Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1520/04.3TBPBL-A.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA
Descritores: LIQUIDAÇÃO ULTERIOR DOS DANOS
ACÇÃO DECLARATIVA
AÇÃO DECLARATIVA
PRAZO DE INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
DANOS FUTUROS
DANO BIOLÓGICO
PERDA DE CAPACIDADE DE GANHO
DANOS PATRIMONIAIS
PERDA DE CHANCE
INCAPACIDADE PERMANENTE PARCIAL
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
Data do Acordão: 12/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / INCIDENTES DA INSTÂNCIA / LIQUIDAÇÃO – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA.
Doutrina:
-António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4.ª edição, p. 416;
-Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 2015, Almedina, p. 513;
-J.O. Cardona Ferreira, Guia dos Recursos em Processo Civil, 6.ª edição, Coimbra Editora, p. 229.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 360.º, N.º 3, 638.º, N.º 1, 673.º E 677.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 05-11-2009, PROCESSO N.º 381-2002.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 28-10-2010, PROCESSO N.º 272/06.7TBMTR.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 10-10-2012, PROCESSO N.º 643/2001.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 21-02-2013, PROCESSO N.º 2044/06.0TJVNF.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 10-04-2014;
- DE 20-11-2014, PROCESSO N.º 5572/05.0TVLSB.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 10-05-2015, ACÓRDÃO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA;
- DE 15-09-2016, PROCESSO N.º 492/10.0TBBAO.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 03-11-2016, PROCESSO N.º 1971/12.0TBLLE.E1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 10-11-2016, PROCESSO N.º 175/05.2TBPSR.E2.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 14-12-2016, PROCESSO N.º 5572/05.0TVLSB.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 12-01-2017, PROCESSO N.º 3323/13.5TJVNF.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 26-01-2017, PROCESSO N.º 1862/13.7TBGDM.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 16-03-2017, PROCESSO N.º 294/07.0TBPCV.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 25-05-2017, PROCESSO N.º 2028/12.9TBVCT.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 13-07-2017, PROCESSO N.º 3214/11.4TBVIS.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - O incidente de liquidação não deixou, no caso, de assumir feição de lide autónoma que se desenrolou, após a contestação, como um normal processo comum declarativo (art. 360.º, n.º 3, do CPC) e, nessa medida, à impugnação da decisão final nele proferida não é aplicável a redução do prazo prevista na parte final do n.º 1 do art. 638.º do CPC.

II - Visando a revista a impugnação do acórdão da Relação (e não a decisão da 1.ª instância), é aplicável, no tocante à redução do prazo para 15 dias, o art. 677.º do CPC que contempla apenas os processos urgentes e os casos previstos no art. 673.º do CPC.

III - A lesão corporal sofrida em consequência de um acidente de viação constitui em si um dano real ou dano-evento, designado por dano biológico, na medida em que afecta a integridade físico-psíquica do lesado, traduzindo-se em ofensa do seu bem “saúde”, dano primário, do qual, podem derivar, além de incidências negativas não susceptíveis de avaliação pecuniária, a perda ou a diminuição da capacidade do lesado para o exercício de actividades económicas, como tal susceptíveis de avaliação pecuniária.

IV - A vertente patrimonial do dano biológico tem como base e fundamento a substancial e relevante restrição às possibilidades de exercício de uma profissão ou de uma futura mudança, desenvolvimento ou reconversão de emprego pelo sinistrado, implicando flagrante perda de oportunidades, geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, frustrados irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar.

V - O seu cálculo não se confina às perdas salariais, nem pode corresponder, tão só, ao resultado alcançado pelas habituais fórmulas matemáticas, devendo este ser aditado de quantia que constitua justa compensação do referido dano biológico, consubstanciado na privação de futuras oportunidades profissionais precludidas irremediavelmente em razão das graves sequelas que afectam o sinistrado, bem como pelo esforço acrescido (penosidade) que o grau de incapacidade fixado irá envolver para o exercício de quaisquer tarefas.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


Relatório


I – AA, S.A. requereu contra BB e CC incidente de liquidação da sentença antes proferida, no tocante a parte da indemnização devida ao primeiro, autor da acção de que o incidente é apenso.

Contestaram, autonomamente, os requeridos, tendo o BB pugnado pela liquidação da responsabilidade da AA Seguros no montante de €519.391,92 e a CC pelos montantes de €69.524,00 de pensões vencidas e €9.877,70 de ajudas técnicas, acrescidos dos respectivos juros moratórios.

Posteriormente, já depois de saneado o processo, sem reclamação das partes, a AA Seguros e a “CC” subscreveram transacção, homologada por sentença de 29/06/2016 (cfr. fls. 134) a condenar a primeira a pagar à última a quantia de €79.339,77, relativa a pensões e juros devidos até aquela data, ficando a liquidação confinada à responsabilidade da AA Seguros para com o BB.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença, datada de 27.09.2016, que, na parcial procedência da liquidação, condenou a AA Seguros a pagar ao BB a quantia de €41.102,34 (quarenta e um mil, cento e dois euros e trinta e quatro cêntimos).

Discordando dessa decisão, apelaram o BB e a AA Seguros, tendo a Relação de …, na parcial procedência do recurso do primeiro e improcedência do recurso da última, elevado o quantum indemnizatório para €118.870,00.

Persistindo inconformada, interpôs recurso de revista a AA Seguros, tendo finalizado a sua alegação, com as seguintes conclusões:

1 - Sendo a equidade a "justiça do caso concreto", terão de relevar, no pedido do Autor a razoabilidade e proporcionalidade;

2 - O douto Acórdão viola claramente o disposto nos artigos 563°, 564° e 566° do Código Civil;

3 - Resultando provado um rendimento médio mensal de 1.849,82 euros e, atendendo à fórmula de cálculo utilizada pelo Exmo. Sr. Juiz do Tribunal "a quo", naturalmente, que se altera o valor apurado do quantum indemnizatório;

4 - A perda de rendimento anual por referência ao valor médio mensal, passa a ser de 15.020,53€, correspondente a 1.849,82€ x 14= 25.897,48€ x 58%;

5 - Aplicando a mesma fórmula de cálculo vamos ter um valor indemnizatório de 271.589,65€, verba à qual terá de obrigatoriamente ser deduzido os valores já recebidos pelo A. num total de 293.977,78€;

6 - O A. já auferiu em excesso a quantia de 22.388,13€, pelo que, é manifestamente despropositada e desajustada a condenação ainda em mais 118.870€;

7 - O apuro realizado pelos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores, também está claramente desajustado, pois constitui um enriquecimento ilegítimo à custa do lesante, atingido um resultado de proporções irrazoáveis, violador dos princípios da justiça, igualdade e proporcionalidade;

8 - Não se alcança o raciocínio dos 70 anos como data limite, pois a indemnização que ora se discute reflecte perda de rendimentos pelo trabalho efectivamente auferido e tal tem o seu término com a data da reforma;

9 - Da própria fundamentação do Douto Acórdão se extrai"(...) o dano biológico abrange um espectro alargado de prejuízos incidentes na esfera patrimonial do lesado, desde a perda de rendimento total ou parcial auferido no exercício da sua actividade profissional habitual (...)";

10 - O douto Acórdão deve ser alterado, considerando o valor auferido de 92.518€ como parcela a abater ao valor fixado a título de perda de rendimentos.

O BB contra-alegou a pugnar pela intempestividade do recurso e, subsidiariamente, pelo seu total insucesso.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II - Fundamentação de facto

A factualidade dada como provada, nas instâncias, é a seguinte:

1. No dia 30 de Julho de 2001, pelas 13.30 horas, na Rua de … no lugar de …, na freguesia de …, concelho da Pombal, distrito de Leiria, ocorreu um acidente de viação.

2. O Autor nasceu no dia 01 de Maio de 1956.

3. O Autor, em consequência das lesões, ficou afectado: (…) de uma incapacidade permanente geral global de 58 pontos, sendo as sequelas incompatíveis com o exercício da actividade de motorista bem como de qualquer outra que exija boa mobilidade e força dos membros inferiores.

4. Por sentença datada de 28/07/2011, no âmbito do processo principal, decidiu-se, para além do mais, o seguinte:

«a. Condenar a Ré, AA Seguros, S.A., a pagar:

i. (…);

ii. Ao Autor, BB:

1. A título de indemnização por danos de natureza patrimonial:

a. A quantia de €92.518,05 (noventa e dois mil euros e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até efectivo pagamento;

b. A quantia que vier a ser fixada em liquidação de sentença:

i. Referente à roupa que ficou destruída e deslocações que o Autor fez a Coimbra e a Lisboa para tratamentos;

ii. Referente aos valores que o Autor venha a suportar pelo facto de as sequelas de que é portador necessitarem de acompanhamento médico para vigilância do coto, eventual prescrição medicamentosa e revisão e substituição da prótese, pelo próprio desgaste e deterioração que o material vai sofrer, o que obriga a ajustes e substituição;

c. Ainda, a quantia que resultar, se existir depois de efectuado o correspondente cálculo, também em liquidação de sentença, por referência ao valor que vier a ser fixado a título de indemnização pelo dano biológico directamente decorrente de perda de rendimentos, depois de efectuada a dedução a esse valor dos montantes que foram ou venham a ser pagos pela Interveniente CC, nos termos fixados infra em “2. a) e d);

2. A título de indemnização por danos de natureza não patrimonial, a quantia de €47.013,22 (quarenta e sete ml treze euros e vinte e dois cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde esta data até efectivo pagamento;

2. Na parcial procedência do pedido formulado pela Interveniente, CC, condenar a Ré, AA, Seguros, S.A., a pagar àquela:

a. A quantia correspondente a €122.119,96 (cento e vinte e dois mil cento e dezanove euros), referente a pensões pagas ao Autor, a que acrescem os respectivos juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação dos pedidos correspondentes;

b. A quantia correspondente a €3726,89 (três mil setecentos e vinte e seis euros e oitenta e nove cêntimos), por essa paga de despesas hospitalares, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação do pedido;

c. A quantia correspondente a €32.986,78 (trinta e dois mil novecentos e oitenta e seis euros e setenta e oito cêntimos), por essa paga por compensação de integridade, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação do pedido;

d. A quantia correspondente ao valor das pensões que vierem a ser pagas ao Autor desde Junho de 2011 até ao momento em que ocorrer o pagamento da quantia que vier a ser fixada ao Autor, também em liquidação de sentença, nos termos afirmados supra em ii.1.c), ou, caso aí se venha a considerar não ser devido ao Autor pagamento a esse título, até à data da sentença que tal determinar;».

5. Por Acórdão do Tribunal da Relação de … datado de 26/02/2013, no âmbito do processo principal, decidiu-se, para além do mais, o seguinte: «… Julga-se, parcialmente, procedente o recurso da recorrente AA, assim se revogando a sentença recorrida, e em consequência vai a mesma absolvida da condenação de pagamento ao A. da quantia de 92.518,0€, a título de danos de natureza patrimonial, indo, igualmente, absolvida da condenação de pagamento de juros a favor de ambos os AA.».

6. Por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/04/2014, no âmbito do processo principal, decidiu-se, para além do mais, o seguinte:

«1. Conceder parcialmente a revista dos autores:

a) Atribuir, ao Autor, a indemnização de 92.518,05 euros pelo dano biológico sofrido, com juros de mora desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.

b) (…).

c) A obrigação de indemnização pelos danos não patrimoniais a pagar pela AA ao Autor (€47.013,22) vence juros de mora, desde a data da sentença até efectivo e integral pagamento.

2. (…).».

7. Por Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 10/05/2015, no âmbito do processo principal, decidiu-se revogar o Acórdão recorrido, no que respeita à condenação da Ré em juros de mora.

8. O Autor auferia à data do acidente, 30/07/2001, a quantia de 2.848,95 Francos, correspondentes na altura à quantia de €1.849,82 (alterado pela Relação)[1].

9. A CC pagou ao Autor a quantia de €9.877,70 (nove mil, oitocentos e setenta e sete euros e setenta cêntimos) correspondente a próteses e assistência médica.

10. A CC pagou ao Autor a quantia de €79.339,77 (setenta e nove mil, trezentos e trinta e nove euros e setenta e sete cêntimos), a título de pensões até à presente data.

11. Em 11/08/01 o Autor apresentava necrose completa da face externa da perna e quadro clínico compatível com septicémia, pelo que foi levado ao bloco operatório e feita a amputação pela coxa.

12. O Autor, em consequência das lesões, ficou afectado: de uma incapacidade temporária geral total durante 86 dias; de uma incapacidade geral parcial durante 371 dias; de uma incapacidade temporária profissional total durante 457 dias; de uma incapacidade permanente geral global de 58 pontos, sendo as sequelas incompatíveis com o exercício da actividade de motorista bem como de qualquer outra que exija boa mobilidade e força dos membros inferiores.

13. O Autor, na data do acidente, encontrava-se emigrado na Suíça, onde trabalhava como motorista. Antes de exercer a referida actividade, o autor trabalhou como pedreiro.

14. Em consequência do acidente ficou destruída a roupa que o autor vestia, de valor não concretamente apurado.

15. O Autor despendeu quantia não concretamente apurada em deslocações para efectuar tratamentos em Coimbra e Lisboa.


*


O tribunal recorrido considerou não provados os seguintes factos:

1.  A Interveniente CC apenas liquidou ao Requerido, por conta do vencimento, a quantia de €790,00 (setecentos e noventa euros).

2. Ficaram destruídos uma camisa, umas calças, um casaco, e um relógio, no concreto montante de €500,00 (quinhentos euros).

3. O Autor despendeu €15.000,00 (quinze mil euros), referente ao acompanhamento médico para vigilância do coto, prescrição medicamentosa, revisão e substituição da prótese pelo próprio desgaste e deterioração que o material vai sofrer.

4. Em virtude de consultas e tratamentos o Autor teve de fazer quatro deslocações a Coimbra, tendo despendido a quantia de €175,66 (cento e setenta e cinco euros e sessenta e seis cêntimos), relativa a km e as portagens.

5. O Autor em virtude de consultas e tratamentos teve de fazer três deslocações a Lisboa, tendo despendido a quantia de €631,26 (seiscentos e trinta e um Euros e vinte e seis cêntimos), relativa a km e as portagens (405,60€ + 66,30 €).

6. Em deslocações a Coimbra e a Lisboa, o Autor despendeu a quantia total de €806,92 (oitocentos e seis euros e noventa e dois cêntimos).


III – Fundamentação de direito

Antes de entrar na apreciação do recurso, importa decidir previamente da sua tempestividade, questão suscitada pelo recorrido na contra-alegação onde sustenta que o prazo de interposição da revista é de 15 dias, por se tratar de decisão proferida depois da decisão final.

Adiante-se que, como a seguir melhor se verá, a razão não está com o recorrido.

Com efeito, atenta a necessidade de não protelar no tempo a firmeza da definição das situações jurídicas operada pelo tribunal o art.º 638º do Cód. Proc. Civil fixou prazos peremptórios de curta duração, para que a parte (ou partes) vencida possa impugnar a decisão através de recurso.

No caso, a recorrente visa pôr em crise acórdão da Relação proferido em apelação da sentença exarada no âmbito de incidente de liquidação não dependente de simples cálculo aritmético, deduzido depois da sentença e antes da execução ser instaurada (art.ºs 358º, n.º 2, e 359º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil), pelo que tendo sido apresentada contestação seguiram-se, como decorre do art.º 360º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil, os termos do processo comum declarativo que culminou com a prolação da sentença de liquidação. Esta, pese embora posterior à primeira sentença definidora da responsabilidade da recorrente pelos danos sofridos pelo recorrido em consequência do acidente de viação ocorrido a 30 de Julho de 2001, não tem como efeito a redução do prazo do recurso de revista para 15 dias.

Por um lado, ainda que a instância se tenha renovado (art.º 358º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil), o incidente de liquidação não deixou, no caso, de assumir feição de lide autónoma que se desenrolou, após a contestação, como um normal processo comum declarativo (art.º 360º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil) e, nessa medida, à impugnação da sentença final nele proferida não é aplicável, ao invés do que refere o recorrido, a redução de prazo prevista na parte final do n.º 1 do art.º 638º do Cód. Proc. Civil. E, mesmo que assim não fosse (mas é), haveria sempre que ter em consideração que a revista visa impugnar o acórdão da Relação (e não a decisão da 1ª instância), sendo-lhe aplicável, no tocante a redução do prazo para 15 dias, o art.º 677º do Cód. Proc. Civil que contempla apenas os processos urgentes e os casos previstos no art.º 673º do Cód. Proc. Civil[2], nos quais não se enquadra manifestamente o caso vertente.

Deste modo, o prazo conferido à recorrente para impugnar o acórdão da Relação é de 30 dias (art.º 638º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil) e, tomando em consideração que a cópia desse acórdão foi remetida à sua Advogada, através de carta com registo postal datado de 25 de Maio de 2017 (cfr. fls. 193), a respectiva notificação tem-se como efectuada, segundo o art.º 248º do Cód. Proc. Civil, no dia 29 desse mês, pelo que, quando a 28 de Junho de 2017 apresentou o requerimento de interposição do recurso de revista, ainda o fez dentro desse prazo.

Definida a tempestividade da revista, há que avançar, agora, para a apreciação do seu objecto que passa, atentas as conclusões da alegação da recorrente (art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil) pela análise e resolução da única questão jurídica por ela colocada a este tribunal e que se resume à liquidação dos danos pelos quais ainda terá de ressarcir o recorrido em consequência do acidente de viação.

De sublinhar, desde já, que ao recorrido foram já pagas as seguintes indemnizações:

-  €47.013,22, a título de danos não patrimoniais;

 - €92.518,05 pelo dano biológico;

 - €201.459,73 (122.119,96+79.339,77) de pensões e assistência médica, esta no montante de €9.877,70.

Assim, para liquidar estão apenas, segundo decorre da condenação levada a efeito e do requerimento inicial do incidente de liquidação, as despesas realizadas pelo recorrido em deslocações a Coimbra e Lisboa, os danos relativos à roupa destruída e parte do dano biológico na sua vertente patrimonial.

Ora, conforme se alcança da decisão da 1ª instância que procedeu à liquidação desses danos (cfr. fls. 143), as despesas com deslocações foram fixadas em €300,00 e a indemnização pela roupa destruída em €150,00, montantes que não foram posteriormente questionados e que, por isso, se têm por definitivos, restando, pois, o cômputo da vertente patrimonial do dano biológico.

A este propósito, importa ter presente que a lesão corporal sofrida em consequência de um acidente de viação constitui em si um dano real ou dano-evento, designado por dano biológico, na medida em que afecta a integridade físico-psíquica do lesado, traduzindo-se em ofensa do seu bem “saúde”. Trata-se de um “dano primário”, do qual, podem derivar, além de incidências negativas não susceptíveis de avaliação pecuniária, a perda ou diminuição da capacidade do lesado para o exercício de atividades económicas, como tal susceptíveis de avaliação pecuniária[3].

Segundo o princípio geral consagrado no artigo 562.º do Cód. Civil, “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”, o que, por outras palavras, significa que a obrigação de indemnizar tem por escopo a reconstituição da situação que existiria, caso não se tivesse verificado o evento que a originou.

Virando, agora, o enfoque da nossa atenção para a concreta situação litigiosa, convém relembrar que está apenas em causa – uma vez que nos movemos no âmbito de incidente de liquidação de anterior condenação genérica – a quantificação de parte do dano patrimonial futuro, conexionado com as relevantes limitações decorrentes das sequelas das lesões sofridas pelo recorrido, sendo certo que, nesse cálculo, se deverá ter em conta o que este já recebeu, a esse título (€293.977,78), sem olvidar ainda que lhe continua a ser paga uma pensão mensal de razoável valor (cfr. fls. 46 a 50).

A primeira instância, fazendo uso da habitual fórmula matemática e tomando como referência um vencimento mensal de €2.770,00 (valor que dera como provado, mas que a Relação alterou para €1.849,82, conforme ponto 8. do elenco factual provado), liquidou o remanescente da vertente patrimonial do dano biológico em €40.652,34 (cfr. fls. 145 a 147), enquanto a 2ª instância o fixou em €118,870,00, ambas com recurso à equidade.

Tratando-se de indemnização cujo critério fundamental de fixação é a equidade (art.º 566º, nº 3, do Cód. Civil), o Supremo Tribunal da Justiça tem salientado em diversas ocasiões (cfr., por exemplo, o acórdão de 28 de Outubro de 2010, proc. nº 272/06.7TBMTR.P1.S1, em parte por remissão para o acórdão de 5 de Novembro de 2009, proc. nº 381-2002.S1[4]), que se é chamado a pronunciar-se sobre “o cálculo da indemnização” que “haja assentado decisivamente em juízos de equidade”, não lhe “compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar (…), mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto «sub iudicio»”[5].

No caso dos autos, não oferece dúvida que a indemnização a arbitrar pelo dano biológico sofrido pelo recorrido - consubstanciado em limitações funcionais particularmente relevantes (ficou afectado, conforme ponto 3. do elenco factual provado, de uma incapacidade permanente geral global de 58 pontos, sendo as sequelas incompatíveis com o exercício da actividade de motorista bem como de qualquer outra que exija boa mobilidade e força dos membros inferiores) - deverá compensá-lo – para além da presumida perda de rendimentos, associada àquele grau de incapacidade permanente - também da inerente perda de capacidades.

Na verdade, a compensação do dano biológico tem como base e fundamento a substancial e relevante restrição às possibilidades de exercício de uma profissão ou de futura mudança, desenvolvimento ou reconversão de emprego pelo recorrido, implicando flagrante perda de oportunidades, geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, frustrados irremediavelmente pelo elevado grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar, pelo que, ao invés do que sustenta a recorrente, o seu cálculo não se confina às perdas salariais, nem pode corresponder, tão só, ao resultado alcançado pelas habituais fórmulas matemáticas.

Por tais motivos, deverá aditar-se ao lucro cessante, decorrente da previsível perda de remunerações, calculado estritamente em função do grau de incapacidade permanente fixado, uma quantia que constitua justa compensação do referido dano biológico, consubstanciado na privação de futuras oportunidades profissionais, precludidas irremediavelmente em razão das graves sequelas que afectam o recorrido, bem como pelo esforço acrescido que o já relevante grau de incapacidade fixado irá envolver para o exercício de quaisquer tarefas.

Deste modo e não obstante a apontada limitação deste Tribunal, no que concerne à sindicância de indemnização com recurso à equidade, consideramos mais adequado, ajustado e equilibrado, ponderando a idade do recorrido, a perda de rendimentos, o elevado deficit funcional que o afecta, a penosidade adveniente da diminuição de capacidades e do maior esforço físico que terá que desenvolver, na sua vida diária, o valor arbitrado pela 1ª instância para o remanescente do dano biológico patrimonial do dano biológico (€40.652,34).

Certo que no cálculo feito pela 1ª instância se tomou em consideração um vencimento superior ao que efectivamente o recorrido auferia, o que conduziria naturalmente a um montante inferior. Contudo, deverá ter-se em conta que o resultado assim obtido deriva unicamente da perda de rendimentos, sem atender, portanto, à penosidade, à diminuição de capacidades e à privação de futuras oportunidades profissionais, que, como se disse, constituem também factores de enorme relevância, neste âmbito. E, além disso, nessa operação matemática em ordem a determinar o capital necessário para proporcionar o rendimento em falta foi utilizada a taxa de juro de 3% (cfr. fls. 145), muito superior à actual remuneração dos depósitos bancários, com taxas à volta de 0,5% a 0,75%, o que implica, por si só, a elevação do capital necessário para garantir o mesmo nível de rendimento.

Vale isto por dizer que não descortinamos motivos para, como pretende a recorrente, reduzir esse valor (€40.652,34), nem sequer a sua elevação para o montante fixado pela Relação (€118,870,00) que só atribuiu relevância à circunstância do capital não ter sido disponibilizado de uma assentada, o que seria manifestamente insuficiente para justificar o aumento preconizado, e não relevou, como devia, o recebimento da pensão pelo recorrido, circunstância que, atento o seu valor (a rondar €1.200,00 mensais), afecta o cálculo da perda efectiva de rendimento daquele.

Em suma, procedem, em parte, as conclusões da recorrente, o que implica o parcial êxito da revista, com repristinação do veredicto liquidatório fixado pela 1ª instância, incluindo o acréscimo do montante de €450,00 correspondente às despesas feitas pelo recorrido com deslocações (€300,00) e indemnização pela roupa destruída (€150,00) no acidente.

IV – Decisão

Nos termos expostos, decide-se conceder parcial revista, revoga-se o acórdão recorrido, liquidando o remanescente do dano biológico, as despesas feitas pelo recorrido com deslocações e indemnização pela roupa destruída, no acidente, em €41.102,340 (quarenta e um mil cento e dois euros e trinta e quatro cêntimos) e condenando consequentemente a recorrente a pagar ao recorrido, a tal título, essa quantia.

Custas pela recorrente e recorrido, na proporção do vencido.


*


         Anexa-se sumário do acórdão (art.ºs 663º, n.º 7, e 679º, ambos do CPC).

*


Lisboa, 14 de Dezembro de 2017


António Piçarra (relator)

Fernanda Isabel Pereira

Olindo Geraldes

___________


[1] Antes de alterado pela Relação tinha a seguinte redacção: O Autor auferia à data do acidente, 30/07/2001, a quantia de 4.266,60 Francos, correspondentes na altura à quantia de €2.770,00 (dois mil, setecentos e setenta euros).
[2] Cfr., neste sentido, Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, Volume II, 2015, Almedina, pág. 513, António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª edição, pág. 416, e J.O. Cardona Ferreira, in Guia dos Recursos em Processo Civil, 6ª edição, Coimbra Editora, pág. 229.
[3] Cfr, a este propósito, entre outros, os acórdãos do STJ de13/07/2017 (proc. n.º 3214/11.4TBVIS.C1.S1), de 25/05/2017 (proc. n.º 2028/12.9TBVCT.G1.S1), de 16/03/2017 (proc. n.º 294/07.0TBPCV.C1.S1), de 26/01/2017 (proc. n.º 1862/13.7TBGDM.P1.S1), de 12/01/2017 (proc. n.º 3323/13.5TJVNF.G1.S1), de 14/12/2016 (proc. n.º 5572/05.0TVLSB.L1.S1), de 10/11/2016 (proc. n.º 175/05.2TBPSR.E2.S1, de 03/11/2016 (proc. n.º 1971/12.0TBLLE.E1.S1), e de 15/09/2016 (proc. 492/10.0TBBAO.P1.S1), todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[4] Ambos acessíveis através de www.dgsi.pt.
[5] Cfr. ainda os acórdãos do STJ de 10 de Outubro de 2012 (proc. n.º 643/2001.G1.S1), de 21 de Fevereiro de 2013 (proc. nº 2044/06.0TJVNF.P1.S1) e de 20 de Novembro de 2014 (proc. nº 5572/05.0TVLSB.L1.S1), acessíveis através de www.dgsi.pt.