Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
801/06 6TYVNG.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: DELIBERAÇÕES SOCIAIS
SOCIEDADE POR QUOTAS
GERENTES
ABUSO DE MINORIA
ABUSO DE DIREITO
PROVA DOCUMENTAL
PETIÇÃO INICIAL
Data do Acordão: 01/11/2011
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: PUBLICADO NA REVISTA DE "CADERNOS DE DIREITO PRIVADO", Nº 40 (OU./DEZ. 2012) P. 68-80
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Sumário :
1. A ineptidão da petição inicial, geradora de nulidade a afectar a cadeia teleológica dos actos processuais subsequentes, deve ser arguida na contestação ou conhecida oficiosamente até ao despacho saneador.
2. O registo comercial constitui presunção legal relativa (“juris tantum”) da existência da situação jurídica nos termos em que a inscrição a define, “ex vi” do artigo 11.º do Código do Registo Comercial.
3. Àquela presunção é aplicável o regime do n.º 1 do artigo 350.º do Código Civil, sendo que a parte que dela beneficia está isenta de provar o facto presumido, cumprindo à parte contrária o ónus de demonstrar que o facto afirmado/conhecido não basta para produzir o efeito que a lei lhe atribui, assim ilidindo aquela ficção probatória.
4. Perante a junção de uma certidão do registo comercial a afirmar a destituição de um gerente e a afirmação do Autor desse facto (através da reprodução de declaração exarada em acta da assembleia geral onde a produziu) cumpriria à Ré, que tem o ónus de fundamentação exaustiva da defesa no seu primeiro articulado (n.º 1 do artigo 489.º do Código de Processo Civil), ilidir a presunção e não limitar-se a uma impugnação genérica.
5. No tocante à invalidade das deliberações sociais, há que proceder ao “distinguo” entre o procedimento deliberativo – sucessão de actos, ou processo de formação, conducente a alcançar um efeito – e a deliberação em si mesma – conteúdo, ou mérito, do acto produzido pelo órgão colegial. Ali encontram-se os vícios de procedimento que equivalem às nulidades processuais, enquanto que aqui estão os vícios de conteúdo, equiparáveis aos do mérito do acto jurídico.
6. No direito societário as deliberações de procedimento conduzem, como regra, à anulabilidade da deliberação, sendo excepções a cominação das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 56.º do Código das Sociedades Comerciais (respectivamente, assembleia-geral não convocada e voto escrito não expresso por falta de convite para o formular). Já outros vícios de procedimento podem, tão-somente, gerar a anulabilidade, regime regra do artigo 58.º.
7. A soberania da assembleia-geral é limitada pelas competências próprias dos outros órgãos sociais.
8. Decorre do n.º 1 do artigo 252.º do Código das Sociedades Comerciais que na gerência das sociedades por quotas têm de distinguir-se dois aspectos: o respeitante à gestão, ou administração na vertente interna e o que respeita à representação externa, sendo esta insusceptível de qualquer limitação, quer constante do pacto social, quer de deliberações dos sócios.
9. O n.º 1 do artigo 260.º do Código das Sociedades Comerciais é norma imperativa de interesse e ordem pública, razão porque os poderes de representação dos gerentes não podem ser afastados, ainda que por vontade unânime dos sócios, sob pena de nulidade da respectiva deliberação – artigo 56.º, n.º 1, alínea d) do diploma citado.
10. Apenas podem admitir-se orientações genéricas para procedimentos estratégicos de mercado ou chamadas de atenção para a conveniência de adopção de princípios mesmo em actos de administração.
11. A representação da sociedade em juízo incumbe ao gerente. A assembleia-geral tem poderes exclusivos para propor acções contra gerentes, sócios, ou membros do órgão de fiscalização, assim como delas desistir ou transigir (artigo 246.º, n.º 1, alínea g) do Código das Sociedades Comerciais) pois o intentar de quaisquer outras é da competência dos gerentes, como acto de administração ordinária, com efeitos externos.
12. O instituto da ratificação implica, que a pessoa realize um negócio como representante de outra mas sem ter os necessários poderes representativos – ou porque lhe faltam de todo poderes de representação ou porque age fora do limite dos poderes que detém – o negócio não produz o seu efeito em relação à pessoa indicada como autor.
13. Quer a assembleia-geral quer os gerentes podem ratificar actos processuais praticados por gerente sem poderes (por já destituído) em situações a apreciar caso a caso.
14. De todo o modo, “in dubio”, e perante o risco de ineficácia de um acto processual que pode importar para a sociedade, e cuja ineficácia terá sido resultado de menor cuidado, ou zelo, do representante-gerente – na condução do processo, será, a assembleia que ratificará os actos praticados sem poderes. Havendo que se proceder a uma apreciação casuística, cumpre ao Autor que pediu a anulação esclarecer quais os actos a ratificar e quais as consequências processuais da sua ineficácia.
15. A figura do abuso de minoria por, a verificar-se, poder reconduzir-se ao abuso de direito é cognoscível “ex officio”.
16. Como “species” do “genus” abuso de direito está previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do Código das Sociedades Comerciais, aplicando-se para integração de eventuais lacunas interpretativas o artigo 334.º do Código Civil.
17. Caracteriza-se não só pela tomada de uma deliberação social, como também pelo pedido de anulação, quando o sócio exerce o direito de voto para obter vantagens especiais para si ou para terceiros com prejuízo (ou apenas com o propósito de prejudicar) a sociedade ou outros sócios, independentemente da regularidade formal da mesma.
18. A deliberação é, então, consequência, do sócio ter conduta não compatível com os deveres de lealdade e de prosseguimento do interesse social, a que está vinculado.
Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça

AA, intentou acção, com processo ordinário, contra “E... – Gestão Imobiliária e Turística, Limitada” pedindo a declaração de anulação de todas as deliberações sociais tomadas na assembleia geral da Ré de 17 de Novembro de 2006, constantes do ponto 1 da ordem de trabalhos.

Alega, em síntese, que desse ponto constava: “deliberar ratificar os actos praticados pelo sócio e gerente BB no processo n.º 656/06 OTYVNG, que corre termos no 1.º Juízo do Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia, no processo n.º 622/06 TYVNG, que corre seus termos pelo 2.º Juízo do mesmo Tribunal, bem como conferir-lhe os poderes necessários para representar em juízo esta sociedade nos processos sobreditos e ainda no processo n.º 657/09 9TTBCL, que corre termos no Tribunal de Trabalho de Barcelos.”

Invocou a nulidade e a anulabilidade daquelas deliberações, por violarem norma legal imperativa e insusceptível de ser derrogada, mesmo por vontade unânime dos sócios, bem como por serem abusivas, em conformidade com o disposto nos artigos 56.º, n.º 1, alíneas c) e d) e 58.º, n.º 1, alínea b) do Código das Sociedades Comerciais.

Após os seguintes articulados – contestação e réplica – foi proferida sentença (logo no despacho saneador) a julgar a acção procedente anulando as referidas deliberações sociais.

A Ré apelou para a Relação do Porto que confirmou “inteiramente” o julgado.

Vem, agora, pedir revista, assim concluindo a sua alegação:
- Os factos sujeitos a registo comercial são susceptíveis de serem impugnados mediante prova em contrário.
- A presunção resultante do artigo 11.º do CRC é uma presunção “juris tantum”.
- E, como tal foram, salvo melhor opinião, devidamente impugnados pela Recorrente.
- Em simultâneo, ao contrário do que se sustenta no Acórdão recorrido, da mesma certidão do registo comercial emergiam outros factos que abalavam a credibilidade da referida destituição e, por isso, eram merecedores de igual credibilidade.
- Acresce que, o Recorrido jamais alegou que, o sócio BB foi destituído de gerente em 10 de Outubro de 2006.
- Ora, não obstante o que decorre da certidão de registo comercial da Recorrente, não estamos perante um facto notório, que pudesse ser dado por provado pelo Tribunal, sem ter sido alegado pelas partes.
- Por outro lado, cumpre dizer que, no despacho saneador proferido deveria ter-se absolvido a Recorrente da instância por manifesta ineptidão da petição inicial.
- Por outro lado ainda, ao invés do defendido no Acórdão ora impugnado, no caso vertente é inaplicável a figura do representante especial, nos termos previstos no n° 2, do artigo 21°, do CPC.
- Por fim, não se pode aceitar, como se diz no Acórdão recorrido, que a Recorrente, atendendo aos circunstancialismos do caso concreto, não pudesse deliberar em assembleia geral, conferir poderes ao sócio gerente BB, para a representar em Juízo, nomeadamente outorgando procuração a favor de mandatário forense.
- Como aliás, bem se decidiu no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa citado em supra.
- Por último, resta assinalar que a conduta do Recorrido, configura um caso de patente abuso de minoria.”

Contra alegou o recorrido a pugnar pela manutenção do julgado e concluindo, em síntese, que o registo comercial faz prova plena dos factos nele inscritos; que o recorrido alegou tais factos; que a petição não é inepta.

As instâncias deram por assente a seguinte matéria de facto:
1. A Ré é uma sociedade comercial por quotas que se dedica à a) realização de investimentos imobiliários e turísticos; b) compra e venda de propriedades; c) estudos, planeamento e gestão de empreendimentos de natureza comercial e industrial e a prestação de serviços a ele relativos; d) exercício de qualquer outra actividade, que venha a ser determinada pela gerência (cfr. n.º 2 do artigo 2.º do pacto da sociedade) estando matriculada na Conservatória do Registo Comercial da Póvoa de Varzim sob o n°. 429, com o capital social de € 550.000,00, de ora em diante abreviadamente designada por E....
2. O Autor é sócio da Ré, sendo titular de uma quota do valor nominal de € 38.500,00, representativa de 7% do capital social da E....
3. O Autor foi designado gerente da Ré, tudo como melhor consta de documento que se junta e cujo conteúdo se dá aqui como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (Doc°. no. 1).
4. O Autor recebeu carta registada com aviso de recepção remetida pelo gerente BB, datada de 2006.11.02, da qual constava um aviso convocatório para a realização de uma assembleia geral ordinária da Ré, a realizar na sede social, no dia 17 de Novembro, pelas 18 horas e 30 minutos.
5. Da ordem de trabalhos da reunião convocada para o dia 17 de Novembro4 constavam os seguintes pontos:
1. Deliberar ratjficar os actos praticados pelo sócio e gerente BB, no processo n° 65 6/06. OTYVNG, que corre termos pelo 1.º Juízo do Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia, no processo n° 622/O6TYVNG, que corre termos pelo 1° Juízo do Tribunal de Comércio de Gaia, no processo n° 623/O6TYVNG, que corre os seus termos pelo 2° Juízo do mesmo Tribunal, bem como conferir-lhe os poderes necessários para representar em Juízo esta Sociedade, nos processos sobreditos e ainda no processo n° 657/06. 9TTBCL, que corre termos pelo Tribunal de Trabalho de Barcelos.
2. Deliberar intentar uma acção de responsabilidade civil contra a sócia CC, pela prática de actos causadores de prejuízos à sociedade, conferindo ao sócio e gerente BB, os poderes necessários para constituir mandatário que represente a Sociedade em juízo.
(conforme documento que se junta e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (Doc°. n°. 2).
6. No dia 17 de Novembro de 2006, pelas 18 horas e 30 minutos, teve lugar a sobredita assembleia-geral, tendo o Autor estado presente, enquanto titular de uma quota do valor nominal de €38.500,00.
7. Assumiu a presidência da mesa DD, na qualidade de representação do sócio e gerente BB, titular da maior fracção de capital (€ 280.500,00), e estiveram ainda presentes a sócia N... – Sociedade Imobiliária, S.A., representada pelo Autor, CC, o sócio EE e FF em representação da sócia GG, todos titulares de uma quota do valor nominal de €38.500,00, cada uma, num total de 86% do capital social.
8. O gerente foi destituído da gerência em 10 de Outubro de 2006, cfr. fls. 84.

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo,

1. Ineptidão da petição inicial.
2. Força probatória de documento.
3. Deliberações.
4. Abuso de minoria.
5. Conclusões.

1- Ineptidão da petição inicial.

Refere a recorrente ser inepto o articulado petitório, invocando a alínea b) do n.º 2 do artigo 193.º do Código de Processo Civil.

Mas a impetrante nem sequer aduz um acervo argumentativo que permita essa conclusão.

Ademais, é a primeira vez que a questão é suscitada, nem ao menos o tendo sido na apelação, pelo que, numa perspectiva questão nova seria de desconsiderar nesta sede.

Poderia, porém, ser matéria cognoscível “ex officio” por integradora de tipo de nulidade, nos termos do artigo 202.º do Código de Processo Civil.

Só que, ainda que tivesse ocorrido, tal vício estaria sanado não só por não arguido na contestação como, e em oficiosidade, já ter sido ultrapassada a fase processual de conhecimento (artigos 202.º, 1.ª parte, “in fine”, 204.º n.º 1, 206.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil).

Por isso,improcede este segmento.

2- Força probatória de documento.

2.1 Sabido, como é, que os poderes de cognição da matéria de facto deste Supremo Tribunal são, em sede de revista, limitados às situações de excepção consistentes na violação de norma que exija expressamente certa espécie de prova para a existência de um facto ou da que estabeleça a força probatória de certo meio de prova.

É o que resulta do princípio geral do artigo 26.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro) na sua conjugação com os artigos 722.º, n.º 2 e 729.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.

Assim, o Supremo Tribunal de Justiça só pode conhecer do Juízo de prova da Relação quando tenha sido dada por assente um facto sem que tivesse sido produzida a prova que a lei declare indispensável para a demonstração da sua existência ou se tiverem sido violados preceitos reguladores da força probatória de alguns meios de prova.

Citando o Prof. Miguel Teixeira de Sousa, “na função atribuída ao Supremo prevalecem os interesses gerais de harmonização na aplicação do direito sobre a averiguação dos factos relativos ao caso concreto.” (in “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, 398).
2.2 Daqui partimos para a análise da argumentação do recorrente.

Insurge-se, em primeira linha, para o facto de ter sido dado por provado o facto 8 (“O gerente foi destituído da gerência em 10 de Outubro de 2006”).

A motivação dessa resposta à base instrutória foi o documento de fl. 84.

Analisado este verifica-se que se trata de uma certidão da Conservatória do Registo Comercial da qual consta, além do mais, e sobre este ponto: “Av. 3 AP20/20070214 14; 57; 15 – Cessação de Funções de Membro(s) do(s) Órgão(s) Social(ais) Gerência: BB. Cargo: Gerente. Causa: Destituição. Data: 10 de Outubro de 2006. 1.ª Conservatória do Registo Comercial do Porto – 1.ª Secção. O (A) Conservador(a) Maria Isabel Peres. An1 – 20070228 – Publicado em http://www.mj.gov-pt/publicações. 1.ª Conservatória do Registo Comercial do Porto – 1.ª Secção. O(A) Conservador(a), Maria Isabel Peres.”

Da restante certidão nada mais consta que infirme este registo.

O documento foi junto pelo Autor que, na petição inicial (artigo 8.º) e a transcrever uma sua declaração feita na assembleia da Ré, afirmou aquela destituição do gerente e a respectiva data.

No corpo da sua alegação, e com razões que sintetiza nas conclusões acima seriadas, a recorrente refere que a presunção do artigo 11.º do Código do Registo Comercial é ilidível, mas que o que consta do artigo 8.º da petição não podia ser impugnado especificamente por se limitar a reproduzir uma afirmação feita pelo Autor na Assembleia Geral, sendo que este “nunca alegou no seu articulado que o gerente BB foi destituído da gerência em 10 de Outubro de 2006.”

Que, em consequência, limitou-se a referir serem falsos os factos que o demandante alegou.

Com o merecido respeito, trata-se de uma falácia.

A causa de pedir, aliás complexa, tem por primeiro por primeira base (facto jurídico) a destituição da gerência do sócio BB, sendo alegado que, por já não ser gerente, os seus actos não podiam ser ratificados, uma vez que a competência para os praticar era únicamente do gerente.

Por isso, o Autor ao transcrever o que ditou para a acta no tocante à destituição cumpriu o ónus de alegação de facto que se mostra certificado nos autos por certidão comprovativa do seu registo definitivo (aliás obrigatório “ex vi” dos artigos 15.º, n.º 1 e 10.º, c) do Código do Registo Comercial) que, face ao artigo 11.ºdesse diploma, constitui presunção “de que existe a situação jurídica, nos precisos termos em que é definida.”

Desta norma resulta que o facto registado existe e é consequência do inscrito com o preciso conteúdo dele constante.

Trata-se de uma presunção “juris tantum” já que o legislador quis que os direitos publicitados gozem, à partida, de uma garantia de verdade e de exactidão, a provar por meio de certidões, fotocópias e notas de registo (n.º 1 do artigo 75.º do CRC).

Ora, à presunção resultante do registo é aplicável a regra do n.º 1 do artigo 350.º do Código Civil, cumprindo à demandada a sua ilisão, por força do n.º 2 do mesmo preceito, conjugado com o n.º 2 do artigo 344.º.

E como nota o Prof. Manuel de Andrade, “as presunções juris tantum não se confundem com as chamadas liberações ou dispensas do ónus da prova (liberationes ab onere probandi): aquelas limitam-se a facilitar a prova, uma vez que o onerado com o encargo da prova não tem que provar o facto que é objecto da prova, bastando-lhe que prove o facto conhecido (base da presunção) de que a lei infere outro; estas vão mais longe, pois liberam da prova, cujo ónus de inverte, isto é, a lei considera desde logo um facto se não se provar o contrário.” (in “Noções Elementares de Processo Civil”, 200).

Mas note-se que toda a presunção legal contém uma inversão do ónus da prova, uma vez que a parte que beneficia da presunção fica isenta de ter de provar o facto presumido – embora não a do facto em que a presunção se baseia – cumprindo à parte contrária o ónus da prova que a presunção não vale, isto é, que o facto afirmado/conhecido não é suficiente para, na situação em apreço conduzir ao efeito que a lei lhe atribui.

Trata-se, então, de ilidir a presunção demonstrando, com prova em contrário, a sua invalidade. (cf. Prof. Vaz Serra – BMJ, 112-128 ss).

A presunção relativa do artigo 11.º do Código do Registo Comercial foi afirmada pelo recorrido, demonstrando, como competente certidão registral, o facto em que se baseia.

Mas a recorrente, ao invés de ilidir, fazendo prova de que esse facto inexistia, ou era irrelevante “in casu”, limitou-se a uma defesa por impugnação, e ainda assim de modo genérico.

E nem alegue, como o fez, que o Autor não afirmou o facto.

Certo que o fez, nos termos acima ditos, (cf. o artigo 8.º da petição) ainda que transcrevendo uma declaração sua e sempre nele assentou a “causa petendi”, que a Ré alcançou, como claramente resulta do seu articulado de defesa.

Só que a demandada tendo o ónus de fundamentação exaustiva da sua defesa (artigo 489.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), e não estando em causa matérias de excepção ou de superveniência, era aí que devia, se fosse caso, ilidir a, já tratada, presunção registral.

Não o tendo feito, “sibi imputet”, isto é, o facto vale como assente, outrossim não estando este Supremo Tribunal de Justiça perante qualquer das situações dos artigos 722.º, n.º 2 e 729.º, n.º 2 do diploma adjectivo.

3- Deliberações

3.1 A recorrente limita-se a afirmar, em sede de conclusões (e quanto ao mérito), que “não se pode aceitar, como se diz no Acórdão recorrido, que a recorrente, atendendo aos circunstancialismos do caso concreto, não pudesse deliberar em assembleia geral, conferir poderes ao sócio gerente BB, para a representar em juízo, nomeadamente outorgando procuração a favor de mandatário forense.”

De seguida, louva-se no Acórdão da Relação de Lisboa, de 26 de Maio de 1994 (CJ 1994, 111, 106) cujo sumário transcrevera no corpo da alegação. (“ I - A exigência de assinatura de dois gerentes para obrigar a sociedade pode ser substituída por deliberação da assembleia geral se um deles está impedido de intervir por incompatibilidade de interesses. II – Pode ser deliberada pela assembleia geral a outorga de procuração para a sociedade contestar a acção contra ela proposta por um gerente cuja assinatura é necessária para a obrigar.”

Porém esta jurisprudência nada tem a ver com o caso “subjudice”.

Aqui discute-se se as deliberações constantes do ponto 1 da Ordem de Trabalhos da Assembleia-Geral da Ré de 17 de Novembro de 2006, são ou não inválidas.

As instâncias decidiram pela anulação.

E entendemos que, parcialmente, bem.

No tocante à invalidade das deliberações sociais, há que proceder ao “distinguo” entre o procedimento deliberativo – sucessão de actos, ou processo de formação, conducente a alcançar um efeito – e a deliberação em si mesma – conteúdo, ou mérito, do acto produzido pelo acto colegial.

Ali encontram-se os vícios de procedimento que equivalem às nulidades processuais, enquanto que aqui estão os vícios de conteúdo, equiparáveis aos do mérito do acto jurídico. (cf. Dr. Pedro Maia, “Deliberações dos Sócios”, in “Estudos de Direito das Sociedades”, 186 e ss.: “No vício de procedimento o que está em causa é como se chegou a certa deliberação, seja qual for. No vício de conteúdo, aquilo que se sanciona é o que se deliberou, independentemente do modo por que se chegou a essa deliberação.”).

Encontramos situação homóloga no Direito Administrativo onde, para o acto administrativo, o vício de forma se traduz, quer na preterição de formalidades essenciais (anteriores, contemporâneas e relativas à forma do próprio acto) quer na carência de forma legal. (cf., v.g., Prof. Marcello Caetano, “Manual de Direito Administrativo”, I, 10.ª ed., 1480; Prof. Freitas do Amaral, “Direito Administrativo”, 1988, III, 301 a 303; Doutor Esteves de Oliveira, “Direito Administrativo”, I, 456/472), sendo que a violação de lei, o desvio de poder e o, hoje autonomizado, erro sobre os pressupostos, são vícios de conteúdo.

No direito societário as deliberações de procedimento conduzem, como regra, à anulabilidade da deliberação, sendo excepções a cominação das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 56.º do Código das Sociedades Comerciais (respectivamente, assembleia-geral não convocada e voto escrito não expresso, por falta de convite para o formular).

Fulmina-se, então, com a nulidade a deliberação tomada com aquelas preterições.

Já outros vícios de procedimento – artigo 58.º do diploma citado – geram, tão-somente, a anulabilidade, que constitui o regime regra (Prof. Carneiro da Frada, “Deliberações Sociais Inválidas”, in “Novas Perspectivas do Direito Comercial”, 1988, 319).

No tocante às deliberações de mérito (ou de conteúdo) serão nulas as que violem norma legal imperativa (tal como dispõe o artigo 294.º do Código Civil) ou ofendam os bons costumes ou preceitos de ordem pública (artigo 56.º, n.º 1, alíneas c) e d) do Código das Sociedades Comerciais).

Aqui chegados pode passar-se à análise da situação concreta.

3.2. De acordo com o pacto social da Ré a mesma tem uma gerência plural (artigo 5.º, n.º 3) vinculando-se “com a assinatura de dois gerentes ou de um gerente e de um procurador com poderes específicos para o acto.” (cf. os artigos 252.º, n.º 1 e 261.º, n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais).

Como acima se afirmou, e resulta da certidão do Registo Comercial, o gerente BB foi destituído da gerência em 10 de Outubro de 2006.

Resulta ainda do mesmo documento – Ap. 2/2006 1010 – que o Autor fora destituído da gerência em 22 de Setembro de 2006.

Em 18 de Outubro de 2006 – Ap. 1/2006 1019 – a gerente CC, foi, de igual modo, destituída do cargo.

Estes gerentes tinham sido designados por deliberação de 2 de Janeiro de 1997 (Ap. 5 – 1980 0421).

Porém, em 22 de Setembro de 2006 (Ap. 3/2006 1010) GG foi designado gerente em e, em 18 de Outubro de 2006, ( Ap. 2/2006 1019) HH foi designado para o mesmo cargo.

Assim, e aquando da convocatória para a assembleia (em 2 de Novembro de 2006) o BB já não era gerente da Ré, sendo-os, então, sócios GG e HH, só estes sendo competentes para procederem àquela diligência “ex vi” do n.º 3 do artigo 248.º do Código das Sociedades Comerciais, norma imperativa (cf. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Maio de 1998 – JSTJ000 – 35499).

Ocorreu um vício de procedimento que não sendo directamente inserível na alínea a) do n.º 1 do artigo 56.º do Código das Sociedades Comerciais por não ter ocorrido falta absoluta de convocação, vem previsto na 1.ª parte do seu n.º 2.

É que, não tendo sido regularmente convocada por o aviso convocatório ter sido assinado por quem não tinha tal competência, essa omissão é, nos termos do n.º 2 daquele artigo 56.º equivalente à falta de convocação, salvo se todos os sócios tiverem estado presentes, ou representados (n.º 1, alínea a)).

Daí que não ocorra tal nulidade, já que não resulta dos autos a ausência ou não representação, de qualquer dos sócios (cf. n.º 7 do elenco factual), tendo mesmo votado contra as deliberações em crise o Autor, por si e em representação da sócia “N..., Sociedade Imobiliária, SA”, e os sócios CC e GG.

Há portanto mera irregularidade na convocatória que não afecta as deliberações tomadas.

3.3. Nos termos do n.º 1 do artigo 260.º do Código das Sociedades Comerciais os actos praticados pelos gerentes, em nome da sociedade, e ao abrigo dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-nos perante terceiros “não obstante as limitações constantes do contrato social ou resultantes de deliberação dos sócios.”

Tal acontece porque cabe aos gerentes administrar e representar a sociedade, podendo praticar todos os actos “necessários ou convenientes para a realização do objecto social, com respeito pelas deliberações dos sócios.” (artigo 259.º).

No ponto 1 da ordem de trabalhos da assembleia (como se disse, irregularmente convocado) constam duas deliberações distintas: a) ratificação dos “actos praticados pelo sócio e gerente BB “nos processos n.º 656/06 e 622/06, a correram termos no Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia”; b) conferir ao mesmo os poderes necessários para representar a sociedade em juízo naqueles processos e ainda no processo n.º 657/09, o correr termos no Tribunal de Trabalho de Barcelos.

Da certidão do Registo Comercial junta apenas pode concluir-se que as duas primeiras lides foram instauradas pelo Autor contra a Ré, pedindo, a inexistência respectivamente das deliberações de 23 de Agosto de 2006 e de 2 de Outubro do mesmo ano. Nada consta quanto ao processo do Tribunal de Trabalho.

Vejamos, agora, a validade de cada uma das deliberações.

3.4. É sabido, e como acima já se afirmou, que a sociedade-Ré tem uma gerência plural e é representada, na sua gestão – “maxime” externamente – por ela, vinculando-se “com a assinatura de dois gerentes ou de um gerente e de um procurador com poderes especiais para o acto.”

Fazendo apelo aos citados artigos 260.º, n.º 1 e 261.º do Código das Sociedades Comerciais pode concluir-se que a vinculação da sociedade, dentro dos limites que a lei confere aos gerentes, ocorre não obstante as restrições constantes do contrato social ou de deliberações dos sócios, sendo que nos casos de gerência plural o exercício dos poderes de gerência é conjunto, sem prejuízo de delegação de poderes interna, mas sempre a coberto de acto habilitante.

A distribuição interna das competências dos órgãos sociais não pode, contudo, ser objecto de deliberação dos sócios.

Assim, cumprindo aos gerentes representar e administrar a sociedade, terão de ter poderes para, nesse exercício, realizarem o objecto social.

Mas só os actos de administração é que estão dependentes das deliberações dos sócios devendo os gerentes acatar/obedecer às suas ordens/instruções (artigo n.º 259.º do Código das Sociedades Comerciais), uma vez que, quanto à representação da sociedade perante terceiros, os poderes dos gerentes não podem ser limitados, quer pelo pacto social, quer por aquelas deliberações (cf., mais uma vez o citado n.º 1 do artigo 260.º).

O Prof. Raul Ventura (in “Sociedades por Quotas”, III, 172) assim esclarece reportando-se àquela norma: “Por este preceito, os poderes representativos dos gerentes ficam imunes às restrições ou limitações que os sócios pretendam estabelecer, quer logo no contrato de sociedade, quer posteriormente, por meio de deliberações.”

Mas adverte, de seguida: “Enquanto a actuação dos gerentes não tem projecção externa, isto é, não contende com interesses de terceiros, os sócios – pelo contrato de sociedade ou por deliberações sociais – são donos e senhores da sociedade e como tais podem determinar o círculo dentro do qual os gerentes podem mover-se. Uma vez que os gerentes se apresentem perante terceiros como representantes da sociedade – que materialmente será parte no negócio – evita-se pela ilimitação dos poderes representativos, que aqueles fiquem sujeitos a restrições de representação, criadas pelos sócios no seu próprio interesse e cujo conhecimento pelos terceiros não é seguro.”

Decorre, pois, do n.º 1 do artigo 252.º do Código das Sociedades Sociais que na gerência das sociedades por quotas têm de distinguir-se dois aspectos: o respeitante à gestão, ou administração na vertente interna e a que respeita à representação externa, sendo esta insusceptível de qualquer limitação. (cf., o Prof. Pedro Pais de Vasconcelos, apud “Teoria Geral do Direito Civil”, 6.ª ed., 337; v.g. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Abril de 1995, CJ/STJ III, II, 1995, 49, também sumariado – 086467; e de 15 de Outubro de 1996, CJ/S.T.J, IV, III, 1996, 63, resumidamente sumariado 96B198, que julgou ser “nula a deliberação, que limite, ao nível de representação, os poderes dos sócios-gerentes de uma sociedade por quotas. (…) Isto porque, quanto aos actos de representação vigora o princípio da ilimitação dos poderes representativos dos gerentes, sendo irrelevantes as limitações constantes do contrato social ou resultantes de deliberações dos sócios.”; e, acolhendo este entendimento, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Setembro de 2008 – 08 A2239 – e de 13 de Maio de 2004 – P.º 1289/04-6).

Deve, outrossim, ter-se presente que a soberania da assembleia-geral terá de ser limitada pelas competências próprios de outros órgãos societários.

É, nos termos dos arestos citados – jurisprudência já “una voce sine discrepanti” – o n.º 1 do artigo 260.º do Código das Sociedades Comerciais é norma imperativa, de interesse e ordem pública, razão porque os poderes de representação dos gerentes não podem ser afastados, ainda que por vontade unânime dos sócios, sob pena de nulidade da respectiva deliberação – artigo 56.º, n.º 1, alínea d) do diploma citado.

Apenas podem admitir-se orientações genéricas, procedimentos estratégicos de mercado, ou chamada de atenção para a conveniência de adopção de princípios mesmo em actos de administração concreta.

Ademais, não pode esquecer-se, e como reforço argumentativo, que a redacção do citado n.º 1 do artigo 260.º do Código das Sociedades Comerciais deu acolhimento à primeira parte do artigo 9.º - 1.º da 2.ª Directiva da CEE.

Do exposto resulta a nulidade da deliberação que retirando poderes aos gerentes confere a um terceiro (sócio) poderes para representar a sociedade em juízo em três acções pendentes, sendo duas nos Tribunais do Comércio de Vila Nova de Gaia e uma no Tribunal de Trabalho de Barcelos.

3.5. Resta, finalmente, analisar a deliberação que ratifica os actos praticados pelo sócio (e gerente já destituído) nos dois primeiros processos.

Ao assim deliberar, a assembleia reconheceu que o sócio agiu sem poderes de representação da sociedade, embora o tivesse feito no interesse e por conta daquela.

À situação é aplicável o regime do artigo 268.º (cf. tb os artigos 464.º e 471.º) do Código Civil.

Deixámos dito que a representação externa da sociedade – e também em Juízo- cumpre os gerentes. (nº1 do artigo 252º CSC).

E a condução de uma acção intentada contra (ou pela) sociedade insere-se no âmbito dos seus poderes, sendo que, apenas no tocante às posições sobre mérito da causa (confessar, desistir, transigir) a gerência está dependente do deliberado pelos sócios.

Porém, a ratificação de acto praticado pelo gerente sem poderes para tal, ou por sócio que não seja gerente, pode ser feita por outro(s) gerente(s) detentor de tais poderes, não dependendo, sempre de deliberação social.

A assembleia-geral só tem poderes exclusivos para propor acções contra gerentes, sócios, ou membros do órgão de fiscalização, assim como nelas desistir ou transigir (artigo 246.º, n.º 1, alínea g) do Código das Sociedades Comerciais) pois o intentar de quaisquer outros, é da competência dos gerentes, como acto de administração ordinária, com efeitos externos.

Ora, o instituto da ratificação implica, como acima se insinuou, que a pessoa realiza um negócio “como representante de outro mas sem ter os necessários poderes representativos – ou porque lhe faltam de todo poderes de representação ou porque age fora do limite dos poderes que detém – o negócio não produz o seu efeito em relação à pessoa indicada como dominus negotii.” (Prof. Rui de Alarcão, in “A Confirmação dos Negócios Anuláveis”, 1971, 118).

O dono terá, então, de aprovar o negócio concluído, pela via da ratificação, já que, como dispõe o n.º 1 do artigo 268.º do Código Civil, “o negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado.”

O instituto da ratificação pressupõe o negócio realizado por alguém como representante de outrem sem ter os necessários poderes representativos, por falta absoluta ou por actuação fora dos poderes que detém.

Então o negócio não produz efeitos em relação ao seu “dominus”, a não ser que este venha ulteriormente atribuir legitimidade representativa ao actuante (cf. também o artigo 269.º do Código Civil referente ao abuso de representação, que, no essencial, é equiparado à falta de poderes).

Com alguma fronteira comum depara-se-nos a confirmação (cf. o artigo 288.º do Código Civil) no essencial consistente na renúncia de fazer valer a anulabilidade.

Assim, enquanto a ratificação opera apenas na falta (ou abuso) de poderes de representação destinando-se a sanar uma ineficácia, a confirmação, como se disse, tem a montante uma anulabilidade. (cf. Prof. Rui de Alarcão, ob. cit., 119 e “Representação – exposição de motivos”, BMJ, 138 – 112; Dr.ª Helena Mota, “Do Abuso de Representação”, 2001, 144).

Finalmente, a “pulcra quaestio” consistente em saber se os actos praticados num processo judicial por um gerente já destituído são ratificáveis pela gerência em funções ou pela assembleia-geral.

Cremos, como acenàmos, que ambos o poderão fazer, dependendo do tipo de lide e dos actos processuais praticados.

Tratando-se de acção cuja instauração e termo defende de deliberação dos sócios (artigo n.º 246.º, n.º 1, alínea g), do Código das Sociedades Comerciais) só a assembleia-geral pode ratificar os actos nela praticados. (cf. a exaustiva, e muito cuidada, exegese, do Prof. Pedro Pais de Vasconcelos, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 6.ª ed., 337).

Tratando-se de lide compreendida nos poderes de representação da gerência, há que proceder ao “distinguo”: ou o acto processual praticado sem poderes tem reflexos na sorte da lide; ou tratar-se de acto anónido, por meramente ritual ou ordenador.

No primeiro caso, a ratificação caberá dos sócios, cujo conclave é a cúpula da sociedade sobre quem recai o resultado do processo onde é parte; no segunda hipótese, a ratificação pode ser feita pelo gerente pois trata-se, apenas, de acto que não condiciona o resultado final.

De todo o modo, “in dubio”, e perante o risco de ineficácia de um acto processual que pode importar para a sociedade, e cujo vício terá sido resultado de menor cuidado, ou zelo, do representante-gerente na condução do processo, será, então a assembleia que ratificará os actos praticados sem poderes.

Há, por isso, que proceder a uma apreciação casuística, cumprindo ao Autor que pediu a anulação esclarecer quais os actos a ratificar e quais as consequências processuais da sua ineficácia.

Não o tendo feito, precisa e claramente, não dispomos de elementos que permitam julgar inválida esta deliberação.

Daí que não possa considera-se ferida de anulabilidade a deliberação da assembleia-geral da Ré que ratifica os actos praticados pelo sócio BB nos processos de Vila Nova de Gaia.

Mas, pelas razões expostas, julgam-se nulas as deliberações que lhe conferem poderes para representar a Ré naqueles processos e no que corre termos em Barcelos.

4 - Abuso de minoria

4.1. Trata-se de matéria nova que não foi conhecida, por não invocada, quer na 1.ª instância, quer na Relação (onde nem sequer insinuada nas conclusões da apelação).

Só agora e no corpo da alegação se diz “in cauda” que “os argumentos acima expendidos são claramente demonstrativos do abuso de direito com que o Recorrido litigou”, pois “apenas pretendeu que a Recorrente ficasse impedida de nomear sócio gerente BB como seu representante nos processos judiciais por si intentados”, tanto mais que lhe foi indiferente a mesma violação do pacto social na acção a intentar contra a sócia CC; que o que move o recorrido “não é a protecção do interesse social, mas tão só a defesa dos seus intentos pessoais.”

A figura de abuso de minoria pode, reconduzir-se à de abuso de direito.

Daí que, sendo este instituto de conhecimento oficioso, se aborde a questão nas suas várias perspectivas.

4.2. Começando pela dogmática do abuso de direito em geral.

Este, tal como resulta do seu “nomen juris”, pressupõe a existência de um direito radicado na esfera do titular, direito que, contudo, é exercido por forma ilegítima por exceder manifestamente a boa fé, os bons costumes ou o seu fim social ou económico (artigo 334.° do Código Civil).

Quer o preceito vigente (com redacção idêntica à do artigo 334.° do Anteprojecto do Código Civil [2.ª revisão ministerial], quer a primeira proposta — artigo 297.° - 1.ª revisão ministerial — “O exercício de um direito (...) através de factos que contrariem os princípios éticos fundamentais do sistema jurídico (...).“) têm ínsito o “qui jure sua utitur”, ou seja, que o abusador surja titular de um direito subjectivo, ou de parte dele.

E, então, ou o utiliza lícitamente — dentro dos limites do direito objectivo — ou ultrapassa limites que a ética, a boa fé e o fim social não toleram.

“Vale um conceito ético e objectivo de boa fé”, como se disse no Acórdão do STJ de 15 de Maio de 2007— 07A1180 — desta conferência, bastando que, objectivamente, os limites do artigo 334° CC tenham sido excedidos. (cf. Profs. P. Lima e A. Varela, “Código Civil Anotado”, 1, 1967, 217).

A formulação legal compreende não só o exercício emulativo como o exercício de qualquer direito “por forma anormal, quanto à sua intensidade ou à sua execução, de modo a comprometer o gozo dos direitos de terceiros e a criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular, e as consequências que os outros têm de suportar” (Cons. Rodrigues Bastos, in “Das Relações Jurídicas”, V-10)

O “venire contra factum proprium” caracteriza-se, na óptica do Prof. Menezes Cordeiro (in “Tratado de Direito Civil Português”, 1 — Parte Geral, IV, 2005, 275) pelo “exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente.”

Ensina o Prof. Baptista Machado (in “Obra Dispersa”, 1,415 e ss) o ponto de partida do venire é “uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira”, podendo “tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico.”

Está presente a ideia de “dolus praesens”.

O conceito de boa fé constante do artigo 334° do Código Civil tem um sentido ético, que se reconduz às exigências fundamentais da ética jurídica, “que se exprimem na virtude de manter a palavra dada e a confiança, de cada uma das partes proceder honesta e lealmente, segundo uma consciência razoável, para com a outra parte, interessando as valorações do circulo social considerado, que determinam expectativas dos sujeitos jurídicos” (Prof. Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”, 9 ed., pags 104,105).

Abandonando, por aqui irrelevar, a “species” do “venire”, limitar-nos-emos em conclusão deste primeiro ponto de abordagem genérica a afirmar que o abuso de direito reconduz-se à prática de um acto ilegítimo sendo a sua ilegitimidade consistente num “excesso de exercício de um certo e determinado direito subjectivo: hão de ultrapassar-se os limites que ao mesmo direito são impostos” e descritos no artigo 334.º da lei substantiva. Assim raciocina o Dr. Cunha de Sá, in “Abuso de Direito”, 103, de certo modo na linha do Prof. Castro Mendes, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 1972, II, 77 e nota 1 – que considera equivalentes, ou sinónimas, as expressões “exercício legítimo” e “exercício normal”.

Trata-se, afinal, de “criar uma situação de desequilíbrio, ‘genus’ que tem como ‘species’ o exercício danoso inútil, a actuação dolosa e a grave desproporção entre o exercício do titular excrescente e o sacrifício por ele imposto a outrem.” (cf., “inter alia”, o recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Novembro de 2010 – 4852/06 – 2TBAVR.L1.S1 – desta Conferência).

4.3. Passemos agora ao que a doutrina e a jurisprudência apodam de abuso da minoria (cf., Conselheiro Pinto Furtado, in “Deliberações Sociais”, 1993, 387, a defender a necessidade de abordar o abuso de direito em geral para tratar das deliberações abusivas).

A evolução do instituto é descrita pelo Prof. Coutinho de Abreu (in “Do Abuso de Direito – Ensaio de um Critério em Direito Civil e nas Deliberações Sociais”, 1983, 184/185 – antes da vigência do Código das Sociedades Comerciais.

Actualmente, a alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º deste diploma reconduz-se-lhe ao fulminar com a anulabilidade as deliberações vocacionadas para que um dos sócios consiga, através do exercício do seu direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo (ou simplesmente para prejudicar) da sociedade ou de outros sócios.

É, como dizem os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Outubro de 2003 – 03B816 – e de 27 de Maio de 2003 – 03 A950 – a consagração do abuso de direito em matéria de deliberações sociais, referindo aquele aresto estarem em causa “deliberações que se apresentam formalmente como regulares – que não contrariam formalmente a lei nem o contrato de sociedade – mas que lesam ou ameaçam interesses da sociedade ou dos sócios, em termos tão chocantes que se impõe e justifica a possibilidade da sua impugnação.” (…) “Esta acção é hoje vista não tanto como instrumento de defesa da legalidade societária, mas sobretudo como instrumento de defesa da participação social e dos interesses do respectivo titular, e como meio de garantir a protecção da situação das minorias, da posição jurídica e dos interesses dos membros da corporação, perante a maioria e os seus instrumentos de poder.”

Trata-se, enfim, de sancionar aqueles actos que embora não contendam com as normas legais não respeitem o seu espírito, designadamente quanto às exigências de equilíbrio que impedem os sócios de, com o seu voto, servirem interesses extra-sociais, por apenas seus ou de terceiros, em detrimento da sociedade ou de sócios menos dotados de capital. (cfr., neste sentido, Prof. Ferrer Correia, “Lições de Direito Comercial”, II, 364; Prof. Carneiro da Frada, in “Novas Perspectivas do Direito Comercial”, 322).

No seu estudo “Abusos de Minoria” (apud “Problemas do Direito das Sociedades”, 2.ª Reimpressão, 65/70) o Prof. Coutinho de Abreu enfatiza, de entre os deveres dos sócios (quer maioritários, quer minoritários) o de actuação compatível com o interesse social e o de lealdade.

Por isso, diz, deverem ter uma actuação não abusiva, e dá como exemplo do oposto a “impugnação judicial de deliberações sociais, a fim de pressionar a sociedade para uma transacção (respeitante a litígios deliberativos ou outros) especialmente vantajoso para o impugnante, ou para pressionar a sociedade, ou sócios dominantes (…) para prejudicar outros sócios (…).” Refere, mais adiante, que “abuso do direito de impugnação o sócio que propõe acção anulatória não ou não tanto para repor a legalidade ou a juridicidade (…) mas para ou sobretudo (…) beneficiar-se especialmente à custa da sociedade ou de sócios maioritários (contrariando o interesse social ou interesses de sócios relacionados com a sociedade).” (cfr., ainda, a Dra. Maria Gomes Redinha, in “Deliberações Sociais Abusivas”, apud, RDE, 10.º e 11.º, 193, ss).

Do exposto resulta que a alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do Código das Sociedades Comerciais sanciona com anulabilidade as deliberações tomadas com o objectivo de um dos sócios conseguir, com o seu direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, à revelia do interesse social ou contra este, nada mais traduzindo do que uma modalidade de abuso de direito, subsumível aos princípios, do artigo 334.º do Código Civil.

Aquele preceito deve, em interpretação extensiva, abranger toda a conduta do sócio que, com o mesmo propósito (obter vantagens especiais para o sócio ou para terceiros em prejuízo da sociedade) ponho em causa uma deliberação social, designadamente pedindo a sua anulação.

Mas, no caso em apreço, verifica-se que não existem nos autos elementos fácticos que permitam imputar ao recorrido o propósito de obter qualquer vantagem especial para si, como afirma o recorrente.

Daí que não tenha acolhimento este segmento recursório.

      5- Conclusões
Pode concluir-se que:
a) A ineptidão da petição inicial geradora de nulidade, a afectar a cadeia teleológica dos actos processuais subsequentes, deve ser arguida na contestação ou conhecida oficiosamente até ao despacho saneador.
b) O registo comercial constitui presunção legal relativa (“juris tantum”) da existência da situação jurídica nos termos em que a inscrição a define, “ex vi” do artigo 11.º do Código do Registo Comercial.
c) Àquela presunção é aplicável o regime do n.º 1 do artigo 350.º do Código Civil, sendo que a parte que dela beneficia está isenta de provar o facto presumido, cumprindo à parte contrária o ónus de demonstrar que o facto afirmado/conhecido não basta para produzir o efeito que a lei lhe atribui, assim ilidindo a ficção probatória.
d) Perante a junção de uma certidão do registo comercial a afirmar a destituição de um gerente e a afirmação do Autor desse facto (através da reprodução de declaração exarada em acto da assembleia geral onde a produziu) cumpriria à Ré, que tem o ónus de fundamentação exaustiva da defesa no seu primeiro articulado (n.º 1 do artigo 489.º do Código de Processo Civil), ilidir a presunção e não limitar-se a uma impugnação genérica.
e) No tocante à invalidade das deliberações sociais, há que proceder ao “distinguo” entre o procedimento deliberativo – sucessão de actos, ou processo de formação, conducente a alcançar um efeito – e a deliberação em si mesma – conteúdo, ou mérito, do acto produzido pelo órgão colegial. Ali encontram-se os vícios de procedimento que equivalem às nulidades processuais, enquanto que aqui estão os vícios de conteúdo, equiparáveis aos do mérito do acto jurídico.
f) No direito societário as deliberações de procedimento conduzem, como regra, à anulabilidade da deliberação, sendo excepções a cominação das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 56.º do Código das Sociedades Comerciais (respectivamente, assembleia-geral não convocada e voto escrito não expresso por falta de convite para o formular). Já outros vícios de procedimento podem, tão-somente, gerar a anulabilidade, regime regra do artigo 58.º.
g) A soberania da assembleia-geral é limitada pelas competências próprias dos outros órgãos sociais.
h) Decorre do n.º 1 do artigo 252.º do Código das Sociedades Comerciais que na gerência das sociedades por quotas têm de distinguir-se dois aspectos: o respeitante à gestão, ou administração na vertente interna e o que respeita à representação externa, sendo esta insusceptível de qualquer limitação, quer constante do pacto social, quer de deliberações dos sócios.
i) O n.º 1 do artigo 260.º do Código das Sociedades Comerciais é norma imperativa de interesse e ordem pública, razão porque os poderes de representação dos gerentes não podem ser afastados, ainda que por vontade unânime dos sócios, sob pena de nulidade da respectiva deliberação – artigo 56.º, n.º 1, alínea d) do diploma citado.
j) Apenas podem admitir-se orientações genéricas para procedimentos estratégicos de mercado ou chamadas de atenção para a conveniência de adopção de princípios mesmo em actos de administração.
k) A representação da sociedade em juízo incumbe ao gerente. A assembleia-geral tem poderes exclusivos para propor acções contra gerentes, sócios, ou membros do órgão de fiscalização, assim como delas desistir ou transigir (artigo 246.º, n.º 1, alínea g) do Código das Sociedades Comerciais) pois o intentar de quaisquer outras é da competência dos gerentes, como acto de administração ordinária, com efeitos externos.
l) O instituto da ratificação implica, que a pessoa realize um negócio como representante de outra mas sem ter os necessários poderes representativos – ou porque lhe faltam de todo poderes de representação ou porque age fora do limite dos poderes que detém – o negócio não produz o seu efeito em relação à pessoa indicada como autor.
m) Quer a assembleia-geral quer os gerentes podem ratificar actos processuais praticados por gerente sem poderes (por já destituído) em situações a apreciar caso a caso.
n) De todo o modo, “in dubio”, e perante o risco de ineficácia de um acto processual que pode importar para a sociedade, e cujo vício terá sido resultado de menor cuidado, ou zelo, do representante-gerente na condução do processo, será, a assembleia que ratificará os actos praticados sem poderes. Havendo que se proceder a uma apreciação casuística, cumpre ao Autor que pediu a anulação esclarecer quais os actos a ratificar e quais as consequências processuais da sua ineficácia.
o) A figura do abuso de minoria por, a verificar-se, poder reconduzir-se ao abuso de direito é cognoscível “ex officio”.
p) Como “species” do “genus” abuso de direito está previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do Código das Sociedades Comerciais, aplicando-se, para integração de eventuais lacunas interpretativas, o artigo 334.º do Código Civil.
q) Caracteriza-se não só pela tomada de uma deliberação social, como também pelo pedido de anulação, quando o sócio exerce o direito de voto para obter vantagens especiais para si ou para terceiros com prejuízo (ou apenas com o propósito de prejudicar) a sociedade ou outros sócios, independentemente da regularidade formal da mesma.
r) A deliberação é, então, consequência, do sócio ter conduta não compatível com os deveres de lealdade e de prosseguimento do interesse social, a que está vinculado.

Nos termos expostos, acordam conceder parcialmente a revista, absolvendo a Ré do pedido de anulação da deliberação de 17 de Novembro de 2006 que ratificou os actos praticados pelo sócio e gerente BB, no processo n.º 656/06 OTYVNG, a correr termos no 1.º Juízo do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia e no processo n.º 622/06 TYUNG a correr termos no 2.º Juízo do mesmo Tribunal.

Mas negam a revista, confirmando o Acórdão recorrido, e declarando nula a deliberação que conferiu àquele poderes para representar a Ré em juízo nos processos referidos e ainda no processo n.º 657/09 9TTBC, a correr termos no Tribunal de Trabalho de Barcelos.

Custas pela recorrente e pelo recorrido nas proporções respectivas de 2/3 e 1/3.

Supremo Tribunal de Justiça, 11 de Janeiro de 2011

Sebastião Póvoas (Relator)

Moreira Alves

Alves Velho