Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
661/16.9T8BRG.G1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ROSA RIBEIRO COELHO
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
EQUIDADE
FUNDAMENTOS DE DIREITO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
Data do Acordão: 04/19/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / CONSIGNAÇÃO DE RENDIMENTOS / PRESTAÇÃO DE CONTAS.
Doutrina:
-Maria da Graça Trigo, Adopção do Conceito de “Dano Biológico” pelo Direito Português, ROA, ano 72, Janeiro/Março, p. 164, 166 e 167;
-Oliveira Ascensão, O Direito Introdução e Teoria Geral, 2ª edição, p. 219.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 662.º, N.º 1.
Sumário :
I – A equidade é uma via que serve de recurso para permitir alcançar uma definição concreta do conteúdo de um direito subjetivo, nomeadamente um crédito indemnizatório, quando o valor exato dos danos não foi apurado.

II – O uso da equidade tem, pois, lugar, não no âmbito da decisão sobre os factos, mas depois do apuramento destes, em sede de fundamentação jurídica da decisão final.

III – Se a Relação, ao apreciar uma impugnação da decisão proferida na 1ª instância sobre matéria de facto, julga provado um novo facto com base na equidade, há errada aplicação da lei de processo, nomeadamente do art. 662º, nº 1 do CPC, não podendo esse facto ser usado na apreciação do recurso de revista.

IV – Tendo o autor, ao pedir indemnização por danos não patrimoniais, tido em vista dois tipos de realidades – a realidade objetiva, revelada pelo confronto entre a sua situação anterior ao acidente e a atual, e a realidade subjetiva caraterizada pelas dores físicas e pela grande tristeza e angústia causadas, quer pelas lesões sofridas, quer pela limitação de que padece –, e tendo as instâncias retirado aquela realidade objetiva do âmbito dos danos não patrimoniais e reconduzido a mesma a uma terceira espécie de dano – o dano biológico –, a concessão de uma indemnização para o compensar não exorbitou do pedido feito pelo autor.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL




     I - AA intentou contra BB - Companhia de Seguros, S.A., a presente ação declarativa, pedindo, no seguimento de um acidente de viação entre um motociclo por si tripulado e um veículo automóvel com riscos de circulação cobertos por seguro contratado com a ré, a condenação desta a pagar-lhe, com juros de mora desde a citação, a quantia de € 58.472,15 – da qual, € 25.000,00 se destinam a compensar danos não patrimoniais decorrentes das dores e limitações físicas causadas pelas lesões sofridas, € 33.472,15 correspondem a indemnização de danos patrimoniais (sendo € 15.680,00 o que pagou desde 19.3.2012 e até fins de Setembro de 2013 à pessoa que o substituiu na sua atividade de agricultor, € 4.320,00 o que pagou a quem o auxiliou desde Outubro de 2013 e até Janeiro de 2016 e € 9.600,00 à pessoa que o auxiliará durante mais cinco anos, ao que acrescem € 3.190,00 relativos aos tratamentos de hidroginástica que fará até aos 80 anos, pelo menos, e € 682,15 relativos a tratamentos de hidroginástica já feitos) – e, bem assim, a quantia que vier a liquidar-se em execução de sentença referente à futura substituição de uma prótese total do tornozelo esquerdo.

        

Houve contestação e, realizado o julgamento, foi proferida sentença que, julgando a ação parcialmente procedente, condenou a ré a pagar ao autor:

- € 31.000,00, com juros de mora à taxa legal de 4% desde a citação até integral pagamento – sendo € 9.000,00 para compensação, desde a data do acidente e até ao termo da sua vida, da perda do estado de saúde física e das suas consequências no seu dia-a-dia e na sua dedicação à agricultura e € 22.000,00 pelo “quantum doloris”, angústia e sofrimento e quebra na prossecução das atividades de recreio;

- € 1.456,15, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4%, contados desde a citação até integral pagamento.

       E, relegando para incidente de liquidação a fixação de indemnização em virtude de posterior necessidade de substituição da prótese, absolveu a ré do restante pedido.


      Apelaram autor e ré, vindo a Relação de … a proferir acórdão que, para além da condenação já arbitrada, condenou a ré a pagar ao autor a quantia de € 8.730,00 a título de danos patrimoniais pela contratação de terceira pessoa no período de Março de 2012 a Setembro de 2013, no mais mantendo o decidido na sentença.


     Inconformada, a ré BB interpôs o presente recurso de revista – normal no tocante à condenação no pagamento de € 8.730,00, e excecional, ao abrigo da al. a) do nº 1 do art. 672º do CPC, quanto à quantia de € 9.000,00 arbitrada a título de dano biológico.

     Apresentou alegações onde, pedindo a revogação do acórdão, formulou, no âmbito da revista normal, as seguintes conclusões:

1 - A Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Douto Tribunal "a quo", porquanto na mesma não houve uma correta apreciação dos pressupostos de direito constante dos presentes autos.

2 - A Recorrente discorda da decisão da Relação de … na parte em que condenou a mesma no pagamento da quantia de € 8.730,00 (oito mil setecentos e trinta euros), com base na equidade, a título de danos patrimoniais pela contratação de terceira pessoa, pelo que vem recorrer dessa parte da decisão nos termos do art.s 671 nº l do C.P.C.

3 - A flexibilidade da lei (artigos 564º e 5669 n9 3) não reconduz o critério da fixação do montante indemnizatório apenas à equidade: em primeiro lugar, deve atender-se aos pressupostos legais determinados em função do caso concreto; em segundo lugar, determinar-se-á, ainda que como mera referência um certo valor; em terceiro lugar, pondera-se o caso concreto, e ajusta-se o valor encontrado, segundo os juízos de equidade.

4 - A função da equidade não é, nem pode ser um modo de julgar, puro e simples, antes, deve ser, um "tempero" que vise, tendo em conta a lei, moldar a rigidez dos números ao caso concreto, porque a lei é formulada em termos genéricos numa perspetiva abstrata e a equidade faz a segurança jurídica decorrente da lei se tornar uma regra justa porque desce às peculiaridades dos casos concretos.

5 - Da abstração da lei pode resultar desajustamentos entre o que é a justiça decorrente dessa lei e a justiça que é desejável no caso concreto e é, nessa ponderação residual que terá sentido o recurso à equidade.

7 - 0 que decorre da Douta Decisão em apreço é um afastamento arbitrário da ractio legis com o pretexto de que, bastará descrever um valor e que esse valor foi encontrado recorrendo-se à equidade.

8 - A apreciação dos critérios da equidade pelo Douto Supremo Tribunal de Justiça, no que concerne à determinação dos valores indemnizatórios decorrentes da contratação de terceira pessoa é, por isso, claramente necessária, para melhor aplicação do Direito, sobe pena de cairmos no livre arbítrio, em subjetivismos do julgador, enfim, na aplicação de princípios que apenas encontram raízes na Escola dos defensores do Direito Livre.

9 - Recorrendo à equidade o Tribunal a quo atribuiu indemnização de € 485 euros/ mês de março de 2012 a setembro de 2013 a título de serviços de terceira pessoa.

10 - O valor atribuído pelo tribunal a quo de € 485 euros/mês de março de 2012 a setembro de 2013 a título de serviços de terceira pessoa é manifestamente exagerado, até porque, segundo consta da Sentença da lª Instância, a Jornaleira que terá substituído CC recebia 37 euros por semana, valor manifestante inferior àquele atribuído pelo tribunal a quo, para o mesmo trabalho.

11 - Face ao exposto entende a Recorrente que o valor de €485/ mês deverá ser substituído pelo valor de 37 euros por semana, sendo este ao valor adequado e justo para o caso concreto.


E as conclusões formuladas no âmbito da revista excecional foram as seguintes:

12 - A Recorrente pretende igualmente recorrer, a título de revista excecional, da decisão do tribunal da relação em manter a quantia de € 9.000,00 a título de dano biológico, por estar em causa "uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito" nos termos dos artigos 629º nº 1, 641º, 671º nº 1 e 672º nº 1 alínea a) nº 2 e 3 do Código de Processo Civil. Civil.

13 - Do pedido do Recorrido, salvo opinião em sentido contrário, são nítidos quais os danos patrimoniais peticionados assim como os danos não patrimoniais.

14 - Ao nível dos danos patrimoniais o recorrido peticionou valores tendo em conta a necessidade de contratação de terceira pessoa, pelos tratamentos de hidroginástica e substituição da prótese.

15 - Salvo o devido respeito, não considera a Recorrente que o pedido contenha uma "deficiente explicitação jurídica" sendo o mesmo "inadmissível" ao ponto do juiz convolar o pedido para um dos efeitos legais possíveis, tal como considerou o juiz a quo.

16 - Nem tão pouco resulta da P. I que o Recorrido tenha pretendido peticionar outros valores para além daqueles indicados.

17 - Considera a Recorrente portanto que o pedido dos autos, quer ao nível patrimonial e não patrimonial, é claramente entendível.

18 - Quanto ao Dano Biológico, sendo um dano real ou dano evento, não deve ser, qualificado como dano patrimonial ou não patrimonial, mas antes como tendo consequências de um e/ou outro tipo; e também por isso, o dano biológico não deve ser tido como um dano autónomo em relação à dicotomia danos patrimoniais/danos não patrimoniais, sendo este o entendimento do Tribunal da Relação de … (Acórdão de 18.05.2017 relativo ao processo 1470/12.0TBALM-2).

19 - Como se refere no acórdão deste STJ de 26-1-2012 (proc. n.º 220/2001-7.S, www.dgsi.pt) "a extrema amplitude que o nosso legislador confere ao conceito de incapacidade para o trabalho, aliada à orientação sedimentada da jurisprudência de que é de indemnizar, quer esta leve a diminuição de proventos laborais, quer não leve, já o contempla (o dano biológico) indemnizatoriamente, ainda que noutro plano". Para se proceder à dita valorização, deverá ponderar-se se esse prejuízo teve repercussões, no futuro, em termos de perda da capacidade de ganho, durante o período ativo do lesado ou se se traduz, apenas, numa afetação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual em termos vindouros para os atos da vida corrente.

Na primeira situação deverá ser valorizado como dano patrimonial; nesta segunda hipótese (sendo a que se verifica relativamente a todos os autores nos autos, em que não se provou que os défices funcionais permanentes de integridade físico-psíquica com que ficaram afetados tenha repercussão ao nível da capacidade de ganho, não obstante ter ficado demonstrada a relevante circunstância, no que toca ao 1.º autor, que continuou a desempenhar a sua profissão habitual com esforço físico superior), a sua valorização deve ser no âmbito dos danos não patrimoniais».

20 - Ao Recorrente foi já atribuído valor na vertente não patrimonial dos danos, tendo em conta o seu pedido, pelo que, o valor atribuído pelo tribunal a quo, a título de dano biológico, autonomamente indemnizável, deverá improceder.

21 - Foi igualmente já atribuído ao Recorrente valores a título de danos patrimoniais de acordo com o seu pedido, pelo que deve improceder o valor atribuído a título de dano biológico.

22 - Perante todo o supra exposto, pugna a ora Recorrente pela revogação do Acórdão proferido pelo tribunal a quo.


Em contra-alegações apresentadas pugnou o autor pela improcedência da revista.


A revista excecional foi admitida por acórdão proferido pela formação a que se refere o nº 3 do art. 672º do CPC[1].


    Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo questões sujeitas à nossa apreciação as de saber se:

- Deve manter-se, e em que termos, a condenação da ré a pagar ao autor a quantia de € 8.730,00 a título de danos patrimoniais pela contratação de terceira pessoa no período de março de 2012 a setembro de 2013;

- Deve manter-se a condenação da ré a pagar ao autor indemnização no valor de € 9.000,00 para ressarcimento do dano biológico por este sofrido.

        

    II – Na sentença julgaram-se como provados os seguintes factos:

   a. Cerca das 11h10 do dia 16.3.2012 ocorreu um embate no cruzamento do largo …. com a avenida A…., da cidade de …, em que intervieram os veículos:

   1. – ...-...-NS, motociclo, conduzido pelo Autor; e

   2. – ...-...-TE, ligeiro de passageiros, conduzido por DD.

   b. O local onde ocorreu o embate tem a configuração de um cruzamento, e desenha-se da seguinte forma, considerando o sentido de marcha avenida A…. – avenida C…:

  – largo ..., que entronca do lado direito; e

  – rua …., que entronca do lado esquerdo.

   c. Esse embate ocorreu do seguinte modo: o motociclo do Autor circulava pelo largo …, em direção à rua …, e nesse sentido, pela metade direita da faixa de rodagem, atento o referido sentido e com uma velocidade não excedente os 30 Km/hora.

   d. Por seu lado, o veículo ...-...-TE circulava pela avenida A… em direção à avenida C…, a uma velocidade superior a 50 Kms por hora.

  e. No local, existem com casas de habitação e de comércio de um e do outro lado da avenida.

   f. Entrou naquele cruzamento no momento em que o Autor estava a passar à sua frente, seguindo em direção à rua …, e se lhe apresentava pela direita.

  g. Acabando por ser embatido na parte lateral esquerda do motociclo ...-...-NS pela parte da frente do veículo ...-...-TE.

   h. Em consequência do embate, o Autor sofreu;

    a) – contusão do ombro esquerdo;

    b) – contusão da grade costal (bilateral) e

     b) – fratura exposta do tornozelo esquerdo.

  i. Do local do embate foi transportado para o Hospital de …, onde foi internado no serviço de Ortopedia.

 j. E submetido a uma intervenção cirúrgica.

 k. Permaneceu internando até ao dia 20.03.2012, altura em que teve alta hospitalar, recolhendo a sua casa, onde se manteve em repouso.

 l. Apenas se locomovendo com o auxílio de uma cadeira de rodas, tendo em conta que tinha gesso na perna esquerda, até ao nível do joelho, e não podia fazer carga devido à contusão do ombro esquerdo.

 m. Passou depois a ser seguido nos serviços clínicos da demandada, sitos na Casa de Saúde …., onde, no dia 27.04.2012, foi submetido a nova intervenção cirúrgica, aí permanecendo internando cerca de 15 (quinze) dias, após o que teve alta hospitalar, recolheu a sua casa, novamente com aplicação de gesso no membro inferior esquerdo.

 n. E com uso de canadianas.

 o. A partir de julho iniciou tratamentos de fisioterapia, que veio a interromper no dia 24.09.2012.

  p. Altura em que foi novamente internado na Casa de Saúde … para, mais uma vez, ser submetido a uma intervenção cirúrgica para extração de material de osteossíntese.

   q. Aí permaneceu internando por um dia, após o que teve alta hospitalar, recolheu a sua casa, onde se manteve em repouso durante cerca de uma semana.

  r. Retomou os tratamentos de fisioterapia e iniciou os de hidroterapia.

   s. No entanto, como as dores ao nível do tornozelo persistiam, tinha marcha claudicante e rigidez.

   t. Foi-lhe proposta a realização de artroplastia total do tornozelo esquerdo, que veio a realizar no dia 19.06.2013 no Hospital de … – Porto, onde permaneceu internado durante 4 (quatro) dias, altura em que regressou novamente a sua casa com uso de canadianas.

  u. Reiniciou mais uma vez os tratamentos de fisioterapia e hidroginástica, sendo que os de fisioterapia terminaram em setembro de 2013.

  v. No dia 27.01.2014 acabou por ter alta dos serviços médicos da demandada.

  w. E, apesar dos tratamentos a que se submeteu, o Autor ficou a padecer:

      a) – limitação de amplitude nos ângulos terminais de antepulsão e abdução, a qual os ultrapassa os 150º;

      b) – rigidez da tibio-társica, mais acentuada na dorsiflexão;

     c) – cicatriz hipercrómica na face anterior do tornozelo medindo 15 cm e outra maleolar interna com 9 cm;

     d) – cicatriz maleolar externa com 21 cm;

     e) – edema maleolar que se estende até ao terço médio da perna onde apresenta sinal do godé.

 x. Sequelas que lhe determinam um défice parcial permanente da integridade física de, pelo menos, 13,5 pontos.

 y. E lhe determinaram 681 dias de incapacidade total.

 z. E um dano estético de grau 4 (quatro) numa escala até 7.

  aa. As lesões sofridas provocaram dores físicas, tanto no momento do embate, como no decurso do tratamento, com 4 (quatro) intervenções cirúrgicas.

  bb. E as sequelas de que ficou a padecer definitivamente continuam a provocar-lhe dores físicas, incómodo e mal-estar, quantificáveis no grau 5 (cinco), numa escala de 1 a 7, que o vão acompanhar durante toda a vida e que se exacerbam com as mudanças de tempo.

  cc. À data do embate, o Autor tinha 66 anos de idade e era independente, saudável e trabalhador.

  dd. O Autor apenas consegue deambular com o auxílio de uma bengala.

 ee. O que lhe provoca tristeza e amargura.

 ff. O Autor deixou de montar a cavalo e de ir à caça com os amigos.

 gg. À data do embate, o Autor era agricultor por conta própria e para consumo próprio, cultivando num seu terreno – que dista da sua habitação cerca de 5 km – milho, batatas, tomates, cebolas, cenouras e todo o tipo de hortaliças, criando também porcos, galinhas, coelhos, onde tinha também uma vinha.

 hh. Por outro lado, tinha como hobbie criar e montar cavalos.

 ii. Sendo que era o Autor quem cuidava quer das plantações, quer dos animais, quer ainda da poda das vinhas, deslocando-se diariamente, duas vezes por dia, à sua propriedade, para alimentar os animais (entre outras coisas).

  jj. Entre outubro de 2013 até 27.01.2014, o Autor, por não conseguir efetuar o aludido em ii., contratou uma jornaleira, a quem pagou € 37,00/semana.

 kk. O Autor manteve os tratamentos de hidroginástica até julho de 2017.

  ll. O Autor é portador de uma prótese total do tornozelo esquerdo.

  mm. E, segundo lhe foi transmitido, não só a mesma tem uma duração limitada no tempo – necessitando, por isso, de ser substituída – como pode vir a dar problemas no futuro.

   nn. O Autor despendeu € 682,15 em tratamentos de hidroginástica até à entrada da ação.

  oo. O Autor gastou € 145,00 em tratamentos de hidroterapia no decurso da ação.

           

E, como não provados, descreveram-se na sentença os seguintes factos:

 pp. O Autor apresenta, como sequela, anquilose do hálux esquerdo e outras para além das referidas em w..

 qq. O Autor deixou de cuidar dos cavalos.

 rr. O Autor deixou de fazer caminhadas.

 ss. O Autor apenas consegue usar calçado específico, isto é, sapatilhas ou sandálias.

 tt. A vinha produzia rendia-lhe 2/3 pipas de cada um por ano.

 uu. De 19.03.2012 a fins de setembro de 2013 recorreu aos serviços de uma terceira pessoa que o substituiu em todas as tarefas acima referidas, 4 horas por dia, de segunda a domingo, a quem pagou 7,00€ à hora.

 vv. Desde 27.01.2014, o Autor, porque não ficou capaz de fazer esforços muito pesados, de caminhar por longos períodos, acabou por contratar uma jornaleira, que o ajuda a cuidar dos animais e das culturas, a quem paga 160 € por mês, 12 vezes por ano.

  ww. O Autor continuou a fazer tratamentos de hidroginástica após a data indicada em kk.

        

À matéria jugada como provada em 1ª instância, a Relação, mercê da decisão que proferiu em sede de impugnação da decisão proferida sobre o facto uu), aditou a seguinte matéria que julgou como provada:

  pp. De Março de 2012 a fins de Setembro de 2013, recorreu aos serviços de uma terceira pessoa que o substituiu em todas as tarefas acima referidas, a quem pagou por mês pelo menos o valor € 485.


          

III - Importa então abordar e decidir as questões suscitadas.


Da condenação da ré a pagar ao autor a quantia de € 8.730,00, a título de danos patrimoniais pela contratação de terceira pessoa no período de março de 2012 a setembro de 2013

O último dos factos a que nos referimos – o descrito em pp) - serviu de base à condenação que a Relação fez acrescer à já emitida em 1ª instância, no sentido de a seguradora pagar também ao autor a quantia de € 8.730,00, correspondente à soma do que, à razão de € 485,00 mensais, este pagou a terceira pessoa nos meses que mediaram entre março de 2012, exclusive, e setembro de 2013.

   Apreciando a impugnação deduzida pelo apelante AA contra a decisão que julgara como não provado o facto mencionado em uu), o acórdão da Relação, fundando-se no depoimento prestado pelas testemunhas EE e CC, considerou como provado o primeiro dos segmentos que compõem aquele facto, ou seja, que “De Março de 2012 a fins de Setembro de 2013, (o autor) recorreu aos serviços de uma terceira pessoa que o substituiu em todas as tarefas acima referidas”.

Atuou, pois, nesta parte, em absoluta conformidade com os poderes que o art. 662º, nº 1 lhe confere quanto à modificabilidade da decisão de facto.

Já quanto ao segmento final do alegado facto “4 horas por dia, de segunda a domingo, a quem pagou 7,00€ à hora.”, alterando a decisão da 1ª instância que o julgara como não provado, teve como demonstrado que por esses serviços o autor pagara “por mês pelo menos o valor € 485”.

E, para tanto, usou a seguinte fundamentação:

“Já quanto ao valor que a testemunha CC diz ter recebido pelo trabalho que desempenhou este Tribunal não ficou convencido da veracidade daquele depoimento.

(…)

Acresce que o valor de 7 € por hora é o valor que actualmente (passados três/quatro anos daquela data) um trabalhador dito “mais qualificado” recebe por efectuar trabalhos na agricultura. Ora a testemunha CC provinha da área fabril mais propriamente

    Temos depois o depoimento da dita FF que nos referiu que recebe 37 € por semana para fazer o trabalho na quinta, embora nos tenha dito que o número de animais agora é menor.

    Neste caso na falta de prova relevante para a determinação da indemnização devida, o julgador usará de equidade.

   De efeito, o artº 566º nº 3 do C. Civil diz-nos que, se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o Tribunal julgará equitativamente, dentro dos limites que tiver por provados, temperado pelas regras da razoabilidade e experiência, segundo juízos de verosimilhança e probabilidade, em atenção ao curso normal das coisas e de harmonia com as circunstâncias do caso concreto.

    Recorrendo à equidade, partindo da situação concreta (a equidade mais não é do que a justiça do caso concreto) e das suas especificidades próprias e seguindo depois trilhos de normalidade (o apelo a critérios de equidade tem em vista encontrar no caso concreto a solução mais justa – aquela é sempre uma forma de justiça), temos por adequado, proporcionado e justo o montante indemnizatório de 485€ mensais, valor este correspondente ao valor do salário mínimo nacional nos anos de 2012 e 2013 ( http://www.pordata.pt/Portugal/Sal%C3%A1rio+m%C3%ADnimo+nacional-74, consulta em 17.05.2017).

    Tudo motivos para se concluir que deve ser aditada à matéria de facto dada como provada o seguinte ponto …”.

        

Criticando este entendimento, defende a recorrente, nas suas conclusões 2ª a 11ª, que a equidade não pode ser o critério único da fixação de uma indemnização, mas, pelo contrário, um meio para tornar mais justa, num dado caso concreto, a solução que resulta da estrita aplicação do direito. E, na sequência desta crítica, pede que, dado o exagero do resultado alcançado, se substitua o valor mensal de € 485,00 pelo de € 37,00 por semana.

Contra isto não vale invocar, como fez o autor nas contra-alegações, pormenores factuais que, não integrando o rol dos factos provados acima reproduzido, não são suscetíveis de consideração por parte deste STJ.

Esta argumentação da recorrente, embora não seja, a nosso ver, totalmente certeira, remete-nos para uma outra perspetiva que põe em crise a decisão recorrida e que tem a ver com o uso dos poderes da Relação na apreciação da decisão da 1ª instância que julgou como não provado o facto descrito em uu).

A equidade é tratada no Código Civil a propósito das fontes de direito[2], o que não implica necessariamente que o seja efetivamente[3]; mas é, como decorre do nº 3 do art. 566º deste diploma, uma via que serve de recurso para permitir alcançar uma definição concreta do conteúdo de um direito subjetivo, nomeadamente um crédito indemnizatório, quando o valor exato dos danos não foi apurado.

O uso da equidade tem, pois, lugar, não no âmbito da decisão sobre os factos, mas depois do apuramento destes, em sede de fundamentação jurídica da decisão final.

Não foi este, porém, o trilho seguido no acórdão impugnado.

Nele, como vimos, ao apreciar-se a impugnação da decisão da 1ª instância que julgara como não provado o facto uu), fez-se apelo à equidade para, com base nela, julgar mais um facto como provado – que o autor pagara pelo menos € 485,00 por mês pelo serviço em causa.

Usou-se a equidade como se fosse um meio de prova, natureza e virtualidade que a mesma não tem.

Ora, ao conhecer do recurso de apelação, na parte em que nele se impugna a decisão proferida sobre determinados factos, a Relação pode, ao abrigo do já citado art. 662º, º 1, alterar essa decisão se isso for imposto por factos tidos como assentes, pela prova produzida ou por um documento superveniente.

Sendo evidente que se não verificavam estas primeira e terceira hipóteses, teria a Relação de encontrar na prova produzida os elementos que lhe permitissem dar como apurado o novo facto constituído pelo segundo segmento do descrito em pp); mas essa prova não existia, como expressamente se diz na passagem do acórdão recorrido que acima deixámos transcrita, tendo-se lançado mão, para o efeito, do instituto da equidade.

Isto quer dizer que no acórdão recorrido houve errada aplicação da lei de processo, quando, com base na equidade, altera o julgamento da 1ª instância, julgando como provado que o pagamento efetuado pelo autor foi no valor mensal de € 485,00, o que é fundamento possível de recurso de revista – cfr. al. b) do nº 1 do art. 674º.

Não pode, pois, subsistir o acórdão recorrido na parte em que concluiu, no facto provado pp), que o pagamento efetuado pelo autor pelos serviços em causa foi no valor mensal de € 485,00 – mantendo-se o mesmo facto quanto ao mais -, do qual não podemos servir-nos para a decisão deste recurso.


Cabe, assim, ao STJ aplicar aos factos materiais fixados o regime jurídico tido como adequado – cfr. o nº 1 do art. 682º.

Sabendo-se que o autor “de Março de 2012 a fins de Setembro de 2013, recorreu aos serviços de uma terceira pessoa que o substituiu em todas as tarefas acima referidas” e que pagou por tais serviços valor que concretamente se não apurou, está demonstrada a existência de dano mas já não o seu valor exato[4], sendo caso em que, nos termos do nº 3 do art. 566º do CC, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver como provados.

Embora num outro plano – como vimos -, a Relação jogou com o facto de a pessoa em causa ser oriunda da área fabril, na qual se praticam agora remunerações da ordem dos € 7,00 por hora, e também com o facto de, posteriormente, o ora recorrido ter pago € 37,00 por semana a uma outra pessoa que para ele passou a trabalhar.

Este último facto está demonstrado como se vê de jj); mas aqueloutros – ser oriunda da área fabril, onde haverá um nível remuneratório de € 7,00 por hora, a pessoa contratada inicialmente pelo ora recorrido – não podem ser objeto da nossa consideração pois não integram o rol dos factos provados.

Assim, apesar da falta de prova concreta de quanto foi gasto entre março de 2012 e fins de setembro de 2013, podemos – como a recorrente expressamente aceita na sua conclusão 11ª - fazer funcionar a equidade no sentido da atribuição, a este título, ao ora recorrido de um ressarcimento não inferior a um valor de € 37,00 durante 72 semanas, o que nos permite concluir pela razoabilidade de um valor total de € 2.700,00.

Nesta parte a revista procede, sendo de reduzir para € 2.700,00 a quantia de € 8.730,00 que a ré, no acórdão recorrido, foi condenada a pagar ao autor.


   Da condenação da ré a pagar ao autor € 9.000,00 a título de dano biológico:

     A tese da recorrente, desenvolvida em sede de revista excecional, ao longo das suas conclusões 12ª e segs., é, em síntese nossa, a de que o autor na p. i. pediu indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que identificou, espécies de danos estas que abrangem as possíveis consequências do dano biológico, pelo que não tem justificação a autonomização que para fins indemnizatórios foi feita quanto ao dano biológico.

  Analisando a petição inicial, constata-se que, no tocante aos danos resultantes do acidente, nela foi alegado:

- Como suporte do pedido de indemnização por danos não patrimoniais no montante de € 25.000,00, aquilo que consta dos seus arts. 20º a 70º, a saber: a) as lesões sofridas no acidente – art. 20º; b) a assistência médico-cirúrgica prestada entre 16.3.2012 e a alta recebida em 27.1.2014 dos serviços médicos da seguradora – arts. 21º a 54º; c) as sequelas definitivas de que ficou a padecer, geradoras de uma I. P. G. de 13,5 pontos, com 681 dias de incapacidade total e um dano estético grau 4 – arts. 55º a 58º; d) as dores físicas que sentiu, sente e sentirá – arts. 59º a 63º; e) as limitações de que sofre na locomoção e em ocupações a que se dedicava – arts. 64º a 69º;

- Como suporte do pedido de indemnização por danos patrimoniais no montante liquidado de € 33.472,15, além do que deveria ser objeto de posterior liquidação, aquilo que consta dos seus arts. 71º a 95º, a saber: a) a atividade agrícola e de criação de cavalos a que se dedicava – arts. 72º a 78º; b) o que pagou e pagará a quem o substituiu e coadjuva nessa atividade – arts. 79º a 86º; c) o que gastou e gastará com tratamentos de hidroginástica – arts. 87º a 90º e 95º; d) a necessidade de no futuro substituir a prótese total do tornozelo esquerdo que lhe foi aplicada – arts. 91º a 94º.

    No tocante à factualidade alegada naquele primeiro conjunto deu-se como provada a constante dos factos provados h) a ff).

    A título de compensação por danos não patrimoniais as instâncias atribuíram a quantia de € 22.000,00 tendo em atenção, como expressamente se diz na sentença, o quantum doloris (destacando-se as dores sofridas com as fraturas, traumatismos, internamento hospitalar, procedimentos clínicos e quatro intervenções cirúrgicas), dano estético, angústia e sofrimento (experimentados na eclosão do acidente e pelas limitações motoras, durante o período remanescente de vida) e pela quebra na prossecução das atividades de recreio.

    Esta descrição mostra que não foi aqui considerada diretamente a limitação física de que o autor ficou a sofrer, a qual só relevou enquanto causa de angústia e sofrimento, e não enquanto limitação objetivamente considerada – perspetiva cuja compensação foi encarada pelas instâncias na ótica do dano biológico.

    Não pode, porém, dizer-se, como diz a recorrente, que a metodologia seguida nas instâncias traduza, ao conceder indemnização autónoma pelo dano biológico, um excesso face ao que fora pedido pelo autor.

    Ao pedir indemnização por danos não patrimoniais o autor teve em vista, claramente, dois tipos de realidades: a realidade objetiva, revelada pelo confronto entre a sua situação anterior ao acidente – com as caraterísticas de independência, saúde, boa constituição física – e a atual – apenas conseguir deambular com auxílio de uma bengala –, e a realidade subjetiva, caraterizada pelas dores físicas e pela grande tristeza e angústia causadas, quer pelas lesões sofridas, quer pela limitação de que padece.

     A construção jurídica feita pelas instâncias retirou aquela realidade objetiva do âmbito dos danos não patrimoniais, que foram tratados como abrangendo apenas a realidade subjetiva a que acima aludimos, reconduzindo-a a uma terceira espécie de dano – o dano biológico.

    Isto leva-nos a uma conclusão que temos como indesmentível: não é verdade que a concessão de uma indemnização pelo dano biológico tenha exorbitado do pedido feito pelo autor, já que, embora reconduzida por este, na p. i., à compensação de danos não patrimoniais[5], foi retirada dessa sede pelas instâncias, no seguimento de uma qualificação diversa que foi adotada pelos julgadores.

   Não se defende no recurso a inadequação da soma atribuída como compensação do dano biológico, nem o valor arbitrado a este título somado com o mais em que a ré vai condenada excede o valor global do pedido formulado pelo autor.

     Não merece, pois, censura o acórdão nesta parte.

 

 IV – Pelo exposto, julgando-se a revista parcialmente procedente, altera-se o acórdão recorrido na parte em que fixou em € 8.730,00 a indemnização a pagar pela ré recorrente ao autor recorrido a título de danos patrimoniais pela contratação de terceira pessoa no período de março de 2012 a setembro de 2013, indemnização esta que se reduz para € 2.700,00; no mais vai o acórdão recorrido confirmado.

    Custas da revista na proporção de 2/2 para a recorrente e de 1/3 para o recorrido.

    Custas, nas instâncias, a cargo de ambas as partes, na proporção do seu decaimento.

        

Lisboa, 19.04.2018


Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho (Relatora)

João Bernardo

Oliveira Vasconcelos

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[1] Diploma a que pertencem as normas doravante referidas sem menção de diferente proveniência.

[2] Cfr. o seu art. 4º

[3] Cfr. Oliveira Ascensão, O Direito Introdução e Teoria Geral, 2ª edição, pág. 219, ao salientar que através dela se não criam regras jurídicas nem se encontra a solução através da mediação de uma regra elaborada pelo julgador, que apenas recorre ao exame das caraterísticas do caso concreto.

[4] Prova essa que não pode vir a ser alcançada, designadamente em ulterior liquidação, pois ambas as instâncias entenderam que os elementos probatórios apresentados não eram bastantes para a demonstração do facto.

[5] Saliente-se que, na lógica seguida na p. i., o dano biológico, não sendo causa de consequências negativas no plano da capacidade de ganho do lesado, é, naturalmente, reconduzido ao dano não patrimonial, sem que se imponha necessariamente a sua autonomização como terceira espécie de dano, como admite Maria da Graça Trigo, in Adopção do Conceito de “Dano Biológico” pelo Direito Português, ROA, ano 72, Janeiro/Março, págs. 164 e 166-167.