Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3044/18.2T8PNF.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: DIREITO DE REGRESSO
SEGURADORA
ALCOOLEMIA
ACIDENTE DE VIAÇÃO
NEXO DE CAUSALIDADE
EXAME DE PESQUISA DE ÁLCOOL
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
AÇÃO DE REGRESSO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Data do Acordão: 12/10/2020
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I – Encontrando-se junto aos autos o relatório do exame laboratorial da taxa de alcoolemia no sangue, os procedimentos relativos à realização do exame, desde a recolha da amostra até à sua submissão em laboratório para sujeição a análise e obtenção de resultado, são de livre apreciação importando tão só que a prova mostre que foram assegurados e cumpridos todos os formalismos legalmente exigidos para colheita e exame de quantificação de álcool no sangue, bem como a respetiva cadeia de custódia da prova, garantindo-se que aquele exame corresponde àquela pessoa.

II – Com a revisão do regime do seguro obrigatório de responsabilidade automóvel, realizada pelo Dec. Lei nº 291/07, de 21-8, caducou a jurisprudência uniformizadora do AcUJ nº 6/02 que fazia depender o direito de regresso da seguradora contra o condutor que conduzisse sob o efeito do álcool, da prova da existência de um nexo de causalidade entre esse facto ilícito e o acidente e passou a dispensar-se essa relação de causalidade, bastando que se apure que na ocasião do embate o condutor apresentava taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, e que foi o responsável pelo acidente,

Decisão Texto Integral:  

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I. Relatório:

 “Ageas Portugal - Companhia de Seguros, S.A.”, instaurou ação declarativa de condenação, com processo comum, contra AA, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 94.620,78, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.

Alegou, ter ocorrido um acidente de viação, sendo um dos veículos intervenientes no acidente, conduzido pelo Réu, cuja responsabilidade imputa a este último, o qual conduzia sob a influência do álcool, situação esta que determinou o comportamento do Réu na condução e foi causadora do acidente, tendo a Autora pago a quantia peticionada, a título de liquidação de despesas e indemnização do lesado.

O Réu contestou que a taxa de álcool no sangue que apresentava não foi causa direta e necessária do acidente, que ocorreria do mesmo modo, ainda que não tivesse ingerido bebidas alcoólicas, que a recolha de sangue não foi feito de acordo com os requisitos legais e que os montantes peticionados pela Autora se encontram prescritos. E a título reconvencional, alegou que celebrou com a Autora um seguro válido que dispunha de coberturas adicionais que cobriam os casos de choque, colisão e capotamento, até ao valor de € 68.000,00, deduzido da franquia de € 700,00, para os casos de despesas de tratamento até ao valor de € 1.000,00 e de subsídio de internamento hospitalar no valor diário de € 10,00, peticionando a condenação da Autora a pagar-lhe a quantia de € 59.010,00 pelos danos sofridos com o acidente, acrescido de juros de mora, à taxa legal contados desde a notificação da Autora até integral pagamento.

Instruídos os autos e realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação totalmente procedente e improcedente o pedido reconvencional, condenando o Réu, AA, a pagar à Autora, “Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S.A.” a quantia de € 94.620,78, acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a citação até integral pagamento.

O Réu apelou e a Relação confirmou a sentença da qual veio a ser interposta a presente Revista e na qual se conclui:

“PRIMEIRA: Versa o presente recurso de Revista sobre a questão da exata definição dos pressupostos do direito de regresso legalmente atribuído à seguradora e bem assim se há data do sinistro (abril de 2012) tinha aplicação ou estava vigente o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 6/2002, de 28/05, como, assim, foi entendido e defendido pela Mma. Juiz do Tribunal de 1ª Instância.

SEGUNDA: Como assim se procurará demonstrar por alusão ao douto acórdão proferido por unanimidade por este Venerando Tribunal em 06-07-2011, no processo 129/08.7TBPTL.G1.S1, em que foi Relator o Exmo. Juiz Conselheiro João Bernardo,

TERCEIRA: À data do sinistro em discussão nos presentes autos, o entendimento perfilhado por este Venerando Tribunal era no sentido de que O artigo 27.º do Decreto-Lei n.º291/2007, de 21.8 deve ser interpretado de modo a continuar o entendimento de que o direito de regresso da seguradora, nos casos de condução sob o efeito do álcool, só surge se tiver havido uma relação causal entre a etilização e a produção do evento.

QUARTA: Com a fundamentação vertida no supracitado e douto Aresto que aqui se deixa reproduzido, por brevidade.

QUINTA: E deste douto e bem elaborado Aresto o que se alcança, de modo pacífico, é que a nossa Jurisprudência Superior, não obstante a alteração legislativa introduzida pelo Decreto-Lei 291/2007, manteve durante vários anos o entendimento de que o direito de regresso das seguradoras, nos casos de condução sob o efeito do álcool, só surge se verificados os pressupostos da relação causal entre a etilização e a produção do evento.

QUINTA: E, por isso, é que importa decidir esta concreta querela como assim era normal e comum este Venerando Tribunal decidir na altura em que ocorreu o sinistro que se discute nos autos.

SEXTA: E assim, por força da decisão proferida pelo Tribunal da Relação a respeito da decisão vertida sobre a matéria de facto que havia recaído sobre o ponto 12 dos Factos Provados, verificando-se que a autora – a quem competia o ónus da prova – não logrou demonstrar o nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente, não pode proceder o invocado e reclamado direito de regresso.

SÉTIMA: Consequentemente, haveremos também de concluir, tal como assim entendeu o Tribunal de 1ª Instância, que o Acórdão do S.T.J. Uniformizador de Jurisprudência n.º 6/2002, de 28/05 estava vigente e tinha aplicação à data do sinistro.

OITAVA: Pelo que se impõe a revogação do Acórdão proferido e se conclua pela não verificação dos pressupostos indispensáveis ao exercício do direito de regresso reclamado pela autora.

NONA: Por outro lado, como resulta do disposto no artigo 371º do Código Civil, os documentos autênticos (só) fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora.

DÉCIMA: Serve isto para dizer que o Relatório Final do Instituto Nacional de Medicina Legal só faz prova plena do que foi praticado naquele instituto; não fazendo prova (e muito menos plena) do local de colheita do sangue, nem da data e hora de colheita do sangue.

DÉCIMA PRIMEIRA: Tudo quanto possa ter-se passado, a respeito da colheita do sangue, seu armazenamento e transporte, assim como quanto às condições do seu acondicionamento, em momento anterior às 11 horas e 51 minutos do dia … .04.2012 não pode ser atestado pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, pelo que o Relatório não faz prova absolutamente nenhuma dessa concreta factualidade.

DÉCIMA SEGUNDA: A única prova que o Relatório faz é que o sangue contido numa bolsa da GNR, com o selo ……, apresentou um resultado positivo de 0,93g/l.

DÉCIMA TERCEIRA: De igual modo, o relatório do INML não faz prova (e muito menos plena) da identificação do analisado; ou se quisermos que o sangue analisado tivesse sido colhido ao autor, ali identificado como AA.

DÉCIMA QUARTA: Vai, por isso, atacada a decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto a respeito da força probatória plena (e do seu alcance) do Relatório Final da autoria do Instituto Nacional de Medicina Legal do serviço de toxicologia forense, junto aos autos a fls. 125, que é matéria de sindicância deste Tribunal, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 674º do C.P.C., por violação, por errada aplicação e interpretação, do disposto do artigo 371º do Código Civil, que fixa a força de determinado meio de prova.

DÉCIMA QUINTA: Entretanto, ao invés, o que prova aquele Relatório Final, por se tratarem de factos que foram atestados com base nas perceções da entidade documentadora, é que nos impressos de requisição destas análises não constam: carimbo de estabelecimento de saúde, vinheta do médico que promoveu a colheita

DÉCIMA SEXTA: De onde se haverá de concluir, necessariamente, que ficamos sem saber quem foi o médico (se é que foi algum médico) que promoveu a colheita e sem saber em que estabelecimento de saúde foi feita a colheita e também sem que se saiba a data e a hora da colheita do sangue, que só poderá ser atestado por um médico.

DÉCIMA SÉTIMA: O que é obrigatório, por imposição legal, mormente por força do Regulamento de Fiscalização da Condução Sob Influência do Álcool ou de substâncias psicotrópicas, introduzido pela Lei 18/2007, de 17 de maio e em vigor à data do sinistro em discussão nos autos, e por força do regulamentado através da Portaria n.º 902-B/2007, de 13 de agosto.

DÉCIMA OITAVA: Até porque só assim se poderá ter como verificado e atestado por entidade oficial (no caso o médico do estabelecimento de saúde) a identificação da pessoa que foi sujeita à colheita do sangue e bem assim o local e a hora da colheita.

DÉCIMA NONA: E do que decorre dos supracitados diplomas legais impõe-se concluir, como indiciava já o teor das Observações constantes no Relatório do INML, que a recolha do sangue supostamente feita ao sinistrado não obedeceu aos requisitos e procedimentos impostos por lei e pela Portaria que veio regulamentar a recolha do álcool no sangue.

VIGÉSIMA: Desde logo, no que respeita à falta de identificação do médico que necessariamente teria de realizar a colheita; à falta de vinheta do médico; à falta de carimbo do estabelecimento de saúde onde a colheita teria de ser necessariamente feita; e consequentemente à falta do impresso do modelo i, que necessariamente teria de ser preenchido e assinado pelo médico (que se desconhece quem tenha sido); à incerteza quanto ao modo como foi acondicionada a amostra do sangue; como foi selado contentor onde deveria ser introduzido o tubo que deveria conter a amostra e introduzido na bolsa, cujo procedimento teria de ser feito necessariamente pelo médico; à total falta de certeza sobre a correta expedição por parte do Estabelecimento de Saúde da amostra para o INML, dado não constar o carimbo do estabelecimento; a total falta de certeza sobre o modo como foi obtido o volume de sangue venoso suficiente para encher por completo o tubo (já que não se sabe a identificação de quem procedeu à sua obtenção); a falta de entrega de qualquer duplicado do impresso que atestasse a realização da recolha do álcool ao examinado ou aos seus familiares;

VIGÉSIMA PRIMEIRA: Assim, sabendo-se que o procedimento legal previsto para a recolha de sangue para efeitos de exame toxicológico é claro e vai no sentido de não haver dúvidas acerca da identificação do examinado e bem assim da data e hora da colheita, assim como do acondicionamento da amostra, por forma a que os resultados se aproximem o mais possível da realidade à data da ocorrência do acidente ou contraordenação e não seja esse resultado desvirtuado por circunstâncias exógenas.

VIGÉSIMA SEGUNDA: Impõe-se concluir, no caso dos autos, pelo não reconhecimento e pela falta de validade da recolha de sangue e do resultado toxicológico a que se reporta o Relatório do INML, por evidente e gritante violação da Lei 17/2007, de 17/05 e da Portaria n.º 902-B/2007, de 13 de agosto,

VIGÉSIMA TERCEIRA: E assim sendo, como sinceramente se espera, por ser da mais elementar justiça material, e por ser notória a violação dos supra citados ditames legais, deverá ser revogado o Acórdão recorrido e, em sua substituição, proferido douto Acórdão que absolva o réu, aqui recorrente, do pedido principal formulado pela autora e, ao invés, julgue procedente o pedido reconvencional deduzido pelo réu, por não ter ficado demonstrado que o réu conduzisse com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida.

VIGÉSIMA QUARTA: Em sede de Revista Excecional, e relativamente ao primeiro segmento destas alegações de recurso – necessidade da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente; e continuidade de aplicação da doutrina do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2012 nos anos seguintes à entrada em vigor do Decreto-Lei 291/07 – junta-se, em cumprimento do determinado na alínea c) do n.º 2 do mencionado artigo 672º do C.P.C. cópia do acórdão-fundamento com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição, e que corresponde àquele que em cima, em sede de Revista Ordinária, foi já parcialmente reproduzido.

VIGÉSIMA QUINTA: Por se considerarem preenchidos, pelos fundamentos vertidos no corpo destas alegações, todos os pressupostos de admissibilidade do recurso de Revista Excecional, ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 672º do CPC e nos termos da alínea c) do n.º 2 do mesmo dispositivo.

VIGÉSIMA SEXTA: De igual modo, e pelos motivos mencionados no corpo destas alegações, também se considera que a situação em análise nos autos, nomeadamente a necessidade imperiosa de verificação e cumprimento dos pressupostos e procedimentos legais (Lei18/2007) e regulamentares (Portaria 902-B/2007) de recolha,  acondicionamento, armazenamento e expedição para o Instituto Nacional de Medicina Legal do sangue colhido ao sinistrado para efeitos de análise do álcool, comporta matéria cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;

VIGÉSIMA SÉTIMA: Por outro lado, estando em causa a identidade da pessoa humana, estando em causa uma situação de confidencialidade, e estando em causa uma intervenção que apenas pode ser realizada por um médico (até porque a recolha do sangue obriga, necessariamente, a conhecimentos técnicos específicos) afigura-se, igualmente, estar em causa uma situação com interesse de particular relevância social, com o que se pretende que situações do gênero não voltem a repetir-se, o que seguramente se alcançará se se impuser o máximo rigor no procedimento de recolha do sangue e no cumprimento da Lei e dos Regulamentos em vigor.

VIGÉSIMA OITAVA: Consideram-se, assim, verificados os pressupostos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672º do CPC, nos termos e com os fundamentos consignados nas alíneas a) e b) do n.º 2 do mesmo dispositivo, o que, de igual modo, legitima a admissibilidade do recurso de Revista Excecional.”

A recorrida contra-alegou sustentando a confirmação da Apelação.

Cumpre decidir.

… …

Fundamentação

O Tribunal da Relação fixou como provada a seguinte matéria de facto:

“1 - Em … de Janeiro de 2012, no exercício da sua atividade, no âmbito do Ramo Não Vida, a Autora celebrou um contrato de seguro automóvel com o Réu, AA, com a apólice n.º …, relativo ao veículo automóvel, da Marca …, Modelo ..., com a matrícula ..-..-UF.

2 - No dia … de Abril de 2012, por volta das 19h, na Rua de ..., na localidade de …, Concelho de …, Distrito do …, o Réu, condutor do veículo “UF”, ao sair da rotunda, a velocidade não concretamente apurada, mas superior a 50 Km/h, perdeu o controlo da viatura, tendo embatido com a frente lateral esquerda na frente do veículo da Marca ...., Modelo …., matrícula ..-..-ZC, propriedade de “BB Mediação de Seguros, Lda.” que circulava em sentido oposto.

3 - O local do embate configura uma zona de entrada e saída de uma rotunda com duas vias de trânsito de sentido oposto.

4 - A via configura-se como uma estrada sem separador, tendo o embate ocorrido a 100 m da referida rotunda.

5 - A configuração da via tem iluminação em toda a zona.

6 - Aquando do embate o tempo estava seco.

7 - A ambulância que transportou o Réu permaneceu no local do embate entre as 19h40m e as 20h45 para estabilização do Réu, tendo chegado ao Hospital de ... no …… às 21h30m.

8 - No próprio dia 21/4/2012, pelas 23h20m, no Hospital de ..., no …. foi efetuada a colheita de sangue ao Réu, para averiguação de taxa de álcool e de substâncias psicotrópicas.

9 - Nos impressos de requisição destas análises não constam carimbo do estabelecimento de saúde e vinheta do médico que efetuou a colheita.

10 - O exame foi efetuado no INML no dia …/4/2012, às 11h51m.

11 - O Réu, condutor do veículo “UF”, submetido ao teste de pesquisa de álcool no sangue, acusou uma T.A.S. de 0,93g/l.

13 - Por causa do embate, a Autora procedeu ao pagamento da reparação do veículo “ZC” no valor de € 10.000,00 (dez mil euros).

14 - A Autora suportou ainda todas as despesas médicas, de transporte e de assistência havidas com o terceiro, condutor do veículo “ZC”, ocasionadas pela conduta do Réu.

15 - O condutor do veículo “ZC” sofreu vários danos e foi submetido a vários procedimentos médicos, ficando incapacitado de trabalhar desde a data do embate até ao dia 01 de junho de 2012.

16 - O condutor do veículo “ZC”, BB, auferia um vencimento mensal médio de € 528,50.

17 - Por causa do embate, a Autora teve que suportar a quantia de € 3.597,25 (três mil quinhentos e noventa e sete euros e vinte cinco euros), a título de despesas médicas pelos procedimentos “no membro inferior e/ou no Úmero, exceto na Anca, pé ou Fémur” sofridas pelo BB.

18 - A Autora teve que suportar despesas decorrentes das sessões de fisioterapia, no valor total de € 435,21.

19 - A Autora suportou os custos referentes aos serviços de transporte prestados a BB, os quais ascenderam a € 1.320,00 (mil trezentos e vinte euros).

20 - A Autora despendeu a quantia de € 208,00 (duzentos e oito euros), a título de despesas médicas do Hospital .... – … .

21 - A Autora, em …/4/2017, pagou a BB, a título de indemnização, o valor total de € 79.060,32, sendo este o último pagamento efetuado por aquela por causa do embate a que se alude no ponto 2.

22 - O Réu, à data do embate, tinha seguro que dispunha de coberturas adicionais, em particular que cobriam os casos de choque, colisão e capotamento, até ao valor de 68.000,00€, deduzido da franquia de 700,00€, e bem assim para os casos de despesas de tratamento até ao valor de 1.000,00€ e de subsidio de internamento hospitalar no valor diário de 10,00€.

23 - Na venda do salvado do veículo …, o Réu obteve o valor de 10.000,00€.

24 - O Réu esteve internado vários meses e foi sujeito a diversas operações e submetido aos mais variados tratamentos, tendo despendido em despesas de tratamento quantia superior a 1.000,00€.

25 - O Réu esteve internado no Hospital de .... desde o dia … de abril de 2012 até ao dia … de julho de 2012.

… …

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das Recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

O objeto da presente Revista fixado nas conclusões de recurso aponta à força probatória do relatório final do Instituto Nacional de Medicina Legal que fixou a taxa de alcoolemia e, também, à questão de saber se, segundo a lei aplicável, o direito de regresso da seguradora, nos casos de condução sob o efeito do álcool, só surge se tiver havido uma relação causal entre a etilização e a produção do evento.

… …

No domínio da regularidade e valor probatório do documento mencionado, observa-se que o recorrente pretende, na realidade, que o Supremo Tribunal de Justiça sindique a decisão da matéria de facto que, nesse inciso concreto da realização regular do exame de sangue, foi enunciada pela 1ª instância e, depois, confirmada pela Relação, que procederam à apreciação e reapreciação de meios de prova.

De facto, no precedente recurso de Apelação o R. pretendeu que se considerassem não provados os seguintes factos que a 1ª instância inscrevera na sentença:

“8 - No próprio dia 21/4/2012, pelas 23h20m, no Hospital de ...., no …. foi efetuada a colheita de sangue ao Réu, para averiguação de taxa de álcool e de substâncias psicotrópicas.

9 - Nos impressos de requisição destas análises não constam carimbo do estabelecimento de saúde e vinheta do médico que efetuou a colheita.

10 - O exame foi efetuado no INML no dia …/4/2012, às 11h51m.

11 - O Réu, condutor do veículo “UF”, submetido ao teste de pesquisa de álcool no sangue, acusou uma T.A.S. de 0,93g/l.” e cada um destes factos foi verificado pela Relação que procedeu à reapreciação dos meios de prova produzidos concluindo, também, pela sua manutenção.

Despistando a ideia de que a decisão sobre essa matéria de facto se tenha fundado, tanto em primeira instância quanto na Relação, exclusivamente, no relatório final do Instituto Nacional de Medicina Legal, de forma que cumprisse agora, na Revista, sindicar a ofensa de qualquer disposição legal referente à força probatória de tal documento (cfr. art. 674 nº3 do CPC), o que confirmamos, ao invés, é que essa matéria de facto, com exceção da que confirma a existência do exame realizado pelo IML a uma colheita de sangue registando uma determinada taxa de alcoolemia, foi apreciada através da formulação de juízos assentes na livre apreciação dos meios de prova o que, por regra, a exclui da submissão a recurso de revista, nos termos do art. 662º, nº 4, do CPC. De facto, atento o citado art. 674º, nº 3, são limitados os poderes que o Supremo Tribunal de Justiça detém relativamente à matéria de facto que as instâncias considerem provada e não provada, o que apenas pode ocorrer em casos em que o erro de apreciação das provas decorra da violação de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova ou que determine a sua força legal.

No aspeto formal, as instâncias procederam à ponderação dos meios de prova que foram produzidos num processo contraditório e, em termos materiais, nenhum dos factos relacionado com a condução sob efeito do álcool se pode considerar estar sujeito a prova tarifada ou resultou do não atendimento de algum meio de prova com valor vinculativo para as instâncias. A partir da evidência, exigível, de se encontrar junto aos autos o relatório revelador do exame laboratorial da TAS, certo é que os termos procedimentais da realização desse exame, desde a recolha da amostra até à sua submissão em laboratório para se sujeitar a análise e obter resultado, são de livre apreciação o que significa não se exigir que a certificação de ter sido um médico a realizar a recolha da amostra e esta ter sido colhida num estabelecimento de saúde, só possa realizar-se através da inscrição desses informes nos impressos de requisição das análises. Tudo o que importa é que a prova valorada e da forma como o foi permita concluir que se mostraram assegurados e cumpridos todos os formalismos legalmente exigidos para colheita e exame de quantificação de álcool no sangue, bem como a respetiva cadeia de custódia da prova, tendo a decisão da primeira instância e a da Relação afastado quaisquer dúvidas que a amostra que foi analisada no exame junto aos autos pertencesse efetivamente ao recorrente. Tendo a Relação apreciado livremente os elementos probatórios, como podia e devia (e mesmo que tivesse recorrido a presunções judiciais, que não recorreu), não existe motivo para recusar a legitimidade de tal atuação, na medida em que, mais uma vez o repetimos, se tratava matéria de facto que não envolvia exigência probatória diversa. Por demais, os factos a que o recorrente reporta e que deixámos expressos não se incluem sequer no domínio do estabelecimento de qualquer presunção judicial em que pudesse porventura justificar-se a ação cassatória do Supremo Tribunal de Justiça que, segundo a jurisprudência corrente, está nesses casos reduzida às situações em que a base das presunções não apresente qualquer logicidade – cfr. ac. STJ de 7-3-2019 no proc. 248/17.9T8BRG.G1.S2, in dgsi.pt.

No caso, a reapreciação dos meios de prova inscreveu-se no âmbito de aplicação do princípio da livre apreciação das provas, não havendo razão alguma para sindicar e alterar a decisão da Relação. E, por tanto, não podem ser objeto de qualquer modificação por parte deste Supremo Tribunal de Justiça, o facto de no dia …/4/2012, pelas 23h20m, no Hospital de ..., no … ter sido efetuada a colheita de sangue ao Réu, para averiguação de taxa de álcool e de substâncias psicotrópicas; que esse exame foi efetuado no INML no dia …/4/2012, às 11h51m e que o Réu, condutor do veículo “UF”, submetido ao teste de pesquisa de álcool no sangue, nos termos sobreditos acusou uma T.A.S. de 0,93g/l, tudo como se deixou fixado nas instâncias.

Improcedem, pois, nesta parte as conclusões de recurso.

… …

Questiona também o recorrente a interpretação que foi feita do regime jurídico aplicável ao caso. Considera que para que proceda a ação de regresso recai sobre a Seguradora a demonstração de um nexo de causalidade entre a alcoolemia e o acidente, o que não se verificaria em face da matéria de facto.

Relativamente ao exercício do direito de regresso em casos de condução sob efeito do álcool, o AcUJ nº 6/02 fixou jurisprudência no sentido de fazer depender o seu reconhecimento da prova da existência de um nexo de causalidade entre esse facto ilícito e o acidente.

Num tempo em que a jurisprudência divergia em face do regime jurídico anterior, o Supremo Tribunal de Justiça fez prevalecer, através de tal aresto uniformizador, a tese segundo a qual recaía sobre a Seguradora que pretendesse exigir o direito de regresso o ónus de provar o nexo de causalidade entre a alcoolemia e o acidente, nos termos seguintes: “A al. c) do art. 19º do DL nº 522/85, de 31-12, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente”.

Porém, como decisões anteriores já o haviam demonstrado, a aplicação da referida jurisprudência determinava, na prática, a inviabilidade de as Seguradoras ultrapassarem as exigências probatórias, o que, em regra, ficava reservado para casos em que o grau de alcoolemia era de tal modo elevado que notoriamente influía (por via de presunção judicial) na capacidade de condução automóvel. Como efeito dessa dificuldade probatória, sucediam-se as decisões que julgavam improcedentes as ações de regresso.

Por esse motivo, na revisão do regime do seguro obrigatório de responsabilidade automóvel, através do Dec. Lei nº 291/07, de 21-8, consagrou-se a solução oposta, a qual ficou inscrita no art. 27º, nº 1, al. c), nos termos do qual “satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso … contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos”.

Deste modo, por via desta intervenção legislativa, como maioritariamente se passou a entender, caducou aquela jurisprudência uniformizadora, sendo que a seguradora passou a não ter de demonstrar a existência da aludida relação de causalidade, bastando que se apure, por um lado, que na ocasião do embate o condutor apresentava taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, e que, por outro lado, o mesmo foi o responsável pelo acidente, ou seja, que o acidente lhe é imputável a título de culpa efetiva ou presumida.

Como se fez notar em registo historiográfico “É esta solução a que emerge, praticamente de modo uniforme, da jurisprudência deste Supremo, sendo claramente minoritário o aresto que o recorrente invoca em sentido diverso (o Ac. do STJ de 6-7-11, 129/08, em www.dgsi.pt). Outros arestos, mais numerosos e mais recentes, revelam a adesão a uma interpretação que, em face do dispositivo legal em vigor, prescinde da demonstração do nexo de causalidade entre a alcoolemia e o acidente: Acs. do STJ de 28-11-13, 995/10, de 21-1-14, 21/09, de 7-5-14, 1253/07, de 9-10-14, 582/11, de 14-7-16, 1305/12, de 7-2-17, 29/13 ou de 6-4-17, 1658/14.” – cfr. ac. STJ de 7-3-2019 citado.

Em acréscimo, não constitui argumento relevante o protestar-se que a jurisprudência à data dos factos ainda não teria infletido, de forma constante e significativa, o entendimento jurisprudencial segundo o qual a seguradora já não teria de demonstrar a existência da aludida relação de causalidade. Em verdade a subsunção a realizar pelos tribunais apenas está sujeita aos limites temporais da lei aplicável e aos da sua vigência não interessando que os acórdãos de abono do que se defenda se possam situar em data mais próxima ou mais distante do momento em que a lei entrou em vigor ou perfilhem posições que, na interpretação da mesma lei, pudessem ser maioritárias e tenham entretanto deixado de o ser. O julgador está sujeito à interpretação que faça da lei e não à triagem estatística de como essa lei vai sendo em cada momento interpretada maioritariamente pelos tribunais.

Improcedem na totalidade as conclusões de recurso.

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Síntese conclusiva

1 – Encontrando-se junto aos autos o relatório do exame laboratorial da taxa de alcoolemia no sangue, os procedimentos relativos à realização do exame, desde a recolha da amostra até à sua submissão em laboratório para sujeição a análise e obtenção de resultado, são de livre apreciação importando tão só que a prova mostre que foram assegurados e cumpridos todos os formalismos legalmente exigidos para colheita e exame de quantificação de álcool no sangue, bem como a respetiva cadeia de custódia da prova, garantindo-se que aquele exame corresponde àquela pessoa.

2 – Com a revisão do regime do seguro obrigatório de responsabilidade automóvel, realizada pelo Dec. Lei nº 291/07, de 21-8, caducou a jurisprudência uniformizadora do AcUJ nº 6/02 que fazia depender o direito de regresso da seguradora contra o condutor que conduzisse sob o efeito do álcool, da prova da existência de um nexo de causalidade entre esse facto ilícito e o acidente e passou a dispensar-se essa relação de causalidade, bastando que se apure que na ocasião do embate o condutor apresentava taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, e que foi o responsável pelo acidente,

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 Decisão

Pelo exposto, acorda-se em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.


Lisboa, 10 de Dezembro de 2020


Tem o voto de conformidade do 2º adjunto, Sr. Juiz Conselheiro Tibério Silva.

Tem o voto de vencido do 1º adjunto, Srª. Juiz Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza com o seguinte e completo teor: “Vencida porque perfilho a interpretação de que o Decreto-Lei n.º 291/2007 não dispensa a prova do nexo de causalidade entre a existência da taxa de alcoolemia superior à legal e o acidente.”


Relator: Cons. Manuel Capelo

1º adjunto: Srª. Juiz Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

2º adjunto: Sr. Juiz Conselheiro Tibério Silva