Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3015/06.1TBVNG.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
REFORMA DA DECISÃO
Data do Acordão: 10/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :

I - Apenas a falta absoluta de fundamentação (fáctica ou jurídica) conduz à nulidade da decisão, não integrando tal vício uma fundamentação deficiente.

II - A nulidade da decisão por contradição entre os fundamentos e a decisão verifica-se na construção lógica da decisão e ocorre quando o julgador concluiu num sentido oposto/ou diverso do que resultaria face aos fundamentos nela indicados enquanto alicerces da própria decisão.

III – Os fundamentos que determinam a possibilidade de reforma da decisão esgotam-se nas situações estritamente contempladas nas alíneas a) e b) do n.º2 do artigo 616.º, do CPC, onde não assume cabimento a discordância de entendimento quanto à interpretação do regime jurídico aplicável. 

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,

I - Relatório

1. AA, Réu nos autos de acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário que Vila Lar - Edificações Imobiliárias, Lda. propôs contra si e A. S. Aires-Sociedade de Construções, Lda., Oliprédios-Sociedade de Construções, Lda. e Açoreana Companhia de Seguros, SA., vem arguir a nulidade e reforma do acórdão proferido nos autos que julgou procedente a revista da Ré Seguradoras Unidas, SA (revogando o acórdão recorrido na parte em que condenou a Ré seguradora no pedido, absolvendo-se a mesma em conformidade dos pedidos contra ela deduzidos) e improcedente a revista por si interposta, mantendo, por isso e no mais, o acórdão recorrido.

Invoca o Reclamante que o acórdão enferma das seguintes nulidades:

- por obscuridade que torna ininteligível a decisão nos termos da alínea c) do n.º1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil (doravante CPC), traduzida no facto de não se encontrarem provados factos que permitam afirmar que o Recorrente preenche a previsão do n.º 1 do artigo 1.º de tal Estatuto da Ordem dos Engenheiros, aprovado pelo DL. 119/92, de 30-06 (que é licenciado em engenharia exercendo como tal essa profissão e que se encontra inscrito na Ordem dos Engenheiros regulada por tal Estatuto ou que nela poderia estar inscrito), não explicitando a decisão sobre qual o fundamento de facto de que se serviu para extrair tal conclusão de direito, encontrando-se no processo documentada a qualidade de engenheiro técnico;

- falta de fundamentação fáctica nos termos da alínea b) do n.º1 do artigo 615.º do CPC, por não constar da matéria de facto provada e por o tribunal igualmente não a indicar elementos que permitam concluir quanto:

a) à culpa do Réu no preenchimento do tipo legal de crime previsto no artigo 277.º, do Código Penal;

b) por a conduta do Réu estar em conexão com o comportamento da 2.ª Ré causador da derrocada do imóvel, desde logo por à data do início das escavações não ser o Réu o director da obra (mas Sérgio Alexandre Sanguessuga da Rocha)

- pela contradição entre os factos e a decisão nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, reconduzida fundamentalmente na circunstância da decisão, face à factualidade provada em 16 a 25, ter responsabilizado o Réu derrogando o regime da empreitada (em que a responsabilidade pela boa execução da obra é do empreiteiro) não tendo ainda a decisão feito a destrinça entre as figuras de director de fiscalização e director da obra.

No que se reporta à reforma da decisão, considera o Réu que o acórdão incorreu em manifesto erro na determinação das normas aplicáveis quanto às funções e deveres do responsável técnico da obra a decisão (por ser de aplicar o disposto nos artigos 1207.º a 1209,º, do Código Civil, bem como o regime do Decreto Lei n.º 61/99 de 02-03, de acesso e permanência nas actividades de empreiteiro de obras públicas e industrial de construção civil, a Portaria nº 412-H/99, de 04-06, que veio definir quais os documentos necessários à comprovação da posse dos requisitos de acesso e permanência nas actividades de empreiteiro de obras públicas e industrial de construção civil e na Portaria nº 412-J/99 que veio estabelecer os requisitos a que se refere o nº 2 do artigo 10.º do referido DL n.º 61/99) .

Considera assim o Réu que, ao contrário do que decorre da decisão proferida, de acordo com o regime a aplicar, é sobre os empreiteiros que incorre o dever de assegurarem a competência técnica para as obras, ficando obrigados pela boa execução das mesmas, pelo que o responsável técnico indicado pelo dono da obra para obter o alvará de construção tem apenas as funções de verificar a conformidade técnica da obra e de registar o que constatava (funções descritas nos artigos 25.º, n.º 2, do DL n.º 445/91, de 20/11, e 61.º e 97.º do DL n.º 555/99, de 16/12).

II - Apreciando:

1. Das nulidades do acórdão

Considera o Réu que o acórdão enferma de três nulidades – por falta de fundamentação de facto, por obscuridade e por contradição entre os fundamentos e a decisão – defendendo para o efeito e fundamentalmente:

- não constar da matéria de facto provada (por ausência de factos e da indicação dos mesmos) elementos que permitam concluir pela existência de culpa quanto ao preenchimento do tipo legal de crime previsto no artigo 277.º, do Código Penal e pela prática de acto ilícito (desde logo por à data do início das escavações não ser director da obra);

- não resultar dos factos provados a habilitação académica e profissional do Recorrente, que seja licenciado em engenharia, exerça a profissão de engenheiro e se encontre inscrito na Ordem dos Engenheiros, para lhe poder ser aplicável o Estatuto da Ordem dos Engenheiros, aprovado pelo DL. 119/92, de 30-06;

- encontrar-se sustentada a sua responsabilidade na factualidade provada em 16 a 25 derrogando o regime da empreitada.

           

1.1 Relativamente à falta de especificação dos fundamentos de facto o Requerente justifica a arguição desta nulidade do acórdão alegando que não se mostram indicados e apurados factos que, quanto a si, permitam imputar-lhe comportamento ilícito e culposo, designadamente quanto à culpa enquanto elemento para preenchimento do tipo legal de crime previsto no artigo 277.º, do Código Penal.
Carece de razão.
Quanto ao dever de fundamentar as decisões que se impõe ao juiz por imperativo constitucional e legal, mostra-se pacificamente aceite na doutrina e jurisprudência que só a falta absoluta de fundamentação (fáctica ou jurídica) conduz à nulidade da decisão, não integrando tal vício, uma fundamentação deficiente que apenas pode merecer cabimento em sede de erro de julgamento.

Conforme resulta do teor do acórdão, a factualidade definitivamente assente no processo mostra-se expressamente consignada (em II 1., sob a designação Os factos Provados e elencada com a numeração de 1 a 95).

Os fundamentos fácticos que alicerçaram a decisão de julgar improcedente a excepção de prescrição relativamente ao Réu e de o responsabilizar pelas consequências da derrocada do imóvel foram expressamente enunciados na decisão, conforme resulta da leitura do acórdão nas seguintes passagens que aqui se transcrevem:

Quanto ao conhecimento da prescrição:
Sendo o sujeito ativo aquele que planeia, executa ou dirige a obra, é evidente que no caso dos autos, sendo o réu AA o responsável técnico da obra (26), recaía sobre o mesmo o dever de determinar sob o ponto de vista técnico, a execução das suas diversas fases.  E na situação em apreço cabia-lhe em concreto assegurar que a execução das escavações para o desaterro se efetuava de acordo com o que tecnicamente é considerado necessário para prevenir a ocorrências como aquela se verificou, ou seja o desabamento do prédio contíguo aquela onde a escavação decorria. O que implicava, de acordo com o que se deu como provado, pelo menos que a escavação se tivesse processado por troços, o que permitiria ir-se apercebendo, seja das condições do terreno seja do tipo de fundações do prédio contíguo, adequando a forma de execução das escavações a essas condições.
E isso não foi feito, conforme decorre do que vem dado como provado nos pontos 27, 28, 29, 36, dos quais decorre que o reu permitiu que o desaterro se efetuasse e se concluísse sem que a escavação tivesse sido executada por troços ou trames, apesar de ter atingido uma profundidade de cerca de meio metro abaixo das fundações do edifício contíguo. A atuação correspondente ao tipo legal de crime aqui em causa compreende tanto a ação como a omissão. No caso em apreço, estando a ser executadas escavações que decorriam em terreno contíguo a um prédio já construído, recaía sobre o réu enquanto diretor de obra o dever de estar presente ou por outra forma de se assegurar que as escavações se efetuavam de acordo com as normas de procedimento tecnicamente adequadas a evitar o perigo de ocorrências como a que se verificou. Ao ter permitido que as escavações fossem executadas, como o foram sem a observância daquelas regras de procedimento, a conduta do réu aqui recorrente integra efetivamente a atuação negligente prevista no nº 2 do referido artº 277º do C. Penal.
E nessa medida tem aplicação, não o prazo prescricional de 3 anos previsto no nº 1 do artº 498º do CC, mas o prazo prescricional mais longo de cinco anos previsto no artigo 118.º, n.º 1, c), do C. P.
Nenhuma alteração se impõe por isso ao decidido na sentença recorrida a este respeito.”

                “A decisão recorrida não pode deixar de ser confirmada, carecendo de cabimento a justificação aduzida pelo Recorrente para se alhear da factualidade referente à forma (deficiente) como, no caso, o desaterro foi processado, esquecendo a realidade incontornável pela qual lhe é assacada a sua responsabilidade pela incorrecta execução dos trabalhos de escavação: a função que exercia na obra enquanto responsável técnico pela mesma.

Nessa qualidade, conforme esclarece o acórdão recorrido, estando-lhe adstrito o dever de determinar sobre o ponto de vista técnico a execução das diversas fases de construção, nomeadamente nas escavações, cabia-lhe o dever de estar presente ou por outra forma de se assegurar que as escavações se efetuavam de acordo com as normas de procedimento tecnicamente adequadas a evitar o perigo de ocorrências como a que se verificou.”

Relativamente à questão da responsabilidade do Réu pode ler-se no acórdão:
Na circunstância cremos que foi feita prova de factos suficientes para se terem como verificados todos aqueles pressupostos da obrigação de indemnizar a cargo do 3º Réu aqui recorrente.
O facto voluntário gerador de responsabilidade civil compreende tanto a ação como a omissão, desde que neste último caso, recaia sobre o agente o dever de praticar o ato omitido, decorra esse dever da lei ou do negócio jurídico. E na situação do réu AA está apurado nos autos que este era o responsável técnico da obra (26), tendo sido indicado como tal pela 1ª Ré para efeitos da obtenção da competente licença de construção (15, 16).

(…)

Assim sendo, perante a factualidade apurada (particularmente o constante dos factos 36, 37, 38, 40 e 41) resulta que o Réu não cumpriu diligentemente tais funções pois que não assegurou que a execução das escavações se processassem com as técnicas construtivas adequadas em função das exigências que situação em causa impunha (escavação levada a cabo em terreno contíguo a edifício sem ser escorada e por tramos).

Da resenha cronológica dos factos – cfr. factos 27 a 32 e 38 – resulta ainda que o Réu na manhã de 20-03-2002 havia sido alertado (pelo Comandante dos Bombeiros Sapadores na presença dos técnicos da Câmara que fizeram a vistoria à obra) e aconselhado a escorar a parede da empena e com toda a urgência consolidar com uma parede em betão armado a fundação da parede contígua que estava fragilizada, bem como a não abandonarem a obra (facto n.º 38). Porém, ainda que o ruir do edifício tenha ocorrido nesse mesmo dia (meia hora após o 12h30m, quando os trabalhadores deixaram a obra – facto 42), assume relevância o facto de se encontrar apurado que após o abandono do local por parte do Comandante dos Bombeiros Sapadores nenhuma diligência foi levada a cabo por forma a colmatar a má execução das escavações –facto 40.

Evidenciada assim a prática de um comportamento ilícito por parte do Réu consubstanciado na violação do dever de assegurar a execução da obra segundo as regras de construção adequadas à segurança da situação (proceder à escavação no solo junto de um edifício contíguo ao terreno sem o fazer perigar), a realidade fáctica provada também não permite deixar margem para dúvida quanto ao juízo de censurabilidade da sua conduta omissiva.

Na verdade, o mesmo podia e devia ter agido de outro modo (dever de diligência que seria exigível a um bom pai de família em face das circunstâncias concretas em causa – artigo 487.º, n.º2, do Código Civil).

Como se encontra salientado na sentença um responsável técnico de uma obra diligente não permitiria essa situação, imporia o seguimento de outra técnica de construção e teria de assumir uma posição se porventura não fosse cumprida.”

Assim sendo, tendo em linha de conta o teor do acórdão proferido e as razões fácticas nele exaradas em termos de justificar a decisão, somos de entender que se mostra plenamente evidenciada a não verificação da nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.

1.2 A nulidade prevista na alínea c) do n.º1 do artigo 615.º do CPC, - contradição entre os fundamentos e a decisão e ocorrência de alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível - verifica-se na construção lógica da decisão e ocorre quando o julgador concluiu num sentido oposto/ou diverso do que resultaria face aos fundamentos nela indicados enquanto alicerces da própria decisão.

Defende o Réu/Reclamante que o acórdão não explicita qual o fundamento de facto de que se serviu para extrair tal conclusão de direito quanto a encontrar-se abrangido pelo Estatuto da Ordem dos Engenheiros; nessa medida, considera que a decisão proferida é obscura e, consequentemente, ininteligível. Mais refere que dos documentos dos autos resulta indicada factualidade que não admite tal extrapolação (e onde se encontra identificado como engenheiro técnico).

Na sequência do já sublinhado, a factualidade definitivamente provada nos autos foi consignada no acórdão, constando do ponto n.º 16 “ Em substituição dos primitivamente indicados pelo anteproprietário, a 1.ª Ré indicou como empreiteira da obra a sociedade «Oliprédios-Sociedade de Construções, Lda., ora 2.ª Ré, e como responsável técnico o Eng. AA, ora 3º Réu”., carecendo este tribunal de poderes para apreciar de eventual erro de julgamento da decisão fáctica.

Por outro lado, o que o Recorrente invoca é um alegado erro de subsunção jurídica dos factos que não integra o vício de nulidade da decisão, designadamente a indicada pelo Reclamante.

1.3 Igualmente o acórdão não padece de contradição entre os fundamentos e a decisão que o Réu identifica em termos da compreensão da decisão implicar a própria derrogação do regime legal da empreitada ao atribuir um dever legal de responsabilidade pela boa execução da obra ao técnico responsável indicado pelo dono da obra para obtenção do alvará.

O posicionamento do Reclamante evidencia equívoco quer quanto aos fundamentos da decisão, que se mostram plenamente perceptíveis, como decorre da leitura atenta do aresto, quer quanto à caracterização da nulidade que imputa à decisão proferida que, conforme já referido, não integra o erro de julgamento.

As razões por que se concluiu pela responsabilização do Réu mostram-se explanadas no acórdão, conforme excerto aqui transcrito e onde não conseguimos vislumbrar o alegado vício.

Não merece controvérsia que a apreciação da responsabilidade do Réu se situa no âmbito da responsabilidade civil aquiliana em que o dever de reparação depende da verificação dos seguintes pressupostos: ocorrência de um facto ilícito, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o danos à integridade física ou ao património de terceiros.

Conforme foi realçado pelas instâncias, a presente acção mostra-se sustentada quanto ao Réu na violação dos seus deveres enquanto responsável da obra face à ocorrência de erro técnico na execução de uma das fases da construção: a realização do desaterro da zona da implantação do edifício a construir.

Na caracterização da ilicitude do comportamento (omissivo) do Réu o acórdão recorrido concluiu que o mesmo incumpriu o dever legal de dirigir tecnicamente a obra não adoptando os procedimentos adequados para evitar danos à integridade física e ao património de terceiros, entendendo que esse dever resultava do estatuído nos artigos 76.º, n.º1 do DL 555/99, de 16-12 (na redação que lhe foi conferida pelo DL n.º 177/2001, de 04-06), 3.º, n.º 1, alínea c), e 8.º, da Portaria 1105/2001, de 18-09, então aplicáveis, bem como do estatuído no artigo 87.º, n.º 2, do Estatuto da Ordem dos Engenheiros, aprovado pelo DL. n.º 119/92, de 30-06.

Como se encontra realçado na sentença, quando foi iniciado o projecto de construção (em 1998 – facto 11), encontrava-se em vigor o regime previsto no DL n.º 445/91, de 20-11 (com redação do DL n.º 250/94, de 15-10) relativo à edificação de obras particulares, o qual (tal como o que se lhe seguiu, o DL n.º 555/99, de 16-12, que entrou em vigor em 16-03-2000, aqui aplicável também na redacção conferida pelo DL 177/2001, de 04-06) não definia a figura de director técnico de obra, apenas se encontrando mencionada a menção da sua actividade no artigo 25.º, n.º 2, do DL n.º 445/91, de 20-11 (o técnico responsável pela direção técnica da obra deve registar no livro de obra o seu estado de execução, exarando as observações que considere convenientes sobre o desenvolvimento dos trabalhos, para além das alterações feitas no projeto licenciado e respetivas notificações à autoridade municipal, bem como a data de conclusão da obra) e nos artigos 61.º e 97.º do DL n.º 555/99, de 16-12 (dever de figurar o seu nome numa placa na obra e de atestar no livro de obra todos os factos relevantes á execução de obras, data de início e fim, paragem de obra e alterações ao projecto).

Embora a definição e caracterização das funções da figura do director de fiscalização de obra só tenha sido introduzida com a Lei n.º 31/2009, de 03-07, onde passaram a ser delimitados os seus deveres (artigos 3.º, 14.º e 16.º), em 2002, ao tempo da execução da obra em causa nos presentes autos, por força do disposto no artigo 8.º da Portaria n.º 1105/2001, de 18-09, mostrava-se obrigatória a existência de um director técnico de obra na construção de imóvel o qual tinha por função não só assegurar a execução da obra conforme acordado e segundo as regras construtivas adequadas, mas também a fiscalização do correcto cumprimento das mesmas.

Observa a sentença: “A obra tinha de ser executada conforme o projeto e, não havendo (para além de fiscalização por entidades públicas) outra pessoa na obra com poderes para fiscalizar tecnicamente a realização da obra, era a mesma pessoa que desempenhava tal função: executava e ao mesmo tempo era quem estava a fiscalizar a correta execução (veja-se em www.oern.pt – sítio da Ordem dos Engenheiros do Norte este mesmo entendimento em «perguntas frequentes»).”.

Assim sendo, perante a factualidade apurada (particularmente o constante dos factos 36, 37, 38, 40 e 41) resulta que o Réu não cumpriu diligentemente tais funções pois que não assegurou que a execução das escavações se processassem com as técnicas construtivas adequadas em função das exigências que situação em causa impunha (escavação levada a cabo em terreno contíguo a edifício sem ser escorada e por tramos).

Da resenha cronológica dos factos – cfr. factos 27 a 32 e 38 – resulta ainda que o Réu na manhã de 20-03-2002 havia sido alertado (pelo Comandante dos Bombeiros Sapadores na presença dos técnicos da Câmara que fizeram a vistoria à obra) e aconselhado a escorar a parede da empena e com toda a urgência consolidar com uma parede em betão armado a fundação da parede contígua que estava fragilizada, bem como a não abandonarem a obra (facto n.º 38). Porém, ainda que o ruir do edifício tenha ocorrido nesse mesmo dia (meia hora após o 12h30m, quando os trabalhadores deixaram a obra – facto 42), assume relevância o facto de se encontrar apurado que após o abandono do local por parte do Comandante dos Bombeiros Sapadores nenhuma diligência foi levada a cabo por forma a colmatar a má execução das escavações –facto 40.

Evidenciada assim a prática de um comportamento ilícito por parte do Réu consubstanciado na violação do dever de assegurar a execução da obra segundo as regras de construção adequadas à segurança da situação (proceder à escavação no solo junto de um edifício contíguo ao terreno sem o fazer perigar), a realidade fáctica provada também não permite deixar margem para dúvida quanto ao juízo de censurabilidade da sua conduta omissiva.

Na verdade, o mesmo podia e devia ter agido de outro modo (dever de diligência que seria exigível a um bom pai de família em face das circunstâncias concretas em causa – artigo 487.º, n.º2, do Código Civil).

Como se encontra salientado na sentença um responsável técnico de uma obra diligente não permitiria essa situação, imporia o seguimento de outra técnica de construção e teria de assumir uma posição se porventura não fosse cumprida.

Impõe-se concluir que a conduta omissiva do Réu se revelou culposa porquanto actuou de forma censurável do ponto de vista ético-jurídico (culpa), pois podia e devia ter actuado de outro modo prestando os seus serviços com diligência de modo a não prejudicar o cliente nem terceiros (cfr. artigo 87.º, n.º2, do Estatuto da Ordem dos Engenheiros, aprovado pelo DL n.º 119/92, de 30-06, citado no acórdão recorrido).

Não padece, pois, o acórdão da nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão, nem nele ocorre qualquer ambiguidade ou obscuridade que não o torne perceptível.

Conforme denuncia o posicionamento do Requerente, a questão que pretende colocar em termos de nulidade do acórdão situa-se em parâmetro que não assume assento no domínio dos vícios de decisão, mas do erro de julgamento pois que a sua discordância está reportada à solução de direito por que o acórdão enveredou.

2. Da reforma do acórdão

De acordo com o disposto nos artigos 616.º, n.º2, alíneas a) e b), 666º e 685.º, todos do CPC, é lícito aos juízes que proferiram acórdão procederem à reforma do mesmo, a requerimento das partes nesse sentido, quando ocorra lapso manifesto na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos ou constem do processo documentos ou quaisquer elementos que por si só impliquem necessariamente decisão diversa da proferida e que o juiz, por lapso manifesto, não haja tomada em consideração.

Como decorre do acórdão, a decisão proferida encontra-se suficientemente explicitada e juridicamente sustentada quanto à caracterização da ilicitude do comportamento (omissivo) do Réu decorrente do incumprimento do dever legal de dirigir tecnicamente a obra, não adoptando os procedimentos adequados para evitar danos à integridade física e ao património de terceiros, tendo sido entendido que esse dever resultava do estatuído nos artigos 61.º, 76.º, n.º1 e 97.º, do DL 555/99, de 16-12, artigos 3.º, n.º 1, alínea c) e 8.º, da Portaria 1105/2001, de 18-09, levando ainda em conta o regime previsto no DL n.º 445/91, de 20-11 relativo à edificação de obras particulares, designadamente o artigo 25.º, n.º 2, que mencionava a actividade de director técnico de obra (enquanto técnico responsável pela direção técnica da obra deve registar no livro de obra o seu estado de execução, exarando as observações que considere convenientes sobre o desenvolvimento dos trabalhos, para além das alterações feitas no projeto licenciado e respetivas notificações à autoridade municipal, bem como a data de conclusão da obra), bem como do estatuído no artigo 87.º, n.º 2, do Estatuto da Ordem dos Engenheiros, aprovado pelo DL. n.º 119/92, de 30-06.

Da pretensão de reforma da decisão verifica-se que o Réu considera, porém, que é apenas sobre o empreiteiro que incorre o dever de assegurar a competência técnica nas obras e a boa execução das mesmas, cabendo ao responsável técnico indicado pelo dono da obra para obter o alvará de construção, atento o disposto nos artigos 25.º, n.º 2, do DL n.º 445/91, de 20/11, e 61.º e 97.º do DL n.º 555/99, de 16/12, apenas as funções de verificar a conformidade técnica da obra e de registar o que constatava.

Evidencia-se assim que o Réu defende uma leitura diversa do entendimento que temos por adequado quanto ao regime legal a aplicar ao caso.

Por conseguinte, tendo-se presente o que nesse sentido se encontra referido no acórdão proferido, sabendo-se que os fundamentos que determinam a possibilidade de reforma da decisão se esgotam nas situações estritamente contempladas nas alíneas a) e b) do n.º2 do citado artigo 616.º, do CPC, não pode deixar de se concluir que não ocorre motivo para a pretendida reforma.

III – Decisão

Termos em que se acorda em indeferir as nulidades suscitadas e o pedido de reforma.

         Custas pelo Réu Requerente.

Lisboa, 13 de Outubro de 2020
Graça Amaral (Relatora)

Henrique Araújo

Maria Olinda Garcia

Tem voto de conformidade dos Senhores Conselheiros Adjuntos (artigo 15ºA, aditado ao DL 10-A/2020, de 13/3, pelo DL 20/2020, de 1/5).

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).