automática desses valores e desses remanescentes (neste caso a favor do Estado), para lá do sector cooperativo, esvaziando o seu lastro de protecção constitucional assim como a sua eficácia;

W. Em concreto arrepio daquilo que é uma visão constitucionalmente consagrada da importância do sector cooperativo e, claro, da manutenção dos valores desses mesmo sector intra sistema: aliás daí decorre que o próprio artigo 77.º do C. Cooperativo, ao determinar que o remanescente seja destinado a uma outra cooperativa do mesmo ramo de actuação, acaba por ter uma radiância constitucional que será sempre necessário respeitar;

Relativamente aos argumentos aduzidos, reforça-se que,

X. Quanto às reservas e distribuição de excedentes, o Código Cooperativo de 1980 (o aplicável ao caso em análise) consagrava: a) A obrigatoriedade de constituição de reserva legal e de reserva para educação e formação cooperativa (artigos 67º e 68º); b) Faculdade de serem constituídas outras reservas, ao abrigo da legislação complementar ou dos estatutos (artigo 69º); c) Insusceptibilidade de repartição das reservas entre os cooperadores, salvo o caso previsto non.º5 doartigo 25.º(artigo 70º); d) Possibilidade de retorno aos cooperadores dos excedentes anuais líquidos, com excepção dos provenientes de operações realizadas com terceiros (artigo 71º);

Y. Quanto às regras de liquidação das cooperativas entendia-se, no domínio da legislação anterior ao primeiro Código Cooperativo (de 1980), que a específica natureza das cooperativas determinava que a sua liquidação não devia conferir um direito de reembolso aos seus associados;

Z. Ao invés, o património (líquido) devia ser integrado noutra instituição cooperativa semelhante (como expressamente se referia no artigo 21º, n.º 1 do DL n.º 730/74, de 20 de Dezembro, Regime Jurídico da Cooperação Habitacional), ou distribuído para fins de beneficência;

AA. Contudo, era evidente que tal princípio não podia deixar de ser conjugado com as pertinentes disposições do Código Comercial, que não exceptuava, nessa parte, o regime geral de dissolução das sociedades comerciais;

BB. Com a entrada em vigor do CCoop 80, a matéria passou a ser regulada pelo artigo 77º (na redacção que lhe foi dada pelo DL 238/81, de 10 de Agosto);

CC. Em complemento e no que especificamente concerne às cooperativas de habitação e construção, o regime fixado pelo DL n.º 218/82, de 02 de Junho (o aplicável ao caso em análise) consagrava: a) Obrigatoriedade da criação de uma reserva para conservação e reparação e de outra para construção, para além das previstas no Código Cooperativo (artigo 7º, n.º 1); b) Possibilidade de ser criada uma reserva social destinada à cobertura dos riscos de vida e invalidez permanente dos cooperadores, desde que a cooperativa tenha capacidade técnica, económica e financeira para o efeito (artigo 8º, n.º 1); c) Reversão para a reserva legal dos excedentes líquidos gerados por operações com não cooperadores, incluídas no objecto social das cooperativas, realizadas a título complementar (artigo 9º, n.º 2); d) Aplicação das reservas que a cooperativa deva constituir nos termos da lei ou dos estatutos, dos excedentes de cada exercício, resultantes das operações com membros (artigo 10º).

DD. A conjugação das especificidades do regime dascooperativas de habitação com o quadro genérico do Código Cooperativo permite detectar o intuito primordial de garantir que todos os resultados obtidos pelo exercício das respectivas actividades sejam incorporados em reservas e, por tal forma, sejam enquadrados no regime que lhes está fixado: a) Por um lado, são insusceptíveis de repartição; b) Por outro lado, são insusceptíveis de serem distribuídas pelos cooperadores; c) Finalmente e em caso de liquidação, ficam sujeitas ao regime fixado no Código Cooperativo quanto ao destino do património em liquidação.

EE. A situação ora em análise deve ser resolvida pela aplicação directa da norma que ao caso cabe, inquestionavelmente o artigo 77º, n.ºs 2 e 3;

FF. A quantia em causa deve ser integrada nalguma reserva constituída pela Cooperativa Novo Rumo (reserva legal ou quaisquer outras, constituídas ao abrigo do disposto no artigo 69º CCoop. 1980), o seu destino deverá ser fixado pela aplicação directa do artigo 77º, n.º 3 desse mesmo diploma;

GG. Uma vez que não lhe sucedeu nenhuma entidade cooperativa nova, a aplicação do montante será determinada pela união, federação ou confederação:a) Do ramo do sector cooperativo na qual a cooperativa em liquidação estiver agrupada; b) Que, atendendo à identidade do ramo do sector cooperativo ou de âmbito, mais próxima estiver da cooperativa, caso esta não esteja agrupada em nenhuma cooperativa de grau superior.

HH. Conclui-se, pois, no sentido de o regime legal vigente dar uma resposta directa e imediata ao problema ora em análise, afastando qualquer solução indirecta ou analógica;

II.   E, ainda que assim não fosse, a solução a encontrar nunca passaria por uma qualquer analogia com as soluções de declaração de património vago para o Estado, uma vez que o direito subsidiário para colmatar as lacunas do Código Cooperativo que não o possam ser pelo recurso à legislação complementar aplicável aos diversos ramos do sector cooperativo, foi e é sempre o direito comercial (direito das sociedades comerciais), nomeadamente os preceitos aplicáveis às sociedades anónimas, na medida em que não se desrespeitem os princípios cooperativos;

JJ. Obviamente, qualquer solução que passe pela apropriação pelo Estado dos activos cooperativos, maxime o valor em causa na presente consulta, constitui uma abordagem abusiva e não fundamentada;

KK. Acresce que o segmento de fundamentação II. do Acórdão padece de deficiências graves: a) Parece considerar normal a inexistência de quaisquer reservas na cooperativa em causa, que era uma cooperativa de habitação, sujeita a um regime especial; b) Reconhece a existência de um valor remanescente, que invoca ter resultado, face aos demais documentos juntos (balanço, relação de processos e execuções pendentes e relação de credores), da apreensão e liquidação do património imobiliário; c) não atende ao regime legal específico das cooperativas de habitação.

LL. A1ªquestão-inexistência de quaisquer reservas na cooperativa em causa – parece não ter relevância pretérita (enquanto funcionou, aquela cooperativa não constituiu as reservas a que estava legalmente obrigada, facto que morreu com a sua declaração de insolvência), mas apresenta relevância quanto à questão de saber qual o destino a dar aos montantes apurados após a declaração de insolvência e subsequente liquidação da cooperativa;

MM. O reconhecimento da existência de um valor remanescente, resultante da apreensão e liquidação do património imobiliário, não pode deixar de apresentar relevância substantiva, uma vez que aquele valor advém [mesmo que indirectamente] do exercício da actividade cooperativa;

NN. E se o património era da cooperativa, então o valor resultante da sua apreensão e liquidação será, igualmente, da cooperativa, rectius, da massa insolvente, reafirmando-se que nenhum credor ficou sem os respectivos créditos regularizados;

OO. Se algum credor nãotivesse ficado sem o seu crédito satisfeito, decertoque este valor remanescente, tardiamente apurado, deveria ser utilizado na satisfação dos créditos remanescentes ainda não satisfeitos o que significa que tal valor remanescente, não podendo deixar de ser ainda imputado à massa insolvente, deveria destinar-se à regularização dos créditos pendentes;

PP. Apesar de encerrada a liquidação, ainda foi possível identificar a existência de um valor remanescente. Contudo: d) O valor remanescente existe – cerca de € 790 mil; e) Esse valor tem uma origem - resulta da apreensão e liquidação do património imobiliário da cooperativa; f) Logo, a razão essencial da existência desse valor diz respeito ao exercício da actividade daquela cooperativa;

QQ. Então, tomando em devida conta a articulação entre o quadro genérico do Código Cooperativo, e cfr. referido supra no artigo 97.º, todos os resultados obtidos peloexercício das respectivas actividades são incorporados em reservas e, nesse sentido, deveria ter aquele remanescente sido remetido para a aqui Recorrente.


Contra alegou o MP, pugnando pela inadmissibilidade da revista excepcional.


///


Cumpre em primeiro lugar verificar se é admissível a revista excepcional.


Decorre do nº 1 do art. 672º do CPC que excecionalmente cabe recurso de revista do acórdão da Relação referido nº 3 do art. 671º, se verificada uma qualquer das situações previstas nas alíneas a), b) e c), competindo à formação a que alude o nº3 apreciar se se verificam os pressupostos da revista excepcional.

A revista excepcional está prevista para as situações de dupla conforme, isto é, os casos em que a Relação confirma sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1ª instância.

No caso, a sentença de 1ª instância julgou a acção procedente e declarou “abandonado a favor do Estado, a quem se adjudica, o saldo da conta nº (…) aberta na Caixa Geral de Depósitos”, por prescrição, com fundamento no disposto no art. 1º, alínea c) do DL nº 187/70 de 30.04, que “considera abandonados a favor do Estado os bens ou valores de qualquer espécie, depositados ou guardados em instituições de crédito ou parabancárias, quando durante o prazo de 15 anos, não haja sido movimentada a respectiva conta (…).”

A Relação, embora tenha confirmado a decisão da 1ª instância, seguiu outro caminho: considerou não verificado o prazo de 15 anos para a prescrição, e considerou que se está “perante o remanescente de um património autónomo que é a massa falida, depois de esta ter respondido por todas as obrigações legais, e que não corresponde a qualquer reserva (…).”

Significa isto que a fundamentação da sentença e do acórdão são no essencial diferentes, o que afasta a dupla conforme e, consequentemente, a admissibilidade da revista excepcional.

Embora não verificados os pressupostos da revista excepcional, e uma vez que se verificam os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso – natureza da decisão, valor da acção e da sucumbência e legitimidade – apreciar-se-á o recurso como revista normal (nº 5 do art. 672º).

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Fundamentação.

O acórdão recorrido deu como provados os seguintes factos:

1. Em 27 de abril de 1987, no processo de falência nº 13783/17…. (número atual) foi decretada a falência da Cooperativa de Habitação Económica Novo Rumo, C.R.L.

2. Em 31 de janeiro de 2003, foi depositado (depósito obrigatório) na Caixa Geral de Depósitos, S.A., (conta nº ……30), o produto da liquidação da massa falida da Cooperativa de Habitação Económica Novo Rumo, C.R.L. (fls. 7 v. e 75).

3. Em 15 de março de 2004, foi efetuado o último movimento na conta nº …..30 sem prejuízo do referido no ponto seguinte (fls. 9 v.).

4. Em 27 de fevereiro de 2015, a Caixa Geral de Depósitos, S.A., iniciou o débito de comissões de manutenção da conta n.º … (fls. 12).

5. Efetuados todos os pagamentos ordenados no processo de falência nº 13783/17…, foi apurado um remanescente de €790.352,37, vindo o processo a ser encerrado e a ingressar no arquivo, sem que fosse dado destino a esta quantia.

6. Em 11 de julho de 1984, foram publicados no Diário da República, nº 159/1984, Série III, p. 7586, os estatutos atualizados da Cooperativa de Habitação Económica Novo Rumo, C.R.L.,dos quais consta, noseuartigo63º: “Napartilha observar-se-á o disposto no artigo 77º do Código Cooperativo” (fls. 86 v.).

Fundamentação de direito.

A questão a decidir é a de saber se o saldo que foi depositado em 31 de janeiro de 2003, (depósito obrigatório) na Caixa Geral de Depósitos, S.A., que é resultante do produto de liquidação da massa falida da Cooperativa de Habitação Económica Novo Rumo, C.R.L. (fls. 7 v. e 75), deve ser declarado atribuído ao Estado, conforme decidiram as instâncias, embora com diferente fundamentação, ou remetido para a recorrente Fenache (Federação Nacional das Cooperativas de Habitação).

A sentença da 1ª instância decidiu que o saldo remanescente do depósito acima identificado deve considerar-se abandonado em favor do Estado no dia 16.03.2019, por força do disposto na al. c) do art. 1.º do Decreto-Lei n.º 187/70, de 30 de abril.

Para assim decidir, considerou no essencial:

Que à data da  insolvência da Cooperativa de Habitação Económica Novo Rumo CRL., se encontrava em vigor o DL nº 454/80 de 09 de Outubro, que aprovou o Código Cooperativo, que nada estabelecia sobre a sorte do remanescente da liquidação, distinto de qualquer fundo de reserva, “hipótese que o legislador terá considerado de concretização nula, mas que se verificou no caso dos autos”;

Que o referido saldo não constitui um património sem titular, como defendido pelo MP, que tal património “tinha titulares (atualmente indeterminados, mas determináveis), os quais poderiam ter exercido os seus direitos no âmbito do processo falimentar;

O produto da liquidação da massa falida da Cooperativa de Habitação Económica Novo Rumo, C.R.L., foi depositado na Caixa Geral de Depósitos, S.A., em depósito obrigatório. Era este o regime legal vigente (n.º 2 do art. 214.º do Código das Custas Judiciais vigente à data (Decreto-lei n.º 44329, de 8 de maio de 1962);

Que por força do disposto na al. c) do art. 1.º do Decreto-Lei n.º 187/70, de 30 de abril, a quantia depositada, cuja conta não é movimentada há 15 anos, deve considerar-se abandonada a favor do Estado;


///


A FENACHE recorreu da sentença para a Relação …, pugnando pela revogação da sentença, devendo em seu lugar ser proferido acórdão que atribua o saldo à recorrente.

O Ministério Público contra alegou e requereu a ampliação do objeto do recurso nos termos do artigo 636º do C.P.C., pugnando para que, a julgar-se não aplicável o normativo invocado pela sentença, se declare que o saldo é um património autónomo – deve ser efetivamente adjudicado ao Estado com os seguintes fundamentos, entendimento que veio a ser sufragado pelo acórdão recorrido.

O acórdão recorrido confirmou a sentença, tendo aderido às razões do MP.

Considerou não completado o prazo de 15 anos fixado no art. 1º, c) do DL nº 187/70, por força da citação da interveniente FENACHE, antes do decurso daquele prazo.

Negou a pretensão da Recorrente por o saldo depositado não resultar de uma reserva legal, mas sim o remanescente de um património autónomo, que é a massa falida, e julgou o recurso improcedente, procedendo a ampliação do objecto do recurso pelo MP.


///


Na revista, a Recorrente continua a defender que o saldo depositado na CGD deve ser-lhe remetido e não ao Estado com base nas seguintes razões essenciais: i) A total separação entre o Estado e o sector cooperativo, fundada em razões históricas e com os princípios que enformam as cooperativas; ii) a aplicação ao caso da norma do art. 77º, nºs 2 e 3 do Código Cooperativo de 1980, então em vigor, que “inquestionavelmente lhe cabem”; iii) como aquele valor é resultante da liquidação deve o mesmo ser remetido à Recorrente como “entidade cooperativa do mesmo sector.”

Vejamos se a revista merece provimento.


O primeiro argumento exprime princípios por todos aceites, que não estão em causa, não se vendo fundamento sério para se alegar que o Estado está a pretender apropriar-se de um valor que resultou da actividade cooperativa.

Como referido na sentença, a questão é a de saber “a quem cabe (ou passa a caber) a titularidade do remanescente da liquidação, quando nenhum dos titulares de direitos sobre ele se apresenta a exercer tais direitos no processo falimentar, tendo este sido encerrado.”

Como ali referido, “nos termos do n.º 2 do art. 214.º do Código das Custas Judiciais vigente à data (Decreto-lei n.º 44329, de 8 de maio de 1962), “nas falências e insolvências os depósitos (…) são feitos na Caixa Geral de Depósitos à ordem dos respetivos síndicos, efetuando-se os levantamentos por meio de cheques (…), assinados pelo síndico e pelo administrador da massa, e nos quais é indicado o título da conta” – esta disposição é, no essencial, mantida pelo art. 19.º, n.º 2 do Decreto-lei n.º 49213, de 29 de agosto de 1969.”

O valor em causa é o remanescente dos depósitos referidos no ponto 2 supra.

Preliminarmente importa ver se, como defende o Recorrente, àquele valor deve aplicar-se o disposto no art. 77º, nº 2 e 3 do Código Cooperativo, na redacção que lhe foi dada pelo DL nº 238/81 de 10.08.

O art. 75º do Código Cooperativo de 1980, na redação do DL nº 454/80, previa as várias formas de dissolução das cooperativas, entre as quais “a decisão judicial transitada em julgado que declare a cooperativa impossibilitada de cumprir as suas obrigações” (alínea g)).

De acordo com o art. 76º do mesmo diploma, ao processo de liquidação e partilha do património da cooperativa, cuja causa de dissolução foi a referida na alínea g), “é aplicável, com as necessárias adaptações, o processo de liquidação em benefício dos credores previsto na secção III do capítulo XV do título IV do Código de Processo Civil.”

Das pertinentes disposições do CPCivil de 1961, maxime do art. 1295º, o remanescente da liquidação da Cooperativa de Habitação Económica Novo Rumo, C.R.L. deveria ter sido distribuído pelos cooperadores, no âmbito do processo de liquidação e partilha, como entendeu a sentença da 1ª instância.

Por razões que se ignoram tal não ocorreu e desde 2003 que o saldo, no avultado valor de €790.352,37, está depositado na CGD.

Não se trata de um património autónomo – “que é aquele que responde por dívidas próprias, isto é, que responde e só responde por certas dívidas” (Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4º edição, pag. 348) – mas sim um valor que tinha titulares, actualmente indeterminados.

O referido montante não resulta da reserva legal da Cooperativa de Habitação Económica Novo Rumo, C.R.L., de constituição obrigatória, conforme dispunha o art. 67º do do Cód. Cooperativo de 1980: “É obrigatória a constituição de uma reserva legal destinada a cobrir eventuais perdas de exercício e integrado por meios líquidos e disponíveis”.

 Como assim, por não se tratar de um valor constituído como reserva legal, carece de fundamento a pretensão da Recorrente para que se aplique o regime estabelecido nos nºs 2 e 3 do 77º do Cód. Cooperativo de 1980 para a reserva legal no processo de liquidação do património, nos termos do qual:

1- (…).

2. O montante da reserva legal, estabelecido nos termos do artigo 67º, que não tenha sido destinado a cobrir eventuais perdas de exercício e não seja susceptível de aplicação diversa, pode transitar, com idêntica finalidade, para a nova entidade cooperativa que se formar na sequência de fusão ou de cisão da cooperativa em liquidação.

3. Quando à cooperativa em liquidação não suceder nenhuma entidade cooperativa nova, a aplicação do montante estabelecido no número anterior será:

a) Determinada pela união, federação ou confederação do ramo sector cooperativo no qual a cooperativa estiver agrupada;

b) Determinada pela união, federação ou confederação que, atendendo à identidade do ramo do sector cooperativo ou de âmbito, mais próxima estiver da cooperativa, caso esta não esteja agrupada em nenhuma cooperativa e grau superior.


Acresce que não tendo sido formulado pedido reconvencional, não podia o tribunal decidir pela atribuição do saldo à Recorrente, como por ela pretendido.

Relativamente ao destino do saldo, a 1ª instância ajuizou bem como se vai procurar demonstrar.

O art. 1º, alínea c) do DL nº 187/70 de 30 de Abril, estabelece o seguinte:

“Consideram-se abandonado a favor do Estado os bens ou valores de qualquer espécie depositados ou guardados em instituições de crédito ou parabancárias, quando, durante o prazo de quinze anos, não haja sido movimentada a respetiva conta, não tenham sido pagas taxas de custódia ou cobrados ou satisfeitos dividendos, juros ou outras importâncias devidas, ou os titulares não tenham manifestado por qualquer outro modo legítimo e inequívoco o seu direito sobre os bens ou valores”.

Esclarece a al. b) do art. 2.º do mesmo diploma que o prazo de quinze anos conta-se “a partir da prática, pelos titulares, do último ato pelo qual tenham manifestado o seu direito sobre os bens ou valores”.

Importa ainda atentar que art. 3º preceitua que “as disposições do Cód. Civil sobre a suspensão e interrupção da prescrição são aplicáveis, com as necessárias adaptações, ao abandono previsto no art. 1º do presente diploma.”

Entendeu a Relação que, com a citação da Apelante e ora recorrente em 27.11.2018, e subsequente apresentação da respectiva contestação foi interrompida a contagem do referido prazo de quinze anos. Por este motivo, afastou o entendimento da sentença.


Não se acompanha este entendimento.


O Cód. Civil não acolhe a noção de prescrição. A prescrição é um instituto que se funda num facto jurídico involuntário: o decurso do tempo. Invocada com êxito, a prescrição determina a paralisação de direitos (…). Confere-se, assim, ao beneficiário da prescrição, o poder ou a faculdade de recusar, de modo lícito, a realização da prestação devida (cf. nº1 do art. 304º do CCivil) (Ana Filipa Morais Antunes, Prescrição e Caducidade, 2ª edição, pag. 24).

O tribunal não conhece oficiosamente da prescrição; para ser eficaz necessita de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita (art. 303º do CCivil), isto é, pelo seu beneficiário ou sujeito passivo da relação, em regra o devedor.

Estatui o nº 1 do art. 323º do CC que “a prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial avulsa de qualquer acto que exprima, directa ou indiretamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja o incompetente.”

O nº 4 equipara à citação ou notificação, para efeitos de interrupção do prazo prescricional, “qualquer outro meio judicial pelo qual se dê conhecimento do acto àquele contra quem o direito pode ser exercido.”

Essencial é, assim, que a citação seja feita na pessoa contra quem o direito pode exercido.

Ora, se a Relação considerou, como o havia feito a 1ª instância, e assim também entendemos, que a Recorrente não tem qualquer direito sobre o saldo depositado, a prescrição não lhe aproveita, não pode deixar de concluir-se que a citação nenhum efeito teve na interrupção do prazo em curso, é inócua.

Perfilha-se assim o que se escreveu na sentença da 1ª instância:

“Resulta dos factos provados que o depósito em causa não é movimentado há mais de 15 anos (art. 611.º do CPC). O débito de comissões de manutenção (precisamente por falta de movimentação) unilateralmente determinado pela depositária não equivale ao pagamento (ato voluntário do devedor) de uma taxa (contrapartida acordada) de custódia, não tendo qualquer valor no afastamento da presunção de abandono. Não tem nenhum significado revelador de afirmação de dominialidade – e, se o tivesse, contra o que entendemos, seria a favor da propriedade do titular da conta (o síndico e os interesse por si tutelados), e não de terceiros (como a interveniente FENACHE).

Em face do exposto, o saldo remanescente do depósito acima identificado deve considerar-se abandonado em favor do Estado no dia 16 de março de 2019 (fls. 9 V.), por força do disposto na al. c) do art. 1.º do Decreto-Lei n.º 187/70, de 30 de abril – admitindo a renúncia abdicativa a partir de um comportamento omissivo, cfr. FRANCISCO BRITO PEREIRA COELHO, A Renúncia Abdicativa no Direito Civil - Algumas Notas Tendentes à Definição do Seu Regime, n.º 8 dos Studia Ivridica do Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, p. 162 e nota de rodapé 456 (com início na p. 163).”

Improcedem, assim, na totalidade as conclusões do Recorrente.

Sumário:

I - O prazo prescricional interrompe-se pela citação, notificação judicial, ou qualquer outro meio judicial pelo qual se dê conhecimento do acto que exprima, directa ou indirectamente a intenção de exercer o direito contra quem este possa ser exercido;

II - A citação feita em quem não tem qualquer direito que possa opor ao exercido pelo autor é inócua, ineficaz, para efeitos de interrupção do prazo de prescrição.

Decisão.

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o acórdão recorrido, embora por razões não coincidentes.

Custas pelo Recorrente.


Nos termos do art.15º-A do DL 10-A de 13.03, aditado pelo DL nº 20/20 de 01.05, o relator atesta que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos restantes juízes que compõem este colectivo.


Lisboa, 08.04.2021


Ferreira Lopes (relator)

Manuel Capelo

Tibério Silva